Imaginemosum partido de esquerda que, de uma hora para outra, deixasse de ser racista. Quantos dirigentes teriam que dar espaço aos negros e negras na direção dos partidos? Os palanques e revistas teriam que ter oradores e colunistas negros para falarem de – pasmem! – Economia, filosofia-política, urbanismo, marxismo, sociologia, tática & estratégia! Os coletivos teriam que pensar em lugares melhores que a Vila Madalena, e em horários melhores que “segunda-feira a tarde” para reuniões! Os recursos partidários seriam empregados para a eleição de homens e mulheres negras… Nem a Lava Jato causaria impacto tão grande na política brasileira!
Sejamos sinceros: O Estado é uma criação europeia, e os partidos também. A nossa República foi criada em oposição à Abolição. A “Democracia” formalmente fundada em 1988 é genocida do povo negro… Enfim: se o racismo é parte fundamental do capitalismo, tudo que foi inventado pela burguesia (Estado e partido) é essencialmente racista. Se quisermos pensar em “liberdade política” para negros e negras, não olhemos para os partidos, mas para os Quilombos!!! Democracia representativa não representa nem branco pobre, que dirá negro! Só uma política verdadeiramente antirracista poderá dar uma resposta real, na perspectiva de classe, para brancos pobres.
Não que eu diga que devemos abolir os partidos de esquerda, e que partidos de esquerda e direita não têm diferença, ou que uma pessoa negra não deva votar, se filiar, exercer militância com companheiros brancos ou até se candidatar e ser eleita… NADA DISSO! Enquanto a gente não destrói o velho e cria o novo, nós negros devemos ocupar todos os espaços de poder (mas é difícil quando se tem que viver entre a dicotômica necessidade de trabalhar e existência política).
Apesar de ser colunista do Jornalistas Livres e não do BuzzFeed, acho interessante propor uma lista para saber você identificar se seu partido-coletivo é ou não racista. Tenha em mente que cerca de 54% da população brasileira se autodeclara negra ou parda. Esta lista não esgotará todos os meios possíveis de identificação de racismo estrutural.
PERGUNTAS PARA SABER SE SUA ORGANIZAÇÃO DE ESQUERDA É RACISTA
1 – A proporção da direção (partidária, sindical, ou do movimento social) é igual ou superior a 54%? Se “horizontal”, a proporção de negros e negras é suficiente para garantir influência na toda de decisões?
2 – Sobre o que os negros são chamados para falar, na maioria das vezes, nos eventos promovidos pela sua organização? Se o “LUGAR DE FALA” do negro for só para falar da questão racial, desconfie: não querem te ver falando de economia e outros assuntos “relevantes”.
3 – No debate sobre política de drogas, qual discurso predominante: [I] autonomia do corpo e recreação (Olha aqui o liberalismo!!!); ou [II] genocídio do Preto Pobre de Periferia (somos tão massificados que nos colocam até em siglas!)? Se for uma análise séria sobre o genocídio da população negra, temos um bom começo para o debate.
4 – Entre falas de negros e brancos, qual é obrigado a apresentar mais referências (inclusive bibliográficas) para ter as ideias aceitas como verdade?
5 – Quanto a tempo dispensado para trabalho e política, quem é obrigado a dedicar mais horas ao trabalho (como única fonte de sustento)?
6 – Quais são as principais referências políticas e teóricas no seu meio?
Estas são só algumas perguntas para refletirmos no espaço político dos negros em organizações de esquerda. Creio que, a maior parte delas, poderia ser usada para tratar da questão de gênero, e identificar o quão machista é a instituição ou movimento em que se está inserido.
Para todos os partidos e sindicatos de esquerda, e a maior parte dos coletivos, o racismo é uma ideologia mais determinante que a própria ideia de socialismo. Em outros termos: estruturas burocráticas e auto-organizadas [supostamente] à esquerda podem seguir existindo sem o “espectro do comunismo“, desde que sejam tão somente “liberais” melhores que os “liberais-fascistas” da direita. Um hipotético “Partido Social-Liberal” se passaria tranquilamente por socialista e libertário, e seria bem-vindo nos círculos universitários mais “vanguardistas”, sem sequer ser relevante para negros pobres e brancos pobres do país.
A direita é um caso perdido na questão de classe, gênero e raça. Mas há muito o que se trabalhar pela esquerda, com vistas à superação de todas as formas de exploração. A liberdade de negros e negras depende da luta real contra o Capitalismo. É preciso que todos façam parte disto. Não ser racista não é “gostar” de negro. Precisamos de muito mais que camaradagem.
A esquerda não se “salva” e nem revoluciona sem superar o Racismo. Sem utopias: o trabalho começa agora!
Lançamento do livro #Parem De Nos Matar!, de Cidinha da Silva, no Aparelha Luzia | Foto: Terremoto
Por Maria Carolina Trevisan
Fotos: Terremoto
Edição e montagem do vídeo: Joana Brasileiro
A palavra organiza o caos. Em #Parem De Nos Matar!, livro mais recente da pensadora e dramaturga negra Cidinha da Silva a crônica tem a tarefa de entregar ao leitor a crueza da realidade. Com palavras precisas, perspicazes, com sofisticação linguística e estilo potente, Cidinha faz pensar sobre o cotidiano de forma crítica. Aborda principalmente o universo em que o racismo é um dos protagonistas, junto com outras interseccionalidades que geralmente envolve o preconceito racial no Brasil, como o machismo ou as questões de classe social.
Como a realidade é árida, torna-se necessário lançar mão da beleza para tratar de temas tão duros. Nesse sentido, o texto literário atrai o leitor como se ele fosse mergulhar em uma viagem. E Cidinha emprega com sabedoria a poesia, que emociona o leitor. São “laivos de poesia e beleza para louvar a vida e a memória dos viventes exterminados pela violência física ou dos que sobreviveram, mas têm sua humanidade achatada pelo racismo”, explica a pensadora.
Autora de 11 livros publicados, entre eles literatura infantil e juvenil, romances, poemas e contos, Cidinha também escreveu peças teatrais como “Os Coloridos e Engravidei”, “Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas”, ambas encenadas pela companhia de teatro negro Os Crespos. “Oh, Margem! Reinventa os Rios” (Selo Povo), “Racismo no Brasil e Afetos Correlatos (Conversê)”, “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” (Fundação Cultural Palmares), “Sobreviventes!” (Pallas) e “Cada tridente em seu lugar e outras crônicas” (Instituto Kuanza).
“#Parem de nos matar!” (Editora Ijumaa) é seu livro mais recente. Tem prefácio de Sueli Carneiro, uma das mais importantes lideranças do movimento negro no Brasil. Em São Paulo, teve lançamento no espaço Aparelha Luzia, de cultura negra.
Jornalistas Livres – Como você descobriu o talento pelo texto literário?
Cidinha da Silva – Primeiro aconteceu o encantamento pela leitura desde que me alfabetizei aos 6 anos e consequentemente veio o desejo de criar minhas próprias histórias. Tudo então se transformou num exercício de escrita frequente: as composições do grupo escolar, as redações do ensino fundamental e médio, os trabalhos escolares, as resenhas sobre livros lidos na escola, além dos poemas ridículos escritos na adolescência.
De que maneira a literatura opera quando trata de temas tão delicados como as crônicas de sua obra mais recente “#Parem De Nos Matar!” ? O texto literário – e a poesia que tantas vezes está contida nos seus textos – ajuda a conscientizar os leitores? Por quê?
O fazer literário em #Parem de nos matar! é a construção e o refinamento de uma poética que trate de temas duros (racismo, extermínio, morte cultural e simbólica de pessoas negras), sempre que possível com laivos de poesia e beleza para louvar a vida e a memória dos viventes exterminados pela violência física ou dos que sobreviveram, mas têm sua humanidade achatada pelo racismo.
Não nutro preocupações de conscientização ou convencimento a partir de minhas idéias, desejo, sim, abrir frestas de diálogo e de percepção sensível na literatura que faço.
A literatura negra e autores negros podem contribuir para diminuir a desigualdade racial? De que maneira?
Não creio. As desigualdades raciais são resultado do racismo estrutural que nos marca de maneira indelével como sociedade. Para combatê-lo, além de cravar o direito à vida sem racismo no rol efetivo dos Direitos Humanos, são necessárias políticas públicas estruturantes.
A literatura é um sopro, um veio d’água, uma mina de ouro. Sua natureza é diferente da política de combate, a não ser que ela se pretenda combatente, o que não é o meu caso. Sua natureza é a natureza da voz que se lança no mundo e quer ser ouvida. Que pula no despenhadeiro confiante na experimentação do que vier a ocorrer.
O que relaciona esta segunda parte da resposta às desigualdades raciais do enunciado é que as vozes negras, em sociedades racistas como a brasileira, são obstadas em seu vôo de liberdade. Nesse sentido, a literatura negra amplia nossa humanidade e nos posiciona no mundo como seres mais plenos.
Na dimensão da literatura infantil, como se dá o enfrentamento ao racismo?
Creio que isso acontece por alguns fatores articulados, a saber: Pela escolha temática e posso exemplificar como o fiz em meus 3 livros infanto-juvenis.
Em “Os nove pentes d’África (2009)”, uma família negra feliz, solidária e fagueira enfrenta a morte de seu patriarca, Francisco Ayrá. Em “Kuami”, um romance de 2011, abordo a amizade de Janaína, uma sereia negra de dreadloks e Kuami, um pequeno elefante que nasce num barco no oceano Atlântico, na travessia de África para a Amazônia brasileira. “O Mar de Manu (2011)”, um conto, materializa-se em África, num vilarejo localizado em algum lugar entre 3 países da África Ocidental que não são banhados pelo mar, o Níger, o Burkina Faso e o Mali.
Outros aspectos importantes são a construção de linguagem e de personagens para contar essas histórias, no Pentes, por exemplo, a narradora é uma das netas de Francisco Ayrá, Bárbara, de 16 anos, que mesmo sendo uma das netas do meio, em termos etários, apresenta-se como a mais velha, a mais madura, a depositária dos valores familiares. Desse modo, a narradora faz uma discussão subjetiva sobre a ancestralidade.
Manu, por sua vez, é uma criança africana que aprende muito com a avó, Baya. Por exemplo, ele quer que o pai compre uma vara de pescar para que ele possa pescar estrelas, inspirado por uma história contada pela avó, dando conta de que os Tuareg (povo nômade do norte da África) quando se perdem no deserto espetam uma estrela com a lança e ela lhes ilumina o caminho de volta.
A elaboração das imagens também é outro aspecto fundamental. O livro precisa apresentar imagens dignas das personagens, as negras, principalmente, evitando, assim, estigmas e estereótipos racistas na trama social brasileira.
Uma de suas crônicas aborda a impunidade para crimes que envolvem práticas racistas (como a violência policial). Por que isso acontece, na sua opinião? Como podemos avançar?
O tratamento dado à Chacina do Cabula (19 de fevereiro de 2016), quando 12 homens negros foram mortos pela polícia sob alegações estapafúrdias de legítima defesa dos policiais, tratada como gol de placa pelo governador do estado e policiais inocentados pela justiça é um bom exemplo. A Campanha Reaja ou será morto! Reaja ou será morta! está lutando pela federalização do caso, como forma de enfrentar os vícios de produção de inocência no caso da justiça local quando os crimes envolvem policiais.
Como mulheres negras preparam seus filhos para lidar com a polícia e ao mesmo tempo manter a autoestima e o orgulho de ser negro?
Existe uma charge que circula pela internet bastante emblemática, um garoto branco vai sair e avisa a mãe. Ela responde: Tá bom, filho. Leva o agasalho, vai esfriar. Do outro lado, um garoto negro diz a mesma coisa à mãe e ela responde algo como: Não esqueça a carteira de identidade, não corra em hipótese alguma, nem para pegar ônibus, se tiver uma viatura policial por perto; se um policial te abordar, não se assuste, não fale alto, faça o que ele pedir, evite gestos bruscos, deixe as mãos à vista. Não esqueça de levar o agasalho. Vai esfriar.
O orgulho negro, como se vê, é aprender a se manter vivo.
Como você compreende a ascensão política de Fernando Holiday (DEM-SP), que rejeita o Hino da Negritude, entre outras expressões da luta pela justiça racial?
Rejeitar o Hino da Negritude é um direito dele (nosso). A gente pode gostar ou não. A gente pode inclusive discordar do sentido político daquela letra. Ela pode se filiar a uma concepção de luta racial que não é a nossa. Não vejo problema nisso.
Problemática é a postura política de direita representada por Holiday e o papel retrógrado do negro que é anti-negro, do gay que é anti-gay.
A ascensão política de Holiday pode ser compreendida no escopo do crescimento da direita no mundo e que precisa escolher membros de grupos discriminados para vocalizar uma postura política que repudie as conquistas políticas de grupos assassinados diuturnamente, apensa por serem quem são.
De que maneira age a naturalização da morte de pessoas negras? Por que a perda dessas vidas não gera comoção social ampla? Como isso pode ser desconstruído?
As pessoas negras são portadoras de vidas que valem menos em sociedades racistas e de mentalidade escravocrata como a brasileira. Logo, é mais fácil tirá-las, pois isso não pesa, não comove, não agride, não violenta a humanidade dos que se beneficiam dos privilégios raciais. Ao contrário, o morticínio negro afirma o lugar de privilégio e proteção da branquitude. É cômodo. A desconstrução se dá pela luta política, pelo enfrentamento dos crimes, pela punição dos culpados, pelo fim da impunidade, pela elaboração de leis, práticas culturais e políticas que valorizem as pessoas negras e enfrentem as desigualdades raciais de maneira sistêmica.
Que consequências pode ter para as conquistas da população negra – em especial, das mulheres negras – um governo que não reconhece a dimensão racial como uma linha fundamental de políticas públicas?
As piores possíveis. Antes de qualquer coisa, esse governo não deveria estar aí. É ilegítimo. É usurpador. A luta deve ser para derrubá-lo, não para “melhorá-lo”. Não é possível “melhorá-lo” porque ele é um embuste desde o nascedouro.
Por que é tão difícil a sociedade brasileira reconhecer seu racismo estrutural e as assimetrias raciais a que estamos submetidos até hoje?
Porque é cômodo, confortável e lucrativo para a branquitude que se beneficia dos privilégios raciais.
—
A repórter Maria Carolina Trevisan participou da leitura do livro no evento de lançamento, no Aparelha Luzia, ao lado do educador Ruivo Lopes. Assista a trechos do lançamento:
Eu nunca me esqueci de uma certa aula de direito ambiental, no quarto ano da faculdade. Uma discussão acalorada sobre a Farra do Boi, em que o direito dos animais era contraposto ao direito à cultura. Os pobres ruminantes eram arduamente “defendidos” por uma parte da sala [majoritariamente não-vegetariana], enquanto a tradição catarinense era defendida pela outra (totalmente paulista!). É um debate interessante, mas não preciso entrar no mérito [não como carne, e curto cultura! ].
Não tive tempo para pensar na reação deles se “descobrissem” que existe um genocídio do povo negro em curso no Brasil. Uma colega, cujo nome não será revelado [mas você pode substituir pelo nome de qualquer colega racista de teu trabalho, escola, faculdade, igreja…] soltou a seguinte afirmação: “Se a Farra do Boi é cultural, então a escravidão também foi! ” (sic). Rostos horrorizados olharam para ela e depois se voltaram para mim. Este texto não é a resposta que dei para ela, mas fruto de uma reflexão posterior. Vamos falar sobre RESSENTIMENTO ou VITIMISMO…, mas de quem?
Minha colega [insira o nome aqui], vai nos servir de exemplo hoje. Tem muita gente falando de vitimismo negro (sic), e acho que não podemos fugir deste assunto que tanto vitima o bom senso. Vou chegar no tal do “vitimismo negro”, mas antes tenho que falar brevemente do “ressentimento racista” e seu lugar na história e política do Brasil.
Reconstituindo
A “república” se tornou “real” no Brasil quando as aspirações republicanas encontraram o ressentimento escravagista. A Monarquia morreu sem honra, ou distinção, e a República nasceu sem virtude, neste país de abolição atrasada e democracia racial infecunda. O 15 de novembro é a generalização do 14 de maio no imaginário popular dos brasileiros. Se o dia 20 de novembro é a data oficial do Dia da Consciência Negra; o 14 de maio é, não-oficialmente, o[s 365] dia[s] da consciência branca. Não bastou um dia pós a Lei Áurea (13 de maio de 1888) para que todo o ressentimento racista aflorasse nas mentes das elites (e das massas).
A parte histórica que trato aqui pode ser lido com mais profundidade no livro do senhor Flavio Gomes, Negros e Política (1888 – 1937), que descreve uma peculiar movimentação de fazendeiros escravagistas que ficou conhecida como 14 de Maio. Insatisfeitos com a libertação dos negros, fazendeiros passaram a engrossar o coro republicano pelo fim da Monarquia no Brasil. Os “ex-escravos perceberam rapidamente que seus ex-senhores haviam trocado suas roupas de fazendeiros por fardas republicanas”1. Nada de progressismo; apenas negócios. Esta é a base material de uma ideologia política baseada em (I) mitigar os efeitos econômicos e políticos da libertação de negros na estrutura capitalista, e (II) impedir a Liberdade de negros no país.
Não garantir acesso a terras e dar preferência à mão de obra de colonos de outros países (europeus ou asiáticos) são exemplos da primeira; criar uma constituição que excluía analfabetos e mulheres era exemplo o segundo exemplo imediato. Nada de trabalho digno, terras ou participação política aos negros. As consequências, que se seguem hoje, em bases econômicas, são menores salários (SOBRETUDO PARA AS MULHERES NEGRAS) e baixos níveis de acesso à educação superior para negros. No âmbito das liberdades constitucionais, afronta ao direito à vida, por meio de genocídio e encarceramento em massa. O nosso modelo de democracia representativa, garante um Congresso e um corpo Administrativo majoritariamente branco, dando prova da não concretização das Liberdades Políticas (direito a participação, deliberação e decisão no âmbito da vida pública).
Voltando a hoje
Apesar de tudo o que foi dito, o povo negro segue resistindo, sobrevivendo e criando. Não há de se falar em cultura brasileira sem se falar do legado de negros e negras que aqui vivem. Racistas amam nossas músicas (conscientes ou não da negritude que nelas bate!). E apesar das estruturas formais de opressão institucionalizadas, foram criados Quilombos com estruturas sociais e políticas ricas; além de diversos movimentos sociais de pauta racial que continuam a surgir até hoje. Temos muito do que nos orgulhar, enquanto negros.
Mas voltando aos racistas… A consciência não é um produto metafísico. É fruto das relações sociais que são construídas e reificadas. O surgimento de estruturas racistas baseadas na necessidade da opressão de uma raça sobre a outra, garante a existência de uma consciência racista. Falar em mera “falta de caráter” de alguns é um reducionismo que casa com a ingenuidade e adultera com a desonestidade intelectual. Daí surge o que chamamos aqui de Ressentimento Racista: a não aceitação da perda de privilégios econômicos, sociais, culturais e políticos. É não aceitar que quando a escravidão foi abolida, abolimos uma forma de manifestação de “cultura racista” [partindo da premissa da nossa colega, que não entende que a escravidão tendia à destruição de vidas e culturas].
Aqueles que “nenhuma culpa tiveram pelo mal que foi feito com a escravidão”, mas que hoje gozam dos privilégios dela advindos, não podem aceitar qualquer avanço na questão racial. Não vão aceitar cotas raciais; não vão aceitar fim da desmilitarização; não vão aceitar descriminalização das drogas; não vão aceitar reforma agrária e nem demarcação de terras indígenas; não vão aceitar direitos trabalhistas para empregadas-domésticas… E quando qualquer novo direito é conquistado; ou quando a voz negra se faz impossível de não ouvir, as elites de 14 de Maio ressurgem: de camisetas da CBF, escrevendo em colunas de jornal ou vociferando pela internet. AGEM COMO SE VÍTIMAS FOSSEM! FICAM RESSENTIDOS!
Mas, o que é a condição subjetiva de um negro ou negra, que passou a vida sendo explorado (como escravo ou empregada-doméstica), e por isso expressa indignação; com a reação de massas racistas contra qualquer conquista de direito ou reivindicação negra?! A nossa organização política e social é o fruto de um ressentimento racista com o fim da escravidão! Há umas voz em cada mente racista que grita: “Vocês já saíram de nossas fazendas, por que ainda querem mais?”. E depois chegam com discurso de vitimismo negro!
O povo negro a cada dia ganha mais consciência de seu papel na luta de classes.
Estamos aprendendo a nos orgulhar cada dia mais de nossa imagem, sem medo de nos inserirmos em espaços que outrora foram negados a nós. A cada dia abaixamos menos as nossas cabeças. Isto não é vitimismo! E na próxima vez que alguém falar que feriado da consciência negra é vitimismo eu me orgulharei de dizer: “ZUMBI MATOU FOI POUCO [escravocratas torturadores]!”. Nenhum direito a menos!
1 – GOMES, Flavio. Os negros e a política. Ed. Zahar. p. 20 e 21
O democrata Fernando Feriado (DEM-SP), aquele que construiu uma legislatura contra o holiday da consciência negra, entra na frente sul-americana de batalha, iniciada por Trump (o que salvou a América do socialismo-democrata de Berni… Hilary!), contra o FAKE NEWS.
Tudo começou quando a intrépida jornalista Tatiana Farah, do site BuzzFeed Brasil (site que todos conhecemos por listas tiradas de pérolas do Twitter), publicou uma matéria que denunciava Caixa 2 na campanha de Holiday. Dada a repercussão da acusação, Fernando Holiday foi convidado a dar entrevista por telefone a Fábio Pannunzio da Rádio Bandeirantes.
Como “confusão” é palavra usada por jornalismo ruim que nada esclarece, vamos ao que aconteceu nos quase quatro minutos de “entrevista”: (I) o jornalista iniciou a entrevista com a convicção formada a respeito da culpa do suspeito, que é negro. (II) Por meio de tom intimidatório, deixou o acusado em situação desconcertante; (III) fazendo com que logo perdesse o controle sobre suas emoções. (IV) O acusado grita, desesperado para provar a inocência, e (V) logo é acusado de mal-educado pelo jornalista que encerra a entrevista. Nada de novo no jornalismo brasileiro: a narração que vemos aqui poderia muito bem ser aplicada a algum repórter de noticiário sangrento de algum programa de televisão como Brasil Urgente, também do Grupo Bandeirantes. Mais uma vez o negro foi colocado como um “marginal”.
Mas em respeito ao Vereador, não vamos colocá-lo na posição de vítima do jornalismo brasileiro. Lembremos que toda a sua campanha e legislatura se dão contra o “vitimismo” dos pobres, negros e homossexuais. Pannunzio repetiu o jornalismo ruim das grandes mídias; mas seu maior demérito foi não ter deixado Holiday falar. Por isso, vamos nos atentar mais ao vídeo divulgado pelo próprio Fernando.
Primeiro o vereador começa seu ataque ao site e à jornalista, que é acusada de apoiar o PT e o PSOL. E eis a primeira contradição: se é mentira tudo o que é dito por jornalista com posição política, então o próprio vereador não deveria dar tanto crédito a denúncias contra o PT feitas pelos “jornalismo” da Veja e da Globo, que por sua vez, são veículos de imprensa nitidamente de direita. Logo, se o que se falou do Holiday pela Tatiana Farah é mentira, o que se falou do Lula pelo William Waack também é?!
Depois diz que há um incômodo pelo jeito novo de se fazer campanha. Eu desafio o Fernando Holiday a provar a novidade em: (I) fazer parte de um partido envolvido em várias denúncias de corrupção, (II) fazer campanha de ódio contra movimentos, partidos e conquistas sociais à esquerda, (III) usar a internet e compartilhamentos por parte de seguidores (GRANDE NOVIDADE, COMO NINGUÉM MAIS TINHA PENSADO NISSO?!) e, claro (IV) uso de dinheiro não declarado à justiça eleitoral (caixa 2 se fosse petista) para pagar panfleteiros. O “inventor da roda” das campanhas eleitorais cai no “eterno retorno” de criticar a Dilma.
É um niilista, que procura preencher o vazio da política com a demonização de determinadas personalidades.
Mas Fernando Holiday é “Legal”, amigo da Lei e inimigo da corrupção. Então ele vem com seu grande trunfo, que nós, conspiradores-bolivarianos-militantes não esperávamos, o Art. 27 da Lei 9.504/97 que diz: Qualquer eleitor poderá realizar gastos, em apoio a candidato de sua preferência, até a quantia equivalente a um mil UFIR, não sujeitos a contabilização, desde que não reembolsados.
Se eu fosse o Pannunzio, teria deixado o vereador explicar este artigo num verdadeiro malabarismo de hermenêutica jurídica. Eu adoraria perguntar se o problema de Fernando Holiday é não entender do que é acusado ou não conseguir intepretar o texto legal (ou o que é pior: tirar o cidadão de ignorante). Pois, o que tem a ver um artigo que fala que o “eleitor pode realizar gastos” com o “eleitor que recebe R$ 60,00 para fazer campanha”? Será que eles pagaram a própria força de trabalho? Ninguém falou em um militante super engajado que desembolsou dinheiro para a campanha do então candidato. Mas de um candidato que desembolsou dinheiro sem declarar à Justiça Eleitoral.
Mas num ponto, falando por mim, que sou negro, o vereador tem razão: eu não admito na Câmara qualquer pessoa, negra ou branca, que seja contrária às cotas raciais, ou qualquer outra política pública para negros. Mas Fernando Holiday é negro, e se acha, por conta disso, legitimado para falar em nome de todos nós. Mas há algo que preciso ressaltar aqui: não existe superioridade moral alguma em ser um oprimido. E eu não nego que Holiday, por ser negro, de classe baixa e homossexual, seja um oprimido. Mas quando está trabalhando pela causa opressora, não age de modo tão diferente daqueles negros que se submeteram ao UNDAR, imposto pelos brancos, para, por meio da vassalagem, agirem contra outros negros.
Nossa legitimidade, Fernando, vem de nossa luta. Nossa legitimidade vem de nos recusarmos a perpetuar este longo histórico de escravidão, exclusão social e genocídio negro. Um negro na política não significa que somos livres e temos poder político enquanto negros. O racismo não é mera questão subjetiva, mas material: significa mais mortes, mais encarceramento, menos espaço para negros e salários menores. E eu não espero que você aceite o argumento da História, quando nega seu próprio histórico apagando todas os seus vídeos anteriores à sua campanha. Vídeos em que chamava de “vermes” aquele que lutam contra o racismo.
Minha solidariedade a ti, vai ao limite de você não sofrer tudo aquilo que o nosso povo sofre. Não te quero longe das universidades; nem encarcerado em prisões terríveis e muito menos morto. Eu te quero vivo, por mais que te veja engrossando as fileiras de uma política racista, machista e classista. Lembre-se, Fernando Holiday, que um negro que age contra nós negros, é como um austríaco que atacou a Áustria.
Diante da informação do novo (e também velho, já que comandou a cidade por dois mandados entre 2005 e 2012) prefeito de Uberlândia, “Coronel” Odelmo Leão, do PP, de que a prefeitura não teria dinheiro para pagar nem os funcionários públicos (veja em https://jornalistaslivres.org/2017/02/servidores-ocupam-o-plenario-da-camara-de-uberlandia/) quanto mais a infraestrutura do carnaval, parte dos vereadores decidiu chamar uma audiência pública na Câmara em 11 de janeiro. Parlamentares, pesquisadores, sambistas, povo do Congado e Moçambique e ativistas se revezaram nos microfones para contar a história de 64 anos de desfiles nas ruas da cidade. Jeremias Brasileiro, escritor e doutorando pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, por exemplo, contou como o carnaval incorporou as figuras do rei e rainha do Congado, proibido no Rio de Janeiro no início dos anos 1880, como Mestre Sala e Porta-Bandeira. E depois como os desfiles das escolas de sampa permitiram que os negros, pela primeira vez, já na década de 1950, pudessem usar as calçadas do centro da cidade mais importante do Triângulo Mineiro, mas que ainda tem um traço marcante de racismo. Os ritmos e festas afro-brasileiras são, portanto, uma tradição de resistência cultural e racial no município.
O presidente da Associação das Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos de Uberlândia – Assosamba, William Couto, veio na mesma toada. Entre elogios a vereadores que sempre participaram e apoiaram o carnaval, faz uma denúncia: do R$ 1.2 milhão aventado como verba cortada, apenas R$ 310.408,00 seriam destinados às escolas e sobre o restante, que seria consumido por infraestrutura, segurança e divulgação, “nunca se deu prestação de contas”. E mais, que o decreto de calamidade financeira do atual prefeito suspende as verbas para atividades festivas e comemorativas por 180 dias, o que significa que haverá dinheiro para a exposição agropecuária no final de agosto (“coincidentemente” aniversário da cidade) onde a elite irá se esbaldar por vários dias em shows de músicos sertanejos na sede do Sindicato Rural de Uberlândia: o Parque de Exposições Camaru (http://www.camaru.org.br). “Não tem dinheiro agora e terá em julho, porque em julho tem o repasse pro Camaru. Eles fazem o carnaval e recebem em julho, prefeito”, disse. Assim, apesar de afirmar que a falta de verbas seria uma oportunidade para “quebrar as correntes” e “privatizar o carnaval” pelo povo que faz a festa de fato, nas semanas seguintes a ideia inicial de manter os desfiles na rua mudou.
Na última segunda-feira, 27 de fevereiro, realmente houve o desfile de dois blocos e cinco escolas de samba numa área asfaltada e cercada dentro dos mais de 300 mil metros quadrados do complexo do Camaru. A divulgação prévia do evento, decidido de ultima hora, foi quase nenhuma. Havia coisa de cinco barracas de comida e bebida, alguns banheiros químicos, um pequeno palco com sistema de som e propaganda da rádio e TV representantes locais da Globo além da Ultragás, empresa distribuidora de derivados de petróleo cujo grupo original foi importante apoiador, inclusive financeiro, da ditadura iniciada em 1964, tendo entre seus principais executivos Henning Boilesen de Chaim Litewski, morto pelas guerrilhas de esquerda em 1971 depois de acompanhar pessoalmente diversas sessões de tortura de presos políticos na Operação Bandeirantes (veja documentário Cidadão Boilesen aqui https://www.youtube.com/watch?v=yGxIA90xXeY).
A plateia, quase que inteiramente composta pelos passistas dos grupos que se apresentaram e familiares, tinha de se espremer nas grades que a separava do espaço para as escolas e blocos para poder enxergar alguma coisa. Não havia uma arquibancada como nos sambódromos e nem calçadas, lojas e prédios onde pudessem subir para ver melhor os desfiles. Como não houve competição entre os grupos, a maioria decidiu levar poucas fantasias, alegorias e adereços. Apenas um bloco e uma escola apresentaram sambas-enredo preparados para o carnaval desse ano. O destaque foi a novata Garras de Águia, que teve a vereadora Pamela Volpi entre as passistas e pretende contar o desfile como oficial para somar no ano que vem quatro apresentações de modo a poder, pelas regras atuais da Assosamba, concorrer ao prêmio de melhor escola em 2019. Os demais decidiram guardar material e música para 2018 quando, esperam, a festa retornar à normalidade, ainda que itinerante. Afinal, como diz Jeremias Brasileiro: “O carnaval de Uberlândia sempre foi um carnaval sem lugar”.
Bateria da escola Acadêmicos do Samba
Felizmente, não choveu, o que iria estragar completamente a festa. O único espaço coberto disponível para o evento além do palco onde não cabiam mais de 20 pessoas, era uma espécie de restaurante ou bar com vista para uma área fora dos limites dedicados ao carnaval. A entrada, contudo, era restrita aos policiais em serviço, para o merecido descanso nas cadeiras de plástico das dezenas de mesas onde podia comer e beber e onde provavelmente estava o comando da operação.
O centro de controle e local de descanso dos policiais, único com cadeiras em todo o recinto
O forte do evento sem dúvida foi a segurança. Além dos guardas particulares do Camaru que revistaram todos que entraram em busca de bebidas de fora, armas e drogas, havia uns 200 ou 300 policiais e militares fortemente armados, sem contar os que faziam ronda na parte externa do Camaru. Dentro, eles caminhavam em grupos de dez, sempre com três ou quatro segurando ostensivamente os cassetetes em posição de ataque. Na área da plateia, grupos menores ficavam parados em círculos, de costas uns para os outros, de modo a não poderem ser surpreendidos por nenhum lado. Havia, ainda, grupos fixos nas cercas que delimitavam o perímetro a ser utilizado pelo evento, atrás dos banheiros e ao lado das barracas de comida.
Militares com roupas de combate “faziam a segurança” do Camaru
Mais do que apenas resistência cultural e racial, o carnaval de Uberlândia em 2017 exemplificou bem os contrastes dessa sociedade. Enquanto nunca faltou dinheiro para a festa sertaneja, que sem dúvida impulsiona negócios no campo e na cidade, a verba para o carnaval é cancelada menos de dois meses antes da data. Em 2016, mesmo com a irmandade do Congado completando 100 anos de fundação oficial (na verdade existe desde antes da emancipação da cidade), e com um prefeito negro e do PT, Gilmar Machado, a prefeitura não tinha sequer um fotógrafo para cobrir o evento. Com o poder central retornando à oligarquia rural e industrial, a festa mais popular do país só poderia mesmo ser realizada sob forte vigilância em recinto fechado. Vai que os negros, pobres e sambistas resolvem “contaminar” as “pessoas de bens”.
Ruas apenas trabalhava. Era um dos milhões de negros e índios que ainda hoje não descansam nem durante a ceia de Natal. Em um metrô, onde o Estado inexiste, em que tudo foi privatizado, inclusive, pelo visto, até a alma das pessoas, apenas pediu calma, apenas defendeu o direito do ser humano ser quem é.
A travesti, cotidianamente exposta à homofobia, desta vez, felizmente, sobreviveu. Ruas, o negro ambulante que trabalhava para a sobrevivência de sua família, foi brutalmente assassinado por neonazistas.
Rosa, há cem anos assassinada por ser comunista, dizia que ou seria socialismo ou barbárie.
As décadas passaram e, enquanto aqueles que professam o ódio e a intolerância em seu cotidiano rezavam em suas ceias de Natal – como que para livrar-se de suas consciências – a barbárie ceifava outra vida espoliada.
Luis Carlos Ruas, Presente!
Daniel Araújo Valença, professor do curso de Direito da UFERSA e doutorando em direitos humanos