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A percepção social da violência urbana

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A trajetória da percepção social da violência urbana no Brasil, especificamente na cidade do Rio de Janeiro, já foi objeto de análises sociológicas das mais diversas, abrangendo diferentes vertentes teóricas e perspectivas analíticas. Abordar este tema constitui, portanto, uma tarefa que exige inicialmente, para além de uma delimitação consciente, a clareza de que não seremos capazes de abarcar todas as nuances que a questão exigiria. Para tanto, escolhemos a título deste trabalho nos atermos a construção de diálogo entre dois importantes autores que dedicaram especial atenção ao tema: MISSE(2008) e MACHADO DA SILVA (2010)

A construção histórica das sociabilidades no Brasil é perpassada por diversos mitos que buscaram, cada qual a seu modo, operar na coletividade com vistas à construção de um imaginário coletivo determinado, um tipo ideal, e geralmente enganoso, assim se explicam os mitos por longos anos predominantes da democracia racial; do povo cordial e pacífico, etc. A profusão destes imaginários coletivos contribuíram para retardamos importantes reflexões que somente tardiamente ganharam a arena do debate público. É dentro deste contexto que se insere a percepção social da violência urbana. Enquanto os países de capitalismo central debruçavam-se já nos anos 1920 a este tema (a escola de Chicago como um marco destes estudos), no Brasil, a sociologia nacional passará a debruçar-se sobre o tema apenas em meados da década de 80.

Até a década de 50 a resposta do Estado sobre o que Machado aponta como

“o controle rotineiro das atividades típicas do lumpenproletariado urbano”,

se dava de forma marginalizada, sem grande centralidade.

As práticas consideradas criminosas até então variavam entre “contravenções, crimes contra a pessoa e o patrimônio, prostituição, varejo de mercadorias contrabandeadas, comércio de drogas ilícitas (quase exclusivamente maconha), etc. –, era uma questão socialmente periférica e submersa”, (idem), será, no entanto, com o início do regime ditatorial civil-militar de 64 que essa relação passará a transformar-se de forma mais significativa, em decorrência da ideologia de segurança nacional que, paulatinamente, introduziria as bases da politização do controle social.

O autor menciona dois marcos para esta transformação, o primeiro deles é a militarização da polícia, que tensiona o deslocamento da atividade repressiva das ações corriqueiras de atuação policial para a atuação com vistas à “segurança do Estado”, delegando às polícias maior autonomia de ação, movimento que progressivamente leva ao distanciamento destas em relação à população e a perda de sua já fraca aceitação popular; e o outro diz repeito à lei de segurança nacional propriamente dita, que tensiona a percepção do crime desfazendo ou enfraquecendo a fronteira judicial entre os crimes comuns e os crimes políticos, como resposta às ações dos grupos de resistência à ditadura, tais como os furtos a bancos, sequestros, etc. Portanto, para Machado:

“Essa é a matriz do atual ‘problema da segurança pública’:

a) o deslocamento do controle social rotineiro para as questões da segurança do Estado;

b) a militarização e o reforço da autonomia de funcionamento dos aparelhos policiais, que acabaram favorecendo a visibilidade altamente politizada das funções repressivas de rotina;

c) o fato de que a truculência característica das atividades policiais passou a atingir também membros das camadas médias. Foi por esse caminho que o crime comum violento entrou na consideração pública e se tornou um problema a galvanizar as atenções”

Com o fim do regime ditatorial a percepção social da violência urbana, já tensionada pelas medidas implementadas pela ditadura como a militarização e maior autonomia da polícia, reverberará na incursão da relação entre tráfico e Estado, através da corrupção policial, no entanto em um movimento onde os sujeitos e os territórios passam a ser o centro da criminalização. Misse aponta a existência de uma percepção social da violência que parece operar no imaginário da população de forma difusa, a violência está sempre à espreita a qualquer esquina, a qualquer momento, no entanto no bojo das relações cotidianas é possível determinar territórios específicos e corpos específicos sobre os quais pesam a “culpa” e responsabilidade atribuída para esse estado de medo. Estes territórios e corpos, como aponta o autor, são especificamente periféricos.

O processo de redemocratização irá, paulatinamente,

deslocar a percepção de violência urbana com o deslocamento

do “inimigo interno” dos agentes políticos

para os territórios periféricos e seus moradores.

Este deslocamento, que se relaciona com a proeminência do tráfico e a associação destes territórios a uma sociabilidade violenta, de que fala Machado, funcionará para reforçar o medo direcionado não somente a estes territórios mas, e principalmente, a seus moradores. Como dito anteriormente, tendo bem delimitados os sujeitos passíveis de imputação de uma “criminalidade nata”, estes sujeitos, inseridos em territorialidades associadas ao crime, passam a ser marcados pelo que Misse chamará de sujeição criminal, que consiste no fenômeno por meio do qual um sujeito é apontado como potencialmente criminoso antes mesmo da realização de um ato criminoso, se este indivíduo pode ser associado a um grupo com características semelhantes tem-se um “tipo social estigmatizado”. Ao fim e ao cabo, ao reconhecermos as bases racistas sobre as quais se assenta a conformação social brasileira, é redundante dizer que este “tipo social estigmatizado” em questão é predominantemente negro.

No âmbito do Rio de Janeiro, que figura certa centralidade na difusão social da percepção da violência, dentre outras coisas, por sediar parte da imprensa de circulação nacional, Misse destaca o surgimento do grupo denominado “esquadrão da morte” em movimento paralelo ao surgimento das primeiras manifestações coletivas de violência urbana ainda na década de 50; este movimento composto via de regra por policiais, de cunho justiceiro, passa a ser fortemente influenciado pelo modus operandi do regime ditatorial e passa a ter, como um de seus lemas, a conhecida frase “bandido bom é bandido morto”, atuando, portanto, no interior da contradição entre a punição racional legal e o justiçamento criminoso.

A percepção social da violência urbana, principalmente por setores da classe média, associado a uma percepção de ineficiência do Estado quanto à efetivação da dominação racional legal, através do monopólio do uso da força e dos aparatos burocráticos legais, levaram a uma postura de passividade e até mesmo de reivindicação da existência de grupos paramilitares de justiçamento, mas também da execução de um “justiçamento ilegal” por parte da própria polícia, práticas que se resumem bem na expressão “bandido bom é bandido morto”. Por este conjunto de fatores e de aceitação que se torna possível, segundo Machado, uma absorção e neutralização, por parte da corporação militar, das críticas destinadas a seu modus operandi de, em nome da lei agir contra a lei.

Desta forma, chega-se ao entendimento de que a transformação das corporações militares e suas práticas requer a antecedência de uma transformação da própria sociedade e das relações sociais que estamos dispostos a arcar. Um chamado a revermos o passado escravocrata e o presente racista, que delimita na imagem do “outro” a presença de uma ameaça constante; um chamado a revermos as bases da sociabilidade coletiva, que ao difundir o medo de uma criminalidade crescente funda uma economia social por meio da qual estruturam-se enclaves fortificados (CALDEIRA, 1996) e o aprofundamento da segregação social, que, ao gerar marginalização (de direitos e garantias legais), contribui para a retroalimentação da reprodução do crime em um ciclo vicioso.

Notas

1 Texto publicado originalmente em https://potlatchbrasil.blogspot.com.br/

2 Breno Ribeiro é cientista social, graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contatos: botelho.ribeiro@yahoo.com.br / botelho.ribeiroo@gmail.com

Referências Bibliográficas

MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Violência urbana”, segurança pública e favelas, o caso do Rio de Janeiro atual. CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 59, p. 283-300, Maio/Ago. 2010.

MISSE, Michel. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, Porto Alegre v. 8 n. 3 p. 371-385 set.-dez. 2008

CALDEIRA, Teresa. Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Public culture. 8(2). 1996. pp. 303-328.

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Feminismo

“Estupro culposo”, culpa da vítima?

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Por Sonia Coelho*

O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.

A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.

O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

Não existe estupro “sem querer”

A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.

Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.

O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.

O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.

Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

Denunciar não pode acarretar em mais violências

A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.

São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.

No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.

Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.

Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

Só o feminismo pode mudar a nossa realidade

Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.

Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.

Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.

O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.

(*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.

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Feminicídio

MARIELLE FRANCO, 41 ANOS DEMOLINDO AS VELHAS ESTRUTURAS

Marielle Franco, 41 anos. Dois jornalistas livres constróem e narram o que ela representa para o mundo

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Marielle Franco, 41 anos

Lembro-me que, naquele 14 de março de 2018, eu estava em um trabalho na Bahia, quando soube do assassinato de Marielle Franco. Era também, a data de meu aniversário. Cercada de amigos num restaurante, o mundo literalmente parou. Eu não havia conhecido Marielle pessoalmente, mas já acompanhava a sua atuação política e comunitária, mesmo antes de ser vereadora. Não acreditei que aquilo pudesse ter acontecido. Aliás, em época de fake news, eu achei que aquela era mais uma, e devido às minhas vivências profissionais com diversos parlamentares, no meu imagético mundo, a tal da imunidade parlamentar era como se fosse uma grande muralha impenetrável a qualquer tempestade. Marielle Franco faria 41 anos hoje.

Por Matheus Alves e Katia Passos

Amanhecer

É óbvio que eu já havia me deparado com histórias de execuções de prefeitos, por exemplo, de pequenas cidades, mas pensar que uma vereadora legitimamente eleita havia sido morta no Rio de Janeiro, era algo absurdo e inadmissível para mim. Mais inaceitável ficava, ainda quando eu lembrava do rosto de Marielle Franco, que era, entre outras parlamentares, uma das minhas referências no modo de atuar politicamente, como mulher preta. A comida e a bebida já não desceram mais. Lembro-me que saí do restaurante e o Pelourinho estava metaforicamente silencioso para mim. Havia aquela movimentação com xêro de Pelourinho, mas pairava no ar um clima absorto de indignação e medo. Caminhando por ali, encontrei outros amigos e sentamos num bar. Nossos corpos sentiam uma exaustão que não era fruto do calor bahiano e logo entendemos que era dor. 

Ali as nossas fichas começaram literalmente a cair. Aguardávamos Marielle para o dia seguinte participar de uma das atividades nas quais eu trabalharia como jornalista. Ela não viria. Recordo agora que choramos na mesa e não conseguimos mais tirar os olhos das telas dos celulares e queríamos ir embora para o Rio de Janeiro. 

O amanhecer foi absurdamente horrível. Lembro que acordei com uma pressão no peito. Liguei para casa. Chorei. 

Marielle Franco 41 anos

Katia Passos (à dir.) com os pais e irmã de Marielle Franco

Foto: Arquivo pessoal de Katia Passos
Marielle Franco 41 anos.
Katia Passos (à dir.) com os pais e irmã de Marielle Franco
Foto: Arquivo pessoal de Katia Passos

Um ato público já estava organizado em protesto ao assassinato de Marielle e seu motorista Anderson Gomes. Durante a manifestação lembro-me que eu tentava fazer uma transmissão ao vivo, e num momento choroso encontrei Marcelo Rocha, um jovem fotógrafo negro, de amizade íntima e longeva. Nos abraçamos e caminhamos. Um silêncio, alías o único som era da terra dos campos da Universidade Federal da Bahia, onde acontecia a manifestação.  

Sabíamos que aquele 14 de março não era só mais um dia para comemorar aniversário, sentimos que a data trazia um limítrofe com giz preto riscado no chão, sobre o que não iríamos mais tolerar e qual legado queríamos imortalizar. Entendemos ali o sentido da frase: “não serei interrompida!”.

Depois de mais de 2 anos sem respostas sobre quem mandou matá-la, hoje chegamos vivos, eu e Matheus e muitos outros pretos, ao 27 de julho de 2020, data dos 41 anos de Marielle. Sim, porque para nós, Marielle Franco permanece em legado e semente representando obviamente um verdadeiro incômodo à Casa Grande, milicianos e racistas. 

Mãe

Dessa trajetória surgiram centenas de milhares de novas mulheres negras que se reconhecem como parte de uma estrutura que tem como engrenagem os seus próprios corpos e esses precisam se movimentar, como diz a mestra Angela Davis, para que toda uma estrutura se movimente, evolua e por nossa sobrevivência, que seja inclusive demolida e novas construções defendam uma das trajetórias mais ricas em poderio político, humanitário e afetuoso já vista na história de uma mulher preta, altiva e de tom permanentemente voraz em sua militância. E por falar em afeto, nesses 41 anos nós negras e negros amanhecemos literalmente afetados com a declaração daquela que pariu Mari, D. Marinete Silva:

“Vinte e sete de julho de 1979! Era uma sexta de sol lindo com desenhos infinitos e desordenados, nem parecia inverno. A criança que veio ao mundo, tinha peso e tamanho de menino. A mãe feliz, segura, e tomada de confiança em Maria, sua intercessora, sua mãe Filó, que chegara de João Pessoa para acompanhar o nascimento da criança. A partir daquele dia nunca mais me senti sozinha, começava ali uma missão de doação, entrega e amor eterno com aquele ser indefeso e frágil que nos remete a pensar em você como prioridade para nada no mundo. Chegava sua melhor, amiga, companheira, guerreira, irradiando luz, esperança e um futuro brilhante para sua trajetória.

Marielle Franco 41 anos

D. Marinete e Marielle recém nascida

Foto: arquivo das redes sociais da família de Marielle Franco
D. Marinete e Marielle recém nascida
Foto: arquivo das redes sociais da família de Marielle Franco

Foram 38 anos de luta, sacrifícios, dedicação e amor infinito. Formei caráter, personalidade e principalmente o respeito ao sagrado. Cumpri minha missão de mãe e devolvi minha filha para Deus, precocemente, sem entender o porquê! Acreditando em sua misericórdia de pai que nunca me desamparou e sem perder minha fé. Só o senhor mudaria minha história e a da Marielle. A justiça dos homens pode não chegar, a sua jamais falhará e nessa eu acredito. O céu está em festa. Que toquem as trombetas da eternidade por nos dar de presente seus 38 anos de existência.” 

Descobrir 

Conheci Marielle bem de perto em dois eventos onde estive no Rio de Janeiro. Eu não era, de fato, um jovem próximo da vereadora, apesar de termos sido formalmente apresentados um ao outro. Mas desde quando a conheci, nunca mais acordei igual. Descobertas, um novo desperta.  Tornei-me um jovem preto mais esperançoso com a vida e avançado na consciência sobre meu real papel no país. 

Sou um contrariador das estatísticas, e embora vivo, estou há dois anos angustiado lutando diariamente para que seja respondida a pergunta sobre os mandantes do crime. E mesmo não possuindo provas jurídicas sobre os assassinos, é muito claro que para nós, militantes do campo progressista, a sensação das conexões do assassinato com determinados personagens, esteja presente e por isso somos afetados por resistência e angústia ao mesmo tempo, desde o 14 de março de 2018. E isso piora quando somos apresentados a fatos supostamente ligados ao crime, veiculados pela mídia tradicional. Alternâncias intrigantes entre angústia, ardor no peito e resistência. 

Hoje amanheci lembrando do sorriso e da firmeza das palavras da vereadora, que como diz Jorge Mautner, em canção que leva seu nome, “é uma força furiosa” . 

Quando verbalizam “Marielle Franco”, logo vem à cabeça a sensação de exemplo, de coletivo, dá vontade de sorrir e de abraçar alguém. Seu nome remete a muitas coisas, dentre elas o amor à causa, seja ela qual for, desde que faça bem ao mundo. Sua vida é um enredo de amor à família e respeito ao chão em que se pisa. Trata-se do novo mundo que seus passos firmes no solos íngremes moldam a cada dia que sobrevivemos.

Marielle é sobre a vontade de empurrar os nossos para adiante com um foco: projetar a favela como união e transgressão política em comunidade. É demolir as estruturas arcaicas da branquitude.

Os 41 anos de Marielle Franco nos colocam num processo de felicidade que seu sorriso aberto levará por décadas e centenários para várias partes do Brasil e do mundo, onde quer que chegue, representando uma galera aí que pertenceu aos humilhados e ofendidos, mas que hoje é do barulho. E sim, esse sorriso barulhento aí, escancarado ao mundo, é o maior exemplo das centenas de fatos, posturas e conquistas que incomodam quem não gosta da felicidade do povo preto e tão pouco está interessado em fazer a alternância de poder necessária na política, nos partidos, movimentos sociais e até coletivos de mídia, essa é a turma do sono profundo e que se for para atrapalhar ou fortalecer o racismo que permaneçam inertes em suas zonas de conforto, mas não atrapalhem o legado de Marielle. 

Semear

Dizer que Marielle é semente, significa colocar em prática um projeto bom para acabar com um projeto mal: o de extermínio da população negra. Significa darmos asas a PANE ANTIRRACISTA, uma plataforma que vai construir, através do Instituto Marielle Franco, uma nova mobilização do sistema político no Brasil. Essa é a primeira eleição municipal sem a presença física de Marielle. Mas a PANE pretende derrubar o que até hoje foi “lógica” colocando no sistema político a responsabilidade da população negra que quer alterar essa lógica irresponsável e racista. 

Marielle foi autora de sete importantes projetos de lei, que representavam grandes mudanças nas vidas de mulheres, crianças e da comunidade LGBTQIA+ carioca.

O PL 17/2017 do Espaço Coruja, programa que garante creches noturnas aos filhos de famílias que estudam à noite; o Dossiê Mulher Carioca, que visa garantir dados mais detalhados sobre crimes de violência contra a mulher na cidade do Rio de Janeiro; a Campanha Permanente de Conscientização e Enfrentamento ao Assédio e à Violência Sexual são alguns dos exemplos.

Há 15 dias de seu assassinato, no dia 28 de fevereiro de 2018, Marielle Franco assumiu a relatoria de uma comissão criada na Câmara Municipal do Rio para acompanhar a Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio, se tornando a responsável pela fiscalização dos militares nas favelas do Rio e, como socióloga, faria linha dura a qualquer descontrole. Não há caminho de retorno sobre os frutos que a história de Marielle entrega para fortalecer a luta antirracista. Eu sou porque nós somos é o mantra diário de nós mulheres e homens negros no país e não, não admitiremos sermos interrompidos em nossa construção.

Marielle Franco, 41 anos
Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

Katia Passos tem 44 anos, é mãe de duas meninas de 19 e 14 anos, ativista em Direitos Humanos, jornalista da bancada do PT na Alesp, fundadora dos Jornalistas Livres, integra o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas em Comunicacão, da Fundacão Perseu Abramo e atualmente constrói um projeto literário em homenagem e defesa do legado de Marielle Franco.

Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. É militante do Levante Popular da Juventude e colabora com a rede Jornalistas Livres.

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Viatura da PM apoia atentado a bomba contra casa de professora

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Depois da explosão causada por fascistas integralistas na porta da produtora Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, em dezembro de 2019, mais um atentado a bomba foi realizado nesse domingo, 28 de junho, contra um alvo identificado com a esquerda. Desta vez o alvo foi a residência da professora Marienne Guioto, presidenta do PT de Nuporanga, interior de São Paulo. A fuga dos terroristas do local, numa viatura da Polícia Militar, foi flagrada em vídeo, segundo a deputada Maria Izabel Azevedo Noronha, a professora Bebel, do PT de São Paulo.

Veja abaixo o vídeo e as informações publicadas em reportagem de Plinio Teodoro para a Revista Fórum:

Vídeo: Viatura da PM participa de atentado a bomba contra casa de professora, presidenta do PT de Nuporanga

Imagens mostram homem entrando em viatura após atentado contra a casa da professora Marienne Guioto, presidenta do PT de Nuporanga

Uma viatura da Polícia Militar aparece em um vídeo divulgado nas redes sociais que mostra um atentado à bomba contra a professora Marienne Guioto, presidenta do PT de Nuporanga, que faz parte da Região Metropolitana de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Segundo informações divulgadas pela deputada Maria Izabel Azevedo Noronha, a professora Bebel (PT-SP), o atentado aconteceu na madrugada deste domingo (28), “onde a casa de nossa colega da APEOESP e Presidenta Municipal do Partido dos Trabalhadores, professora Marienne Guioto, foi atacada com bombas atiradas por pessoas utilizando uma viatura da Polícia Militar, como mostram imagens de vídeo”.

“Exigimos do Governador João Doria a completa elucidação desses fatos, que os responsáveis sejam identificados e punidos na forma da lei, e que sejam asseguradas condições de segurança para a professora Marienne”, escreveu a deputada ao divulgar o vídeo.

Assista:

 

 

 

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