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Tag: violência policial

  • PM de Recife censurou shows durante o Carnaval

    PM de Recife censurou shows durante o Carnaval

    Parece inacreditável, mas aconteceu:  a Polícia Militar de Recife tentou, durante o Carnaval, impedir artistas de cantarem uma música de Chico Scince, e outras que denunciam a violência cometida pelo Estado contra comunidades periféricas.

    Sim, a censura se instalou no país, despudorada, apoiada pelo presidente da república.

    Em nota, a PM disse não há qualquer proibição a artistas, e que foi instruída a suspender blocos que estourassem o tempo de apresentação. Mas não foi o que se viu. Os integrantes da banda Janete Saiu Para Beber relataram no Instagram que a PM invadiu o palco no momento que a banda tocava a música “Banditismo por uma questão de classe”, de Chico Science.

    “A Polícia Militar fez uma barreira entre o público e a banda. Tivemos que parar o show com ameaça de levar nosso vocalista preso. A produção foi incrível e conseguiu reverter a situação, mas o mais absurdo foram os argumentos: Chico Science não pode tocar, não pode!”

    A banda Devotos passou por situação semelhante, e também foi às redes denunciar a ação da PM:

    “Todos que conhecem a Devotos sabem da nossa poética, que a nossa liguagem é coloquial, é urbana, de denúncia, de alerta e de posicionamento, usando a música como “arma”. Infelizmente estamos vivendo um regime de repressão velada, que para a maioria é normal, mas para quem trabalha com cultura, e cultura voltada para o resgate social, como é o nosso caso, sabe que estamos sendo minados, perseguidos e ameaçados de não exercer nossas ações e querem calar nossas vozes. Na noite anterior no pólo da bairro da Várzea, subúrbio de Recife, nós da Devotos também sofremos ameaças de prisão logo depois que tocamos a música “De Andada”, que está no nosso mais recente disco, “O Fim Que Nunca Acaba”, e continuamos com “Luz da Salvação”, do Cd “Agora Tá Valendo”, durante a execução dela ao vivo fazemos uma homenagem a Chico Science com trechos de “Banditismo por Uma Questão Classe”. Logo chegou, vindo do diretor de palco, que foi passada ao nosso roadie, a notícia que a polícia não havia gostado do conteúdo das letras e ameaçou, caso o show continuasse com esses temas que citassem a polícia, iriam acabar o show e levar Cannibal (vocalista) preso. Se isso não for cesura não sabemos o que é. O show continuou, eles não subiram no palco e nem tocaram na banda, mas a ameaça foi feita.”

     

    O cantor Chico César foi ao Instagram manifestar apoio aos artistas censurados pela PM: “Solidariedade à banda @janetesaiuparabeber, censurada e proibida de tocar Chico Scince em Pernambuco pela PM local. Abuso de autoridade! Isso tem que acabar, logo.  Fogo nos fascistas!”

    Zélia Duncan também se manifestou: “Vamos todos tocar Chico Science!”

     

    Ouça a música de Chico Science e Nação Zumbi censurada pela PM de Pernambuco em pleno Carnaval do Recife:

  • Paraisópolis: PM considera que PM fez tudo certo no baile funk que acabou com 9 mortos

    Paraisópolis: PM considera que PM fez tudo certo no baile funk que acabou com 9 mortos

    A corregedoria da PM, que é um órgão da própria Polícia Militar, achou legal a ação de 31 policiais, durante um baile funk na favela de Paraisópolis (zona sul de São Paulo), que resultou em nove jovens inocentes mortos.

    A tragédia aconteceu em dezembro e foi filmada por centenas de pessoas, que colocaram os vídeos nas redes sociais. E o que se viu foi o absurdo: policiais entrando em alta velocidade em ruas estreitas, depois jogando bombas, espancando, aterrorizando. O show de violência ocorreu em um baile funk que reunia cerca de 5.000 pessoas. O resultado foi o pânico, a correria, o desespero. Jovens tentavam fugir pelas vielas estreitas da favela enquanto os policiais arremessavam contra eles bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral.

    As vielas estreitas não permitem a dispersão da substância tóxica que compõe o gás lacrimogêneo, o CS (2-clorobenzilideno malononitrilo), que em contato com os olhos causa lacrimejamento intenso e queimação, além de coriza, náuseas, tosse e asfixia. De fato, das nove vítimas fatais, pelo menos 8 morreram asfixiadas. Mas os laudos do Instituto Médico Legal de São Paulo atribuíram a sufocação até a morte das vítimas a um suposto pisoteamento, algo que familiares dos mortos rejeitam, já que as peças de roupas que eles vestiam no momento do baile não tinham vestígios de pisadas de calçados.

    Segundo reportagem da revista “Galileu”, “um número considerável de mortes relacionadas a bombas de gás lacrimogêneo já foi registrado. Uma mulher de 36 anos morreu por insuficiência respiratória e parada cardíaca durante um protesto na Palestina, em 2012. No Bahrein, 36 mortes foram catalogadas (inclusive a de um garoto de 14 anos) pelo organização internacional Physicians for Human Rights, que ao lado da Facing Tear Gas e da Anistia Internacional são as maiores ONGs contra o uso das bombas de gás, que enquadram como arma química.”

    A conclusão da Corregedoria da PM foi de que, apesar das nove mortes, a ação dos policiais foi lícita e eles agiram em “legítima defesa”. O documento assinala ainda que os PMs nem sequer praticaram infração militar. Assina o relatório o encarregado do inquérito, capitão Rafael Oliveira Cazella. As conclusões dele foram referendadas pelo subcomandante da Polícia Militar de São Paulo.

    “Assumiram o risco de matar”

    Para o advogado e conselheiro do Conselho Estadual do Direito da Pessoa Humana (Condepe), Ariel de Castro Alves, o resultado dos laudos não isenta os policiais de responsabilidade nas mortes. “Foi a conduta violenta dos policiais, que incluiu o uso de fuzis de balas de borracha e o lançamento de bombas de gás lacrimogêneo, além das agressões contra a multidão que lá estava, que causou o pânico, a correria, os pisoteamentos e as mortes. Em suma, os policiais assumiram o risco de ferir e gerar mortes”.

    Uma ação desastrosa como a ocorrida em Paraisópolis, uma comunidade pobre, jamais ocorreria se a festa tivesse como endereço uma área nobre de São Paulo, cercada por seguranças vestidos de ternos e gravatas, ou cobrando ingressos caros.

    “Ah, mas havia drogas no baile funk de Paraisópolis. A PM tinha de fazer o seu trabalho”, dirá o ingênuo, como se nas raves e nas festas dos ricaços todo mundo só tomasse limonada…

    O inquérito de 1.600 páginas sobre o Massacre de Paraisópolis está nas mãos do juiz Ronaldo João Roth, da 1ª Auditoria do Tribunal da Justiça Militar. Na segunda-feira (10/2), segue para o Ministério Público, que pode pedir novas diligências, concordar com o arquivamento ou apresentar denúncia. Agora, é continuar lutando, para que pelo menos encontrem Justiça as famílias de Gustavo Cruz Xavier, 14, Dennys Guilherme dos Santos Franco, 16, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Luara Victoria Oliveira, 18, Gabriel Rogério de Moraes, 20, Eduardo da Silva, 21, Bruno Gabriel dos Santos, 22, e Mateus dos Santos Costa, 23.

    Leia mais sobre o Massacre de Paraisópolis

    Família de um dos jovens mortos em Paraisópolis refuta versão de pisoteamento no massacre

    ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    Os becos do massacre em Paraisópolis

     

     

  • PInheirinho – Oitos anos do crime de estado para favorecer bandido especulador

    PInheirinho – Oitos anos do crime de estado para favorecer bandido especulador

    Antes da fundação dos Jornalistas Livres, muitos de nós já fazíamos jornalismo com foco nos direitos humanos e contra os crimes praticados pelo estado. Em 2012, por exemplo, o então governador Geraldo Alckmin, do PSDB de São Paulo, patrocinou, em conluio com o desembargador que já havia inocentado os assassinos do Massacre do Carandiru, uma das maiores violações em massa de direitos humanos desse século no país: a violenta desocupação do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos.

    Na época, e um ano depois, a MediaQuatro, cujos jornalistas também são co-fundadores dos Jornalistas Livres, realizou seis reportagens sobre o caso para a mídia alternativa independente. A primeira, Pinheirinho: Justiça pra quem? foi publicada na Ideias em Revista, do Sisejufe RJ, e no site Ciranda.Net. Depois, outras quatro reportagens foram publicadas na Rede Brasil Atual (Rede Brasil Atual – 04/2012 – Ações apuram danos coletivos, atos de exceção e morte no Pinheirinho , Rede Brasil Atual – 04/2012 – Violência no Pinheirinho foi movida por resistência e vingança,  Rede Brasil Atual – 04/2012 – Sem destino, ex-moradores do Pinheirinho enfrentam especulação e privilégios e Rede Brasil Atual – 04/2012 – Defensor Público do Pinheirinho denuncia prefeitura por mentiras e ‘terrorismo’ contra desabrigados ) . Um ano depois, voltamos a São José dos Campos para uma nova matéria sobre o que havia ocorrido dos ex-moradores: A Pública.Org – 02/2013 – Famílias do Pinheirinho sofrem com abandono e sequelas da operação policial .

  • Fotógrafa perde 80% da visão de um olho em violência gratuita da polícia Chilena

    Fotógrafa perde 80% da visão de um olho em violência gratuita da polícia Chilena

    Por Nicole Kram, em sua rede social

     

    Quero denunciar algo completamente criminoso e que me gerou muita dor na virada do ano novo.

     

    Estávamos andando pelas ruas da “Alameda” em Santiago, felizes com uns amigos e colegas, estávamos indo para a Praça da dignidade, logo depois de um jantar maravilhoso. Quando estávamos passando de frente ao monumento da polícia do Chile avistamos de longe vários policiais entre a praça e as cercas de proteção, alguns deles estavam jogando pedras nas pessoas, na hora começamos a andar mais rápido, quando sem aviso prévio, senti um golpe muito forte no meu olho esquerdo, o ataque veio de onde estava este grupo de policiais. O golpe foi tão forte que me derrubou no chão, me descompensou por inteira, na hora começou a sangrar. Pensei no pior. Foi traumático e desesperador, @s voluntari@s de saúde cobriram meu olho e minha cabeça, me subiram na maca e por incrível que parece a polícia continuava disparando, o paramédico teve que por um escudo na minha frente para me tirar do local, no chão haviam bolinhas de aço, de vidro e várias pedras. Ps: Estava tudo tranquilo, sem manifestações.

    Passei a noite inteira com o médico e enfermeiras no GAM. Estive na emergência de traumas oculares no hospital de “Salvador”, eles fizeram todo o possível para salvar meu olho (minha ferramenta de trabalho. Sou audiovisual e repórter gráfica). Tenho um trauma ocular grave e vejo tudo embaçado, mas não perdí o globo ocular.  

    Até quando vamos continuar sofrendo com esses criminosos?

    No 31 de dezembro aconteceu comigo, fiquei espantada frente a tanta agressividade policial, eu entrevistava pessoas com perda da visão nas manifestações, hoje foi minha vez. 

    Hoje fiquei sabendo de outro companheiro que também levou um impacto no olho, uma cápsula de gás lacrimogêneo direto no rosto, mas ao contrário do que aconteceu comigo, os médicos não conseguiram salvar sua visão. Te mando muita força e amor.

    Estou angustiada, sinto muita impotência, não podemos permitir essas agressões só por andar nas ruas! Meu único erro foi passar na frente deles, são uns psicopatas, não tem outro nome.

    Renuncia Guevara, renuncia Rozas, Blumel, renuncia Piñera. Chega de mutilações!

    Muito obrigada à equipe médica que foi um grande suporte e à meus amig@s pelo apoio. Justiça e dignidade!

    @nicolekramm (ig)

     

    AQUI NO BRASIL, um dos casos emblebáticos deste tipo de agressão é do fotógrafo Sergio Silva.
    Leia em:

    https://jornalistaslivres.org/tag/perda-de-um-olho/

     

    Justiça de SP culpa vítima de bala de borracha pela perda do próprio olho

  • PM reprime com bombas e gás lacrimogêneo 2º ato contra tarifas em SP

    PM reprime com bombas e gás lacrimogêneo 2º ato contra tarifas em SP

     

    O segundo Ato Público convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) percorreu o centro de São Paulo, nesta quinta (9/jan). A manifestação opõe-se ao aumento das tarifas de ônibus e metrô, de R$ 4,30 para R$ 4,40, imposto pelo prefeito Bruno covas (PSDB) e pelo governandor João Dória Jr. (PSDB).

    Dois manifestantes foram presos ao final do 2° ato contra o aumento das tarifas. Eles estão no 78° DP, sob a acusação de “danos ao patrimônio”.

    O ato começou por volta das 17h na praça da Sé, região central, e seguiu até a praça da República, onde foi finalizado. Os manifestantes tentaram, então, entrar na estação do metrô da praça, visando a pular as catracas, em protesto simbólico contra as tarifas. A PM fechou a entrada, apenas deixando uma pequena passagem cercada dos dois lados. Os manifestantes se aproximaram com a faixa e após um primeiro contato, alguns objetos foram jogados em direção à linha da PM. Foi quando começaram os tiros de bombas de efeito moral e de gás.

    Num momento em que a recessão econômica e o desemprego condenam as famílias trabalhadoras à pobreza, é inadmissível o aumento das tarifas.

    Desempregado, o trabalhador fica sem o vale-transporte e, com o aumento, na prática, terá de andar a pé ou ficar confinado no seu bairro. Como ele vai procurar emprego?

    E o serviço de ônibus é cada vez pior em São Paulo, com o fechamento de milhares de linhas, e a demissão de dezenas de milhares de motoristas e cobradores!

    Diante de reivindicação mais do que justa, tudo o que João Doria Jr. e Bruno Covas oferecem é um contingente reforçado de policiais militares para intimidar os manifestantes!

    Pela mobilidade urbana!

    Contra o aumento das tarifas!

    Veja cenas da manifestação!

     

     

  • ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    Desigualdade e racismo, mas o olhar anestesiado do Morumbi não vê - acervo Favela News
    Desigualdade e racismo, mas o olhar anestesiado do Morumbi não vê – acervo Favela News

    Há poucos anos, dentro de uma academia de ginástica no Jardim Botânico, uma colega de alongamento estava esfuziante junto com as amigas, comentando o champagne, o filho que chegou de Londres a tempo, o tênis verde-amarelo que tinha comprado para a sobrinha, e a alegria que tinha sido o dia de domingo na família num evento que custei a perceber que se tratava da passeata em Copacabana a favor do impeachment da Dilma.

    Como tinha visto as imagens do evento, aproveitei para perguntar pra ela por que não havia negros na referida manifestação pública. Ela então me olhou com olhos imensos, embora meio ocos, ampliada na minha frente aquela cara cheia de preenchimentos, embora vazia: “Ah, esses artistas fazem cada pergunta! Os pretos não têm cultura, Elisa! Para eles tanto faz, política não interessa.” Para esta senhora, como sou uma artista conhecida, eu era uma espécie de não-negra, alguma categoria em mim me embranquecera aos seus olhos.

    Na sequência, reajo:

    “Querida, preciso te explicar uma coisa. Como mulher negra que sou, vejo um país que você não vê.”

    Ao que ela imediatamente retrucou indignada:

    “Que que é isso? Você não é negra, você é bonita com esses olhos! Para de se rebaixar, de se denegrir”.

    Toda errada, e segura de que estava muito certa, minha interlocutora me encheu de preguiça. Por onde começar? Isso me levou, na época, a prestar extrema atenção à ignorância que a casa grande sempre teve do povo brasileiro, e uma ignorância que pode conviver bem com clássicos da cultura universal. A pessoa pode ter lido grandes autores, mas esse saber pode não fazer cruzamento sociológico aplicável à interpretação da nossa realidade.

    A tragédia de Paraisópolis é um horror cheio de erros contra a Constituição e contra os Direitos Humanos. Na primeira versão oficial dada pelos policiais, falou-se em enfrentamento por parte dos frequentadores do baile, em pisoteamento, em apologia às drogas e sexo.

    Depois, vídeos trazendo fatos mostram o ataque deliberado por parte das forças de segurança (ó ironia) contra os jovens, e agora, laudos periciais apontam para sufocamento, enforcamento, ou seja, o assassinato das vítimas. Não houve confronto. Parece que esses policiais estão sendo treinados para crer que vidas negras não importam. E não é por acaso que seu pensamento combina muito com o dos vizinhos, os que moram no Morumbi, e que gostariam sinceramente que aquela comunidade não existisse mais, que fosse dedetizada e parasse de existir assim, esfregando a pobreza na beira dos jardins das redondezas. É incômodo. Compromete o IPTU, é desagradável, por isso aquele muro dividindo os mundos. Tentando que uma parte da cidade partida não fagocite a outra.

    A sordidez do jogo desigual deixa as periferias, as favelas, as comunidades pobres todas reféns das igrejas ou de algum boteco para se divertirem. Nada mais. Não há opções. Dentre essa população moram mil vocações: médicos, engenheiros, artistas plásticos, bailarinos, atores, astronautas, cientistas, filósofos, professores, ensaístas, escritores. Mas, como a regra do jogo é educação zero para o povo, e o não-direito ao compartilhamento das riquezas da sociedade como um todo, fica meio proibido sonhar deste tamanho ali. E como não se tem teatro, nem cinema, nem modo de se expressar isso, se o indivíduo for cantor, o melhor dia da vida dele é o dia que ele canta na igreja. E Deus ganha aí todo o território da sua vocação.

    Se sou ator e moro num lugar onde a melhor performance “teatral” que se vê é a de um pastor, é o que eu vou ser então. Eu mesma, por exemplo, se tivesse nascido numa favela e nela tivesse sido criada, certamente o melhor dos meus destinos seria ser uma rapper, uma funkeira, ou então, com a minha criatividade, poderia me dedicar e chegar a ser uma importante chefe de facção.

    Quem pode afirmar que não? Quando o Estado deixa intelectual e culturalmente desnutrida uma população, ele está exercendo o abandono, o mesmo abandono que muitos pais oferecem aos filhos muitas vezes. Não se importam com o seu destino. E mesmo que esse exército de pobres se transforme numa multidão de servidores domésticos, cuidando com dedicação os filhos dos ricos, construindo suas casas, cozinhando, servindo, lavando suas roupas, levando os meninos ao colégio, sua importância humana segue sendo nenhuma. Há um desprezo por cima, como se fosse um requinte desta crueldade. O baile funk não é crime, e sem ele a coisa vai ficar pior.

    A alma precisa de cultura. É ali o único encontro que se tem com a arte. Adolescente quer se divertir, dançar, cantar, se libertar, curtir. Faz parte da saúde jovem. Tanto é verdade que jovens ricos fazem festinhas “quentes” em suas casas, com os pais sempre ausentes. Frequentam suas raves onde rola droga farta, sexo nos banheiros, apologia  à sacanagens, drogas como MD que exacerbam a sexualidade, sem temer a invasão da polícia. Lá a polícia não vai. E os pais compreendem, para eles não há delito: “São brancos, ricos, adolescentes e jovens. É natural”.

    Agora, você que me lê, responda, por favor: se as festas ricas do país são abarrotadas de tudo que dizem que havia no baile funk de Paraisópolis, por que a polícia não vai nelas? Isso nos faz crer que o que se combate nestas agressões policiais não são as drogas, correto? Você que me lê poderia me explicar  por que a mesma ação não é feita nas zonas nobres das cidades, mesmo que haja ali maciça presença de meninos mimados, sem limites na vida e nos cartões de crédito, capazes de qualquer coisa, e confiantes de que seus pais têm contatos no judiciário, na alfândega, nas fronteiras, e podem fazê-lo desaparecer para esfriar as coisas num apartamento em Dubai, se der alguma merda? Por quê? Tudo isso eu não invento.

    Está aí para quem quiser ver. Há muitas boates famosas, no Rio de Janeiro e em São Paulo abarrotadas de brancos, com bundas brancas tentando ir até o chão. São ricos, transando na cara de todo mundo pra geral ver, à base de muita droga sintética e cara, que baile funk  algum nunca ousou conhecer. Ouvi dizer que são coisas de arrepiar! Até substâncias para anestesiar cavalo tem e quem me contou foi um usuário contumaz e extremamente seguro de sua impunidade.

     

    Matar, limpar e dedetizar

     

    Circulou nas redes o vídeo de uma reunião de condomínio no Morumbi. Todos com caras de gente que se reúne pra “dedetizar” o prédio. Todos preocupados com sua segurança, desprovidos de empatia com a situação da comunidade vizinha, destilavam suas pautas de desprezo com essas vidas humanas: Não tem como o Exército entrar lá e “limpar” de uma vez a favela, gente?” “E se nós que temos mais poder aquisitivo oferecêssemos carros blindados à polícia? Que com esses carros eles não conseguem combater nada.” Enquanto essa reunião absurda acontecia, em minha página no instagram alguns seguidores, não muitos, mas não tão poucos como eu gostaria, reverberavam o mesmo pensamento desses condôminos, comentando a cena: “A culpa é dos pais que deixam os filhos de 14 anos num baile desse. Quem mandou tá lá dentro, rebolando a bunda?”, “É isso que acontece, com tanto sexo e drogas rolando, queriam o quê?”

    Bem, os comentários não avançavam em análises profundas. Seguiam na linha da criminalização daqueles jovens,. Nenhum deles tem nome, sobrenome, importância. São pobres e pretos por isso devem morrer. Quando morava na Lagoa e estava havendo um tiroteio no ápice do morro, perguntei ao policial que estava na esquina se podia subir para ir pra casa. Neste momento, um vidro fumê de um carro blindado importado, desce e revela o rosto de uma mulher loira que dizia: “A polícia tem que subir no morro e matar todo mundo, você tá ouvindo, seu policial? Sobe lá e mata todo mundo pra gente ficar livre desse inferno”. Foi então que eu olhei pra ela e afirmei: “Você não tem filho lá, né?”. É isso, todos os que acham que Paraisópolis não foi violada em seus Direitos Humanos, entre eles seu direito à vida, não têm filhos nem parentes lá.

    Novos laudos e depoimentos revelam destruição de provas e até lavagem do sangue na calçada do crime feita por policiais. Que tristeza, meu Deus! E essa crônica pergunta: qual é o seu olhar? Se você brada sua fé em Deus e em nome Dele, em nome da ordem, já se perguntou o que faria seu Jesus Cristo nessa situação? Para mim, a morumbização do olhar é esse anestesiamento, essa falta de sentimento, esse não se importar com a sanguinária cruzada do rico contra o pobre, e que se utiliza da força do Estado, da ignorância e do despreparo de vários policiais, também oriundos da pobreza, para que, sem pena, ou consciência, se voltem contra os seus. Em toda regra há exceções e no Morumbi conheço gente realmente fina na sensibilidade. Mas é exceção. Astrid Fontenele, por exemplo, por amar profundamente seu filho preto, fez uma revolução e conseguiu que a escola rica dele frequentasse a escola pobre ao lado e vice e versa. Quebrou o muro que a maioria dos seus vizinhos do Morumbi quer preservar.

    Morumbi significa colina verde em Tupi. Representa uma coisa límpida, descarregada de ódio, desprovida de toda a escrotidão que ronda a prataria desumana de muitas mesas. Morumbi ficou significando algo oposto à beleza de sua etimologia.Talvez ali muito poucos se importem quando matam um guardião tupi, o inventor do nome do bairro. Talvez nem saibam a origem do nome. O espírito da colina verde pede amor e não o descaso que essa morumbização do olhar tem significado. É difícil nesse momento escrever essa crônica, sem que doa o meu peito. Na minha página, um a um, com paciência, respondi a cada tentativa de justificar a matança: então porque dançam devem morrer? Porque usam drogas devem ser assassinados? Porque gostam de sexo também? É pena de morte então? Pena de morte para quem?

    É bom ficarmos de olho porque quem está anestesiado não sente que está anestesiado. Claro, né? Então, repare se o seu olhar não está desfalcado da sensibilização da realidade. O Morumbi é vizinho de Paraisópolis. Expõe o jogo sujo da desigualdade. Criminalizar quem sempre perde o jogo empobrece muito a riqueza. Essa não tem o meu respeito. Ao final do dia, lendo as mensagens, vi que uma delas tinha espelho no meu peito. Vinha de Cláudio Jorge, meu grande amigo, grande músico e compositor que amo e respeito: “Putz, o exercício para não ter ódio está me matando”.