Jornalistas Livres

Autor: Henrique Cartaxo

  • MATARAM A JUSTIÇA NO BRASIL

    MATARAM A JUSTIÇA NO BRASIL

    A PF sentar em cima da decisão que saiu às 10 da manhã, até as 2 da tarde, é golpe.
     
    Moro se pronunciar sobre o assunto no meio das suas férias e gerir a polícia federal é golpe.
     
    Gebran Neto vir num domingo revogar a ordem de outro magistrado do mesmo nível é golpe.
     
    A PF mais uma vez prevaricar em cima da decisão do juiz em expediente, que reiterou sua decisão três vezes, é golpe.
     
    Thompson Flores tomar a decisão num dia em que ele não tem expediente é golpe.
     
    A Polícia Federal agora escolhe as ordens judiciais que deseja cumprir. Se não desejar, aguarda algum juiz decidir conforme a Rede Globo deseja.
     
    E você acredita quando lhe dizem que as instituições estão funcionando perfeitamente?
  • Por que torcer pela seleção brasileira? Porque o golpe não pode roubar nossas paixões.

    Por que torcer pela seleção brasileira? Porque o golpe não pode roubar nossas paixões.

    O país vive uma crise política sem precedentes. A presidência foi aviltada por um corrupto notório que, não se explica porquê, é blindado das acusações comprovadas que lhe são feitas há quase dois anos. A economia não se recuperou. O desemprego não caiu. As garantias do estado democrático de direito estão longe de serem realidade. O candidato que o povo quer ver na presidência está preso e os esforços dos golpistas para impedir sua candidatura são flagrantes.

    E vai começar a Copa do Mundo. Cujo nome oficial é “Copa do Mundo da FIFA”, que vai ser transmitida pela Rede Globo, maior apoiadora de todos os nosso golpes, que vai ser disputada pela Seleção Brasileira de Futebol, liderada por Neymar, acusado de sonegação de impostos e que tirou foto com Aécio Neves, coordenada pela CBF, afogada na lama da corrupção e de denúncias internacionais, patrocinada pelo Itaú, que lucra com todas as nossas crises, e que veste a camisa amarela, da cor do pato, oficialmente adotada pelos paneleiros em seu surto coletivo de ignorância.

    Eu sei de tudo isso.

    Mas eu ando pela cidade e vejo bandeirolas verde e amarelas penduradas nas ruas, a bandeira do Brasil pintada no asfalto. Não foi Michel Temer que mandou pintar. Vejo o trabalhador no boteco na hora do almoço comentando animadamente os esquemas táticos, melhores atacantes, maiores perigos de cada equipe. Escuto sem querer no ponto de ônibus o pessoal mandando aquele audio do zap combinando o churrasco que vai fazer no dia 17 para assistir à estréia do Brasil.

    Nada disso é motivo para pensar que essas pessoas estão deixando os seus problemas de lado, que estão se esquecendo da luta diária, dos embates políticos que precisam travar. Quem não gosta de futebol tem todo o direito de ignorar o mundial, mas a conversa de que torcer pela seleção é prenúncio de alienação é mais velha que andar pra frente. A cada quatro anos a Copa do Mundo se transforma na origem de todo os males da população brasileira.

    Não adianta, porque o povo brasileiro gosta de futebol. É uma paixão genuína e histórica, como o samba, como o carnaval. Nós já perdemos espaço político para o golpe, mas não podemos deixar os paneleiros nos roubarem essa paixão, não podemos lhes dar o monopólio da cor amarela. É muito arrogante e elitista achar que o povo brasileiro é incapaz de separar o desempenho da seleção do cenário político nacional. Que é incapaz de separar o belo gol de Neymar dos seus posicionamentos infelizes e das falcatruas dos seus contratos milionários. Não foram as vitórias de 58 e 62 que levaram ao golpe de 64, não foi a vitória de 70 que deu poder a Médici. Não foi a derrota honrosa de 82 que proporcionou a redemocratização. Não foi Romário que elegeu FHC em 94. Não foi Ronaldo que elegeu Lula em 2002.

    No fundo, é comum a elite desacreditar o mundial porque na falsa preocupação com a alienação do povo está o desprezo pelos gostos populares. A frase mais repetida é aquela que diz “Enquanto você grita gol, o Brasil vai pro buraco!”. Pois é, o Brasil está realmente num caminho sombrio, mas ele continua nesse caminho sombrio enquanto você almoça, enquanto você aprecia uma cerveja artesanal, enquanto você lê Brecht, enquanto você faz psicanálise, enquanto você tira um tarô, enquanto você vai ao teatro, enquanto você ouve Beyoncée, enquanto você dança, enquanto você faz xixi. Nada disso desautoriza ninguém. Todo mundo tem direito aos seus divertimentos. Não tentem azedar a alegria do povo de estar junto e curtir a copa, até porque não vão conseguir, só vão azedar ainda mais a si próprios.

    Então eu vou assistir os jogos do Brasil, torcendo muito. E continuo na luta. Porque a copa é a cada 4 anos, a luta é todo dia.

  • “O Gringo da Tela Verde” – Documentário experimental holandês observa Brasil em tempos de Golpe

    “O Gringo da Tela Verde” – Documentário experimental holandês observa Brasil em tempos de Golpe

    Em meio ao processo de impeachment de Dilma Roussef, um cineasta holandês, participando de uma residência do Museu da Imagem e Som de São Paulo, passeava pelas ruas da cidade buscando imagens para um projeto de documentário experimental. Douwe Dijkstra é o “Gringo da Tela Verde”, título do filme. A experiência visual consistia em deslocar as pessoas de seus cenários usuais pelo uso do Chroma Key, técnica amplamente utilizada na televisão, que usa uma tela verde atrás de pessoas para substituir o cenário através de computação gráfica.

    O plano de Douwe era colocar em seu filme diferentes personagens que compunham a diversidade da população brasileira para um olhar estrangeiro. Mas em meio ao processo de impeachment, ele percebeu que poderia fazer um comentário social mais profundo, e uma crítica ao golpe que a nossa democracia sofreu e vem sofrendo.

    O filme circulou por festivais no mundo inteiro e ganhou prêmios importantes, em festivais na França, Holanda, Polônia, Coréia do Sul, Estados Unidos, entre outros.

    Ele conversou com os Jornalistas Livres sobre o seu processo de criação e nos apresentou o filme.

    Assista e leia a entrevista:

    JL – Você teve a idéia para este filme antes de vir ao Brasil? E porque resolveu fazê-lo aqui?

    Douwe – Esse projeto começou com a idéia de fazer um filme sobre a bolha do indivíduo dentro do processo de uma grande cidade. Eu tinha vontade de usar o Chroma Key e técnicas de composição que já tinha usado no meu trabalho em estúdio aplicadas a esse tópico, num projeto de documentário. Encontrei uma residência artística no MIS, em São Paulo, uma cidade perfeita para trabalhar com esse tema e essa abordagem. Com certeza, mais do que eu pretendia originalmente, se tornou um filme sobre muitos problemas atuais do Brasil.

    JL – Como você escolheu as as pessoas que participariam do filme?

    Douwe – Encontrei a maior parte das pessoas nas ruas, circulando pela cidade com minha tradutora, Bella. Principalmente a pé, nos procuramos lugares e pessoas que eu gostaria de filmar. Estava constantemente juntando as partes de um quebra-cabeças e com a tela verde eu poderia colocar essas pessoas praticamente em qualquer lugar, na pós-produção. Escolhi as pessoas pelas mais diversas razões, mas principalmente porque achava que elas poderiam ser combinadas com outras pessoas para contar uma história. Uma visão que foi ficando mais e mais entrelaçada com os problemas políticos e sociais conforme eu ia aprendendo sobre eles.

    Alguns personagens eu procurei intencionalmente, pesquisei, fiz contatos, como a família indígena por exemplo. Alguns eu procurei porque estava formando uma série das coisas que via, como os catadores. Neles eu vi o retrato de uma realidade brutal da cidade, assim como a perseverança e a engenhosidade de que eles precisam para viver.

    JL – Você vê o seu filme como uma forma de olhar para nossa sociedade? Você vê o seu dispositivo, seu modo de filmar, como um comentário social?

    Douwe – Sim, é um olhar sobre a sociedade brasileira, mas um olhar gringo. A consciência de ser um estrangeiro foi importante no projeto. Deixei isso claro para o público e é por isso que o filme se chama “Green Screen Gringo” (O Gringo da Tela Verde). Tentei usar a tela verde como um dispositivo para fazer um cruzamento de camadas em minha observação.

    No cinema pode-se filmar situações e pessoas diferentes e, na edição, combiná-los numa única sequência. Mas eu queria mostrar a acumulação de observações fazendo essa combinação já na mesma imagem. Pra mim, se trata das combinações de imagens que você percebe e sente na sua cabeça enquanto você viaja e olha ao seu redor. Cenas que não existem na realidade mas que mostram mais na sua combinação do que o que você de fato viu, aprendeu, interpretou, bem ou mal.

    JL – A turbulência política por que passávamos e estamos passando influenciou suas decisões artísticas?

    Douwe – Muito. Quando finalmente saí do Brasil eu sabia que no meu material estava um filme sobre as observações de um estrangeiro sobre a vida nas ruas, minorias, diversidade, representação cultural e social. Mas quando começou o processo de impeachment contra Dilma Roussef e quando Michel Temer tomou a presidência eu decidi que a base da minha observação do Brasil seria esse problema político. Porque para mim essa era a observação mais trágica de todas – a injusta e incorreta representação da diversidade e das minorias na política brasileira.

    JL – Qual é a repercussão de nossa situação na Holanda? As pessoas sabem o que está acontecendo? Como seus amigos vêem tudo isso?

    Douwe – É muito interessante ver como a mídia internacional e a mídia do meu país mostram os eventos no Brasil. Uma vez que você começa a acompanhar de perto, algo que venho fazendo desde que estive no Brasil, você vê quando as coisas chegam às pessoas. Só quando a situação chega num ponto crítico é que elas chegam nos grandes canais de notícias, então a maior parte das pessoas recebe apenas parte da informação, sem muito contexto sobre os eventos menores que levaram a isso. O que é algo que acontece inevitavelmente com notícias internacionais quando você resolve não se aprofundar.

    Eu não tenho a sensação de que a mídia daqui é preconceituosa em relação ao que acontece no Brasil, mas me chocou o quanto a história é simplificada. Eu me lembro particularmente dos protestos contra Dilma em 2016, as notícias davam só um lado, de maneira simplista. Diziam simplesmente que as pessoas do Brasil estavam contra a presidente, o pano de fundo desses protestos não era explicado. E o poder da imagem também era evidente, porque esses manifestantes tinham bandeiras do Brasil, usavam as cores da bandeira. Ficava fácil ler nas imagens simplesmente que era “o povo brasileiro”, quando na verdade era majoritariamente a direita que chamava por protestos pelo impeachment ou até por um golpe militar. Por esse motivo coloquei um protesto a favor de Dilma em uma tela verde que passa por cima de uma pixação que diz “Fora Dilma. Foi a única tomada que eu não fiz, mas que foi feita a meu pedido quando eu já estava de volta à Holanda.

  • A gente tem lado – Um relato pessoal

    A gente tem lado – Um relato pessoal

    Amanheci a sexta-feira em dúvida ainda cercado de compromissos. Pairava sobre a cabeça uma nuvem de angústia, já faziam algumas noites que eu não dormia bem, me sentindo desterrado da realidade. É uma face oculta do golpe, que não toma apenas o poder político mas a própria percepção do possível e do absurdo. A hegemonia nefasta que Globo, Veja, Folha, Estadão e afins geram é tão opaca que nos faz parecer loucos aos olhos de amigos de infância, parentes, pessoas por quem muitas vezes não deixamos de ter afeto mas que hoje não se limitam a discordar de nossas opiniões, vão além: julgam que nossas opiniões são impossíveis. É uma negação total da política, que se movimenta na divergência, mas também uma negação da nossa capacidade de pensar e em suma, da nossa própria humanidade. É uma agressão e é muito doloroso de sentir.

    Eis que um amigo me chama pra ir pra São Bernardo. Depois outro. E outro. Mais um e eu cancelei tudo que tinha e fui. Nos encontramos um pouco perdidos no terminal Sacomã e uma mulher de uns 50 anos, negra, boné da CUT, estrela vermelha na camiseta, nos disse “Vocês vão pro sindicato né? É esse ônibus aqui mesmo.” Neste ônibus não cabia mais ninguém, mas nós entramos, a porta fechou logo atrás de mim e fiquei espremido contra ela. No aperto já se via mais vermelho, bandeiras, um boné com a bandeira de Cuba, um senhor com uma camiseta da campanha de 89. Era visível ali a solidez das bases que tem o PT no meio do povo, que a mídia não é capaz de destruir. Eu há alguns anos não me dizia petista, mas quanto mais essa corja podre ataca o PT mais eu fico petista; quanto mais a Globo fala mal de Lula, mais eu gosto de Lula – e mais eu detesto a Globo. O ônibus atravessava a Anchieta e as pessoas, ainda um pouco tímidas na conversa, iam jogando algumas opiniões e posicionamentos pra testar se ali já estávamos mesmo entre os nossos. Estávamos. E eu, como criança em viagem de família, perguntava a cada 5 minutos se já estava chegando.

    “Olê! Olê olê olá! Lulá! Lulá!”, descemos no ponto do pé da ladeira cantando. Na subida já encontramos mais amigos, uns que eu já conhecia, outros que eram meus amigos apenas porque estavam ali. Contei no céu 5 helicópteros. Entre as falas das lideranças políticas no trio elétrico e as canções de ordem, já circulavam boatos de que a Tropa de Choque estava chegando, mas ninguém arregou um dedo por causa disso. De repente uma vibração mais forte. Lula aparece na janela do sindicato e cumprimenta as milhares de pessoas que estavam ali. Choro pela primeira vez, por ele e pelo amor que dali emanava, pelos olhares de gratidão, solidariedade e disposição. Estávamos juntos e o nosso compromisso ali estava claro. A nuvem havia se dissipado, a angústia havia se transformado em força. Lula é meu amigo: mexeu com ele, mexeu comigo.

    O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC estava de portas abertas e nós, com os corações palpitando, entramos neste templo sagrado da esquerda brasileira, ou melhor, da humanidade. O prédio teve o abastecimento de água cortado desde a manhã sem nenhuma explicação pública, mesmo assim o sindicato providenciou água de carros-pipa, manteve os banheiros funcionando e acolheu a todos, sem ninguém que nos dissesse o que podia e o que não podia fazer, onde entrar e onde não entrar, total liberdade e responsabilidade. No terceiro andar, uma grande roda de samba, no quarto andar o bar servia cerveja, cachaça e porções de calabresa. Não era de graça, sinto a absurda obrigação de deixar isso claro, mas sim, tinha samba e tinha cerveja, tinha alegria. Porque lado a lado a gente se fortalece, cantando a gente se une e resiste à dor da violência que nos é imputada. É uma ofensa para os nossos adversários que nós estejamos alegres, pois então nós vamos cantar bem alto. Já há algum tempo venho percebendo alguns afetos do povo brasileiro que são simplesmente ingolpeáveis. A alegria da esquerda, nosso amor, nenhum golpe pode fazer diminuir.

    Soubemos então que Lula não falaria naquele dia, também que a polícia não viria. No dia seguinte, aniversário de dona Marisa, haveria uma missa aberta a todos. Lula estaria presente e só depois possivelmente se entregaria. Estava então decidido: passaríamos a noite lá. Nesse momento falei com minha mãe, sabia que ela ficaria apreensiva. Não tinha saído de casa preparado pra ficar, não me lembrava nem se tinha fechado as janelas direito, mas era simplesmente inconcebível para mim sair dali e passar a acompanhar os acontecimentos pela TV. A História estava acontecendo ali e nós éramos sujeitos ativos daquela construção, cada cabeça que se contava era importante. Eu não tinha um cobertor, mãe, mas tinha o acolhimento dos meus. O mais importante: eu estava feliz.

    Claro que não consegui dormir muito. Some-se aí mais uma noite com o sono prejudicado, mas o espírito estava pleno de energia. De manhã, dois sindicalistas me pediram pra fotografá-los diante de uma faixa com uma imagem de Lula que cobria os quatro andares do prédio. Me disseram que lembrava as faixas do primeiro de maio em Havana, pra onde eles foram numa excursão do sindicato, não pude imaginar a honra! Tiramos uma foto ali também, dá até pra ver nossos olhos cansados e incomodados. O sol matinal é inclemente com quem perde a noite, mas a essa hora já chegavam novos amigos e companheiros para a missa, trazendo uma nova vitalidade, e mesmo os que chegavam com expressões tristes logo se ambientavam no clima de acolhimento que se havia construído à noite.

    A missa começou no que havia se transformado no Vaticano da militância. Quando consegui dar a volta no trio elétrico, olhei pra cima, vi Lula abraçado com Dilma e chorei pela segunda vez. A partir daí as lágrimas não pararam mais. Entre homenagens à dona Marisa, canções, estas escolhidas pelo próprio Lula – Lulapalooza, um dos músicos brincou -, e orações como a carta de Paulo aos Coríntios e a de São Francisco de Assis – esta lida por Dilma, que saudade, Dilma! -, se lembrou sobretudo da importância do amor, do nosso dever um para com o outro naquele momento. Era evidente que estávamos ali processando um luto. Um luto necessário. Um momento para fazer as contas do que perdemos nos últimos anos, aceitar que nossos adversários políticos nos tomaram diversas trincheiras e isso culminaria no final daquele dia com a prisão do maior líder da nossa esquerda. Isso não dependia das tantas estratégias disponíveis, das tantas análises de conjuntura possíveis, nem de elaborações como esta aqui. Quem tem algum compromisso com a esquerda neste país, em presença ou em intenção, se deu as mãos naquela ladeira e rezou aquele pai nosso que encerrou a celebração.

    O que Lula falou em seguida já está sendo reproduzido e traduzido em todos os cantos da terra. O que nos atravessou, porém, não se pode reproduzir ou traduzir. Todos ali concordariam que Lula é o maior orador da história da humanidade. A sua generosidade ao apresentar todos os companheiros de luta que estavam no trio elétrico e ao apoiar as candidaturas de Manuela e Boulos, a força do seu compromisso com o povo brasileiro, esta já expressa nas suas realizações, a firmeza de sua ideologia democrática, de respeito às instituições – que justifica inclusive a sua opção por não resistir à prisão -, tudo isso foi conduzido pelo nossos corpos, que na multidão se tocavam, se apoiavam. Até os que, minutos antes, gritavam com toda a força que ele não deveria se entregar, no final entenderam e respeitaram a escolha de um homem que, convenhamos, tem mais sabedoria que nós pra decidir o que fazer naquele momento. E ele nos disse pra continuar, porque as suas idéias não podem ser presas e caminharão pelas nossas pernas, falarão pela nossa voz e baterão em nossos corações.

    “Um abraço, companheiros. E até a vitória.” Lula encerrou seu discurso como vem fazendo, dizendo que provará sua inocência e logo retornará à luta, com a expressão tranquila de quem dorme o sono dos justos. Desceu do trio elétrico e foi carregado até a entrada do sindicato, cercado pelas flores que o povo erguia, apertando as mãos das pessoas, sorrindo e chorando. As imagens disso também o mundo inteiro já viu. A comoção em que ficamos do lado de fora não tem nome. O som continuava tocando “Apesar de Você”, mas na verdade estávamos todos em silêncio. Não vi um que não chorasse, não vi um que negasse um abraço, nem um que não estivesse precisando desesperadamente de um abraço. Até agora eu choro enquanto lembro, enquanto escrevo, quando vejo uma foto, quando lembro de alguém que abracei naquela hora. Todas aquelas pessoas estão marcadas no meu coração pra sempre.

    Foi a coisa mais emocionante que eu já vivi.

    Lembro da prisão de Cunha, que não foi acompanhado nem pela esposa. Apesar da tristeza de perceber a neurose coletiva que tomou de assalto o Brasil, de termos que testemunhar absurdos completos golpeando o cotidiano enquanto se impõe a aparência de normalidade, apesar da perspectiva de tempos sombrios, ali estávamos milhares no mesmo abraço, onde tudo começou e preparados para recomeçar. Talvez a entrega de Lula sirva para nos tirar do estado de suspensão e negação em que nos encontrávamos desde o começo dos movimentos do golpe e nos leve a dar os passos além. “A gente tem lado”, ele disse em seu discurso, porque só quem é livre pode escolher de que lado está. Eu tenho lado e está claro: é com os trabalhadores que pegaram aquele ônibus comigo, com quem acenou junto quando Lula apareceu na janela, com quem tocou aquele surdo e brindou uma cerveja no terraço do sindicato, com quem dormiu naquele chão, com quem chorou junto a manhã inteira, com quem ficou sentado em frente ao portão pra não deixar Lula ir embora, com quem está disposto a seguir no compromisso de lutar. Uma certeza dessas é rara de se ter na vida.

  • Carta lida pelo cineasta Marcelo Gomes em Berlim

    Carta lida pelo cineasta Marcelo Gomes em Berlim

    Para a comunidade cinematográfica internacional

    Estamos vivendo uma grave crise democrática no Brasil. Em quase um ano sob esse governo ilegítimo, direitos da educação, saúde, trabalhistas foram duramente atingidos. Junto com todos os outros setores, o audiovisual brasileiro, especialmente o autoral, corre sério risco de acabar. A diretoria da Ancine (Agência Nacional de Cinema) está agora em processo de substituição de dois de seus quatro diretores, que serão anunciados pelo ministério do atual governo.

    O Brasil é formado por uma diversidade étnica-racial-cultural-religiosa e de gênero gigantesca. E a consciência dessa pluralidade tem se mostrado peça-chave na hora de planejar os programas educacionais, econômicos, culturais e de saúde do nosso país.

    Na política do audiovisual brasileiro, não foi diferente. Nos últimos anos, a Ancine tem direcionado suas diretrizes observando com atenção esses muitos Brasis. Ampliou o alcance dos mecanismos de fomento, que hoje atingem segmentos e formatos dos mais diversos, do cinema autoral ao videogame; das séries de TV aos filmes com perfil comercial: do desenvolvimento de roteiro à distribuição.

    O resultado é visível. O ano de 2017 começou com a expressiva presença de filmes brasileiros nos três dos principais festivais internacionais, totalizando 27 participações em Sundance, Rotterdam e Berlim. Não chegamos a esse patamar histórico sem planejamento, continuidade e diálogo entre Ancine e a classe realizadora, principalmente por meio de duas ações de fomento: a criação de uma lei que obriga os canais de TV a cabo a exibirem 3h30 de programação brasileira e a criação do Fundo Setorial do Audiovisual, que investe em várias linhas, em todos os tipos de audiovisual em qualquer fase de produção.

    Entre as políticas do Fundo Setorial, gostaríamos de destacar, em especial, as políticas regionais, o edital de TV pública, o edital voltado para filmes de arte com perfil internacional, os editais e acordos de coprodução internacional.

    As ações implementadas incidiram de forma positiva no setor audiovisual, que cresce 8,8% ao ano. Uma taxa superior à média do conjunto dos outros setores da economia brasileira, representando um valor adicionado de 0,54% na economia nacional. Esse percentual é maior do que o gerado pela indústria farmacêutica, de produtos eletrônicos e de informática, por exemplo.

    O percurso trilhado nos últimos anos posiciona a Ancine e o Setor Audiovisual em possibilidade de aprimoramento de suas ações, com disposição para o diálogo e desenvolvimento de instrumentos capazes de proporcionar, em um curto espaço de tempo, um programa de ações afirmativas com recorte de raça e gênero em consonância com a pauta global que impõe a necessidade de aprimoramento e ajuste do setor audiovisual para garantia de maior representatividade e participação da população negra e das mulheres. E acreditamos, ainda, que deve ser incrementada uma política de formação de público, artística e técnica para que novas pessoas possam se qualificar e atuar em toda a cadeia da produção audiovisual. Além de uma política de acervo, para garantir condições para manutenção e acesso ao público da grande produção audiovisual brasileira, realizada ao longo de quase um século de atividade.

    Tudo que se alcançou até aqui é fruto de um grande esforço do conjunto de agentes envolvidos entre Ancine, produtores, realizadores, distribuidores, exibidores, programadores, artistas, lideranças, poder público, entre outros. Acima de tudo, queremos garantir que toda e qualquer mudança ou aperfeiçoamento nas políticas públicas do audiovisual brasileiro sejam amplamente debatidas com o conjunto do setor e com toda a sociedade.

    Assim, pedimos às instituições, produtores e realizadores de todo o mundo que apoiem a luta e a manutenção de todos os tipos de audiovisual no Brasil. Defendemos aqui a continuidade e o incremento dessa política pública.

    Assinam esta carta os diretores e produtores dos filmes:

    • As Duas Irenes (Fabio Meira, Diana Almeida e Daniel Ribeiro)
    • Como Nossos Pais (Laís Bondaznky e Luiz Bolognesi)
    • Em Busca da Terra Sem Males (Anna Azevedo)
    • Está Vendo Coisas (Barbara Wagner e Benjamin de Burca)
    • Joaquim (Marcelo Gomes e João Vieira Jr.)
    • Mulher do Pai (Cristiane Oliveira, Graziella Ferst e Gustavo Galvão)
    • Não Devore Meu Coração! (Felipe Bragança e Marina Meliande)
    • Pendular (Julia Murat e Tatiana Leite)
    • Rifle (Davi Pretto e Paola Wink)
    • Vazante (Daniela Thomas e Sara Silveira)
    • Vênus – Filó a Fadinha Lésbica (Sávio Leite)

    Acesse aqui a lista completa de assinaturas, com mais de 300 nomes da comunidade cinematográfica de todo o mundo.

  • Dória está vendendo São Paulo

    Dória está vendendo São Paulo

    Um vídeo publicado no site da prefeitura de São Paulo anuncia: “com orgulho, o maior programa de privatização da história” da cidade. Criado para atrair investidores estrangeiros e totalmente narrado em inglês, o vídeo pretende mostrar São Paulo como uma cidade moderna – se servindo de uma imagem da ciclovia da Av. Paulista -, onde estão 50% dos bilionários do Brasil, cosmopolita e acolhedora a estrangeiros – apesar de mostrar nesse trecho apenas uma mulher supostamente libanesa, um homem asiático e um caucasiano, esquecendo-se dos imigrantes e refugiados do Oriente Médio, África e América Latina e Central – e oferece de bandeja uma gama de estruturas públicas municipais para livre uso da iniciativa privada.

    O título do vídeo é “Road Show São Paulo”. O termo Road Show é comum em vídeos de empresas que estão abrindo suas ações no mercado, numa manobra conhecida como IPO (Initial Public Offering). Uma busca por “IPO RoadShow” no youtube traz diversos resultados do gênero.

    Por volta do meio dia de hoje (14/Fev), Dória postou na sua página do Facebook um vídeo onde ele conta que acabou de sair de uma reunião com dirigentes da Investment Corporation of Dubai e da Dubai Chamber. Segundo ele “os investidores internacionais estão muito otimistas”. As postagens da página nos últimos dias têm mostrado o prefeito com investidores em eventos em Abu Dhabi. Segundo consta na reportagem oficial da prefeitura, “O evento marcou o lançamento internacional do pacote de desestatização” e nele, Dória também falou sobre o projeto Cidade Linda.

    Eis o que o vídeo coloca à venda:

    A narração do vídeo informa que a cidade está aberta para negócios envolvendo o Autódromo de Interlagos, o Complexo do Anhembi incluindo o sambódromo e o Estádio do Pacaembu. Disponibiliza para gerência, operação e uso publicitário o Parque do Ibirapuera, o Mercado Municipal, os terminais de ônibus e trem da cidade e até os cemitérios e crematórios municipais. Tudo com imagens grandiosas e detalhes em relação à frequência de público nesses espaços. São anunciados para venda também propriedades da prefeitura em lugares estratégicos, o que é ilustrado com imagens aéreas do centro da cidade.

    Um absurdo particular está na oferta de negócios envolvendo o Bilhete Único. O letreiro do vídeo diz: “Data Base and Cross Selling opportunities”, em português “Oportunidades com banco de dados e venda cruzada.”

    Em relação ao banco de dados, a prefeitura está dizendo abertamente que vai fornecer os dados dos cidadãos que usam o Bilhete Único para empresas. São dados do uso do transporte público, que informam por onde cada cidadão circula e em que horário, que serão usados para fins de marketing e propaganda.

    A oportunidade de venda cruzada, por sua vez, é também problemática. A estratégia consiste em associar a venda de um produto à de outro – comum em operadoras de internet que tentam a todo custo empurrar ao consumidor os seus “combos” com TV a cabo e telefone fixo. É isto que a prefeitura está tentando fazer com o bilhete único: entregá-lo à iniciativa privada para que se possa condicionar a venda de créditos ou do bilhete mensal à compra de outros produtos. Podemos imaginar, por exemplo, uma promoção em que se compre de maneira combinada créditos de telefone celular e do transporte, favorecendo a operadora de celular. Além de tudo, a estratégia é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 39, I).

    A invasão de privacidade e o uso pelo mercado de um serviço público essencial com o transporte são de uma crueldade infelizmente imaginável para um prefeito como Dória, que não se diz político mas gestor. Ele só esqueceu de dizer na campanha que era em favor das empresas que ele faria sua gestão, e não da população.

    Prova disso é que, ao final do vídeo, o narrador afirma que há “legal certainty”, ou seja, asseguramento jurídico para os investidores dentro deste programa de privatização. Isso pode significar que se os investimentos que forem feitos não tiverem o lucro projetado, a prefeitura estaria disposta a bancar. com o dinheiro público dos impostos, o retorno, e ainda que as instituições legais estariam ao lado dos empreendimentos em detrimento das normas que regem a economia brasileira. Esta garantia da prefeitura não está na lei, mas o programa de privatização anuncia pretender incluí-lo.

    Sem discutir com a população, sem permissão da câmara municipal e sem base legal para o seu “asseguramento jurídico”, Dória está colocando São Paulo na xepa da feira.

    Assista ao vídeo: