Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • O Reverso do Espelho

    O Reverso do Espelho

    Em 2010 li um texto da cientista social Syntia Alvez que versava sobre Frederico Garcia Lorca e o medo do passado que cria a ignorância do presente. Dizia ela que  para violentar alguém muitas vezes é preciso mais do que crueldade, é preciso saber o que de fato é doloroso para aquele que se quer atingir. “Às vezes as agressões precisam sair do lugar comum do que conhecemos como os modos de violência, nem sempre um ataque físico ou verbal é capaz de acertar o alvo da maneira que se pretende. Isso já é sabido há muito tempo e os atos de violência têm atingido requintes surpreendentes, mas às vezes sua eficiência se deve à atuação de maneira muito simples. As ditaduras há muito já sabem o quão violento pode ser o silêncio. Não permitir que se fale, que se escute, que se pense foi uma das violências mais eficazes descobertas pelo homem. Atingir alguém pelo silêncio, pelo não dito, pela ignorância é matá-lo para os outros, é destruí-lo de forma tão eficaz quanto uma bomba atômica, que vai direto aos átomos. O ostracismo é a violência silenciosa que pode fazer desaparecer pessoas e idéias e sem gerar grandes resistências.”

    Esse texto me leva a pensar nos povos indígenas isolados que se encontram a cada período da ocupação do território vasto do Brasil, áreas virgens ainda não pisadas. Não falar dessa gente é também a melhor maneira de dizimá-las e, principalmente quando circula a boca pequena em Brasília que as novas regras para identificação, delimitação e demarcação de Terras Indígenas já estão em fase adiantada de cozimento na Presidência da República, e que nelas foram incorporadas as tais condicionantes do Supremo Tribunal Federal (caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol) e o marco temporal. Dizem que a medida  será baixada na forma de lei ou decreto, e terá como efeito imediato colocar em questão mais de 90% da demanda hoje represada na Funai e no Ministério da Justiça.

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    Fotografia de Guilherme Gnipper Trevisan/Hutukara, dos Yanomami isolados.

    Diversas são as etnias, povos tradicionais espalhados por todo país, e vários grupos de recente contato são a todo momento apontados, a “descoberta” de mais um povo isolado. Nos habituamos com a  estratégia de esquecimento da história política e negação dos direitos. Inacreditável ainda se surpreender no Brasil nos dias de hoje. De repente um povo, mais um entre refugiados.

    Me envolvo nos novelos do fantasiar, em notícia tão breve, do tamanho de uma imagem, em que homens isolados com suas famílias denunciam outras maneiras de se viver.

    Em que isso tudo nos ameaça?

    A indigenista Dedé Maia ensina que é na convivência com os mais velhos, entre os índios, que as crianças aprendem o jeito certo de se comportar socialmente dentro do grupo e cedo aprendem a responsabilidade que elas têm com o grupo, qual o seu lugar e a sua importância em serem pessoas produtivas e participativas dentro de seu grupo social.

    Será que a ameaça é essa, aquilo que nos povos indígenas deixa o rei e os fazendeiros nus?

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    SuyáNos habituamos aos escândalos, nos escandalizamos muito pouco com os escondidos, os que fogem, os que resistem, os que habitam o desconhecido em nós mesmos. Aqueles que anseiam o linchamento de seus políticos também cegam sob os campos e matas. A vergonha também pode ser agro.

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  • Deus e o Diabo

    Deus e o Diabo

    Quando nasci fui Getulina. Em São Bernardo do Campo me percebi. Em Bauru fui jovem. Em São Paulo me entendi homem.

    Meu pai bancário, na borda do campo, me deixava correr entre a molecada e nos prédios em construção que ele nem sabia. Eu, certa vez fui suspenso por um homem barbudo, em monte de areia que brincava, nas fundações de sede de sindicato dos metalúrgicos, que entre minha casa e a fábrica da Brastemp, se erguia no ABC. O barbudo era Luis Inácio, Lula vim a saber, em fotos dos jornais nos tempos das assembleias na Matriz Nossa Senhora da Conceição da Boa Viagem e no estádio da Vila Euclides. Naquele tempo tudo fantasiava entre as multidões nos largos e os desfiles militares nas avenidas que via e meu pai me conduzia em passeios para passar o tempo.

    Uma entre muitas imagens, do fotógrafo João Bittar, no percurso do sindicalista Lula.
    Uma entre muitas imagens, do fotógrafo João Bittar, no percurso do sindicalista Lula.

    Tempos depois mudei com a família para Bauru e lá descobri a fotografia e os jornais impressos que estampavam fotografias de João Bittar, Juca Martins, Nair Benedicto e Jorge Araújo, entre outros. No cinema da cidade tive o primeiro emprego como auxiliar de projeção, abrindo grandes latas de rolos de filme e, me lembro bem, que Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, foi a primeira película que vi exibida em minha estreia fugaz no mundo das recompensas.

    Lula e Glauber passaram muitas vezes, costuraram pensamentos e entendimentos em minha geração que transitou lucidez. Mais nos colaboraram nos momentos decisivos do que nos furtaram no futuro presente .

    Mudei para São Paulo nos anos 80 já querendo a fotografia como ofício e João Bittar me acolheu durante ensaio em  funeral de Tancredo Neves, que entre populares em pranto no Incor, me entregou um cartão da Folha, após meu primeiro free lancer.

    Muitos foram os anos e os caminhos no exercício da comunicação e seus pareceres. Em  cinquentenário da vida, fico pensando  na imagem que se solidifica em nós como guia e aquelas que se  cunham hoje, por outros meios, e conduzem outras legiões.

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    Candidato à reeleição, Lula se pronuncia na convenção do PT, em Brasília, durante o lançamento da campanha.

    Lula o vi muitas vezes, Glauber apenas na grande obra e herança. Com João Bittar aprendi a olhar. Hoje tudo se assenta e polariza. Meu caminho é o da geração nascida em golpe. O que definir? Ao que me desanima e infla angústia, meus heróis derrubados, também me leva ao encontro de algo novo em cena, uma nação, cercada pelos jacarés do fascismo, pelas piranhas do atraso, pelas sequelas da falta de coragem.

    O que resta dos últimos cinquenta anos de um país? Não sei fazer poemas de guerra, dizia Manoel Bandeira no Rio antigo. Na tarde nublada de hoje pego as Cartas ao Mundo, de Glauber Rocha, empoeirada na estante, enquanto Lula mostra o umbigo em foto de Bittar na parede.

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    Intervenção sobre fotografia de Ronaldo Theobald, em determinante ensaio de Glauber Rocha.

    Dos nascidos no golpe fica a convicção e a meta da igualdade de direitos e a democracia como paradigma, mesmo que alguns a neguem e definam a ditadura e o militarismo como desejo. Esses não passarão.

  • Articulação dos Povos Indígenas do Brasil divulga documento.

    Articulação dos Povos Indígenas do Brasil divulga documento.

     

    “Governo Temer, por meio do ministro da Saúde, tenta esvaziar o Poder da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e anular a autonomia dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Indígenas reagem e travam a decisão

    Mais de 600 lideranças de povos e organizações indígenas de todas as regiões do Brasil (norte, nordeste, leste, sudeste, centro-oeste e sul) estão mobilizados em Brasília entre os dias 08 e 10 do presente, para reivindicar do Governo Temer, especialmente do Ministro da Saúde, Ricardo Barros, a suspensão das medidas que pretendiam reduzir por médio das Portarias 1.907 de 17 de outubro e 2.141 de 24 outubro, os poderes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e a autonomia dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que seriam centralizados no Ministério, na chefia de gabinete do ministro. Ambas as medidas já tinham sido revogadas em razão de uma sequência de mobilizações realizadas nos territórios e na capital federal na semana anterior, mas os seus efeitos, segundo as lideranças, estavam ainda vigorando em decorrência de um memorando interno do órgão.

    A mobilização nacional foi convocada pelos povos e organizações que compõem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FCondisi).

    Na Plenária de articulação interna,  nivelamento de informações e definição de proposições comuns, realizada na manhã da terça-feira,  08/11, os líderes indígenas condenaram o quadro de regressão e supressão de direitos que caracteriza a atual gestão, não apenas dos povos indígenas, mas de todos  os movimentos e organizações sociais e populares, por meio do congelamento de gastos públicos para os próximos 20 anos previsto na PEC 241, atualmente PEC 55,  que implica no desmonte das políticas sociais, principalmente da saúde e da educação, e dos órgãos públicos responsáveis como a Sesai e a Funai.

    As lideranças foram taxativas ao afirmar que não admitem ser vítimas de disputas políticas na base de composição do governo e menos ainda os ataques praticados “pela alta cúpula do ministério” contra a Sesai, “uma das maiores conquistas Movimento Indígena Brasileiro nos últimos tempos…, principal instrumento para a gestão da Política de Atenção à Saúde Indígena”.

    Em razão de isso, durante a reunião com o Ministro da Saúde, os líderes rechaçaram os argumentos infundados e as medidas equivocadas tomadas pelo governo, tais como a proposta da municipalização ou terceirização e a tentativa de transferir para Organizações Sociais (O. S) a gestão da saúde indígena. Reiteraram ainda, dentre outras, as reivindicações da Mobilização Indígena: fortalecimento da Sesai e dos DSEIs, restabelecendo as suas competências administrativas; participação dos povos indígenas no processo de indicação dos gestores no âmbito dos DSEIs;  prorrogação dos convênios até dezembro de 2017 para não paralisar o atendimento; e em quanto isso, constituição e funcionamento de um grupo de trabalho com participação dos povos para traçar uma proposta de um modelo de atenção à saúde indígena.

    As lideranças encerraram a reunião exigindo respostas escritas a cada uma das reinvindicações, ao que o ministro respondeu que procederá dessa forma em reunião que ficou agendada para a tarde da quarta-feira, 09/11.

    A depender das respostas do Ministro da saúde, as ocupações de DSEIs, e BRSs iniciadas a semana passada em todas as regiões do país, algumas das quais permanecem, deverão ou não continuar, conforme a orientação dos dirigentes da mobilização.

    A seguir, a íntegra do documento da Mobilização Nacional Indígena pela Defesa do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.

    MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA

    Nós representantes dos diversos povos indígenas do Brasil, reunidos na cidade de Brasília por ocasião dos recentes ataques ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, capitaneado pela alta cúpula do Ministério da Saúde, vimos por meio da presente carta manifestar nossa profunda preocupação frente as constantes tentativas de limitar a atuação da Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai e seus Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEIs. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena integrante do SUS representa uma das maiores conquistas do Movimento Indígena Brasileiro nos últimos tempos. A criação da SESAI foi o nosso principal instrumento para a gestão da Política de Atenção à Saúde Indígena. É notório que muitos desafios ainda precisam ser superados, dentre estes desafios destacamos a necessidade de estruturação de uma política de valorização e incentivo da mão de obra qualificada na saúde indígena junto as nossas comunidades.

    Temos assistido de forma perplexa a adoção de medidas administrativas que reduzem direitos conquistados a duras penas por guerreiros e guerreiras dos nossos povos. A perspectiva de aprovação da PEC 241/55, traduz um posicionamento de descompromisso desse governo com as políticas sociais no Brasil, especialmente com as políticas de saúde e educação. A referida Proposta de Emenda a Constituição deverá, caso aprovada, afetar toda a sociedade brasileira, inclusive os povos originários desse país.

    A edição recente de portarias que tentaram limitar a atuação dos DSEIs e manteve o engessamento da SESAI na pactuação de convênios e contratos, comprova a atuação desse governo de fragilizar ou inviabilizar a continuidade dos serviços de saúde ofertados em nossos territórios, tentando condenar à morte os nossos povos, já que o que está claro é a tentativa desenfreada e desrespeitosa desse governo de impôr como novo modelo de gestão da atenção à saúde indígena a celebração de convênios junto a Organizações Sociais – O.S, proposta que rechaçamos de forma veemente.

    É importante salientar que o nosso compromisso por uma política de saúde que seja executada com qualidade nos nossos territórios, e para nós, está claro, que não é matando a Sesai e o DSEIs que resolverá esse problema, por isso, lutaremos incansavelmente na defesa da manutenção e continuidade dos serviços de saúde em nossas áreas. Diante disso, solicitamos que o Ministério da Saúde atenda as seguintes reivindicações:

    • Garantir a continuidade dos serviços de saúde, por meio da prorrogação dos convênios até dezembro de 2017;
    • Garantir o fortalecimento da Sesai e DSEIs, restabelecendo as suas competências administrativas limitadas por meio de medidas internas do Ministério da Saúde;
    • Garantir a nossa participação no processo de indicação dos gestores no âmbito dos DSEIS nas regiões, rever as indicações políticas para os cargos de coordenação de DSEIs que tem fragilizado a gestão dos distritos e dificultado a relação e o diálogo com os nossos povos;
    • Garantir a homologação dos Planos Distritais de Saúde Indígena para que as diretrizes, metas e ações da saúde indígena sejam devidamente implementadas;
    • Constituição de grupo de trabalho com nossa participação, para traçar uma proposta de um modelo de atenção à saúde indígena;
    • Realizar seminários de consultas junto aos povos indígenas para discutir a saúde indígena, situação atual na área da prestação de serviços, apontar alternativas para a definição de uma política orçamentaria, de recursos humanos condizentes com as distintas realidades da saúde indígena.

    Não aceitaremos retrocessos, por isso, nos recusamos a tratar de propostas que tenham como objetivo a municipalização ou terceirização da saúde indígena, ou que a saúde indígena seja implementada por meio de Organizações Sociais.

    Nenhum direito a menos. Resistir para continuar existindo!”

    Brasília-DF, 08 de Novembro de 2016.

  • Índio Reflexo

    Índio Reflexo

     

    Há um canto ritual na ampla sala. Tudo se aquieta em música falada, até a cidade que zune parece silenciar o vento, a chuva, os turbilhões de cada esquina. É uma metrópole, mas algo recorda aldeia imensa. É domingo e o programa é de índio. Ir em programa de índios exige silêncio. Silêncio é palavra que grita na história dos povos indígenas no Brasil.

    Álvaro Tukano
    Álvaro Tukano entoa seu canto de paz.

    Como num novo ciclo de resistência contemporânea, Ailton Krenak e Álvaro Tukano falam firme e claro, como convém a quem traz palavras entre silêncios, frases que se entende quieto. Esses quase senhores foram jovens indígenas e quando aqui chegaram, na cidade grande, acharam o mundo fantástico. Tudo logo se evidenciou escandaloso em suas disparidades. Fizeram resistência e continuaram. Do encontro com a cidade constituíram o diálogo com os não indígenas para a convivência. Como um trabalho de Sísifo ou a punição de Prometeu, lembra Severiá Idioriê, mediadora, a resistência e a construção desse diálogo com os conquistadores foi e é árduo. Descendentes das primeiras lideranças já sacrificadas, maduros trazem suas mensagens. Álvaro Tukano logo inicia seu canto ritual de paz, e dispara: “a voz das mulheres fala a verdade. A mulher precisa de respeito para conversar de maneira equilibrada com o Estado brasileiro”.

    Ailton Krenak
    Ailton Krenak expõe a maturidade do pensamento na resistência indígena.

     

    Milhares de vidas foram consumidas na conquista dos territórios. Os sobreviventes desses encontros com os colonizadores se fazem presentes em suas especificidades. O que fazer com essa gente que sobrou da conquista territorial, pergunta Ailton, em questão que transcende o Brasil e o continente. Caçar os vencidos? O Estado brasileiro sempre comeu e assoprou para os índios, afirma. A população indígena sempre ficou à margem da economia. Os grandes investidores e empregadores, bancos e empresas, se apropriaram das terras indígenas. As lideranças indígenas saíram em busca de aliados. Aniceto, Marcos Veron,  Nelson Xangrê, Celestino Xavante, Marçal de Souza, Daniel Cabixi, Mário Juruna e Ângelo Kretan são apenas alguns nomes lembrados na memória do martírio. E ainda Zelito Viana, Hermano Pena e Edilson Martins.

    Os índios não deram ou venderam suas terras, alguém as roubou.

    O que se vê hoje, em dia de profundo silêncio sonoro, é movimento reflexo dos índios em movimento. Povos de imensa diversidade, mas que têm em comum a percepção que o Estado não tem que a eles dizer como viverem. O movimento indígena se mostra próspero neste domingo no Sesc Pinheiros simplesmente por ser sobrevivente.

    Severiá Idioriê cumprimenta Ailton Krenak ao final das reflexões.
    Xingu - Caramujo
    Criança no caminho da aldeia Caramujo, Xingu.

    Como conclui Ailton Krenak, a justiça é como a serpente, morde os pés descalços.

  • A memória que escorre nas águas do tempo

    A memória que escorre nas águas do tempo

    A ancestralidade e seus registros têm seus caprichos e responsabilidades. Estudiosos, artistas e museus trazem registros únicos de povos e situações ao longo da conquista e apropriação de territórios. O mais vulnerável diante dos conquistadores sempre cedia, ou pela morte dos tiros e aprisionamento, ou pelas doenças e submissão. Nesse processo de saque, grilagem e avanço das propriedades sobre as terras  comuns às  antigas comunidades,  ficaram registros fotográficos e objetos das culturas  dominadas, acervos deslocados aos museus, universidades ou em gavetas e armários particulares.

    Equipe de TV francesa realiza documentário na aldeia Pyuluene.
    Equipe de TV francesa realiza documentário na aldeia Pyuluene.

    Com os indígenas brasileiros não foi diferente. Nos dias de hoje,  os sucessores nascidos no caos ou após os trágicos contatos com os povos nativos, saem em busca desses acervos para se reconhecerem e se fortalecerem em sua identidade. Reivindicam  acessos e compartilhamento. Índios Waujá, do Parque Indígena do Xingu, da aldeia Pyuluene , saíram em rota de viagem à busca de suas imagens antigas e primitivas tradições, a memória resguardada entre os martírios  particulares, no tempo dos igarapés, lagoas, rios e temporais. Tudo é líquido como lágrima nas águas da memória de índio. Saudade é palavra que chora entre as aldeias.

    Das águas claras do rio Von Den Steinen saíram em direção à Universidade Federal de São Paulo e à Universidade de São Paulo, instituições que abrigam o Projeto Xingu (programa cinquentenário de extensão universitária em saúde indígena da Escola Paulista de Medicina ) e o MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP ). De lá partiram para Washington, ao Instituto Smithsonian .

    Longos foram os percursos no desejo Waujá, índios em movimento ao longo das Américas colonizadas sobre as etnias tradicionais , em violação  ao novo mundo descoberto entre a expansão

    europeia quinhentista.

    Muitos indígenas se emocionaram com visão reveladora de velhos negativos e suas sendas ao final do périplo. Os Waujá voltaram para seus antigos domínios com muitas imagens na bagagem, sorriso na boca, olhar pleno. O  que se revela é uma emancipadora travessia entre passado e futuro. O presente é identidade. Entre afogados e sobreviventes restou um povo forte que navega num tempo em disritmia e num espaço curvo. Velhos retratos libertam e afirmam.

     

  • O CANTO DO JAÓ OU O ESCONDIDO EM NÓS

    O CANTO DO JAÓ OU O ESCONDIDO EM NÓS

    Via um velho índio à margem do rio. Via, em seu olhar vago, o rio. Pela objetiva identifiquei uma tristeza de quem pensa no que vai se acabar.

    Eu o desconhecia, Toboy era seu nome. Paramos ao aceno dele, em leito distante. Sorriso profundo o homem dizia em línguas, em gestos de acolhimento e recepção. Orelhas grandes, de pau leve e liso, em discos pendurados no lóbulo.

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    Mais profunda é a pele da terra, sua mata que recobre a vergonha dos homens. A etnofobia que antecede esses leitos percorre todas as cidades, de Mato Grosso e Amazônia infinda, fica evidente nas conversas das acanhadas ruas e vilas envolventes, intrincado território.

    Difícil à população local e ao desconhecimento nacional entender as terras indígenas quando delas procedem riquezas, como um dos maiores diamantes do mundo, encontrado aqui em Juína e de valor incalculável, exposto na Bélgica.

    Daqui onde vejo a cena é o volumoso, encantado e perigoso rio Juruena, que conduz a muitos contos e causos em suas águas valentes misturadas às pedras, corredeiras que embalam em canto de água limpa possível morte ou vida. Em seu curso tudo se resume à pedra no meio do caminho, e são muitas,  uma questão de opinião a quem conduz a embarcação. Terras, matas e águas de índios canoeiros, os Rikbaktsa, povo, entre tantas etnias que  precedem em muito o Estado brasileiro, terras de posse imemorial.

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    Nosso destino foi a Terra Indígena do Escondido e o Salto Augusto, local mítico para os índios Rikbaktsa, no Parque Nacional do  Juruena, em trabalho de  reconhecimento do território tradicional proposto pelo antropólogo Adelino de Lucena.

    Seguimos nós e os canoeiros hábeis, como borboletas que não se confundem no vento que as levam em objetivo. Setecentos quilômetros em águas que fogem ao encontro do Tapajós navegamos na ida e volta do território.

    Aqui, em sertões que insistem, artistas e intelectuais estrangeiros deram a vida, como George Heinrich von Langsdorff , ou o inventor e fotógrafo Hércule Florence, que revelou aventuras seculares.

    Aqui primeiro foi a gripe e o sarampo trazido pelos seringueiros e seus pecados a dizimar, depois os jesuítas, a separar e confinar.

    Tudo era uma dúvida da dignidade da tradicional cultura e humanidade dos proprietários guerreiros de antropofagia ritualística. O índio comia porque tinha raiva e tinha fome,  e tinha fome porque tinha raiva entre as guerras étnicas, como a humanidade no mundo que avançava na Amazônia no século XIX e XX. A antropofagia se fez inversamente pela bíblia e mercado. Muitos e muitos morreram, foram devorados por rápidas mudanças em seus hábitos e estilos, como a proibição de falar a própria língua e o sequestro, recolhimento, confinamento, tortura e separação de gêneros de todas as crianças menores de seus pais e família, pelos jesuítas.

    As grandes violações dos direitos humanos que sofreram os indígenas em todo processo histórico, a política integracionista e assimilacionista. Apesar das ofensivas, os povos indígenas nunca representaram nenhum tipo de problema à terra e ao ambiente, ao contrário, em muitos momentos colaboraram para a conquista, integração e fiscalização do território da Nação.

    Ovo de tracajá, quelônio de carne doce e gema gelatinosa, se esconde em areia fina nas praias leves das manhãs quando levantamos acampamento com lua cheia. Iguaria e alimento rico aos índios indica o início da primavera e promessa de fartura.

    A  curiosidade da dor que não cala em coceiras de pium, mosquito pequeno grande defensor da floresta que enlouquece os homens, nem a guerra da cobiça que sempre ameaça a terra da amazônia em suas riquezas recônditas  nos desanimam, mas me inspiram em cada corredeira ou geografia inédita. Araras se algazarram no céu e papagaios, tucanos, quero-queros e biguás causam hora do rush no ar. Nossos barcos enfrentam e avançam, é preciso chegar.

    O rio em sua força cede ao salto que queda, água bruta e poderosa a despertar respeito e devoção de todos, mesmo aos mais incrédulos, que Deus tem bom gosto. Beleza de titãs o Salto Augusto define o trânsito e isola o percurso, indicando que à frente é sagrada a vastidão e que a outros se guarda ao futuro. Surpreendente é a sensação de pisar na rocha dura da crosta, polida pela língua da água nas cachoeiras que amedrontam e resignam .

     

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    Dos Rikbaktsa sei que são povo e sabem das águas e entendem o canto do Jaó (ouça abaixo) que vigia. Pinturas rupestres centenárias enfeitam grutas e comprovam o lar invadido por muitos, mas que diz não ao mundo contemporâneo, em vanguarda de gestos tão arcaicos como o círculo da persistência e tolerância da comunhão estampado na rocha,  roda que nos levou a navegar no sertão de águas perdidas e suas funções.

    Rikbaktsa

    Nos chora de madrugada o Urutau, ave invisível, e o Curiango, ave noturna que pia  “amanhã eu vou”, entre poucos velhos desse mundo que sobrevivem e nos contam em roda de fogo o que lembram do tempo remoto, lembranças tristes, causos e fatos.

    Rikbaktsa

    Se picham morte aos índios nos muros de Juína, afirmo que vivem, e muito mais se faz em vida. Juruena indolente nos afaga e mostra sua saga.