Jornalistas Livres

Categoria: Índios

  • Em busca de uma Terra Sem Tantos Males!

    Em busca de uma Terra Sem Tantos Males!

    Nhanderuvuçu veio à terra e falou a Guayraypoty: “Procurem dançar, a terra vai ficar mal…” (citação da narrativa de Criação e Destruição do Mundo, dos índios Apopokuva — Nhandeva)

    Nossa Terra, como a conhecemos hoje, já foi destruída várias vezes, em algumas destas, sem a nossa ajuda. É o que dizem dezenas ou até centenas de narrativas, histórias sagradas de nossos ancestrais. Olhando bem de perto, notamos que alguma pequena ajuda sempre foi dada por alguns de nossos antepassados, quando contrariaram uma lei ou norma de conduta que dava segurança ao frágil equilíbrio de nossa instável relação com todos os seres da criação que fazem a teia da Vida neste planeta que chamamos Terra.

    O sábio Davi Kopenawa Yanomami, no livro recém-publicado “A Queda do Céu”, nos reporta algumas destas rupturas. Quando o mundo que Omami criou pela primeira vez para seu povo desabou de seus esteios, foi grande a destruição daquele mundo primevo. Outro Céu e Terra foram criados…novos mandamentos foram passados para seu povo, que deve respeitar as regras de bem viver com todos, todos os seres da criação. Não somente aqueles que reconhecemos como nossa espécie, mas todos. Os seres visíveis a nossos olhos e sentidos, mas também os que não tocamos ou nem atinamos as suas existências, devem estar nesta indescritível lista aqueles que os cientistas citam como elementos da biodiversidade dos ecossistemas, biomas das mais diversas latitudes do Planeta Terra.

    Nossos rios, lagos, igarapés, paraná, oceanos, todas as nossas bacias hidrográficas, águas subterrâneas. Nossas montanhas, cordilheiras e serras, nossos vales. Um vale do Rio Doce, ou Watú, para os burum.

    O Povo Krenak teve seu território devastado pela fúria dos colonos e desbravadores das florestas deste vale que foi nomeado de Rio Doce, e citado como Vale do Aço, numa franca declaração de desprezo pela presença deste caudaloso rio, cheio de vida e abundância que poderia suprir toda a necessidade de alimento para seus ribeirinhos. Mas o aço — ou vil metal, encontrado nas suas entranhas brilhou mais que suas águas cristalinas aos olhos do seus novos habitantes.

    Com este apelido de duvidoso gosto, passou a abrigar todos os empreendimentos mais avançados em tecnologias pesadas e agressivas ao seu entorno, com grande demanda de água, madeira e outras fontes de energia. Gerando muita riqueza para os mercados externos e exportando pobreza para países desenvolvidos. Com nossos governantes sempre a reboque de seus projetos tecnológicos, estes mesmos empreendedores decidiram qual a regulação que suas atividades deveriam sofrer ou se obrigar a cumprir como medida de proteção ao meio ambiente.

    Já foi exaustivamente repetido que “minério só da uma vez”. Mas nem por isso deixamos de ser uma economia extrativista de minério, assim como nada foi feito para proteger as florestas nativas. Como lembra Sebastião Salgado, resta somente 5% da cobertura florestal desta grande região.

    Desde a década de 1990, nosso estado de Minas Gerais tem sido informado sobre a agonia do Rio Doce, chegou mesmo a esboçar alguma ação, mas não passou de anúncio o convênios entre Minas e Espírito Santo para a promoção da malfadada Recuperação da Bacia do Rio Doce.

    O Watú, este rio índio ou indígena que chamamos de Doce, segue seu destino de rio ofendido e maltratado por gerações de viventes que tiraram de suas águas o que precisaram para viver, leva no corpo as marcas da violência e degradação que os empreendimentos, indústrias, comércio das grandes e pequenas cidades lhe dão em troca de ar puro, saúde e vida.

    Porque choram então, aqueles que nada fizeram enquanto o Watú agonizava?

    Lembrando a citação que abre este texto, que é parte de uma das narrativas de um povo indígena assolado pela ganância dos fazendeiros da soja e da cana no Mato Grosso do Sul. Essa citação lembra a todos nós que esta terra em que vivemos é mesmo imperfeita e por isso segue também o seu curso, em busca de sua Terra Sem Males ou Yvi Marãey.

    Viva todos os rios da Terra, todos os viventes!

  • Movimento Indígena e Índios em Movimento

    Movimento Indígena e Índios em Movimento

    minha geração aprendeu que a gente só pode chamar de movimento alguma coisa que tenha potência. Imagine a maré e as ondas do mar. Imagine o movimento das águas ou o vento na floresta. Imagine uma escuridão num acampamento no escuro, durante a noite, quando dá um raio todo mundo se enxerga. Às vezes esse raio dura dez anos, às vezes cinco anos. Eu penso que, e de certa maneira a minha geração compartilha essa visão, o movimento indígena teve duração, ele teve a duração desse raio, foi quando a gente foi capaz de intervir, de se reconhecer e ser reconhecido em diferentes instâncias.

    Quando virou a década de 90 penso que aquilo que era a potência desse movimento foi refluindo para seus lugares de origem, foi lidar com realidades locais, foi cuidar de suas terras que estavam demarcadas ou sendo demarcadas. Foram fazer seus programas e projetos na área de desenvolvimento sustentável, gestão ambiental, foram mexer com coisas que demandavam serviços dessas pessoas em suas comunidades. Inclusive alguns foram administrar programas e ações de saúde que estavam começando a ser contratados, e uma boa parte das associações indígenas e lideranças se formaram na década de 90, eles se habilitaram para fazer isso, para virarem gestores de contratos e convênios de projetos em suas comunidades. Mesmo os que não estavam vinculados diretamente a esses projetos, eles tinham algum tipo de demandas em suas comunidades locais. Foi como se todos tivessem voltados para casa.

    Eu sinto que a grande riqueza intrínseca do povo indígena é sua diferença.Os Krenak falam krenak, os Guarani falam guarani, os Xavante falam xavante. Todos tem seus mitos de origem, suas histórias de origem, o conhecimento de sua medicina, tem as suas próprias práticas, os próprios rituais. Serem capazes de recriarem o mundo para si. Isso é uma riqueza incalculável.

    Eu inclusive fico meio grilado quando vejo essas tentativas, meio artificiais, de as pessoas dizerem que há um novo movimento indígena. O meu amigo Daniel Munduruku falou que não tem movimento indígena, e sim índios em movimento. Eu acho mais interessante ter índios em movimento do que movimento indígena. Índios em movimento é uma possibilidade de, cada vez que der um raio, os que estiverem acordados se manifestem. Cada vez que der um raio, os que estiverem acordados, invadem o Congresso, fecham estradas, aprontam alguma.

    Isso é índio em movimento.

  • No Céu a Pena e a Caneta Guiam

    No Céu a Pena e a Caneta Guiam

    De repente o asfalto exala um estranho cheiro de terra, desnorteando o mercado, da Paulista a Pinheiros.

    Quando finda a tarde e cai a noite na grande cidade, tudo pode acontecer. Deixar a cidade de insônia dormir é algo vão. Na cidade, motoqueiros furiosos podem ser mais ameaçadores do que motosserra ou máquina brava na mata.
    Às vezes, a vida se ilumina na noite, e o que se vê em escuros assim são pessoas se beijando na mesa de bar e cantando em coro surpresas ao verem cocares em dança na metrópole.

     

    Foto: Helio Carlos Mello

    Mais se surpreendem os que descobrem que uma escola, Fernão Dias, quem diria, segue sitiada por jovens, moleques ainda, como na busca de araçá azul ou da flor de pequi. De lá, eles, felizes, se encontram e gritam juntos, dando sentido ao mundo.

     

    Foto: Helio Carlos Mello

    Seguir o movimento das coisas é bom rumo entre o visível e o invisível, mas feliz nessa vida são aqueles que seguem o fluxo do pequeno grupo, mesmo quando todos te mandam embora do grande tráfego.

    Todo corpo segue em sua dúvida e ânsia na cidade. Na aldeia não é diferente , apenas se sabe no solo comum que viver pode ser melhor, segue-se em grande marcha pela vida e razão, sem codinomes, aqui no asfalto todos são índios a parar o trânsito. Demoro a entender as pontes que unem índios em defesa da terra a alunos secundaristas. Mas nesse universo é o território que conta: aqui nesse terreno os entendimentos superam bolhas, de champagne ou água, das insanidades de Estado. O que conta nesse solo é o interesse comum. Cidadania é palavra definidora do ser.

    Foto: Helio Carlos Mello

    Vídeo: Vitório Tomaz especial para os Jornalistas Livres

     

    Foto: Helio Carlos Mello
  • Após Noite dos Trincos

    Após Noite dos Trincos

     Se o país segue em protestos, PEC’s e inundações de lama, também natural ver índios mostrando as indignações, abrindo os trincos da mídia, estrela nova naquilo que se vê no céu dos fatos.

    As novas mídias clareiam dizem adeus aos coronéis, aos cavalos bravos dos velhos diários. Após 20 anos de semeadura vê-se, entre campos e matas, o protagonismo de jovens indígenas a mostrarem o olhar de índio sem fim, sem mais nossa vanguarda no uso de técnicas. É doce o florescer e firme o brado. Em meus céus vejo que o dia clarea.

     

    A PEC 215 segue como trovão na mata, como velas acesas aos defuntos que não se calam no alvo.

    Foram muitas as instituições envolvidas na indicação da imagem como arma de comunicação, que só no tênue limite entre a loucura e a esperança da razão em terra desbravada, se abriu ao homem branco. Há uma mocidade indígena, internauta, entre o conteúdo dos fotógrafos brancos, que nos deixa de água na boca, internet de floresta, gente contra as PEC’s dos insanos.

    Na aurora do agronegócio outro palácio na alvorada se constrói.

  • Indígenas trancam BR-277 no Paraná em protesto contra a PEC 215

    Indígenas trancam BR-277 no Paraná em protesto contra a PEC 215

    Guarani-Mbyás, da aldeia Araçaí, localizada na região metropolitana de Curitiba, pediram o fim do genocídio indígena e a demarcação de suas terras.

    Dezenas de indígenas da etnia Guarani-Mbyá, da Aldeia Araçaí, a cerca de 50 km de Curitiba (PR), trancaram um trecho da BR-277 na manhã de ontem (03) em protesto contra a PEC 215. Com faixas, instrumentos musicais e cantos a Nhanderú-Divindade cultuada pela etnia-, eles pediram pelo fim do genocídio indígena e pela demarcação de suas terras. O protesto durou aproximadamente quatro horas e aconteceu na altura do Km 61, próximo ao pedágio no sentido de Paranaguá, litoral do Paraná.

    A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 em pauta foi aprovada na semana passada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados responsável pelo tema e prevê a transferência da competência pela demarcação de terras indígenas, quilombolas e de Áreas de Proteção Ambiental (APAs) do Executivo- por meio do Ministério da Justiça- para o Legislativo. O texto ainda proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.

    Segundo o cacique da Aldeia Araçaí, Laércio da Silva- Werá-Tupã no nome indígena-, a atitude de mobilização é importante para dar visibilidade à situação em que vivem atualmente. “As terras da nossa aldeia não são demarcadas, são apenas decretadas pelo Estado. Isso significa que vamos sofrer muito mais com a PEC 215”, afirma.

    Foto: Amanda Souza

    Aldeia Araçaí

    A Aldeia Araçaí está localizada em Piraquara, região metropolitana de Curitiba, e abriga um total de 78 indígenas da etnia Guarani –Mbyá. São 18 famílias com crianças, adultos e anciãos que vivem em condições precárias sob o auxílio do Programa Bolsa Família. A área da aldeia fica em uma reserva de proteção ambiental, o que impede que os indígenas possam plantar seus próprios alimentos. A maior parte das famílias garantem suas rendas a partir da venda de artesanatos e de apresentações musicais.

    Segundo Werá-Tupã, que vive há 15 anos no local, antropólogos da Funai completaram há dois meses o relatório sobre as terras da aldeia- trabalho que durou mais de seis anos- e a expectativa é que o documento seja assinado pelo presidente do órgão. Os indígenas garantem que farão pressão pela demarcação das terras.

    Foto: Isabella Lanave/R.U.A Foto Coletivo
  • Todos Cunhã

    Todos Cunhã

    por Helio Carlos Mello, especial para os Jornalistas Livres

    Numa tarde de sexta-feira piso no negro chão da rua na cidade grande. Uma estranha sensação me remete à uma aldeia xinguana em dia de Yamuricumã*. Aqui na avenida as mulheres também entoam cantos de cunhã**, vozes de mulher, como em aldeia. Aqui e agora são elas, é música de regra.

     

    Penso logo nos desatinos que aqui me conduzem e trazem as mulheres pra rua em inúmero número. A palavra de ordem é Fora Cunha, um imbecil do gênero masculino, que não me representa, mas é homem, e como no mito de aldeia, onde o índio matou o jacaré que namorava as mulheres em beira de rio, aqui me resigno e devo me portar sóbrio e pronto a apanhar delas.

     

    Somos um país de presidenta, cineasta e geneticista abrido caminhos. O vermelho proibido na avenida em outros dias, aqui ressurge hoje em pontos de útero, trompas e tambores. É música, é dança é protesto.

    Importante aqui citar Lia Zanotta Machado (1):

    “-Antes do feminismo dos anos setenta, a diferença de gênero era a diferença de sexo posta no biológico; era a diferença percebida como inferioridade do sexo feminino ou como complementaridade dos sexos na divisão sexual do trabalho.

    -Nos últimos anos, o direito à diversidade cultural se constituiu em discurso globalizado e politizado. Na arena dos acordos internacionais, o direito à diversidade cultural tem se constituído em moeda de troca para arrefecer a intensificação das reivindicações de direitos individuais à igualdade de gênero e acesso a direitos sexuais, sem que, no entanto, tenham se intensificado os direitos coletivos ou comunitários dos povos indígenas. A diversidade cultural tem sido reivindicada especialmente por estados nações onde os interditos da divisão sexual e dos lugares das mulheres são postos não somente como regulados pelos costumes tradicionais e orais, mas sim por leis seculares e códigos religiosos.

    -O conceito de gênero é entendido como tornando-se ou podendo tornar-se em outra forma, não mais identidades, mas identificações, propondo uma ruptura das dicotomias como a heterossexualidade e a homossexualidade, masculinidade e feminilidade”.

     

    Não quero ser o poeta de um mundo caduco ou negociarei desigualdades. Nem Drummond o foi ou fez, e como Simone de Beauvoir (2) renascida em solo secundarista me pergunto feminino

    quem somos nós? Sem marido, sem filho, sem lar, sem nenhuma superfície social e vinte e seis anos: nessa idade, tem-se vontade de pensar um pouco no mundo”.

    Na avenida encontro um país que pulsa na ressignificação cultural e avança em antigas questões de direitos e dominação patriarcal e corta o machismo de cena. Em canto e cantos há todas as cores do mundo, e vermelho é regra e marco. Num mundo possível, livre de opressão, reinventado , onde homem no resguardo e mulher dona de si avançam de mãos dadas.

     

    Na Avenida, como diante de rio, me sinto em fluxo.

    Fora Cunha. Somos Cunhã.


    *Yamurucumã : rito de Yamurikumã (na terminologia kamaiurá, mais difundida na região), realizado na estação seca, no qual as mulheres atuam com armas, movimentos tipicamente masculinos e ornamentos de penas e chocalhos nos tornozelos, que normalmente são usados por homens; lutam, inclusive, ohuka-huka.

    http://pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1550

    ** Cunhã: mulher, mulher jovem, mulher bonita

    (1) Professora Titular de Antropologia da Universidade de Brasília.

    (2) http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332014000100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=en

    (2) A Força Da Idade — Simone de Beauvoir — 1960