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Autor: Aloisio Morais

  • Volta às aulas é proibida pela Justiça em Colégio Militar de Belo Horizonte

    Volta às aulas é proibida pela Justiça em Colégio Militar de Belo Horizonte

    Aloísio Morais

    A Justiça Federal deu um chega-pra-lá nos militares do Colégio Militar de Belo Horizonte e proibiu o retorno às aulas presenciais a partir da próxima segunda-feira, 21, a exemplo do que outras instituições do Exército pretendem fazer no país. A instituição tem cerca de 750 alunos, 42% do sexo feminino. Dezenas de pais de alunos são contrários à volta às aulas, mesmo com uma série de protocolos a serem adotados. Durante a ditadura, as instalações da escola abrigaram presos políticos, que foram vítimas de tortura no local.

    A retomada das atividades escolares na unidade do Exército provocou discussões tanto na Prefeitura de Belo Horizonte quanto no Ministério Público Federal e, como medida de segurança, o Sindicato dos Trabalhadores Ativos, Aposentados e Pensionistas do Serviço Público Federal (Sindsep-MG) entrou na Justiça com um pedido em tutela de urgência para continuidade do regime remoto de aulas, o que foi acatado com a fixação de uma multa de R$ 5 mil por dia, caso ocorra descumprimento da determinação.

    Colégio do bairro Pampulha foi usado para abrigar presos políticos durante a ditadura

    Sem prejuízo

    Na quarta-feira, 16, a direção do Colégio Militar encaminhou às famílias um comunicado informando sobre o retorno obrigatório às aulas na unidade, exceto para os alunos que comprovassem pertencer a grupos de risco para o novo coronavírus. Porém, para o sindicato, o retorno não é necessário, uma vez que os alunos não estariam sendo prejudicados pelo sistema de aulas on-line. Pela avaliação dos professores, os estudantes estão respondendo bem às aulas.

    “Nós estamos conversando com os professores há mais de um mês, logo que eles perceberam que seriam convocados para um planejamento presencial das atividades e que incluía desde então o retorno às aulas na própria escola. Nós entendemos que não é necessário um retorno presencial quando tudo pode ser feito remotamente. Sabemos que a cidade está em processo de reabertura, mas achamos que não há necessidade de colocar mais pessoas nos ônibus e nas ruas se os alunos estão respondendo bem às aulas remotas. As aulas estão tendo qualidade”, ressaltou a diretora do Sindicato, Jussara Griffo, ao jornal O Tempo.

    Segundo Jussara, o Colégio Militar tinha determinado que retornariam apenas aqueles funcionários que não compõem grupos de risco para a pandemia do novo coronavírus, mantendo em regime remoto, portanto, aqueles com idades superiores a 60 anos e portadores de comorbidades. “Se algumas pessoas permaneceriam em casa, entendemos que o trabalho pode ser mantido remotamente, então não há necessidade de retornar também os outros. Para quê colocar alunos em risco, famílias e professores? Se os alunos estão respondendo bem às aulas remotas, podemos mantê-las”, declarou.

    O comunicado feito pelo colégio indicava que haveria um revezamento entre turmas e a adoção de medidas sanitárias relacionadas à Covid-19 para garantir a segurança de estudantes, funcionários e familiares. O retorno contradiz as políticas municipal e estadual que ainda mantêm as aulas suspensas nas redes pública e particular de Minas Gerais. Autoridades da Prefeitura de Belo Horizonte declararam nessa sexta-feira, 18, que poderia procurar a Justiça para pedir a proibição da retomada do ano na unidade militar. Em uma mesma direção, o Ministério Público Federal determinou que o diretor do colégio, o coronel Marco José dos Santos, explicasse à Justiça com um prazo máximo de 24 horas quais estudos técnicos e protocolos de segurança justificariam o retorno às aulas presenciais.

    Barbacena


    Desde o dia 26 de maio mais de 200 alunos da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar) em Barbacena, no Campo das Vertentes, em Minas, testaram positivo para Covid-19. No dia 22 de junho, o Ministério Público Federal emitiu recomendação ao diretor de Ensino da Aeronáutica, major-brigadeiro do Ar Marcos Vinícius Rezende Murad, e ao comandante da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, brigadeiro do Ar Paulo Ricardo da Silva Mendes, para suspender imediatamente todas as aulas e demais atividades acadêmicas presenciais.
    A Epcar é uma escola de ensino militar sediada em Barbacena que admite alunos de idade entre 14 e 18 anos por meio de concurso público. No local, estudantes de várias cidades de todo o Brasil vivem em regime de internato e, por isso, dormem em alojamentos e têm aulas em horário integral.

  • Machão da PM se candidata pelo partido das mulheres

    Machão da PM se candidata pelo partido das mulheres

    Os militares parecem mesmo dispostos a ocupar todos os postos civis da República. Em Belo Horizonte, o Cabo Xavier teve a cara de pau de se candidatar a prefeito pelo Partido da Mulher Brasileira (PMB), justamente na cidade conhecida por ter bem mais mulheres do que homens. 

    Por enquanto ele está ‘solteiro’, ou melhor, sem vice, que ainda não foi escolhido ou escolhida, um indicativo de que há falta mulheres no partido das mulheres em Minas. O nome para vice-candidato a prefeito do PMB está em aberto. A sigla busca uma composição com outros partidos para o cargo. Cabo Xavier tem 48 anos e é policial militar. Em 2018, ele foi candidato a deputado federal, mas não foi eleito.

     O militar diz que defende as mulheres, mas não as “pautas ideológicas feministas”. Questionado pelo repórter Rômulo Almeida do jornal O Tempo, ele disse que se há alguma contradição no fato de ele ser um candidato homem num partido que defende o direito das mulheres, Xavier rebateu baseando-se na sua carreira na segurança pública. “É uma relação nova, mas a luta pelas mulheres sempre existiu. Como policial militar, na minha carreira toda, fizemos vários atendimentos de proteção à mulher. A mulher ainda é vítima do nosso sistema. Na maioria das vezes, ela é colocada em segundo plano. Eu tenho mãe, esposa, filha e neta. Então, não há como não defender as mulheres. Eu não defendo as pautas ideológicas feministas, mas defendo a mulher como parte integrante e importante da sociedade”, afirmou. 

    Estudante de Direito e formado em Teologia, Cabo Xavier é evangélico. “Sou da igreja Batista, minha esposa é da igreja Universal, e eu tenho acompanhado ela, mas me considero batista”, disse.

    Cabo Xavier tenta entrar na política desde 2011 – Reprodução

    Carreira 

    Cabo Xavier começou na política em 2011, quando partiu para a criação do Partido da Defesa Social (PDS). Para isso, ele percorreu o país, mas as mudanças na legislação eleitoral acabaram impedindo a formação do partido. “Visitei 19 estados arregimentando correligionários para a sigla. Chegamos a ter mais de 280 mil fichas, porém, em 2015, houve mudanças na lei eleitoral, e perdemos todo o material”, afirmou. 

    Em 2018, Xavier concorreu a deputado federal pelo PPL. Agora, antes de ser anunciado como candidato a prefeito da capital mineira pelo PMB, ele tentou negociar sua possível candidatura com os partidos PL e PMN.

    Além de Belo Horizonte, a única capital onde o Partido da Mulher Brasileira disputará a prefeitura é Aracaju, com a advogada Juraci Nunes, de 27 anos. 

  • Golpe pra quê?

    Golpe pra quê?

    Um dos principais gestos analíticos para a devida compreensão do atual momento da crise democrática brasileira é a distinção entre a figura pessoal do presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarisimo, entendido como projeto político disruptivo.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Sim, por mais estranho que possa parecer, fica cada vez mais claro que uma coisa não está, necessariamente, vinculada à outra.

    Explico.

    Há Jair Bolsonaro na política brasileira desde a década de 1990. Já bolsonarismo começou a nascer em 2014, quando o até então parlamentar de baixo-clero, inexpressivo, animador de auditório, aumentou seu capital eleitoral em quase 400%, tornando-se o deputado federal mais votado pelo Estado do Rio de Janeiro.

    O bolsonarismo é o resultado de um conjuntura específica de crise, alimentado por uma sociedade que se vê colapsada e impulsionada por outro projeto político disruptivo: o lava-jatismo.

    Durante algum tempo, bolsonarismo e lava-jatismo estiveram na mesma trincheira, mas nunca foram a mesma coisa. Juntos, mas não misturados!

    Bolsonaro soube se aproveitar do clima. Havia concorrentes. Marina Silva era a principal. Jair acabou vencendo a corrida. Venceu, também, porque foi mais esperto.

    Parece que agora, no exato momento em que escrevo este texto, o presidente Jair Bolsonaro começa a fazer o movimento de descolamento do bolsonarismo, abandonando a agenda da ruptura disruptiva e adotando a estratégia do aparelhamento institucional.

    Novamente, vem agindo com astúcia política, e se mostrando ainda mais perigoso para o contrato social inaugurado na redemocratização e instituído pela Carta de 1988.

    Olhando daqui, com certo distanciamento, creio que seja possível localizar na crônica os dois momentos que marcaram a inflexão do Bolsonaro disruptivo, que acreditava estar liderando uma revolução saneadora, para o Bolsonaro sistêmico, manipulador das instituições.

    Foram dois momentos que mostraram ao presidente que se continuasse marchando com os insanos, provavelmente não terminaria o mandato.

    O primeiro foi o dia 22 de maio, quando o presidente Bolsonaro, diante da possibilidade de ter seu aparelho de celular apreendido para perícia por ordem do ministro Celso de Melo, decidiu que, sim, interviria no Supremo Tribunal Federal. Em seus devaneios golpistas, Bolsonaro acreditou mesmo que bastava enviar um destacamento militar ao STF para fechar a corte superior da Justiça brasileira. O mais assustador é que ele não estava sozinho no projeto. Entre os generais palacianos houve quem apoiasse a ideia.

    Ao perceber que generais da ativa, com comando efetivo de tropas, não o acompanhariam na quartelada, o presidente recuou. Os bastidores da conspiração foram revelados na edição de agosto da Revista Piauí, em matéria assinada por Mônica Gugliano.

    O segundo momento foi o dia 18 de junho, quando Fabrício Queiroz, depois de mais de um ano desaparecido, foi preso.

    Queiroz é o fio solto do esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro. O presidente sabia perfeitamente que estava ali o seu ponto fraco e, acuado, se convenceu de que não tinha vara longa o suficiente para bancar o conflito com as outros poderes da República.

    A partir de então, vimos outro Bolsonaro, mais habilidoso no jogo político institucional. Aproximação com o centrão, piscadelas para medidas de transferência de renda, afastamento do núcleo ideológico mais radicalizado e liderado por Olavo de Carvalho, constantes pitos públicos em Paulo Guedes. Tudo isso indica que Bolsonaro está tentando se afastar do bolsonarismo.

    Os pilares do bolsonarismo são o neoliberalismo ortodoxo de Guedes e a guerra ideológica olavista. Ao que parece, Bolsonaro está dando de ombros para ambos. A ver se sustenta.

    Precisamos mencionar ainda o dedo certeiro na escolha do comando do Ministério Público. A dupla Augusto Aras e Lindoura Araújo não está apenas esvaziando a Operação Lava Jato. Está ocupando o território.

    Quando começou o governo, Sérgio Moro parecia muito maior e mais perigoso para as garantias democráticas que o próprio Bolsonaro.

    Moro era o herói laureado pela grande imprensa, o lorde gentil e educado, premiado, capa de revista, maxilar quadrado, terno preto alinhado, com caimento perfeito nos ombros. Já Bolsonaro era o aloprado desajeitado, feioso, o “burro chucro” que prometia tropeçar nas próprias pernas na primeira esquina.

    Nas crises, o tempo corre especialmente rápido.

    Hoje, Moro, sem nenhum poder efetivo de decisão, tenta se manter no jogo, contando com a lealdade de seus aliados na grande mídia e no poder Judiciário. Não é algo irrelevante, mas parece pouco para o homem que, em algum momento, foi o mais poderoso player em atuação no tabuleiro da política nacional.

    Já Bolsonaro demonstra ter aprendido a operar, e manipular, as instituições da República.

    Um dos mais importantes e inesperados acontecimentos nesta “temporada 2020” da crise democrática brasileira é o apequenamento de Moro e o amadurecimento político de Bolsonaro. Como os dados estão rolando, nada garante que até 2022 a situação continuará assim. A fotografia do momento é essa.

    Os dias 28 de agosto e 1º de setembro são outros dois momentos cruciais na recente crônica da crise.

    Em 28 de agosto, Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, foi afastado do mandato por decisão monocrática de Benedito Gonçalves, ministro do Superior Tribunal de Justiça, em episódio inédito na história da moderna democracia brasileira. Witzel foi afasto à revelia da Assembleia Legislativa, sem que seus advogados tenham sequer recebido denúncia formal do Ministério Público. O processo foi manipulado pelo Palácio do Planalto, diretamente pelo gabinete do presidente da República.

    Parte da esquerda comemorou a derrocada de Witzel, como se fosse a redenção da memória de Marielle Franco. A derrocada de Witzel é vitória de Bolsonaro, mais uma. Nada além disso.

    Ao abater Witzel, Bolsonaro matou dois coelhos com única paulada: eliminou um desafeto político e controlou o processo de escolha do próximo procurador Geral do Estado do Rio de Janeiro, a quem caberá decidir o futuro de Flávio, o 01.

    Em 1º de setembro, dando desculpa esfarrapada, Deltan Dallagnol se desligou da operação Lava Jato. Dallagnol enfrenta dificuldades no STF e no Conselho Nacional do Ministério Público, onde Gilmar Mendes e Augusto Aras afiam a lâmina da guilhotina. Dallagnol não seria o primeiro a perder o pescoço na mesma guilhotina que ajudou a montar.

    Caiu, assim, o último grande símbolo da Lava Jato, deixando o terreno livre para que Bolsonaro se aproprie da força-tarefa, direcionando a artilharia lava-jatista aos seus adversários, à esquerda e à direita.

    Vamos combinar, né? É muito melhor do que, simplesmente, extinguir a operação, que ainda conta com sólido capital político. Mas vale usar a marca e manter a narrativa do combate à corrupção, fazendo do Ministério Público uma política “soft”, sem armas de fogo.

    Nem precisa de arma de fogo não. O monopólio do processo penal é mais mortal que fuzil. Além do mais, essa coisa de canhão na rua e milico fechando tribunal é tão demodê.

    Claro que tudo pode mudar, que Dallagnol e Moro podem se recuperar, que os quadros lava-jatistas ainda leais à República de Curitiba podem virar o jogo, novamente. Mas a fotografia do momento, repito, é essa.

    Fato fato mesmo é que nos últimos dias Jair Bolsonaro está dormindo mais tranquilo, assistindo a recuperação de sua popularidade e se sentindo cada vez mais confortável nos corredores do poder. A cadeira já não queima tanto.

    Talvez esteja perguntando a si mesmo: onde eu estava com a cabeça? Golpe pra quê?

  • ONU cobra do Governo Brasileiro sobre crime da Vale em Brumadinho

    ONU cobra do Governo Brasileiro sobre crime da Vale em Brumadinho

    Durante a 45º Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU hoje, 17, em Genebra, a relatoria especial responsável pelos temas de resíduos tóxicos e direitos humanos apresentou o informe sobre sua visita ao Brasil. O relator, Baskut Tunkat, esteve na Aldeia Indígena Naô Xohã, em São Joaquim de Bicas, MG, e conversou com lideranças de várias comunidades de Brumadinho em atividade realizada no Parque da Cachoeira, em dezembro de 2019.

    Após a apresentação do relatório, Marina Oliveira, mobilizadora social da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser), lembrou à comunidade internacional que, após 20 meses do crime, a população continua sem saber o nível de contaminação a que está exposta. E denunciou que “o Estado permite que a empresa responsável pela tragédia defina a metodologia de análise de contaminação. Como confiar no automonitoramento? Queremos análises independentes da qualidade do ar, solo e água”, disse.

    A porta-voz de Brumadinho pediu ao Conselho de Direitos Humanos da ONU que advirta o governo Brasileiro para que seja garantida a punição exemplar dos responsáveis pelas violações e que uma eventual retomada das operações extrativas em Brumadinho ocorra somente após a
    reparação integral dos danos e se estudos atualizados comprovarem que não há riscos para a segurança hídrica da população. “Queremos parâmetros e sanções internacionais para as empresas. Nós queremos compromissos reais, porque nossas dores são reais”, afirmou Marina.

    A Relatoria da ONU afirma que “os crimes corporativos contra trabalhadores e comunidades são perpetrados com impunidade, e os direitos à informação e participação são reduzidos drasticamente”. “Enquanto o desastre de Brumadinho foi tecnicamente causado pela
    instabilidade estrutural e liquefação, a verdadeira causa reside numa notável falta de fiscalização governamental e numa conduta criminalmente imprudente por parte da Vale”.

    Reconhecendo que o país passa por um momento de profundo retrocesso, o relatório apresenta uma recomendação ao Conselho da ONU para que seja aberta um inquérito internacional sobre a situação de direitos humanos no Brasil, com foco em questões ambientais, de saúde pública, direitos do trabalhador e defensores de direitos humanos. É a primeira vez que o Brasil é alvo de uma investigação como essa desde o início do período democrático.

    “Várias decisões judiciais e parlamentares não são implementadas quando desfavoráveis aos interesses privados. A retórica inflamatória, a rejeição da sustentabilidade e o fracasso em processar tem incendiado outra epidemia, uma de intimidação, ataques e assassinato de defensores dos direitos humanos”, denuncia o relator da ONU.

  • De Minneapolis a Mariana: presença do racismo e outros fantasmas da escravidão

    De Minneapolis a Mariana: presença do racismo e outros fantasmas da escravidão

    No dia 25 de maio, na cidade de Minneapolis, EUA, George Floyd foi detido e asfixiado até a morte pelo policial Derek Chauvin. Floyd era um homem negro. Ele repetiu várias vezes que não conseguia respirar, enquanto Chauvin, o policial, um homem branco, apertava o joelho contra o seu pescoço. As imagens do assassinato foram amplamente disseminadas, na mesma medida em que os protestos se espalharam por diversas cidades dos Estados Unidos e, em seguida, em outros países. 

    Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana, MG *

    Como se sabe, uma das ações que passou a fazer parte destes protestos foi a derrubada de estátuas que homenageiam personagens de algum modo envolvidos com a história da escravização moderna ou do colonialismo, o que logo suscitou um debate entre a defesa do “patrimônio histórico” e a necessidade de “fazer justiça às memórias” de grupos historicamente oprimidos. A polêmica se dá entre aqueles que alegam a defesa de um certo patrimônio histórico e artístico versus os que demandam por justiça e reparação.  

    Nos Estados Unidos, uma das tensões com a derrubada ou remoção de estátuas de Cristóvão Colombo envolveu parte da comunidade ítalo-americana, que via e vê na imagem de Colombo um elemento de reforço de sua identidade estadunidense. Segundo um articulista do The New York Times, as estátuas “reconhecem a dívida geral que os colonizadores do Novo Mundo, colonos e imigrantes, têm com o homem que conectou a Europa às Américas, junto (em muitos casos) com o desejo específico dos imigrantes ítalo-americanos de reconhecer e reivindicar o explorador italiano”.[1] 

    Os personagens históricos, assim como os seres humanos, são multidimensionais, isto é, suas vidas possuem diversos aspectos contraditórios. Assim, como separar o que está sendo homenageado daquilo que deveria ser repudiado, se ambos estão presentes em um mesmo personagem-monumento? Podemos celebrar o Colombo explorador e repudiar o Colombo conquistador? Podemos nos afastar dessa concepção tradicional e homogênea das biografias que ainda organiza as expectativas de boa parte público? Para começar a responder a essas perguntas é preciso analisar em que medida uma visão celebrativa e acrítica do colonialismo que Colombo representa ainda é uma ferida aberta, assim como as concepções racistas e eurocêntricas que fundamentam essa concepção de história.

    Os que criticam a revisão dos monumentos públicos possuem origens sociais e políticas distintas; seus enfoques e argumentos são variados. O mesmo pode ser dito dos que defendem a revisão dos monumentos. Este debate está longe de ser uma simples polarização. Alguns críticos questionam o gesto de revisar monumentos por um suposto moralismo anti-histórico que poderia levar à destruição de qualquer ponto de apoio no passado. Segundo esse argumento, a nova iconoclastia (destruição de imagens) desconsidera os contextos históricos, os progressos alcançados na luta por igualdade e relativiza valores morais e políticos que teriam sido decisivos na construção de projetos nacionais bem-sucedidos. 

    Mais recentemente alguns críticos invocaram o tema da liberdade de expressão em torno de uma suposta cultura do cancelamento, da qual a destruição das estátuas seria apenas mais uma dimensão. Nesse grupo de críticos pode-se encontrar quase todas os matizes da direita política contemporânea, mas, também, setores da esquerda, como muitos dos que assinaram a carta publicada na Revista Harpers em 7 de julho deste ano em um manifesto contra uma alegada cultura do cancelamento que estaria colocando em risco a liberdade de expressão. As posições, naturalmente, vão oscilar desde uma recusa total a qualquer esforço de revisão – como defendido por Donald Trump no caso dos militares confederados que nomeiam bases militares estadunidenses – até críticos moderados que admitem a legitimidade de algumas demandas e que questionam apenas os métodos de algumas dessas ações.

    Os que defendem a revisão dos monumentos são muitas vezes enquadrados no rótulo de uma nova esquerda identitária ligada aos movimentos negros, de mulheres e LGBTQIA+. Não raro esses grupos também apresentam demandas por novas histórias e novos monumentos. Por outro lado, setores da direita também não estão alheios ao trabalho de revisão de personagens e eventos históricos em perspectiva iconoclasta, mesmo que frequentemente lançando mão de procedimentos negacionistas e de falsificação, ou seja, da distorção programática de nosso conhecimento sobre a história. Estes grupos de direita promovem a narrativa de uma guerra cultural para salvar uma fantasiosa civilização “cristã-ocidental” e os valores da pátria e da família tradicional, ignorando qualquer esforço de acolhimento crítico daqueles que pensam e vivem de modo diferente.    

    No dia de 13 de maio, que no Brasil se comemora a abolição da escravatura, a “derrubada simbólica” da figura de Zumbi pela Fundação Palmares foi acompanhada do reforço de personagens supostamente mais afinados com a base do bolsonarismo, como a Princesa Isabel e Joaquim Nabuco; mas também do intelectual negro Luiz Gama, celebrado como patrono da abolição. A operação reforçava a oposição entre uma narrativa de resistência violenta dos negros e a via por dentro do sistema através de reformas. De certo modo, Luiz Gama, filho de pai branco e mãe negra, cuja biografia destaca sua capacidade de prosperar dentro da ordem, estaria mais adequado à mitologia conservadora promovida pelo bolsonarismo.

    Pelourinho

    Na Praça Minas Gerais, em Mariana, cidade que abriga nosso campus da UFOP, há um dos poucos pelourinhos em espaços públicos ainda existentes no Brasil. Esses marcos eram usados no período colonial para identificar o poder local quando da criação de vilas, simbolizava o poder de administrar a justiça, o que na época poderia envolver a exposição e o açoite em público. Muito frequentemente as pessoas punidas nesses espaços eram seres humanos escravizados. O pelourinho de Mariana havia sido derrubado em 1871, mesmo ano em que entrou em vigor a Lei do Ventre Livre, mas foi reconstruído e reinstalado em 1981, em novo local, a mando do então prefeito Jadir Macedo.

    Muitos turistas que visitam a Praça Minas Gerais em Mariana se divertem tirando fotos nas quais simulam estar algemados, e alguns brincam que estão sendo chicoteados. Não há, no monumento, uma explicação clara sobre a sua história, apenas uma placa dizendo que o prefeito havia “restituído” o pelourinho à “memória nacional”. Alguns metros ao lado há outra sinalização em que se lê: “Símbolo do poder municipal, inicialmente composto por simples coluna de madeira com argolão ao pé, no qual eram amarrados criminosos e cativos expostos ao castigo público” e mais alguns detalhes técnicos. É interessante notar que o “poder municipal” não precisaria necessariamente continuar a ser simbolizado pelo pelourinho para as gerações futuras, já que o prédio da Câmara Municipal, erguido também no século XVIII, se encontra preservado e ativo nessa mesma praça.

    Caso a placa de identificação do pelourinho contivesse mais informações sobre a violência contra os presos e escravizados, os turistas continuariam a tirar fotos agrilhoados? Encarar este local como um lugar onde pessoas foram torturadas no passado não tem nenhuma relação com os inúmeros casos de violência que presenciamos hoje em dia? Como não lembrar de vários casos em que pessoas alegando fazer justiça com as próprias mãos amarram suspeitos de roubo (geralmente pobres e negros) em postes? O pelourinho como monumento não não seria também um símbolo dessa violência policial e social de nosso presente? Não seria ele a reafirmação de frases populares como “bandido bom é bandido morto”, que autorizam a prática do justiçamento contra pessoas pretas e pobres? O tipo de frase inúmeras vezes repetida pelo presidente Bolsonaro e que tem nas condições genocidas das prisões e cadeias brasileiras sua materialização enquanto política pública.

    Esse seria um exemplo da plurissignificação aderida aos monumentos históricos, pois, nesse caso, a elite local celebra, com a reinauguração do Pelourinho, uma suposta autonomia que reforçou a imagem da cidade como a origem administrativa do poder em Minas, enquanto também representa um passado-presente violento e racista que é invisibilizado ou ignorado. O reerguimento do pelourinho no final da Ditadura Militar está relacionado à onda ufanista de valorização do patrimônio colonial, mas também com as ansiedades que a expansão da mineração trazia. Segundo o mesmo prefeito, em declaração para o Jornal do Brasil em 1981, a cidade corria o risco de ter um “futuro vazio”. O pelourinho representava a atualização de uma forma de poder baseado na hierarquia e na violência racial que, de algum modo, pacificava a consciência das elites locais em um momento de rápida transformação. Na época, o turismo histórico baseado em uma concepção celebrativa do passado colonial também começava a ser alvo de políticas públicas locais.

    Quase quatro décadas depois de restauração do pelourinho o futuro de Mariana não foi vazio. De algum modo as elites locais conseguiram repetir o passado colonial de desigualdades e hierarquias. A município saltou de 14 para 60 mil habitantes, as periferias cresceram com pouca ou nenhuma infraestrutura, a mineração nos legou o crime da Samarco e somos hoje o município com um dos piores indicadores socioeconômicos de Minas Gerais. O turismo valorizou as áreas centrais da cidade beneficiando os herdeiros do casario colonial e a especulação imobiliária.

    Seria uma saída buscar meios de separar a celebração das elites locais da memória da escravidão? Uma saída difícil, é fato, já que a violência foi perpetrada por este mesmo poder que a celebra. Ao mesmo tempo, nas disputas por prestígio e investimentos, a elite política constantemente recorre à história da cidade como a primeira de Minas, gesto que atinge seu ponto alto no dia 16 de julho quando, por artigo na Constituição estadual, a cidade volta ser a capital do Estado. Geralmente a data é comemorada com a presença do governador, o que reforça seu papel nos mitos constitutivos da história mineira. 

    Para o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, em Silenciando o Passado, “trivializar a escravidão – e o sofrimento que ela causou – é algo inerente ao presente, que envolve tanto o racismo como as representações da escravidão”.[2] É importante ressaltar mais um aspecto da presença do pelourinho em Mariana: a cidade é sede, desde os anos de 1980, de um curso de História vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto.

    Como professores isso significa que não estamos ali só de passagem, vivemos a cidade e suas contradições. Como em muitas outras salas de aulas no Brasil e no mundo, concordamos com as palavras dos colegas Francisco Carballo, David Martin e Sanjay Seth que recentemente escreveram sobres os protestos antirracistas em Londres: “Os manifestantes, muitos deles jovens, porém já amadurecidos, estão fazendo a ligação entre a história do colonialismo, a história da escravidão e o racismo estrutural que é o seu legado. Eles estão fazendo isso apesar de sua educação formal, e não porque esta lhes deu essa oportunidade. A rua é a sala de aula porque as salas de aula falharam”.[3] 

    Seria ingênuo, e mesmo violento, imaginar que comunidades humanas possam viver sem suas narrativas de orientação e presença no tempo. Para que sejam eficazes,  no entanto, é preciso que essas narrativas sejam representativas e inclusivas. O que observamos em situações como a do pelourinho em Mariana é uma perda de representatividade de narrativas tradicionais convivendo com uma crise mais profunda da forma como vivemos a nossa história comum. Portanto, não se trata apenas de refundar e atualizar narrativas históricas, mas de questionar seus efeitos e duvidar das condições de que isso aconteça em um tempo atualista que nos pressiona a viver uma história pobre. 

    A derrubada de estátuas pode simbolizar um deslocamento ou uma atualização da relação com o tempo histórico, levando a inevitáveis redimensionamentos das disputas por orientação e performances. Exemplos conhecidos são as estátua do Czar Alexandre III, retirada pelos revolucionários russos em 1917, os bustos de Lenin e Stalin, com o fim da URSS, e, mais recentemente, a estátua de Saddam Hussein, em Bagdá, em 2003. Em Budapeste, encontramos um jeito próprio de lidar com o passado: as estátuas retiradas de locais antes públicos agora se encontram no Memento Park, um museu a céu aberto, bem longe do centro da cidade. 

    O fato é que perpetuar e destruir registros são gestos siameses e constitutivos de nossa condição humana, que podem acontecer de modo programático ou espontâneo.  No caso atual, a retirada, ressignificação ou atualização das estátuas simbolizaria não a inauguração de um novo regime político, mas a tentativa de dar visibilidade àqueles sujeitos que a história teria invisibilizado ou registrado a partir de hierarquias e distorções. A luta por equilibrar a economia da memória histórica compõe o rol das lutas por uma sociedade menos violenta, racista e sexista e mais igualitária. Essas novas disputas, em torno de personagens muitas vezes desconhecidos, indica também que a presença do passado é mais complexa do que a “consciência historiográfica” gostaria de supor. Ou seja, longe de um passado morto e domesticado por um historiador terapeuta, o que vemos nessas disputas é uma sociedade plural e muito atenta à forte presença da história, capaz de identificar e disputar passados-presentes sensíveis e apontar para um necessário esforço de atualização que abra outros futuros. 

    Se considerarmos as cidades ou os países como grandes museus, nos quais se integram as estátuas, os casarões históricos e os monumentos que os compõem, assim como as peças expostas, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.

    Nessa direção, ao analisar o caso americano, Trouillot afirma que: “O fato de que a escravidão estadunidense tenha acabado oficialmente, mas continue sob muitas formas mais sofisticadas – em especial, sob a forma de racismo institucionalizado e de degradação cultural da negritude –, torna a sua representação particularmente incômoda nos Estados Unidos. A escravidão, aqui, é um fantasma, isto é, simultaneamente uma figura do passado e uma presença viva; e o problema da representação histórica é como representar este fantasma, algo que é, mas não é”.

    Derrubar estátuas não significa que o passado a elas relativo será apagado, mas que há um desejo de mudança em direção a um futuro em que aqueles que construíram suas vidas baseadas na escravização de outras pessoas não se tornem referência. Portanto, a questão que se coloca é: como lidar com a obsolescência de monumentos? Haveria lugar na monumentalização pública para objetos obsoletos? Haveria uma força de atualização, em sentido próprio, que pode ser despertado pelo que nosso presente considera obsoleto?

    As estátuas não deveriam ser celebradas. Qualquer pessoa familiarizada com a imperfeição das coisas humanas saberá que por trás de cada personagem ou evento escondem-se falhas, insuficiências, erros, mentiras e mesmo crimes. A ambivalência é constitutiva da vida humana e se enquadra mal às exigências rigorosas da escala moral e ética. Assim, o mais prudente é entendermos que a monumentalização de personagens e eventos históricos deveria ser um motivo para comemoração no sentido estrito da palavra, ou seja, um convite à rememoração coletiva, à reavaliação crítica dos sentidos e consequências dessas pessoas e eventos para o nosso tempo. 

    (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.


    [1] DOUTHAT, Ross. The Ghost of Woodrow Wilson. The New York Times, Nova Iorque, 30 de junho de 2020. Opinion. Disponível em  <https://www.nytimes.com/2020/06/30/opinion/woodrow-wilson-princeton.html> Acesso em 26 ago.

    [2] TROUILLOT,  Michel-Rolph.  Silenciando  o  Passado: Poder  e  a  Produção  da  História.  Curitiba:  Huya, 2016.

    [3] CARBALLO, Francisco; MARTIN, David; SETH, Sanjay. A sala de aula e a rua. HH Magazine, 08 de julho de 2020. Ensaios. Disponível em <https://hhmagazine.com.br/a-sala-de-aula-e-a-rua/> Acesso em 01 set. 2020.

  • Sem-casa botam a boca no trombone em Belo Horizonte pelo direito à moradia

    Sem-casa botam a boca no trombone em Belo Horizonte pelo direito à moradia

    Os sem-casa de 18 ocupações de Belo Horizonte e Grande-BH participaram hoje de uma grande manifestação no centro da capital mineira para reivindicar uma solução para o direito de moradia. Eles saíram em passeata da Praça da Estação até a Praça 7, de onde seguiram até a sede da prefeitura. Muitos deles temem serem despejados durante a pandemia e cobram do governador Romeu Zema (Novo), e dos prefeitos Alexandre Kalil (PSD), de BH, e Alex de Freitas (PSDB), de Contagem.

    Manifestantes percorreram o centro da cidade até a prefeitura – Fotos de Cadu Passos/JL

    Participaram da manifestação sem-casa das ocupações Camilo Torres, Zilá, Professor Fábio Alves, Vicentão, Carolina, William Rosa e Marião, estas duas em Contagem, Cidade de Deus, em Sete Lagoas, Eliana Silva, Vila Fazendinha, Nelson Mandela, Forte, Paulo Freire, Manoel Aleixo, Zezéu Ribeiro, Norma Lúcia, Esperança e Helena Greco da Isidora.

    O problema da falta de moradia fica cada vez mais acentuado na Grande Belo Horizonte, o que explica a preocupação dos sem-casa, principalmente diante do crescente desemprego. Enquanto isso, cresce na capital de forma assustadora o número de moradores de rua. Conforme levantamento da prefeitura, na capital eles já somam quase 6 mil pessoas.