Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • O poder da cabeça de plumas e pés de havaianas

    O poder da cabeça de plumas e pés de havaianas

     

     

    Fotografias por Todd Southgate e Kamikia Kisêdjê

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    No limite entre a Terra Indígena Xingu e a TI Capoto/Jarina, o homem velho do beiço grande convoca, pronuncia-se. Cacique Raoni, de longa data assina a conta conjunta das vozes indígenas. Lembro-me dele desde quando nasci, há mais de meio século. Muitos homens passaram em tantas manchetes, mas Raoni sempre esteve e permanece, sóbrio, incólume.

    Ser índio, seu devir.

    por Kamikia Kisêdjê©

    É fato que a luz das margens dos rios dá lindas imagens, mas índio não é só margem, seu íntimo, tão firme, mostra-se no olho no olho, tão preciso. Canto de pássaro noturno, peixe que pega-se na flecha, festas que duram meses, segredos de outras modernagens.

    Quando conheci os povos indígenas, algo me alertou, as rotinas das celebrações, resguardos, conexões  diversas, os cantadores e dançarinos.

    Meus conhecidos, amigos originários de onde pisam meus pés, me mostram tanto arcos como diplomas, tanto tangas como celulares, sinais do admirável mundo novo, não se engane, é interplanetário o poder dos povos, o qual se infiltrou, há séculos, em nosso sangue.

    Constituinte é palavra grande. Elabora, define, movimenta, conduz.

    Palavras são assim.

     

    Convocar é verbo, fundo, reúne, expõe.

    Nomear é atitude incerta, duvidosa, implica em glória ou indecências.

    Direito, cultura, meio-ambiente, palavras ontológicas.

     

  • O peso do falo

    O peso do falo

    Há algo de obtuso no pinto do homem brasileiro, pênis inseguro, falo carente.

    Desenho de Eliseu Visconti – 1889

    Creio até que o cacete levou a certas condutas, de forcas a golpes, entre velhas e novas repúblicas, revoltas, assassinatos, tráficos. Conduz, o pinto, o homem brasileiro entre a política, a economia, as relações internacionais. Até a justiça equilibra o pinto, cega, os monólogos do gênero e pêndulo.

     

    Nesses dias, tenho ouvido amigos dizerem de chacotas sexuais entre os homens de poder, em suas roupas de banho, desafiando qualquer autoridade em questão. Envergonho-me disso, gozos desaforados, pífias vitórias, falsos troféus.

    Recordo o psiquiatra José Angelo Gaiarsa falando do pinto:

     

    Tudo indica que as culturas indígenas têm uma consciência muito maior disso. Na construção do seu pensamento baseado numa lei fundamental das emoções, Gaiarsa (Ibid., p. 17) mostra-nos que o pênis censurado gera frustração, por sua vez, gerando agressão: “eis o carinhoso instrumento da reprodução transformado em arma de ataque – de defesa – ou instrumento de tortura.”

    A total e completa falta de educação sexual agrega ainda outras “maldições”, garantindo o surgimento do “machão” transformado somente em pinto, sempre duro, sempre se afirmando teimosamente – agressivamente. Não podendo mostrá-lo, ele (machão) se fez ele (pinto) – mostrando-se sempre: como se mede o machão? Pelo comprimento do pinto, multiplicado pelo seu diâmetro, multiplicado depois pelo tempo que ele permanece duro, multiplicado, enfim, pelo número de vezes que ele chega ao amargo fim (o orgasmo é a morte do desejo – é um desmancha-prazeres -, você não acha?). (Ibid., p. 19-20).

     

    Marcos Hill, professor adjunto da Escola de Belas Artes/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)- Onde está o pênis?

    https://www.ufmg.br/revistaufmg/pdf/REVISTA_19_web_112-123.pdf

     

    Dizia também, Oswald  de Andrade, em grande ironia, devia o índio ter despido o português.

     

  • Para ser você, um cocar

    Para ser você, um cocar

     

    Índia Vanuíre foi uma mulher indígena que subia em árvores com sua melodia. Museu em seu nome relata, em Tupã, município do interior do Estado de São Paulo:

     

     

    No início do século XX, a marcha do café para o oeste de São Paulo trouxe consequências violentas para os Kaingang que ocupavam esse território. Ocorriam constantes chacinas de aldeias inteiras e grande divulgação negativa dos Kaingang por meio da imprensa, com o objetivo de desvalorização das terras dominadas pelos indígenas, para posterior valorização para aqueles que as compraram. O extermínio não se completou graças à ação do SPI – Serviço de Proteção aos Índios.
    Desde então, a índia Vanuíre faz parte do imaginário da população da região, sendo considerada uma heroína. De acordo com a lenda, Vanuíre subia em um jequitibá de dez metros de altura, onde permanecia do nascer do dia ao cair da tarde entoando cânticos de paz.
    De fato, Vanuíre foi uma Kaingang trazida de Campos Novos do Paranapanema (atual Campos Novos Paulista)pelo SPI, como estratégia de atração dos Kaingang da região para que fossem aldeados. Assim, ela atuou como intérprete, como outros. Ela simboliza o fim dos conflitos, em 1912, que resultou no aldeamento dos Kaingang em duas áreas restritas, hoje as Terras Indígenas Vanuíre e Icatu, localizadas respectivamente em Arco-Íris e Braúna (SP). A índia Vanuíre faleceu em 1918 em Icatu, onde viveu seus últimos dias.

     

    Povos da terra unem-se novamente em janeiro do ano 2020, recolhem arcos e bordunas, será palavra a arma. Grande encontro se anuncia, plumas audazes, rebeldia, onça preta numa velocidade estonteante. 

     

    Índio crê, indígenas acreditam em respostas, reto.

     

     

    É o cacique geral que soa o brado,  no pesadelo original da nação que asfixia, coagula o trombo, amazônico guardião.

    Raoni, Ropni Metuktire, nosso vento de paz prêmio Nobel, presidirá grande encontro entre os povos da floresta na semana que se inicia, pois não só indígena é seu pranto. É negro, é cafuso, é seringueiro, é ribeirinho, os fugitivos dos grilhões e alcobaça, gente difusa, de mato.

     

    Sua coroa de plumas, seu beiço de pau, seu olhar de água indicam leitos.

     

    Daqui encanto, sei que o chão puro torna os pés descalços um couro grosso, espinha, faz firme perna que caminha.

     

    Louco é quem os dizem.

  • Outro tijolo na parede

    Outro tijolo na parede

    Em momento tão diverso das expectativas

    de minha geração,

    quando tantos seres saíram do armário depois

    e vingam,

    praguejam, cobiçam,

    implodem cultura, educação,

    o meio ambiente em suas relações;

     

    a flor paralisa, me pára.

     

    É flor?

    Das delicadezas sei que surpreendem a cada dia,

    individualmente, cada humano.

     

    Hoje 

    planta antiga desvalida, árida, sequestrou meu dia. 

    Em protesto, mostra seu anúncio, tão vivo, durante algumas horas:

    existo! Grita.

     

    O sol, no céu de hoje, tal uma Carmen Miranda,

    um sol na cabeça,

    o interior da flor. 

     

     

    Amanhã finda, não estará mais lá.

    O cacto deu flores, tão belas, amarelas, fortuna momentânea.

    Rebelião é seu nome.

    Nosso couro é espinho, nosso rumo é flor.

     

    Compartilho aqui seu pudor,

    que por não tê-lo, é impura

    desafia, resiste

    tal Manuel e seu barro,

    tal Pink Floyd.

  • O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração

    O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração

     

     

     

    O elenco principal da peça é formado por Roderick Himeros, Camila Mota, Guilherme Calzavara, Joana Medeiros, Marcelo Drummond e Vera Barreto Leite; e o coro antropofágico, por Cafira Zoé, Carol Castanho, Clarisse Johansson, Cyro Morais, Danielle Rosa, Fernanda Taddei, Isabela Mariotto, Kael Studart, Kelly Campello, Lucas Andrade, Marcella Maia, Marcelo Dalourzi, Mayara Baptista, Nash Laila, Nolram Rocha, Sylvia Prado, Tony Reis, Tulio Starling, Viviane Clara e Zé Ed. Já a banda conta com a participação de Amanda Ferraresi (violoncelo), André Santana (bateria), Carina Iglecias (percussão), Felipe Botelho (baixo), Giuliano Ferrari (piano), Ito Alves (percussão) e Moita Mattos (guitarra).

    A fina flor do elenco em cena, no Teatro Oficina, em montagem de Roda Viva, traz uma sensação curiosa de alma lavada quando finda o espetáculo. É noite de chuva na metrópole e os atores exalam um aroma da legítima balbúrdia, uma poética de tons, dicções e enredo do caos. A origem, apogeu e decadência do mito.

    As portas de ferro do teatro fecham-se entre os andaimes do bunker da razão, uma ópera de Villa-Lobos inicia o espetáculo entre cenas trágicas do assassinato da mãe terra, projetadas nas paredes encantadas de Lina Bo Bardi, um grito da nação que exaspera. 

     

     

     

    Zé Celso ordena:

    – Levantem, o anjo irá descer!

    E desce dos céus, negro como a noite, tocando sua trombeta, dando fluxo aos fatos, uma digestão de público , atores inquietos e músicos viscerais, uma epopeia da perfídia do poder. É uma oficina de seres, o confronto e acordos entre o anjo e o chifrudo, o astro presidente da nação que ilude a todos, e sucumbi ao ter o fígado devorado.

     

    Os artifícios de Deus e o diabo.  A ascensão e queda de Benedito Silva, lampião, convertido num astro pop, Ben Silver,  após negociar sua alma com o capitalismo.

     

    Damares, a tresloucada, Tereza Cristina, a menina veneno, e a insana Ysani Kalapalo, nenhuma mulher nesse desgoverno cênico escapa incólume. A televisão, o WhatsApp, as fake news, o caráter; tudo corrompe o mito.

    As máscaras caem. O tirano e seu ministério estão condenados ao fracasso, há insurreição, o rei está nu. O povo tem fome de fígado, repartido cru, em forte e silenciosa cena, ao fim do espetáculo.

     

    José Celso Martinez Corrêa e o  Teatro Oficina Uzyna Uzona promovem um êxtase das emoções inconformadas, em tempos de barbáries contra a cultura e meio ambiente.

    Se distribuem flores ao final do espetáculo e conduzem o público à saída, convidando e acolhendo todos a uma retirada e recomeço, é resistência o rumo que indicam.

     

    Oficina, tecelagem, borracharia, olaria de ideias, usina. A árvore vistosa, a cisalpina plantada por Lina Bo, visão que invade o teatro, a grande subversão indica.

     

    *imagens por Helio Carlos de Mello©

     

     

  • Do mau sonho

    Do mau sonho

     

    — Porra! Quem é você?

     

    — Tenho muitos nomes. — Disse o velho. — Mas pode me chamar Anhangá.

     

    — Você não é real!

     

    — Não?

     

    — Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

    Ilustração de Susa Monteiro

    Li isso à época, boa crônica, em setembro de 2019, O TRISTE FIM DE JAIR MESSIAS BOLSONARO, por José Eduardo Agualusa,

    https://visao.sapo.pt/opiniao/2019-09-26-o-triste-fim-de-jair-messias-bolsonaro/

     

    Hoje vou entendendo que seu fim é sua glória. O ano passado morremos lentamente. Doença é assim, isso mesmo, realiza seu mau. 

    Felicidade de vírus, bactéria, fungo, pensamentos imbecis, é desestruturar.

    É como um elefante marchando em um jardim de Burle Marx, apreciando outras estéticas, muitas cores, saberes, sabores e jeitos; tudo alimenta músculos primitivos, grandes membros, tradicionais articulações. Sutilezas não cabem em seres assim.

    Sabedoria de fruto é a semente,  é salvar-se, reservar, armazenar para arar depois. Ervas daninhas ocupam o roçado, alteram curvas de nível, causam voçoroca, acabrunham. 

     

    A gente se ilude, poetisa, crê a fundo, mas será uma longa euforia mercantil em solo tão rico, próspero à emoções adolescentes, pátria amada tão linda.

    Não desanime.

     

    Enfim, seguiremos, prosseguiremos, é fim de década, novo ano, longo ciclo.