Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • Licença para matar

    Licença para matar

    Derrubam-se árvores, o fogo lambe a terra.

     

    Tudo vira pó.

    Milhões de seres em pó: bactérias, fungos, formigas, caramujos, macacos, onça, anta.

    Tantos enfim unificados.

    Solidariedade é própria dos ventos,

    Leva, compartilha.

     

     

     

    Pedaços da Amazônia, poeira fina, estão em meio a meu quintal, piso frio, depois de leve chuva.

     

    Gráfico, reta, anúncio, arte? 

     

    Não sei, é tudo sujeira dos homens.

     

    Reteno é o nome da substância que deixou preta a água da chuva, ontem, em São Paulo.

     

    Água escura, lágrimas de queimada.

     

    A tristeza da floresta é uma fumaça que invade o abraço, um medo obscuro que envolve a cidade grande.

     

     

     

    Lamentar? Fugir para onde? Plantar árvores

    desesperadamente?

     

    A cidade estava tão quieta hoje.

     

     

     

     

     

     

    leia mais:

    https://revistapesquisa.fapesp.br/2017/09/11/poluente-emitido-pela-queima-de-biomassa-causa-dano-ao-dna-e-morte-de-celula-pulmonar/

     

  • O dente da onça

    O dente da onça

    Onça, bicho de respeito.

    Sei por medo ou pura adoração, feroz

    vontade e fome.

    .

    É tempo de fogo.

     

    História? Seu ciclo, morte.

     

    Renascimento?

     

    , ilusão, fé, átomo, ferro na calçada

    aviso.

     

     

    Preciso movimento,

    morde, suga.

    A Terra muda o eixo e a luz sua incidência.

    Há degelo, novas sombras, um conjugar do verbo

    onde ir.

     

    Desobediência, carências, guerra comercial?

    Será sede, desassossego.

  • Jair não gosta de passarinho

    Jair não gosta de passarinho

    A jornada da ativista Greta Thunberg, que cruzará o Atlântico num veleiro, continuará pelos Estados Unidos, Canadá e México e terminará na COP 25, no Chile.

    O poeta Manoel de Barros falava que sabedoria era estar árvore.

    O presidente não sabe quem é Manoel.

    O presidente não sabe o que é poeta e poesia.

     

    Greta Thunberg, a menina, tão jovem mulher, pegará um barco solar para chegar à América, a falar do clima, da importância das árvores.

     

    Jair não gosta das árvores. Jair não gosta de passarinhos.

     

    O meio ambiente e essa gente toda, que anda e mora no mato ou cruza mares, serão as pedras no meio do caminho do Jair voraz. 

     

    Jair não tem mente. Mente. 

     

  • Se ferir a existência, serão resistência

    Se ferir a existência, serão resistência

    Disseram ao mundo que estão em permanente processo de luta em defesa do território. Prometem: se fere a nossa existência, seremos resistência.

     

    É fato, afirmo e confirmo.

     

    Em cada centímetro que andei atrás delas, na amplitude da capital do país, digo que vi até Glauber Rocha fumando, embriagado com elas, em vários momentos. Máquinas fotográficas ainda não captam tudo que o olho vê, mas é fato que tantos espíritos circulavam entre nós; até as risadinhas de Darcy Ribeiro e Milton Santos ouvi no meio dos cantos. Era difícil ver os homens entre milhares delas, mas protegiam atentos.

    É feminina a cidade branca, não há o que duvidar nas formas do arquiteto. 

    Foi um momento inédito a reunião de mulheres que vivem tão distantes. Vieram de todas as partes, movidas por uma vontade e coragem que só mulher sabe que existe. Guardiãs, encantadas, irmandade? É cedo para saber, mas é a história que não fecha portas nem janelas, rompe muros, desvela a cegueira dos homens.

     

    http://apib.info/2019/08/15/documento-final-marcha-das-mulheres-indigenas-territorio-nosso-corpo-nosso-espirito

     

    imagens por Helio Carlos Mello©

  • A marcha

    A marcha

    Se fere nossa existência, nós dizemos resistência, afirmam milhares de bocas. Existe fome de cura, e o que vejo são mulheres, muitas mulheres que cantam e tanto falam enquanto dançam, preenchem todas as carências que sinto como cidadão.

    Elas chegaram onde queriam, sorriem em brado.

    Me sinto totalmente dispensável, sentimento curioso e também agradável. Homens? Restou-nos a guarda.

     

    É bonito ver o sonho de Brasília, pensado por seus artistas e idealizadores, ocupado por mulheres indígenas. Dançam Canela, Krahô, Kamayurá, Tembé, entre tantas, ancestral paradigma no país do futuro.

     

    Diz a mulher indígena: digam ao povo que fico, ficaremos. Faz-se voz à nação nesse momento, tão rouco e perplexos estamos. Sempre esteve aqui tal mulher, não arreda pé, não desistirá.

    Apenas o que digo e vi, é que foi longa a caminhada até a casa do povo e há uma plenitude nessa trilha. 

     

    Cem mulheres receberam senhas para entrar na casa chamada Congresso. Milhares estão neste momento aguardando a saída e entendimento.

    Volto para casa pleno, volto mais forte, feminino, indígena, brasileiro. Território, corpo, nosso espírito.

    Pindorama, terra dos encantados.

     

    imagens por Helio Carlos Mello

  • A primeira marcha

    A primeira marcha

    É como mexer em formigueiro, atiçar casa de abelha. É como abrir represa e inundar o campo,  há um canto, uma música de muitas línguas. Tudo se aviva numa atenção e objetivo de defesa, é um ofício conjunto. 

    A larga avenida se inunda de cores, como se uma revoada de pássaros preto, azul, vermelho, branco e amarelo ocorresse na cabeças das pessoas, mulheres e seus cocares. 

    Um balé moderno protesta na via, se dirigem à Secretaria Especial de Saúde Indígena; lembra guerra a melodia em protesto contra o desmonte da Secretaria. Protestam contra a secretária indígena, a militar Silvia Waiãpi, tenente e atriz. Pedem sua imediata abdicação.

    Tão valente as mulheres, pararam o trânsito, surpreenderam a polícia, renegaram o governo anti-indígena que não gosta de árvore.

    Mulher é coisa de entranhas e nuvens, faz chuva e sol, faz sombra sobre a vida, embala em canto a mão que ergue e grita.

    Protege e salva, coisa de mulher.

     

    imagens por Helio Carlos Mello