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  • “A Nossa Bandeira Jamais será Vermelha” é o filme da desgraça brasileira. E a culpa é da Globo!

    “A Nossa Bandeira Jamais será Vermelha” é o filme da desgraça brasileira. E a culpa é da Globo!

    O documentário “A nossa bandeira jamais será vermelha”, dirigido pelo jornalista Pablo Guelli, é mensagem na garrafa lançada no mar de desesperança em que se transformou o Brasil. Só daqui a anos, quando o País recuperar a capacidade de se indignar, será possível entender, em toda sua extensão, a gravidade das denúncias contidas no filme.

    Fraudes, empulhação, mentiras. O trabalho sujo da grande mídia brasileira. É essa a matéria-prima de que é feito o filme – todo ele dedicado a tentar explicar como chegamos a essa nauseante indiferença em relação à barbárie representada por Jair Bolsonaro (e daí essas 156 mil mortes por covid-19?); por fundamentalistas religiosos que preferem a morte de uma menininha estuprada a salvá-la de uma gravidez que não cabia nela; por incendiários do cerrado, da floresta Amazônica e do Pantanal, aos quais o sofrimento da natureza é apenas cena de videogame; e por fascistas em geral, que agora (Graças a Deus! Amém, Jesus!) podem comprar fuzis do Exército, cuja venda acaba de ser facilitada pelo governo federal.

    Não adianta a Rede Globo, a Folha, a Veja fingirem ser oposição a tudo o que aí está. Eles são parte do monstro bolsonarista. Foram elas, e a desmoralização que provocaram com seu turbilhão de mentiras, despejado 24 horas por dia, todos os dias, ao longo de 16 anos, que criaram a desconfiança na Democracia, na Política, na Imprensa, na Justiça, no País, nos Brasileiros. Só podia dar no que deu.

    Tornamo-nos um caso clínico de doença social, de fobia às diferenças, de maníaca disposição para o ridículo, de negação da realidade e da consequente denúncia dessa conspiração internacional chamada… Ciência.

    “A nossa bandeira jamais será vermelha” é como uma sala do Instituto Médico Legal. Está lá, esticado na mesa de autópsia, o corpo do Brasil alegre e inzoneiro, do Brasil lindo e trigueiro, do Brasil, samba que dá, bamboleio que faz gingar, da terra de Nosso Senhor – e de Lula também.

    O filme convocou uma junta de médicos legistas encarregados de investigar a causa-mortis daquele Brasil. Dos depoimentos consternados de Glenn Greenwald, Noam Chomsky, Luís Nassif, Xico Sá, Jessé Souza, Ricardo Melo, Ana Magalhães, Igor Fuser, Tales Ab’Saber e Rodrigo Vianna, emerge uma só conclusão. Foi a Rede Globo que matou o Brasil generoso que era o ideal de País saído da Constituinte de 1988. Foi a Rede Globo e seus comparsas menores, representados pela Editora Abril, pela Folha de S.Paulo, pela TV Record etc.

    “Eu nunca vi um país com uma mídia dominante tão fraudulenta quanto a mídia brasileira”, resumiu Glenn Greenwald, do alto de seu prêmio Pulitzer, a suprema glória da imprensa ocidental.

    Greenwald foi o jornalista responsável pelo desnudamento da Operação Lava Jato e do juiz Sérgio Moro, em reportagens publicadas pelo “The Intercept Brasil”, e o cara que tornou pública a imensa operação de espionagem global da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA). Ele mostrou que o Grande Irmão existe e a privacidade, não. Que ninguém está a salvo dos olhos do Império.

    Todos os depoimentos colhidos no filme tratam do caráter fraudulento da cobertura jornalística da grande imprensa brasileira, interessada antes de mais nada em assassinar as reputações dos integrantes do Partido dos Trabalhadores – e de Lula, em particular. E, depois, em criminalizar, processar, prender e, por fim, fazer desaparecer o maior partido de esquerda do Ocidente. E tudo bem que isso ocorresse ao arrepio da lei, em conchavos com o juiz Sérgio Moro e com os golden boys treinados por agentes americanos especializados na desestabilização de governos democraticamente eleitos.

    A Globo hoje resmunga que está sendo atacada por Bolsonaro. Tadinha! Isso acontece porque ela mesma cavou a imensa cratera em que sua reputação de “mídia profissional e isenta” foi enterrada. Cavou com manipulações, com desfaçatez, com âncoras fazendo caras e bocas de indignação, a cada vez que pronunciavam as palavras PT, Lula ou Dilma. Cavou quando orquestrou uma manipulação em massa que destruiu a confiança da população na imprensa tradicional e jogou o país em direção ao fascismo.

    Bolsonaro, que de bobo não tem nada, não perderia a oportunidade de solapar o incontrastável poder que a Globo tem sobre o Brasil (por que se manteria sob o tacão, podendo livrar-se dele?). E o presidente fascista também engrossou o coro brizolista: “O Povo Não é Bobo. Abaixo a Rede Globo!”

    Não deixa de ser irônico: Bolsonaro, o maior beneficiário de todas empulhações, fraudes, falsificações, ardis, desonestidades e tapeações cometidos pela grande imprensa brasileira, agora se transforma no maior algoz do algoz do PT, de Lula e de Dilma.

    E o resultado está aí: A Globo demitindo suas maiores estrelas do noticiário e da teledramaturgia, pra fazer caixa! O agravamento da crise eterna do SBT, a circulação decrescente dos grandes jornais e revistas. A falência da Editora Abril. Sobram a TV Record e o lumpesinato em forma de televisão, que é a RedeTV ou a Bandeirantes.

    O jornalista Pablo Guelli, diretor de "A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha" - Foto Divulgação
    O jornalista Pablo Guelli, diretor de “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” – Foto Divulgação

    Foi o jornalista Pablo Guelli quem me chamou a atenção para o nome do documentário que o inspirou a realizar o filme que acaba de apresentar. Era um filme produzido pela britânica BBC, chamado “Muito Além do Cidadão Kane”, de Simon Hartog, exibido em 1993 pelo Channel 4, emissora pública do Reino Unido. O documentário mostra as relações entre a mídia e o poder do Brasil, focalizando a figura de Roberto Marinho e comparando-o a Charles Foster Kane, personagem criado em 1941 por Orson Welles para o filme “Cidadão Kane”, drama baseado na trajetória de William Randolph Hearst, magnata da comunicação nos Estados Unidos.

    O nome escolhido para o documentário sobre Roberto Marinho foi “Muito Além do Cidadão Kane”. A chave está no “Muito Além…”, ressaltando que o poder de manipulação e controle de Marinho sempre foi muito maior do que o do próprio Cidadão Kane. E foi, já que Hearst viveu em um país com milhares de jornais, revistas, TVs e rádios, competindo entre si, enquanto Marinho tornou-se o maioral entre apenas seis outros chefões da mídia brasileira – um caso espetacular de hiper-concentração da propriedade de meios de comunicação.

    Mas talvez os herdeiros de Roberto Marinho tenham exagerado na fórmula, tornando-a antieconômica, algo que nunca ocorreu com Hearst. Os jornais de Hearst eram sensacionalistas? Eram. Mentiam? Mentiam. Manipulavam? Sim. Mas todo o espetáculo que propiciavam tinha como objetivo aumentar as tiragens, a receita publicitária e, ao final, a margem de lucro do negócio.

    No Brasil, a espetacularização do linchamento da esquerda e do PT, de Lula e de Dilma, se foi eficiente para arrancar do poder o partido vencedor em quatro eleições consecutivas, ao mesmo tempo rasgou as relações de confiança que precisam existir entre mídia e consumidor. E isso foi feito a um ponto em que o negócio, tendo-se tornado deficitário, está em xeque.
    Ou seja, a continuidade até o limite da exaustão do espetáculo farsesco destruiu boa parte da credibilidade da grande mídia. E a culpa é dela mesma.

    Do filme de Pablo Guelli só sobra a mídia independente, multifacetada, carente de equipamentos, pobre. São os pequenos veículos-quixotes, que sobreviveram à indiferença do PT para com a centralidade das narrativas na definição do projeto coletivo de País. Sobram blogs e sites de esquerda, que sobrevivem hoje às redes de ódio mantidas pelo fascismo bolsonarista. Sobra a vontade desesperada de deixar para o futuro uma explicação generosa com o povo brasileiro, que não acabe depositando mais uma vez sobre os ombros desses milhões de homens e mulheres pobres, oprimidos e manipulados, a responsabilidade por sua própria desgraça. Não, não é culpa do povo. É dos mentirosos compulsivos e poderosos, em primeiro lugar a TV Globo. Por isso, mais uma vez: “O Povo Não é Bobo! Abaixo a Rede Globo!”

    Serviço: O filme “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha” estreou no dia 22 de outubro, nas plataformas NOW, iTunes, Vivo, Microsoft e Looke.

    Avaliação: Imprescindível

    Veja aqui a entrevista exclusiva feita com o diretor do filme “A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha”. Pablo Guelli:

  • MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    ARTIGO

    Angela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

     

    O Queiroz finalmente foi preso. Estava em Atibaia, na Grande São Paulo, em uma residência, disfarçada como escritório, de propriedade do advogado do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da República.
    A prisão aconteceu nesta quinta-feira (18/6) depois de um fim de semana marcado por atos antidemocráticos, que tentaram colocar em xeque a autoridade do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, exigiam intervenção militar e a volta da ditadura.
    Em qualquer país do mundo, que se pretenda minimamente democrático, atos assim são considerados terroristas e tratados como tal. O agravante, no caso brasileiro, é que esses atentados foram cometidos por apoiadores do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e, pior ainda, estimulados por declarações que ele vem fazendo em meio ao caos econômico e à pandemia de covid-19.
    No domingo (14/6), um dos acusados de soltar rojões em frente ao STF, em Brasília, Renan Sena também foi preso. Seu celular será periciado, mas já se sabe que o teor das trocas de mensagens é bombástico, porque demonstra sua ligação com figuras de peso do governo federal.

    Nesse mesmo dia, o agora ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, aquele que durante reunião ministerial disse que “tinha que botar todos os vagabundos na cadeia, começando pelo STF”, não só estava entre os manifestantes, como se encontrava em lugar público sem máscara para proteção contra o covid-19. Em função do cargo que ocupa, não foi preso, mas terá que pagar multa. Sua permanência na equipe de Bolsonaro, que já era muito complicada, tornou-se quase impossível.
    No dia anterior, um grupo de 78 militares reformados (entre os signatários estão 12 brigadeiros, cinco almirantes e três generais) havia lançado manifesto contra o ministro do STF, Celso de Melo, relator das investigações que apuram as acusações feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro de que Bolsonaro estaria interferindo politicamente na Polícia Federal. O manifesto, com pesadas críticas a Celso de Melo, parece ter garantido ânimo aos manifestantes.

    O repúdio de setores dos militares reformados começou depois que o ministro do STF disse que os generais que ocupam cargos no Palácio do Planalto deveriam depor como testemunhas no inquérito. Caso não comparecessem, poderiam ser conduzidos “debaixo de vara”, termo jurídico que significa serem obrigados a comparecer. A tentativa de intimidação dos militares reformados não surtiu efeito. Entre segunda e terça-feira, a Polícia Federal prendeu seis pessoas e cumpriu 21 mandados de busca e apreensão solicitados pela Procuradoria-Geral da República e autorizados pelo ministro do STF, Alexandre de Morais. Entre os presos estão a militante de extrema-direita, Sara Giromini, que usa o pseudônimo de Sara Winter em homenagem a uma espiã nazista.
    Já entre os alvos de busca, apreensão e quebra de sigilo bancário estão além de 11 parlamentares (dez deputados e um senador), blogueiros e youtubers, o publicitário Sérgio
    Lima e o empresário Luís Felipe Belmonte, ligados ao Aliança pelo Brasil, partido que o
    presidente da República pretende fundar, desde sua saída do PSL, no final do ano passado.
    Todos são bolsonaristas de carteirinha. Possuem fotos e imagens ao lado do “Mito” e estão
    sendo acusados de financiamento e/ou envolvimento com redes de fake news.

    Na noite de terça-feira, através de uma sequência de tweets, Bolsonaro postou que irá tomar “todas as medidas legais” para proteger seus aliados investigados pelo Supremo. Ele frisou também que não vai “assistir calado” enquanto “direitos são violados e ideias são
    perseguidas”. Na manhã de ontem (17/06), respondendo a pergunta de uma apoiadora no
    jardim do Palácio da Alvorada, disse que houve abuso na operação autorizada pelo STF contra
    seus aliados e que “está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”.
    Não por acaso, o governo Bolsonaro foi o único num total de 132 países de todo o mundo que
    não aderiu a uma iniciativa para estabelecer o compromisso de não difundir desinformação
    em meio à pandemia de covid-19. Até aliados de Bolsonaro como Israel, Hungria e Estados
    Unidos assinaram. Na América do Sul, só o Brasil ficou de fora desse compromisso.
    Enquanto a temperatura entre Bolsonaro e os demais Poderes sobe, a popularidade do
    presidente derrete de forma acelerada. A soma dos que consideram seu governo ruim ou
    péssimo já está em torno de 50%, ao mesmo tempo em que piora acentuadamente a
    expectativa para o restante do seu mandato.

    O caos em que Bolsonaro e seus apoiadores transformaram o Brasil não aparece como tal na mídia corporativa, também autodenominada grande mídia, mas tem sido alvo de frequentes reportagens e comentários em jornais, revistas e TVs de todo o mundo. Com exceção de veículos do Grupo Globo, os demais têm feito de tudo para transmitir a imagem de que “as instituições estão funcionando”, e que os problemas, quando não há como sonegá-los da população, são atribuídos aos “inimigos do Brasil”, aos que querem atrapalhar o governo, enfim aos “esquerdistas e comunistas”.
    Depois de 18 meses à frente do Palácio do Planalto, Bolsonaro não tem nada, mas exatamente nada, para apresentar como obra ou ação de seu governo a não ser criar todo tipo de problema interno (com mulheres, negros, índios, LGBTs, ambientalistas, professores, estudantes, cientistas, aposentados, pequenos e médios empresários, artistas) e externamente transformar o Brasil, de um protagonista respeitado, em pária mundial.
    Sem qualquer explicação a não ser o alinhamento e a subserviência aos interesses dos Estados Unidos, o governo Bolsonaro passou a hostilizar a Argentina, quase declara guerra à Venezuela, criticou a França, Alemanha e Noruega e não tem medido estocadas contra a China. Detalhe: China e Argentina são, respectivamente, o primeiro e o terceiro parceiros
    econômicos do Brasil.

    Ao contrário do que tenta argumentar o ministro da Economia, Paulo Guedes, não foi a
    pandemia que criou o caos em que o país se encontra. O caos já estava instalado. O Brasil
    fechou 2019 – o quarto ano após a deposição de Dilma Rousseff – com recordes históricos
    negativos: quase 12 milhões de desempregados, cerca de 40 milhões de pessoas trabalhando
    na informalidade, a doença e a fome voltando a se instalar entre os mais pobres e os novos
    pobres.
    O Brasil não quebrou ainda, devido às reservas de 390 bilhões de dólares deixadas pelos
    governos de Lula e Dilma. Reservas que Guedes e a própria mídia reconhecem como sendo a
    âncora do país. Só que tanto Guedes quanto a mídia se esquecem de acrescentar que elas
    foram fruto dos governos petistas, aqueles que, segundo essa mesma mídia, “quebraram o
    Brasil”.
    Há três meses, o covid-19 fazia sua primeira vítima fatal e de lá para cá o Brasil já se aproxima das 50 mil mortes e de um milhão de infectados. Isso, segundo dados oficiais. Como há uma enorme subnotificação, os números reais são muito maiores, podendo ser multiplicados por no mínimo seis. Em outras palavras, o Brasil já superou os Estados Unidos, transformando-se no epicentro mundial da pandemia e não há sinal de que a curva esteja prestes a começar a descer.
    Em plena pandemia, no entanto, o Brasil continua sem ministro da Saúde. O ocupante interino do cargo, cuja interinidade parece que será permanente, Eduardo Pazuello, é um general com especialização em logística. Os outros 22 militares que passaram a atuar na Pasta também não são do ramo. Os dois ministros que o antecederam nesse governo, ambos médicos, saíram, por discordâncias com Bolsonaro querer “receitar” cloraquina – uma droga no mínimo controvertida – para os tratamentos contra a covid-19, e ameaçar prefeitos e governadores que defendem o isolamento social.
    Por si só, o descaso de Bolsonaro para com o combate à pandemia seria motivo de sobra para que fosse aberto processo de impeachment contra ele. O presidente da Câmara dos
    Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já coleciona em seu poder 35 pedidos nesse sentido,
    oriundos de partidos políticos, entidades da sociedade civil e até de cidadãos comuns. Maia
    resolveu deixá-los na gaveta, por considerar que o momento “não é oportuno”.
    A mídia corporativa brasileira também não considerava o momento “adequado” para tratar do assunto. Talvez a prisão do Queiroz possa contribuir para que mude de ideia. Mesmo o Grupo Globo, que nos últimos meses passou a fazer críticas a Bolsonaro e à sua péssima atuação em relação à pandemia, não parecia nada disposto a colocar em pauta o  ]impeachment, ao contrário do que fez com Dilma Rousseff.
    Nas demais TVs, Bolsonaro continua nadando de braçadas e o apoio a ele nos telejornais pode
    até aumentar com a nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN) genro de Sílvio Santos, dono
    do SBT, para o ministério das Comunicações. É importante lembrar que o ministério das
    Comunicações foi recriado para abrigar um integrante do “Centrão” e contemplar a mídia
    “chapa branca”, sempre de olho nas verbas oficiais de publicidade, que, apesar da crise, não
    param de crescer.

    Quem se lembra que Sílvio Santos mandou tirar do ar o Jornal do SBT, principal telejornal de sua emissora, no sábado, dia 23/05? Motivo: o Planalto não havia gostado da cobertura do dia anterior sobre a reunião ministerial que teve o sigilo levantado pelo STF. A truculência da ação de Santos, sem paralelos na história da mídia brasileira, revoltou até as emissoras afiliadas ao grupo, com vários “rebatizando” a sigla como Sistema Bolsonarista de Televisão.

    Mas se o apoio ao governo justifica o fato de que parte da mídia não abordava o tema impeachment, o que leva o Grupo Globo, que agora se coloca na oposição, a também, até agora, ter fugido do assunto? Será que a prisão de Queiroz e os desdobramentos que ela certamente trará vão alterar essa situação?
    O acompanhamento atento dos noticiários do Grupo Globo (O Globo, G1, CBN, TV Globo, GloboNews, Época, Valor Econômico) indica que os problemas da família Marinho com o governo se limitavam aos “excessos” de Bolsonaro e de alguns de seus ministros “terra plana” como Damares Alves, Abraham Waintraub e Ricardo Salles. Guedes continua sendo queridinho da família, que defende com unhas e dentes a sua agenda ultraliberal para o Brasil (redução de direitos sociais, estado mínimo, privatizações, submissão aos interesses dos Estados Unidos).

    Em outras palavras, para a família Marinho, pouco importa quem seja o ocupante da
    presidência, desde que a agenda ultraliberal continue sendo adotada e aprofundada e que o
    PT não retorne ao poder. Foi para isso que ela teve participação tão intensa no golpe,
    travestido de impeachment, contra Dilma. Foi para isso que ela jogou pesado em 2018 para
    que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse preso e não pudesse disputar as eleições.
    O sonho da família Marinho e da “elite do atraso” da qual é parte, sempre foi emplacar na
    presidência da República um candidato de centro, que poderia ser desde o seu funcionário e
    apresentador Luciano Huck até o banqueiro João Amoêdo, passando por Henrique Meirelles,
    Álvaro Dias e Geraldo Alckmim. Como nenhum deles decolou nas pesquisas de opinião pública,
    a solução, para neutralizar Lula e o PT, acabou sendo apoiar Bolsonaro.
    Nesse processo de estimular e ampliar o ódio ao PT, a Globo, mas não só ela, também se valeu de fake news. Exemplos?
    A condenação, sem provas, de Lula, seguida por sua prisão é fruto, em grande medida das mentiras que a mídia, Globo à frente, pregou ao povo brasileiro. A tentativa de comparar Lula, um humanista, a Bolsonaro, um autoritário com nítidas inclinações fascistas, é outro exemplo dessas mentiras estampadas em jornais como o Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo.
    A mídia corporativa se aproveita do senso comum, que ela mesma difundiu, de que é independente e que apenas apresenta a verdade ou a realidade ao seu público, para divulgar, como notícia, os seus próprios interesses. Para essa mídia é muito confortável, agora, em que o caos está instalado, tentar jogar a responsabilidade por iludirem o povo brasileiro exclusivamente nas fake news, no “Gabinete do Ódio” e nos militantes bolsonaristas.

    Não resta dúvida que eles possuem enorme responsabilidade pelas mentiras que são contadas diariamente aos brasileiros. A título de exemplo, basta lembrar que relatório produzido a pedido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News identificou mais de 2 milhões de anúncios pagos pela então Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em sites de fake news e até de pornografia. Muitos deles são exatamente os que agora estão sob investigação.
    Só que essas mentiras não surtiriam efeito se não tivessem tido e não continuassem tendo o beneplácito ou mesmo o apoio da mídia corporativa, quando lhe é conveniente. Exemplos? Quando o grupo Globo, mesmo agora que se posiciona de forma crítica contra Bolsonaro e é ameaçado com censura e não renovação da concessão, fez alguma reportagem investigativa sobre o teor das fake news? Qual veículo da mídia corporativa teve a coragem de romper com a farsa do tríplex atribuído a Lula? Qual veículo dessa mídia resolveu ir fundo nas denúncias que o advogado Tacla Durán quer fazer contra a turma da Operação Lava Jato em Curitiba? Qual veículo se dispôs a investigar, para valer, as denúncias envolvendo o clã Bolsonaro? Qual veículo de mídia investigou a fundo o paradeiro de Queiróz e suas ligações com o clã Bolsonaro?
    Enquanto a mídia corporativa, inclusive a Globo, em última instância, passava pano para Bolsonaro, ele se sentia cada dia mais à vontade para fazer ameaças, aprofundar crises e tentar estabelecer clima para um golpe de estado, na realidade um autogolpe.
    Como não existe nenhuma força política interna ou externa ameaçando-o politicamente (corrupção é crime previsto no Código Civil), um possível golpe teria como objetivo apenas ampliar os seus poderes. Algo como governar de forma absoluta, livre dos freios e contra freios do Legislativo e do Judiciário, como acontece apenas nas ditaduras.
    É interessante observar como todas as crises no governo Bolsonaro são provocadas por ele,
    por seus filhos ou por gente muito próxima a eles. Crises quase sempre seguidas por ameaças
    autoritárias e insinuações de que, com o apoio dos militares, que já estão em seu governo,
    poderia haver um endurecimento “em nome da democracia” ou “em defesa da democracia”.

    Essa retórica propositalmente confusa acaba sendo reproduzida e amplificada pelas fake news.
    É ela que está na origem de termos como “intervenção militar constitucional” ou “ditadura
    militar democrática”, que povoam cartazes de apoiadores de Bolsonaro em manifestações.
    Como nenhum dos que gritam esses slogans consegue explicar o que seria uma ditadura
    militar democrática, acabaram sendo apelidados de “gado”, por apenas seguirem o berrante
    do dono. No caso, uma manada cada dia mais agressiva e reduzida.
    Os “300 do Brasil”, de Sara Giromini, não passam de uns 30 gatos pingados. Até no
    “curralzinho”, armado pelo governo na saída do Palácio da Alvorada, a militância bolsonarista
    dá sinais de desalento. Tanto que os gritos de “Mito” deram lugar a cobranças em relação ao
    número de mortos pela pandemia e à inação do governo.
    Irritado com as cobranças, Bolsonaro estuda por fim ao “curralzinho”, ao mesmo tempo em
    que vem redobrando as insinuações de que teria apoio dos militares para um endurecimento.
    Sintomaticamente, Bolsonaro ainda não falou nada depois da prisão de Queiroz.
    A exceção dos militares que ocupam cargos em seu governo – perto de 2.500 – e dos de pijama
    que assinaram o manifesto, não se tem notícia de postura inquieta nos quartéis. Ao contrário.
    Mesmo as informações sobre esse setor sendo poucas, o que se sabe é que os militares não
    demonstram entusiasmo para aderir a uma aventura antidemocrática como parece desejar
    Bolsonaro.
    Pesquisas divulgadas nos últimos dias apontam para um visível desgaste na imagem dos
    militares brasileiros junto à opinião pública, exatamente pela excessiva aproximação e
    participação no governo Bolsonaro. O caso do ministério da Saúde é o mais sintomático. Em
    outras palavras, as críticas ao governo Bolsonaro estariam contaminando a própria imagem
    dos militares enquanto instituição.
    Um autogolpe do capitão, respaldado pelos militares, teria ainda muitos problemas com os
    quais se defrontar. Como se sustentaria interna e externamente? Com a crise econômica se
    aprofundando, a saída da pandemia, que ainda parece distante, promete ser nada alentadora.
    Basta lembrar que a queda na venda do comércio, em maio, foi a maior nos últimos 20 anos, e
    os dados da produção industrial estão descendo ladeira abaixo.
    Donald Trump, em plena campanha eleitoral para a reeleição, não parece disposto a apoiar
    uma aventura desse tipo por parte de seu declarado “love”. As Forças Armadas dos Estados
    Unidos certamente não demostrariam simpatia por seus colegas brasileiros, especialmente

    depois que a maior autoridade militar do país, general Mark Milley, pediu desculpas por “sua
    presença em ato ao lado de Trump ter criado a percepção de envolvimento dos militares na
    política interna”.
    O discreto comandante do Exército brasileiro, general Edson Leal Pujol, certamente viu com interesse essa declaração do colega. É desnecessário lembrar a diferença que existe entre Pujol e, por exemplo, o general Luis Eduardo Ramos, que ocupa a Secretaria de Governo de
    Bolsonaro. Mesmo descartando golpe militar, Ramos não deixou de advertir a oposição para “não esticar a corda”. Foi com Pujol e não com Ramos que o ministro do STF, Gilmar Mendes,
    manteve um encontro reservado no fim de semana, no qual, obviamente, o enfrentamento aos atos antidemocráticos esteve em pauta.
    Uma aventura golpista traria ainda problemas extras como criar novas dificuldades para o
    Brasil junto à comunidade internacional, afastar investidores e condenar o país a um isolamento político e econômico maior e mais profundo do que o já experimentado. Em síntese: mesmo que um autogolpe ou algo no gênero se concretizasse, sua continuação seria pouco provável.
    Quanto ao futuro imediato, como lembra a ex-presidente Dilma, “parte da direita rompeu com
    o neofascismo, mas sustenta o neoliberalismo de Guedes”. O que explica o fato de os pedidos de impeachment contra Bolsonaro não andarem na Câmara dos Deputados e explica, também, como o próprio STF, antes tão complacente com todos os ataques à democracia, finalmente resolveu reagir.
    Paralelo a isso e tendo em vista o aprofundamento da crise econômica e sanitária, os verdadeiros manifestantes em defesa da democracia e contrários a Bolsonaro estão de volta às ruas. Espera-se igualmente que a Justiça mantenha a disposição de ir fundo no desbaratamento da rede de fake news e na criminalização de seus financiadores e divulgadores. Espera-se também que Queiroz não tenha nenhum infarto ou coisa que o valha e possa falar sobre tudo o que sabe. Se isso acontecer, dificilmente o coração do bolsonarismo não será atingido.
    Os próximos dias prometem muitas emoções.

     

     

  • A oposição conservadora da mídia da ‘Casa Grande’ e as fake news

    A oposição conservadora da mídia da ‘Casa Grande’ e as fake news

     

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Por falta de segurança para realizarem seu trabalho, os repórteres das TVs Globo e Band, da Folha de S. Paulo e do portal UOL não vão mais cobrir a entrevista matinal de Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada. A decisão foi tomada por essas empresas, uma vez que o “cercadinho” destinado à imprensa fica colado ao local de onde os apoiadores do “Mito”, alguns extremamente exaltados, ameaçam os jornalistas.
    O próprio Bolsonaro já ameaçou cassar a concessão da TV Globo e cortar a publicidade do governo federal na “Folha”. A cada dia, Bolsonaro vem subindo mais o tom das críticas aos profissionais e aos veículos que divulgam notícias que o desagradam. Enquanto isso, a reação da mídia brasileira, quando acontece, se mantém tímida e circunscrita a alguns poucos assuntos.
    A título de exemplo, enquanto a mídia internacional, há meses, chama Bolsonaro pelo
    que ele realmente é – um presidente fascista que está destruindo o Brasil – aqui, a mídia hegemônica, também conhecida como mídia da “Casa Grande”, insiste em tratá-lo por presidente. A mídia da “Casa Grande”, por exemplo, não faz qualquer menção à eleição fraudada de 2018. Fraudada por fake news e também pelas matérias tendenciosas e distorcidas por ela publicadas ao longo de anos.
    Nas redes sociais e em inúmeros grupos de Whatsapp, as questões envolvendo Bolsonaro e essa mídia estão cada dia mais polarizadas. De um lado, os apoiadores do capitão reformado insistem em afirmar que a Rede Globo e qualquer outro veículo que o critica “é comunista” e, de outro, os que defendem que essa mídia mudou.
    Já em locais sombrios da internet, continuavam sendo produzidas e divulgadas fake news sobre os mais diversos assuntos. Estavam em alta as “fakes” dando como certa a intervenção militar, as que insultavam os ministros do STF e as que desacreditavam a ciência e a quarentena em se tratando do combate ao covid-19.

    Razões que levaram o ministro do STF, Alexandre de Moraes, no âmbito do processo
    aberto naquela Corte em 2019 para investigar o uso de fake news e a disseminação de
    discursos de ódio, ter determinado, na quarta-feira (27/5), a busca e apreensão de
    material junto a 29 suspeitos – entre empresários e blogueiros -, ter quebrado os sigilos
    fiscal e bancário deles (de agosto de 2018 a maio de 2020) e determinado que sete
    parlamentares prestem esclarecimentos.
    Entre os suspeitos que tiveram seus sigilos fiscal e bancário quebrados estão o
    empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan, o dono da rede de academias Smart
    Fit, Edgard Gomes Corona, Wiston Rodrigues, que coordena o Bloco Movimenta Brasil,
    e a blogueira Sara Winter. Os quatro, bolsonaristas de primeira hora. Todos devem ser
    ouvidos pela Polícia Federal nos próximos dias.
    O resultado disso tudo tem sido uma enorme confusão na cabeça do cidadão comum.
    E não é para menos. Daí a importância de se entender esse aparente novo
    posicionamento de parte da mídia corporativa brasileira, o impacto das fake news
    nesse contexto e o que isso tem a ver com os interesses da oposição conservadora.

    Racha das TVs

    Essa é uma das poucas vezes, em mais de três décadas, que as seis famílias que detém concessões de TVs no Brasil (Marinho, Macedo, Santos, Saad, Dallevo Jr. e Carvalho) apresentam divergências e estão rachadas. A Globo, mesmo apoiando a agenda ultraliberal do governo (Estado mínimo, retirada de direitos sociais, privatizações, subserviência aos Estados Unidos) tem sido crítica a determinadas posturas de Bolsonaro em especial agora, no que diz respeito à pandemia. Já as demais têm feito de tudo para se manterem numa boa com o governo.
    O espaço de emissora “chapa branca”, do qual a Globo foi titular durante tanto tempo, passou a ser ocupado pela TV Record, do empresário e autointitulado bispo, Edir Macedo. O apoio explícito de Macedo e de sua igreja a Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018 lhe valeu as boas graças e gordas verbas oficiais desde a posse do ex- capitão. Foi para a Record que Bolsonaro deu a primeira entrevista depois de eleito, desbancando um privilégio sempre concedido à Globo.

    As brigas entre os Marinho e Edir Macedo não são de agora e antes se pautavam mais
    por questões específicas do que por problemas políticos. Os Marinho sempre tiveram
    uma relação espúria com o poder público, e Macedo, uma relação promiscua com a
    Igreja Universal do Reino de Deus. Os ataques que uns faziam aos outros não eram
    mentirosos, mas o problema é que expunham milhares de telespectadores aos interesses privados desses dois grupos, valendo-se de uma concessão pública, como são os canais de TV.
    Essa guerra, onde não há “mocinhos”, acabou chegando à política e tem atingido a Globo e a própria saúde da população brasileira. Um exemplo disso aconteceu com a série que o Jornal Nacional estreou há poucos dias, na qual apresenta depoimentos de médicos e profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate ao coronavírus no país.

    Em um desses depoimentos, houve uma confusão por parte do JN, ao apontar um dos hospitais no qual uma médica trabalha como não possuindo condições adequadas de atendimento aos pacientes. Foi o que bastou para que a TV Record lançasse críticas à série. Críticas replicadas por muitos internautas como sendo prova de “fraude” e de “mentira” por parte da Globo e que contribuíram para alimentar o submundo das fake news.

    A pressão foi tanta que a Globo, que raramente leva ao ar um “erramos”, em editorial lido por William Bonner, dois dias depois, explicou o que aconteceu e pediu desculpas à médica, ao hospital e aos telespectadores.

    O SBT vem em seguida à Record no quesito apoio ao governo. Como se não bastassem os elogios rasgados (pagos a peso de ouro) que Sílvio Santos tem feito dentro e fora de seu programa a Bolsonaro, no sábado (23/5) ele chegou ao cúmulo de cancelar a edição do principal noticiário de sua emissora, o “SBT Brasil”, depois de ouvir reclamações do governo após a edição do telejornal do dia anterior, quando foi mostrado o execrável vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, aquela onde sobraram palavrões e ameaças e faltou um mínimo de espírito público.

    No lugar do telejornal, sem qualquer aviso prévio de mudança, o SBT exibiu a reprise do programa “Triturando”. A descarada censura empresarial de Sílvio Santos é um caso único mesmo em se tratando da mídia da “Casa Grande” e está sendo criticada até pelas emissoras afiliadas ao SBT, que a consideraram “vergonhosa”.
    Já a TV Bandeirantes e Rede TV vêm alternado elogios e críticas a Bolsonaro, conforme as verbas publicitárias que recebem. Isso ficou nítido na fala do presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril, em que afirmou que a Band “queria dinheiro”.
    A frase dá a entender que o banco havia recusado um pedido de ajuda da emissora, pois Guimarães emendou dizendo que “acho que a gente tá com um problema de narrativa. Hoje de manhã, por exemplo, o pessoal da Band queria dinheiro. O ponto é o seguinte: vai ou não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Ah, não vai dar dinheiro pra Bandeirantes? Passei meia hora levando porrada, mas repliquei”.
    Considerado porta-voz informal de Bolsonaro, o apresentador do programa policialesco “Brasil Urgente”, José Luiz Datena, de maior audiência na Band, reagiu com indignação e criticou as palavras do presidente da Caixa. Chegou mesmo a anunciar que “nunca mais” entrevistaria Bolsonaro, atitude que, para muitos, não passou de jogo de cena, certo de que os brasileiros têm memória curta.

    Dos veículos da “Casa Grande”, apenas a Folha de S. Paulo, durante a campanha eleitoral de 2018, com uma série de reportagens de Patrícia Campos Mello, chegou a fazer críticas ao processo. A série dava conta de que dezenas de empresários brasileiros, que apoiavam Bolsonaro e haviam comprado pacotes de disparos de mensagens contra o PT no WhatsApp às vésperas do primeiro turno, se preparavam para repetir a prática no segundo turno das eleições. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, o que é vedado pela legislação eleitoral. Some-se a isso que o conteúdo dessas mensagens era mentiroso. O que constitui crime.

    A grave denúncia da “Folha” acabou caindo no vazio, pois não teve repercussão nos
    demais jornais como Globo e Estado de S. Paulo e menos ainda nas TVs. O próprio
    Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que havia se comprometido publicamente a combater
    e punir as fake news durante as eleições, não tomou qualquer providência.
    Os chamados “jornalões” que tanto combateram os governos petistas, por sua vez, foram unânimes ao apoiar a retirada de direitos da população brasileira, a exemplo das reformas Trabalhista e da Previdência, nos governos Temer e Bolsonaro, apresentadas por eles como “fundamentais e necessárias” para a “geração de empregos e retomada do crescimento”.
    Esses mesmos jornais, na maioria das vezes, fizeram vistas grossas não só às declarações como as próprias ações do governo Bolsonaro no que diz respeito à destruição da Amazônia, à perseguição aos índios, mulheres, negros, LGBTs, professores, artistas, cientistas, aposentados e funcionários públicos. Perseguição às quais se somam agora as contra governadores e prefeitos que criticam Bolsonaro e resistem ao “retorno às atividades normais” em plena pandemia. O que esses jornais e a própria Globo não imaginavam é que poderiam ser a próxima vítima.
    Como a perseguição chegou também a alguns veículos da “Casa Grande”, era de se esperar que, finalmente, passassem a fazer jornalismo. Vale dizer: divulgar o que está acontecendo e ouvir sempre os vários lados envolvidos na questão. Mas não é o que se vê. Nesse sentido, os casos da TV Globo, do Estado de S. Paulo e da própria “Folha” são emblemáticos.
    Na edição de quarta-feira (27/5) o Jornal Nacional trouxe uma longa reportagem sobre a decisão do ministro Alexandre de Moraes no que diz respeito ao combate às fake news e aos discursos de ódio. Os mandados de busca e apreensão atingiram em cheio apoiadores de Jair Bolsonaro e têm tudo para chegar ao Palácio do Planalto.
    Para repercutir a decisão, sem dúvida muito importante para o futuro da democracia
    brasileira, o JN ouviu quase uma dúzia de pessoas: entrevistou os presidentes da Câmara e do Senado, além de parlamentares de diversas agremiações e de especialistas.
    Ficou de fora dessa repercussão, no entanto, o nome mais importante: o do candidato
    Fernando Haddad, do PT, que disputou com Bolsonaro o segundo turno das eleições em 2018 e foi derrotado exatamente pelo discurso de ódio e pelas fake news. Excluir o PT e os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff do noticiário não só da TV Globo como de todos os demais veículos do Grupo Globo – O Globo, CBN, G1, Valor Econômico, Época, GloboNews – tem sido uma prática. Além de jamais entrevistá-los, até em comparações são excluídos. Já se transformou em bordão os repórteres da Globo, por exemplo, ao fazerem comparações entre o governo atual e os de Lula e Dilma, citá-los apenas como “governos anteriores”. O nome dessa técnica em jornalismo é silenciamento e tem como objetivo impedir que recordações positivas voltem à memória das pessoas.

    Moro

    Ao mesmo tempo em que buscam apagar a memória positiva associada aos governos Lula e Dilma, a Globo não mede esforços para expor seus “heróis” como é o caso do ex-juiz da Operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, e do governador de São Paulo, o tucano João Dória, possivelmente já de olho nas eleições de 2022.
    O pedido de demissão de Moro rendeu uma cobertura digna dos mais importantes fatos da República. Presente com destaque em todas as edições do JN desde então, Moro foi alvo de uma entrevista de 20 minutos no Fantástico, no domingo 24/5.
    Entrevista que se assemelhou muito a um processo de mídia training, no qual os
    “pontos positivos” de Moro (implacável contra a corrupção, determinou a prisão de Lula) foram destacados e os “negativos” apresentados de maneira que ele pudesse, desde já, neutralizá-los. Algo como: permaneci no governo Bolsonaro por 16 meses, porque queria defender a independência da Polícia Federal e deixei o governo, por me sentir traído.
    Quanto a João Dória, ele tem sido presença constante no JN, que tem deixado sua câmera e microfone abertos para falar sobre o combate à pandemia e quaisquer outros assuntos do seu interesse. O curioso é que São Paulo, o estado mais rico da federação, é o que tem também o maior número de contaminados e mortos pelo covid-19.
    São Paulo vem sendo governado pelos tucanos há mais de 20 anos, mas isso não vem ao caso. Como não vem ao caso que todos os partidos conservadores – MDB e PSDB à frente – com o entusiástico apoio da mídia da “Casa Grande” aprovaram o congelamento por 20 anos dos gastos com saúde e educação. Deu no que deu. Já o “Estadão” que no segundo turno das eleições presidenciais havia considerado, em editorial, “uma escolha muito difícil” entre o candidato do PT, Fernando Haddad, e Jair Bolsonaro, então filiado ao PSL, voltou a insistir na mesma tecla.
    Um dia depois de ver parte da mídia determinar que seus profissionais abandonassem o “cercadinho”, o matutino conservador paulistano fez outra comparação para lá de esdrúxula, entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula, dizendo que “nasceram um para o
    outro” e “enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva”.
    Além de vergonhoso e não corresponder minimamente à realidade (Bolsonaro é um
    fascista e Lula, um humanista) um texto como esse tem tudo para entrar para a história da mídia da “Casa Grande” como prova da má-fé e subserviência de um punhado de redatores aos seus patrões. Não por acaso, o próprio Haddad, fazendo uma paródia do editorial do “Estadão”, publicou, em suas redes sociais, que entre o jornal conservador paulistano e Bolsonaro, a “escolha ficou muito difícil”.
    Já a “Folha”, como esses outros dois veículos, quer a saída de Bolsonaro do poder, mas
    está longe de admitir, por exemplo, que fez campanha contra Dilma; que defendeu a
    condenação e prisão, sem provas, de Lula; que a eleição de 2018 foi fraudada e que a
    restauração da democracia no Brasil passa por novas eleições. Uma pista do que ela e
    os demais veículos da “Casa Grande” pretendem foi dado pelo artigo do professor de
    Direito Internacional da USP, Pedro Dallari, publicado em sua edição de 28/5.
    Sob o título de “A hora do vice-presidente. A gravidade da situação atual não admite
    outra solução para o país”, o também matutino paulistano deixa claro os limites e os
    interesses da oposição que passou a fazer ao governo Bolsonaro. Essa oposição, por
    exemplo, exclui o campo progressista, a começar pelo maior partido político brasileiro,
    o PT.

    É nesse sentido que, guardadas as proporções, a mídia da “Casa Grande” tem lá suas
    semelhanças com a turma das fake news e da disseminação do ódio. Foi no caldo da
    sistemática desconstrução dos governos petistas – e, no passado, no de todos os governos progressistas como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart – que as fake news prosperaram: combate ao comunismo, denúncias sem provas de corrupção, linchamento midiático de adversários etc.
    Ao tomar partido contra o PT, a mídia corporativa brasileira passou a apoiar tudo o que pudesse significar a sua derrota. E foi aí que veio Bolsonaro. E foi aí também que essa mídia, que já não gozava de muita respeitabilidade, perdeu a condição de fonte confiável de informação, se é que algum dia a teve. Condição que agora luta para recuperar e até mesmo para sobreviver.
    A TV Globo – que tem visto sua audiência aumentar, mas ao mesmo tempo, vem sendo
    obrigada a um drástico enxugamento em sua folha de pessoal e reestruturação de seus
    veículos – trabalha para sair por cima não só desse racha, mas para voltar a dar as cartas na política brasileira. Quem não se lembra que o patriarca Roberto Marinho se considerava um “fazedor de presidentes” e realmente o foi mesmo após o fim da ditadura de 1964?
    Daí o dilema que vivem no momento Globo, Folha e Estadão. Ao contrário dos demais veículos e da turma das fakes news, que parecem dispostos a ir com Bolsonaro até o fim (qualquer que seja ele), os três tendem a calibrar essas críticas. Dificilmente, no entanto, elas atingirão a agenda ultraliberal do governo, que defendem com unhas e dentes. Daí, cada dia mais, a oposição que fazem assumir a postura de “conservadora”, com nome e sobrenome para quem apoiam: Hamilton Mourão.
    A Globo sabe que Bolsonaro não tem como cassar-lhe a concessão, pois exigiria o apoio de dois terços dos membros do Congresso Nacional, que ele não tem. Mas ele pode adotar medidas como colocar a Receita Federal para analisar a situação da empresa. Várias no setor da mídia são devedoras contumazes. Toda essa situação é inédita no Brasil. É a primeira vez que parte dessa mídia se vê
    afrontada por quem ela mesma ajudou a eleger. O fato, por si só, deveria propiciar uma profunda reflexão e mudança de comportamento por parte dessa mídia e de quem a faz.
    Como dificilmente isso acontecerá, a democracia no Brasil continua precisando de outra mídia. Mas isso é assunto para outro artigo.

  • TV GLOBO MENTE NA COPA DA RÚSSIA

    TV GLOBO MENTE NA COPA DA RÚSSIA

    Durante o primeiro dia da Copa do Mundo na Rússia, a TV Globo anunciou, diversas vezes, durante a programação, que estavam entrando ao vivo direto da Praça Vermelha – a famosa praça de Moscou que ficou conhecida pelos gigantescos desfiles militares durante a União Soviética. A praça, que separa o Kremlin do bairro histórico Kitay-gorod (Cidade Chinesa, em tradução literal), é considerada o principal espaço público central de Moscou, palco de grandes pontos turísticos como o Gum (a maior loja de departamentos da União Soviética), o Mausoléu de Lenin e a Catedral de São Basílio.

    Reparando nas imagens exibidas pela emissora, é possível notar que o estúdio da Globo está montado atrás da Catedral de São Basílio, próxima à ponte Bolshoy Moskvoretskiy Most.

    No final do ano passado estive na Rússia para o calendário de comemorações do centenário da Revolução Russa e registrei em fotos a parte traseira da Catedral.

    Fotos revelam mentira da Globo : a da esquerda foi feita em novembro de 2017, a da direita, em junho de 2018

    Quem circula pela Praça Vermelha tem esta visão (abaixo) e não faz ideia de que existe um estúdio na região

    Praça Vermelha em novembro de 2017

  • UM POUCO DA GREVE EM MINAS

    UM POUCO DA GREVE EM MINAS

     

    Minhas impressões sobre a greve dos caminhoneiros em Minas, depois de conversar com muitos deles, hoje, em Betim, na Grande Belo Horizonte, onde estão instaladas a refinaria Gabriel Passos e a fábrica da Fiat:

    – Enquanto não houver uma redução significativa no preço do diesel eles continuarão parados, principalmente os autônomos. Não vai ser tropa do Exército que vai fazer com que voltem às rodovias. O movimento tem obtido solidariedade e apoio da sociedade. Isso é bem nítido de ser visto nos locais onde há concentração de caminhoneiros parados, das mais diferentes formas.

    – O golpista Temer é o centro da revolta deles, por isso é sempre chamado de “corrupto” e “ladrão”. A TV Globo também é repudiada, finalmente, digo eu. Eles não permitem, por exemplo, que repórteres da emissora se aproximem, ao contrário do que vi, por exemplo, com a equipe da TV Record.

    – Confirmando o que os caminhoneiros me disseram, não vi nenhum caminhão com gêneros alimentícios ou de primeira necessidade retido, muito menos os chamados ‘frigoríficos’. Mas nota-se, também, que eles não estão partindo de suas bases, talvez preventivamente. A ordem é liberar caminhões-tanque com combustíveis para aeroportos, empresas de ônibus, hospitais, polícia etc.

    – A direita está aproveitando o movimento para tirar partido, usando, principalmente o lema “Intervenção militar”, mas isso, felizmente, não está sendo absorvido pelos discursos dos caminhoneiros. Em todos os locais que fui havia faixas pedindo “intervenção militar”, que são colocadas, parece, de forma oportunística pelo pessoal da direita.

    – Todos os postos de Belo Horizonte e região metropolitana estão fechados por falta de combustíveis.

     

  • No fim do túnel, não há luz, apenas polícia

    No fim do túnel, não há luz, apenas polícia

    Governo responde à nova onda de “arrastões” na Zona Sul do Rio com a mais manjada e politicamente rentável das medidas: uma megaoperação de policiamento nas praias mais famosas do Rio de Janeiro.

    Imprensa e boa parte da população adoram, e Polícia Militar do Rio termina a semana — em que é suspeita de ter matado uma criança de 11 anos com um tiro na cabeça — com prestígio em alta.

    Em outro caso lamentável, policiais simulam disparos de um jovem desfalecido, mas nada não deve abalar o prosseguimento da operação de guerra que garante a “paz” na orla sagrada da cidade.


    Ao chegar em Copacabana de carro, vencendo o funil que a blitz da Polícia Militar provocava, um homem com pouco mais ou pouco menos de 40 anos abriu a janela, jogou seu branco corpanzil para fora e vibrou em direção a um PM:

    Cacete neles!.

    ‘Eles’, no caso, eram uma dupla de jovens pobres que desafiaram o noticiário da semana e tentaram chegar à Zonal Sul do Rio de Janeiro a bordo do “Inferno do Rio” — como é chamada, nessa página do Facebook, a linha 474, que ousa sair do Jacarezinho, na Zona Norte, em direção às mais visitadas praias do Brasil, Copacabana, Arpoador, Ipanema e Leblon. ‘Eles’, para radicalizar ainda mais o enredo, quase cumpriam a rigor — não fossem suas Havaianas nos pés — o perfil de suspeito descrito pelo governador Luiz Fernando Pezão três dias antes:

    Se tiver um ônibus com adolescentes vindo, que não pagaram passagens, estão descalços, de bermuda e sem documento, leva para a delegacia e os pais vêm buscar” — Governador Luiz Fernando Pezão

    Ao menos dessa vez, os policiais não seguiram as ordens do chefe e liberaram os dois jovens a voltar para o ônibus, sem sequer perguntar ao motorista se haviam pago a passagem — que, aliás, nem haviam pago mesmo. Pouco importaria mais essa detenção. O enxame de quase mil policiais que invadiu as praias oceânicas da Zona Sul do Rio — e promete só sair de lá quando o verão terminar — deixou claro o recado do Governo. Um recado politicamente bem elaborado e maravilhosamente bem difundido — não pela assessoria de imprensa oficial do Palácio Guanabara ou da PM, mas sim por seus braços indiretos, ainda mais potentes, os telejornais cariocas.

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    Globo, Globonews, Record, Bandeirantes, Rede TV: todas foram às praias mostrar em detalhes a megaoperação da PM. Celebridades internacionais que vieram para o Rock in Rio — como Rihanna — viram tudo da varanda dos hotéis.

    No domingo à noite, o Fantástico, da TV Globo, carregou as tintas para mostrar que a polícia havia recuperado para si o controle da região mais prestigiada da cidade.

    Repórter Paulo Renato Soares: A maior preocupação de quem foi à praia hoje era o mar. As ondas podiam provocar mergulhos inesperados, mas o susto parou por aí. Agentes da Prefeitura, policiais… A praia estava bem vigiada hoje. E como não foi um dos domingos mais quentes, os banhistas puderam ter um dia tranquilo na areia. Segurança reforçada… nas ruas, no calçadão, do alto (imagem de um palanque construído pela PM sobre o calçadão na praia do Arpoador), de mais alto (imagem de um helicóptero da PM patrulhando a região).

    Entrevistada 1: Me senti mais segura. Me senti bem mais segura que nos outros dias.

    Entrevistada 2: Tava muito feia a coisa. Hoje tá tranquilo, tá ótima a praia, hoje tá perfeito.

    Repórter: Mas muita gente deixou de ir à praia.

    Entrevistada 3: Nem parece domingo. Acho que todo mundo ficou com medo, né?

    Repórter: Cariocas e turistas gostaram de ver a praia cheia de policiais.
    (imagem de 4 PMs, um deles carrega uma metralhadora a tiracolo).

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    Foto: Reprodução TV Globo

    Em cima do palanque, de pé, dentro de ônibus, no helicóptero, com cacetetes, com pistolas ou armas longas, de bermuda ou de farda completa. Para onde se olhava, os agentes da ordem.
    Em cima do palanque, de pé, dentro de ônibus, no helicóptero, com cacetetes, com pistolas ou armas longas, de bermuda ou de farda completa. Para onde se olhava, os agentes da ordem.

    A reportagem — que, tamanha a importância da pauta, se utilizou de dois repórteres — não apenas celebrava a megaoperação da PM, mas também se aproveitava dela para inovar. Em uma flagrante colaboração Globo/PM, o segundo repórter, Carlos de Lannoy, era filmado pelo helicóptero do órgão público, que, na relação ganha-ganha, por sua vez, permitia que o canal recebesse as imagens dentro de uma unidade móvel instalada ao lado da estátua de Tom Jobim e, assim, reverberasse para o país inteiro — e pela Globo Internacional — o maciço investimento policial do Governo do Estado do Rio de Janeiro na operação.

    No total, 700 PMs e 300 Guardas Policiais. E a impressão era de ainda mais. O paraíso estava, pois, seguro outra vez.

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    “A História se repete. A primeira vez, como tragédia, a segunda (e todas as demais), como farsa.”

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    Jornal O Globo (19/02/1992)

    Há 23 anos, o termo “arrastão” ainda levava precavidas aspas como acompanhamento obrigatório. No novo século, as aspas caíram e a expressão virou palavra oficial, trunfo para uma boa manchete, uma espécie de patrimônio imaterial da imprensa carioca. É praticamente a única diferença da cobertura dos principais jornais da cidade desde então.Tanta semelhança permite que você acompanhe boa parte desta tensa semana do fim de setembro 2015 através da sequência de manchetes e fatos de uma outra tensa semana, em outubro de 1992.

    Jornal O Globo (19/10/1992)

    Banhistas se revelaram “revoltados” em 92, assim como em 2015. Uma moradora de Ipanema reclamou: “estão expulsando a gente da praia. Não se tem o direito de usufruir o que se paga”. Outra moradora propôs uma“ação mais enérgica da PM contra os arrastões”. Em resposta ao jornal (e à zona mais prestigiada da cidade), em 92 e em 2015, a PM prometia novas atitudes. Ou seja, mais polícia. Naquele ano, “110 homens entre Leme e Copacabana e 120 na faixa entre Ipanema e São Conrado”.

    Jornal O Globo (20/10/1992)

    Em 1992, “veja só”, a PM mandava seus recados pelos jornais: “O objetivo é disciplinar o movimento de passageiros nos pontos finais da linhas, ainda no subúrbio”, disse o coronel Adílson Fernandes. Mais uma “coincidência” entre 92 e 2015: ter dinheiro na carteira passou a ser obrigatório para circular pela cidade.

    Jornal O Globo (out/1992). “Apesar de a passagem custar Cr$3.100,00 ida e volta, os policiais encarregados de fscalizar o embarque na Rua Angélica Mota, em Olaria, barravam quem tinha menos de Cr$ 8 mil no bolso, principalmente se estivesse na parte de trás”.

    Como nesta semana de 2015, naquela semana de 1992, ‘lutadores da Zona Sul’ prometeram criar uma milícia antiarrastão. No jornal daquele ano — hoje nas redes sociais — jovens negros da periferia “faziam o desafio” de ir à praia do mesmo jeito, em bonde. Também em 1992, as autoridades evitavam corroborar a tática da justiça com as próprias mãos. Mas, de qualquer maneira, se mostravam corteses com os grupos: “a Polícia Civil vai convocar os lutadores de artes marciais da Zona Sul para uma reunião”.

    Jornal O Globo (22/10/1992). “Domingo a gente se encontra na praia”. Assim, em meio a risos e gargalhadas, vários grupos de funkeiros que estiveram no conflito do fim de semana passado nas areias do Arpoador e Copacabana responderam à ameaça dos lutadores da Zona Sul, que resolveram criar os grupos antiarrastão”.

    Não bastassem as similaridades entre as manchetes e as atitudes da polícia pós-arrastão de 1992 e de 2015, ainda havia mais. Exatamente uma semana após àquele e a este domingo, o forte esquema de segurança era saudado com pompa pelos jornais cariocas.

    Jornal O Globo (26/10/1992). Assim com em 2015, um policial com uma metralhadora na mão “devolve a tranqulidade às praias de Copacabana, Ipanema e Leblon, impedindo a repetição dos tumultos”.
    Jornal O Globo (26/10/1992). Fim dos problemas: Ipanema é mágica novamente.

    Em 1992, as confusões na praia ocorriam num contexto político importante. Benedita da Silva, do PT, liderava as pesquisas para o segundo turno da Prefeitura da Capital sobre o candidato César Maia, então no PMDB. Foi quando outra manchete d’O Globo de outubro de 1992 pode ter mudado este jogo, deixando explícita a diferença de opiniões entre os dois.

    O Globo (outubro de 1992). “A candidata Benedita da Silva também condenou os arrastões e cobrou mais atenção do poder público para os problemas sociais”.

    Conta a história que após os “arrastões”, César Maia virou as tendências e derrotou Benedita. Assim como conta a história que a solução militarista derrotou a“atenção do poder público para os problemas sociais”,defendida pela petista. César Maia se reelegeu outras duas vezes.

    Em 2008, Eduardo Paes (PMDB) venceu Fernando Gabeira (PV) e, em 2012, Marcelo Freixo (PSOL) para se tornar prefeito do Rio. O mais recente capítulo desta história registra que, em setembro de 2015, Paes disse:

    “Nós não vamos tratar deliquentes e marginais, que vão para as ruas fazer baderna, como problema social. É um problema de segurança pública.” — Eduardo Paes

    Muito embora tenham sido eles os prefeitos da cidade em 19 dos 23 anos desde então, não se pode jogar sobre as costas de César Maia e Eduardo Paes todo o fracasso deste roteiro. Esta história é ainda mais antiga e entendê-la profundamente nos obriga a visitar tempos muito mais remotos.

    Marcelo Carnaval/AP

    Oque é a Zona Sul do Rio? Quem é a Zona Sul do Rio? Pergunto sobre uma específica Zona Sul — não sobre aquela onde ainda resiste a pobreza e a violação de direitos fundamentais, mesmo depois das UPPs na Rocinha, no Vidigal, no Pavão, no Cantagalo, no Dona Marta, na Babilônia e de outros. Pergunto sobre aquela Zona Sul mágica, a que inspira os músicos, poetas, novelas, que encanta turistas, cariocas e, claro, a mídia carioca. Pergunto na esperança de entender por que aqui (de onde escrevo, aliás) há abundância de linhas de ônibus, que funcionam inclusive nos fins de semana, inclusive durante as madrugadas. Por que é aqui — e em nenhum outro lugar — que o metrô está sendo expandido? Por que é aqui que existem mais garis, mais fiscais da Comlurb, mais ruas asfaltadas (algumas delas, duas vezes ao ano)? Por que aqui o mar é menos sujo? Por que aqui a iluminação dos postes é mais forte? Por que há mais estações de BikeRio? Por que aqui a PM é mais presente? Por que aqui ela é menos truculenta e menos assassina? Por que aqui há arrastões? Por que aqui eles chocam mais?


    O processo que hoje oferece tantos privilégios à Zona Sul está estritamente ligado ao processo que fez das praias — primeiro, num conceito geral e, depois, mais especificamente, das praias oceânicas da Zona Sul (Leme, Copacabana, Arpoador, Ipanema e Leblon) — o símbolo máximo de um país bonito, rico, jovem, transgressor e encantador.

    Para entender esses dois processos, vale ler a íntegra o artigo A praia carioca, da colônia aos anos 90, da socióloga Patrícia Farias, de onde vou destacar diversos trechos e grifá-los, inclusive mantendo os títulos dos subcapítulos escritos por ela.

    A praia no tempo da conquista e da colônia: luta, mercado e cemitério

    (por Patrícia Farias)

    “Cenário do primeiro contato entre colonizador e colonizado no Brasil, a praia também representou o primeiro passo da guerra que se travou entre ambos. Primeiro espaço de encontro entre diferenças culturais e de cor, foi a praia também o primeiro espaço de luta. O litoral funcionou ainda, nesse primeiro período, como local da efetivação do processo de exploração do território recém-descoberto, através do seu uso para embarque de matérias-primas variadas para a Europa. Nos primeiros séculos da colonização, a orla marítima passa gradativamente também a se referir àquilo que já foi dito por Gilberto Freyre em Sobrados e Mocambos: um depósito de corpos de escravos mortos. É ele quem narra, com requintes cinematográficos:

    “Os urubus vinham (…) pinicar os restos de comida e de bicho morto e até os corpos de negros que a Santa Casa não enterrava direito, nem na praia nem nos cemitérios (…) a maré subia e lavava a imundície das praias.”

    Para Freyre, portanto, a “fidalguia” da terra se abstinha de ir à praia, e os negros eram os freqüentadores por excelência desse espaço do lixo. (…) Esta visão nada positiva da orla marítima parece casar com o que nos informa o estudo do historiador Alain Corbin a respeito do imaginário europeu sobre a praia no período anterior a 1700. Pelo que nos narra Corbin (1989), a praia europeia só será efetivamente ocupada por banhistas no século XVIII — e mesmo assim com fins terapêuticos. (…)

    Século XIX: tudo muda

    Um extraordinário salto de qualidade se opera no século XIX, em relação à imagem da praia no Brasil. O fato é que os próximos registros sobre seu uso estão relacionados à saúde e ao tratamento terapêutico. Nessa ascensão do modelo terapêutico de praia, a aristocracia tem papel fundamental. É ela quem, na Europa, legitima os locais onde o banho curador se dará. (…)

     

    O panorama geral europeu, enfim, na virada do século XVIII para o XIX, possivelmente, influencia a decisão de D. João VI, que chega ao Brasil em 1808, vindo justamente da Europa, de tratar a doença de pele que o atinge com banhos de água salgada, instalando para isso umaconstrução na Praia do Caju, em 1817. Isso favorece a hipótese de uma passagem gradativa da praia como depósito de excrementos e locus de trabalho a balneário médico a partir da chegada da família real ao Brasil. Outras pistas ajudam a tornar menos incompleta essa transformação do uso da praia ao longo do século XIX. A primeira delas é dada pela presença do cenário do litoral em alguns romances brasileiros escritos no período, o que invoca a ideia de que a praia se tornara ao menos familiar para outros segmentos sociais que não os escravos. Em A moreninha(1845), de Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, encontraremos como pano de fundo do primeiro encontro dos protagonistas Carolina e Augusto, então crianças, “uma das belas praias do Rio de Janeiro”. (…)

    Já na virada do século XIX para o XX, a expansão da malha urbana do Rio, através do aperfeiçoamento de sua rede de transportes, também reconfirma a nova situação da praia como algo saudável, não mais como perigo ou sujeira. Com sentidos e funções diferentes, vão entrando em cena bondes e trens; os primeiros, garantindo a expansão da cidade para a Zona Sul litorânea, e os segundos deslocando a população de trabalhadores de suas moradias no centro da cidade para os subúrbios. Começa aí a construção, tanto simbólica quanto espacial, daquele que seria eleito o lugar edênico da cidade: a Zona Sul.

    Nesse sentido, é de fundamental importância a total remodelação urbana promovida no início do século XX pelo Prefeito Francisco Pereira Passos na cidade do Rio, capital federal, com o estímulo e sob o patrocínio do então presidente Rodrigues Alves. (…) Num esforço de síntese, os objetivos primeiros das obras seriam a reforma do porto; a construção das avenidas Rodrigues Alves e Central (atual Avenida Rio Branco); a melhoria de acesso à Zona Sul da cidade, através da criação da Avenida Beira-Mar; melhoramento do acesso à Zona Norte por via da abertura da Avenida Mem de Sá e do alargamento das ruas Frei Caneca e Estácio de Sá; a pavimentação da cidade e, de modo mais geral, a ampliação da infra-estrutura urbana.

    Para a conquista destes objetivos, o poder público utilizou-se do método da demolição de áreas densamente povoadas, localizadas na região central do Rio, expulsando mais de 14 mil pessoas de suas residências — cortiços e outras formas de habitação popular.

    Antes da via-expressa conhecida como Aterro do Flamengo, era a Avenida Beira-Mar a principal ligação entre o centro e a Zona Sul da cidade

    A Zona Sul nas primeiras décadas do século XX

    Nesse quadro, um novo deslocamento passa a ocorrer: o centro do Rio, pensado a princípio pelos mentores da nova ordem como o espaço valorizado por excelência, vai sendo identificado com o passado colonial e perdendo gradativamente seu valor em favor de uma área a rigor nova. Esta área, a Zona Sul da cidade, se torna a representação da modernidade. Dentro dela, um lugar especial cabe à praia. No entanto, agora a praia não é mais aquela ligada ao terreno primeiro da colonização, ou seja, à orla da Baía de Guanabara. (…) Nesse momento — início do século XX — , quando se fala em praia, subentende-se a praia oceânica, que cada vez mais será iconizada por Copacabana, então um terreno virgem associado à saúde, ao moderno e ao belo. (…)

    Gideon Bosker e Leria Lencek (que escreveram um estudo sobre a praia em 1998), lembram que é uma estilista, Coco Chanel, quem lança, nos anos 20, o bronzeado como “moda”, aparecendo “com a cor de um marinheiro” nos mais altos círculos europeus. (…) Neste sentido, este “culto ao moreno” acabará tornando esta cor um sinal de distinção, um exercício que marca corporalmente aqueles que têm tempo e dinheiro disponíveis para se bronzearem. (…)

    Cartão postal mostra a virgem Copacabana da década de 1920.

    Copacabana se torna o local da saúde, símbolo da nova ilação que se desenvolvia a lépidos passos, sem os entraves que áreas mais antigas da cidade, com população e problemas já tradicionais, ofereciam aos novos ideais de beleza e modernidade acionados pelo Estado e segmentos dominantes.

    Tais segmentos afluem então a Copacabana e se dedicam a construir suas mansões a partir dos mais variados estilos. A preocupação com o bairro se traduz numa série de obras(…).

    Em 1892, por exemplo, inaugura-se o Túnel Velho, oficialmente chamado de Alaôr Prata, que liga a área mais antiga de Botafogo, próxima ao cemitério São João Batista, à rua Siqueira Campos, em Copacabana. Em 1906, no final do governo de Pereira Passos, o Túnel Novo amplia o raio de ocupação possível do bairro, ligando Botafogo ao Leme e completando o movimento sugerido pela criação da Avenida Beira-Mar, ou seja, de saída do centro da cidade em direção a Copacabana.

    O mesmo prefeito é responsável pelo início das obras da Avenida Atlântica, que margeia a praia copacabanense ícone máximo da Copacabana residencial e aristocrática das primeiras décadas do século XX, o Hotel Copacabana Palace abre suas portas em 1923 para abrigar a elite europeia visitante.

    Mas será após a Segunda Guerra que a representação de Copacabana ganhará novos contornos. A partir daí, a vertente francesa que presidira a urbanização à la Pereira Passos do início do século na cidade do Rio será substituída pela direta influência de outro modelo: o americano. Produtos norte-americanos invadem o mercado nacional e seus comerciantes encontram em Copacabana o cenário ideal de vendas. O bairro assiste à inauguração do primeiro supermercado da cidade, do primeiro Bob’s, inaugurando a era do fast-food, além de uma variedade impressionante de itens de consumo(…).

    Imagem da primeira lanchonete de Fast-Food do Brasil, em Copacabana, na década de 1950.

    No próximo capítulo de seu artigo, O espaço demarcado: a dicotomia Zona Norte/Zona Sul, Patrícia Farias usa e comenta um trecho de uma reportagem da revista O Cruzeiro do começo da década de 1950.

    “Em Copacabana vale tudo e quase não existem comadres para falar da vida alheia. Uma garota da Tijuca, se fizesse a metade das travessuras que faz um brotinho do Posto 5, seria banida do lar. Mas o mar, o grande nivelador, garante a mão. As mulheres podem andar de ‘slack’ e fumar na rua sem que ninguém se volte para olhar. Os homens empurram carrinhos de criança com britânica naturalidade. E o amor é livre, no bom sentido. Jovens casais têm o direito de passear agarradinhos, sem que ninguém ache feio”. (Revista O Cruzeiro)

    Para além da definição subliminar dos papéis de gênero, através da insinuação dos usos e gostos proibidos a homens e mulheres no Rio da época (início dos anos 50), mas que são “liberados” na praia, insinua-se aí também a diferença entre a “garota da Tijuca” e o “brotinho do Posto 5”.Volta à cena, mais nitidamente delineado, o perfil do personagem suburbano, como o morador de um espaço onde a liberdade individual e a moral estão mais rigidamente limitados. Num movimento duplo, define-se também o morador da Zona Sul, através da oposição tradicional — associado ao subúrbio e seus habitantes — e moderno, identificado com quem mora perto da praia.

    Em As turmas de jovens, a socióloga relata como os jovens da camadas médias e altas “passam a utilizar a praia como sinal de diferenciação em relação ao comportamento adulto”. Neste mesmo capítulo, ela ainda descreve a Ipanema da metade do século através de uma entrevista de Tom Jobim,criado no bairro: “Enquanto Copacabana era lugar de casas luxuosas, Ipanema era um lugar de casinhas pequenas. Quem não podia comprar casa em Copa, vinha pra cá, porque era mais barato e mais longe. Principalmente mais longe”,disse Tom. Segue Patrícia:

    “A praia portanto começa a se bifurcar a partir deste momento — a metade do século — em duas pontas, Ipanema e Copacabana, passando gradativamente a primeira a crescer em importância diante da segunda”.

    Imagem da Revista Life de Ipanema na década de 60.

    Em Corpo dourado e morenidade, Patrícia escolhe três músicas para descrever um novo movimento capaz de tornar a Zona Sul ainda mais irresistível. A região se torna a musa inspiradora dos compositores da Bossa Nova.

    Braguinha e Alberto Ribeiro lançam, em 1947, a música Copacabana,famosa na voz de Tom Jobim:

    “Copacabana, princesinha do mar
    Pelas manhãs tu és a vida a cantar”

    Em 1954, Tom Jobim e Billy Blanco registram na letra de Teresa da Praia:

    – Arranjei novo amor no Leblon
    – Não diga
    – Que corpo bonito, que pele morena, que amor de pequena, amar é tão bom
    – Tão bom! Ô Lúcio
    – Fala, meu irmão
    Ela tem um nariz levantado, os olhos verdinhos, bastante puxados, cabelo castanho…
    – E uma pinta do lado…

    Por fim, a derradeira Garota de Ipanema, de 1962, de Tom e Vinícius.

    “Moça do corpo dourado do sol de Ipanema
    O seu balançado é mais que um poema”.

    Completa Patrícia: “O corpo dourado, agora literalmente cantado em prosa e verso, se torna a encarnação dessa Zona Sul livre, moderna, consumista e chique.

    O corado transforma-se em ouro, numa referência nem tão casual a um certo status sócio-econômico, onde a cor morena funciona como marca de distinção em relação aos não-habitantes do paraíso Zona Sul, aos não-morenos”.

    No capítulo Anos 60: Ipanema reina, o estudo demonstra como este bairro torna-se, além de tudo o que já vimos, o epicentro de um comportamento transgressor dos costumes nacionais. Uma vertente brasileira do movimento hippie, por exemplo, estabelece point “nas dunas do barato”. Emerge naquelas areias ainda a mulher moderna, encarnada em Leila Diniz, que se mostra em fotos com a barriga grávida. Fernando Gabeira, retornando do exílio vai à praia de tanga lilás “detonando uma discussão via mídia sobre modelos de masculinidade e preferências sexuais”.

    Ipanema toma de Copacabana a vanguardia comportamental e encarece. Copacabana, assim, torna-se o destino possível e sonhado por tantos cariocas, “que a encaravam como um signo de mobilidade ascendente”, nas palavras da socióloga Patrícia Farias, que prossegue: “É a partir dessa imagem que pessoas provenientes de outras regiões da cidade e do país afluem ao local, auxiliadas pela especulação imobiliária que constrói a partir dos anos 50/60 os agora famosos prédios de conjugados, quitinetes, sala e quarto”.

    O rock Suburbano do Zé da Gaita descreve perfeitamente o movimento.

    Vou vender minha casa lá no Sampaio
    vou trazer a negra, o nenê e o papagaio
    vou viver numa boa, junto com os bacanas
    Adeus Padre Miguel, Honório Gurgel,
    adeus Japeri, Vila Rosalia
    Zona Sul, vou gozar, a vista pro mar
    Trabalhador suburbano, chego tarde em casa
    bem depois do jantar
    não dá mais tempo pra mar, ai-ai
    Vou botar bangalô a luz do luar
    ser parte integrante desta paisagem
    vou viver numa boa junto com os bacanas
    vou viver numa boa em Copacabana
    Em Copacabana tudo é bacana
    cerveja e batucada no bar do calçadão
    fico muito a vontade, ando só de calção

    Anos 80 e o desembarque definitivo do Subúrbio

    A nossa história avança, e os Anos 80 trazem novos capítulos fundamentais para esta saga. Entre eles, a reestruturação do transporte público carioca. Relata o estudo de Patrícia Farias: “em 1984, inaugurou-se uma série de linhas de ônibus que visavam integrar a Zona Sul aos subúrbios, utilizando para isso a passagem pelo Túnel Rebouças, até então vedado a coletivos. Eram ônibus que tinham seus pontos finais em locais estratégicos (como São Cristóvão, Maracanã e Méier) do itinerário de quem vinha de subúrbios distantes e ia a Ipanema, Copacabana e Leblon”.

    Nuvens suburbanas sobre o céu de Ipanema é o título de uma reportagem histórica de Joaquim Ferreira dos Santos no Jornal do Brasil de novembro de 84, que começa assim:

    “Ipanema, essa senhora cada vez mais gorda e poluída, reclama de novas estrias e dentes cariados em seu corpanzil: agora é culpa dos ônibus Padron, a linha 461 que, há um mês, traz suburbanos para seu “paraíso”, numa viagem de apenas 20 minutos, via Rebouças. É o que dizem seus moradores, inconformados. Ouçam só:
    “Que gente feia, hein?!” (Ronald Mocdes, artista plástico, morador da Garcia D`Ávila, bem em frente ao ponto do ônibus). (…)

    “É chocante dizer, mas eles estão desacostumados com os costumes do bairro. Nem vou mais à praia aqui. É farofeiro para tudo quanto é lado, olhando a gente de um modo estranho. Ficam passando aquele bronzeador. A sensação é de que eles estão invadindo o nosso espaço.” (Maria Luiza Nunes dos Santos, ex-freqüentadora da praia da Garcia D`Ávila e que agora só vai ao Pepino).
    “Desse jeito o verão vai ser um faroeste.” (César Santos Silva, proprietário da lanchonete Chaika, na Visconde de Pirajá).
    Os comerciantes estão se organizando e já despacharam diversos abaixos-assinados aos gabinetes de Leonel Brizola, de Jaime Lerner (o secretário que inventou a linha de ônibus), ao Detran, a todos que eles julgam com poderes para erradicar o mal. (…)
    Há muito tempo que Luli não freqüenta a praia de Ipanema, preferindo as delícias mais calmas e limpas da Barra da Tijuca. Mas, definitivamente, já não há qualquer gueto de sofisticação sobre nossas areias, lamenta. Pois até a Barra está sendo cortada por outra linha do Padron, diretamente de Madureira. Na praia de domingo passado, Luli já sentiu a diferença.
    “A praia mudou de cor. Eu fico ali no Farol da Barra, junto com o pessoal que pega wind. Apareceram umas caras inteiramente novas. Um cara estendeu a toalha, deitou e dormiu o tempo todo. Nunca tinha visto isso.
    Os moradores de Ipanema sugerem (..) que a polícia, o 19º Batalhão, dê blitzen constantes no bairro. Eles acham que, se continuar do jeito que está, Ipanema no verão vai ser notícia não pelo biquíni enroladinho ou pelo sutiã exposto.
    “No sábado, um sujeito desses ônibus sentou em sua cadeirinha de praia dentro da minha loja para aproveitar o ar refrigerado, enquanto esperava a condução. Tive que chamar os seguranças da rua. Quando chegou na segunda-feira fui abrir os cadeados da porta e não consegui. Os farofeiros tinham entupido tudo com areia e papel. Precisei serrar.”(Dono de uma sofisticada loja de decoração na Visconde de Pirajá, que não se identifica com medo de represálias).
    “São grupos enormes, sempre gritando, fazendo bagunça e puxando os cordões de quem passa. Estão criando um cenário de vandalismo e terror. Os moradores por aqui estão assustados.” (César Santos Silva, Chaika).
    “Os passageiros na fila ficam olhando aqui para dentro de um jeito mal-encarado. As freguesas comentam com a gente: “Que horror!” No outro dia tinha um mal-encarado que ficou no ponto um tempão, sem pegar os ônibus. Como estava com a mão enrolada pensamos até que tivesse uma arma dentro. Chamamos a policia. Viver nesse clima não dá. Essa é a rua das melhores boutiques do Rio. Onde é que estavam com a cabeça quando botaram um ponto de ônibus suburbano aqui?” (Cristina Campos, vendedora da Spy and Great, em frente ao ponto da Garcia D`Ávila).
    Os depoimentos se sucedem, falam de churrasqueiras na praia, de bóias de pneus, do trânsito emperrado atrás das enormes traseiras dos Padron. Para que tudo melhore há tanto os que sugerem a mudança dos pontos, a retirada dos ônibus, mais polícia nas ruas, assim como mais educação. Mas pedem pressa. Pois o verão está aí e antes dele o Natal, mês que vem.
    “Fica essa negrinhagem aí na porta…” (Cristina Campos, vendedora da Spy and Great).
    “Quem tem um nível melhor já está procurando outra praia que não seja Ipanema. Eles não têm classe, não têm educação. Eu sei que a praia é pública, mas é horrível. No outro dia eu estava na praia conversando com a minha irmã, dizendo como os suburbanos são horríveis. Uma suburbana reclamou, mas eu nem dei conversa. Vê se eu vou me misturar.” (Sonia Barletta, moradora da Rua Vinicius de Moraes).
    “Eles têm direito de ir à praia, mas podem ir de maneira organizada. Ou senão ficar na praia deles, em Ramos. O governo podia fazer também um lago artificial pra eles lá no subúrbio “(Maria Luiza Nunes dos Santos, vendedora da Faganello).
    “O turismo vai ser prejudicado, você vai ver. Ou você acha que o pessoal do Caesar Park vai querer se misturar com eles, suas bananas, piquenique. Pode parecer elitista, mas não é não. Os suburbanos atrapalham.” (Débora Palmério Fraga, gerente da Faganello) (…)

    Antes inspiração apenas dos majestosos compositores da Bossa Nova, agora as areias da Zona Sul exporiam todo o constrangimento e o preconceito semeado ali, em uma letra inspirada dos debochados paulistas do Ultraje a Rigor. Era um recado explícito do subúrbio carioca: Nós vamos invadir a sua praia.

    Reprodução Reportagem Pobres Vão à Praia (TV Manchete)

    Daqui do morro dá pra ver tão legal
    O que acontece aí no seu litoral
    Nós gostamos de tudo, nós queremos é mais
    Do alto da cidade até a beira do cais
    Mais do que um bom bronzeado
    Nós queremos estar do seu lado

    A TV Manchete produz outro documento magnífico para o entendimento de nossa história. A reportagem Pobres vão à praia escancara a tensão crescente entre moradores da Zona Sul e os novos turistas, cariocas do subúrbio. No trecho mais impactante, uma jovem de 18 anos discursa com surpreendente sinceridade:

    — Não pode tirar o pessoal do Méier, do mangue, e levar a uma praia de Copacabana. Eu não posso conviver com uma pessoa que não tem o mínimo de educação. (…) É uma gente mal educada. Ficam falando grosseria para a gente. É uma gente suja. Você olha para a cara das pessoas e tem vontade de fugir. Eu tenho horror de olhar para essas pessoas e sacar que elas são do mesmo país que eu, que eles são brasileiros. Eles não são brasileiros, não, são uma sub-raça. (jovem moradora da Zona Sul)

    A reportagem ainda mostra imagens impressionantes dos surfistas do asfalto, dependurados em trens e ônibus superlotados. Escancara-se o pulo sobre a roleta, a entrada pela janela e o uso da maconha nos coletivos do subúrbio. Jovens e adultos são filmados alimentando-se de produtos expostos em gôndolas de supermercados e padarias da Zona Sul. É nesse contexto que os anos 90 chegam e, com ele, finalmente, os “arrastões”.

    Para falar do surgimento desse fenômeno, recorremos pela última vez ao estudo da socióloga Patrícia Farias:

    “ (…) a praia carioca se torna novamente assombrada pelo fantasma de uma outra “invasão”. Desta vez, ela ganha o nome de “arrastão”, e assinala a visibilidade de um novo grupo social na cidade: as galeras jovens
    dos bailes funk.

    Em sua maioria negros e pobres, muitos deles moradores de subúrbios, estes jovens irrompem no cenário da praia num tórrido domingo de outubro de 1992, voltando desde então, ao menos como ameaça, a assustar os dias de verão dos moradores da cidade, particularmente
    dos brancos mais abastados”.

    Duas décadas e meia de “Arrastões” | No jornal O Globo de 22 de março de 1992, o repórter Renato Homem escreve a reportagem que poderia servir de certidão de nascimento para o movimento conhecido com “arrastão”.

    Ali é descrita “a nova modalidade de violência na qual grupos de até dezenas de rapazes se lançam sobre as vítimas roubando tudo o que vêem pela frente. Eles surgem de repente e desaparecem da mesma forma, deixando um rastro de insegurança por onde passam. A polícia investiga sua formação há três meses. A principal conclusão é de que os arrastões são feitos pelos frequentadores dos mais de 30 bailes funk realizados nos fins de semana no Rio”.

    Ao longo de todo esse tempo, a repetição do termo “arrastão” à exaustão, por jornais e políticos, merece reflexão. Em entrevista por e-mail, a antropóloga Fernanda Huguenin, que escreveu a tese As praias de Ipanema: liminaridade e proxemia à beira-mar e contestou o mito da praia democrática, questionou:

    “A própria categoria “arrastão” é problemática. O que ele seria exatamente? Um grupo de adolescentes cantando funk e correndo? O garoto que rouba o celular na mão da moça que caminha distraída? Desde os anos 90, na disputa entre César Maia e Brizola, a palavra “arrastão” aparece para fomentar agendas e projetos (dos) políticos”.

    Tão importante era o primeiro fim de semana da Operação Verão que o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, foi pessoalmente “prestigiar”as blitzen pela cidade. Na camisa, a frase: Por um Rio sem barreiras/ foto: Leo Coelho

    Fátima Cecchetto, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz, reclama:“Algumas pessoas julgam esses grupos com base em estereótipos. Isso é preconceito e estigma. Ter um comportamento fora do normal é diferente de cometer um crime. Não se pode criminalizar um comportamento juvenil. Para os que têm uma atitude mais delinquente, é preciso responsabilizar e também prevenir”.

    Como previnir os arrastões?” é a pergunta que racha o Rio de Janeiro em dois (embora com lados em bastante desequilíbrio). Segue com mais força política a resposta militarista de César Maia em 1992: a de entupir os bairros de agentes de segurança pública. 23 anos depois, ainda é o capítulo número 1 da cartilha dos políticos do PMDB, partido que venceu as últimas cinco eleições para os governos municipal e estadual e ainda lidera a Câmara de Vereadores e a Assembleia Legislativa do Estado. A mídia hegemônica da cidade, como já se viu, é importante avalista desta corrente.

    Já os grupos à esquerda do espectro político — que têm em Marcelo Freixo (PSOL) a principal liderança neste momento — respondem à questão pedindo menos armas e cobrando mais direitos. Neste caso, estaria no longo caminho das políticas públicas de educação, cultura, esporte e lazer a saída, definitiva, para os arrastões.

    Sem esporte, sem lazer na Cidade Olímpica | Fiquemos somente no exemplo do esporte, aproveitando que a cidade vive a emblemática véspera dos Jogos Olímpicos de 2016. Coincidentemente, um dia após os “arrastões” de setembro de 2015, o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas lançou o dossiê que escancara diversas violações ao direito ao esporte na cidade olímpica. No documento, Edneida Freire, treinadora de atletismo, se mostrou escandalizada com o fechamento do templo do atletismo carioca, o estádio Célio de Barros, desmantelado em 2013 para virar estacionamento ao lado do Maracanã.

    Célio de Barros durante a Copa das Confederações de 2013: estacionamentos para VIPs e para a caminhões de imprensa. Hoje, a ex-pista de atletismo já está cimentada.

    — Este equipamento esportivo favorecia toda a população e não apenas os atletas. O fechamento do Célio de Barros deixou sem espaço os diversos projetos socioeducativos que aqui eram desenvolvidos. Por onde andarão as crianças que antes estavam aqui? O atletismo é um esporte dos pobres, mas é um esporte rico, de guerreiros. Muitas vezes você chega descalço, mas quando você coloca a sapatilha, você já é outra pessoa. O Célio de Barros era a primeira porta para muitos, talvez a última porta de esperança. Com o atletismo, a gente acredita que pode mudar vidas…

    O exemplo do Célio de Barros é apenas o mais escandaloso de uma cidade que, às vésperas de receber a mais importante competição do mundo, não tem sequer um programa esportivo ou de lazer em larga escala.

    Outro exemplo vem da favela da Maré, também na zona norte da cidade. A esperança ali deveria ser a Vila Olímpica da Maré, inaugurada em 2000. No entanto, uma visita da reportagem nesta última semana constatou diversos problemas no espaço.

    Vila Olímpica da Maré a 10 meses dos Jogos Olímpicos do Rio.

    O maior deles, a piscina olímpica, que está vazia, em obras para consertar um vazamento. Mesmo quando (e se) ela estiver pronta novamente, funcionará apenas durante os dias de semana, já que não há permissão para o uso fora do horário de aulas. Assim, os 130 mil habitantes do Complexo não têm essa opção para se refrescar nos tórridos dias que, certamente, virão nos próximos meses.

    Poucas oportunidades na favela, poucas oportunidades na Zona Sul, justamente em areias que parecem ser mágicas — férteis como nenhuma outra — para o desenvolvimento e mesmo a invenção de tantos esportes de praia. O Frescobol, o futebol de areia, o vôlei de praia, o futevôlei (e a altinha), o surfe; mais recentemente, o futebol americano de areia, o slackline, o handebol de areia, a natação em águas abertas, o stand-up paddle e o beach tênis têm ali espaços sagrados. Sem falar do farto espaço — sobretudo no fim de semana — para corredores, skatistas, ciclistas, patineteiros e patinadores.

    Não há um programa público para oferecer esporte à beira mar e qualificar a experiência dos jovens moradores da periferia que procuraram Copacabana ou Ipanema. Não há campeonatos amadores organizados para atender essa população, tampouco, equipamentos esportivos — bolas, raquetes, fitas de slack, pranchas — à disposição dos jovens pobres cariocas. A rede pública de ensino não se faz presente catalisar, através do esporte, a potente energia juvenil que chega tinindo às areias em nos fins de semana de sol e calor. É possível afirmar que existem mais profissionais autônomos do que funcionários públicos trabalhando pelo desenvolvimento do esporte nas areias do Leme ao Leblon.

    Assim, os mais bem equipados espaços — quadras com marcação e redes, basicamente — permanecem sob controle e uso dos locais da Zona Sul. Há ainda os casos de eventos com inscrições caras, como o Rei e Rainha do Mar, só para ficar num exemplo que conta com patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro.


    foto: Leo Coelho

    Ocaldo esquenta: plano prevê corte em linhas de ônibus em direção à zona sul. Nesse contexto de permanente preterimento das populações pobres do Rio de Janeiro, uma medida muito polêmica está prestes a ser tomada pela Prefeitura da cidade. Diversas linhas que ligam a Zona Oeste e a Zona Norte diretamente às praias da Zona Sul serão extintas ou encurtadas — tendo seus pontos finais transferidos ou para o centro, ou para outros bairros da Zona Sul mais afastados das praias. A Prefeitura alega que os cortes servirão para evitar a sobreposição de linhas na Zona Sul, que, em situação absolutamente anômala no Brasil, exibe diversos coletivos vazios durante o dia.

    Com o novo plano de alteração nas linhas, moradores de diversas partes do subúrbio terão que fazer baldeação no centro antes de partir diretamente para a Zona Sul, como faz hoje.

    A população do subúrbio, claro, duvida que o motivo seja realmente esse, ainda mais por que algumas das linhas escolhidas para as medidas são justamente aquelas que mais têm trazido “problemas” para os moradores da Zona Sul, caso clássico da 474 (que sai do Jacaré em direção ao Leblon).

    E é justamente de ônibus que chegamos aos últimos fatos da nossa história, no final de agosto deste ano. Foi a página do Jornal Extra na internet que, dia 24, trouxe uma grave denúncia, sob a seguinte manchete:

    O texto de Carolina Heringer e Rafaella Barros conta a seguir que:

    “Eram por volta das 14h30m de ontem quando 15 jovens, a maioria da periferia do Rio, se revezavam em um banco para quatro lugares no corredor externo do Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Ciaca), em Laranjeiras, após terem sido recolhidos pela Polícia Militar. O motivo? Estavam indo para as praias da Zona Sul do Rio.

    — Tiraram “nós” do ônibus pra sentar no chão sujo e entrar na Kombi. Acham que “nós” é ladrão só porque “nós” é preto — disse X., de 17 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte.

    Do grupo que havia sido retirado de um ônibus que chegava a Copacabana, só um rapaz era branco. Os outros 14 tinham o mesmo perfil: negros e pobres. Todos os jovens ouvidos pelo EXTRA estavam em linhas que saem da Zona Norte em direção à orla. Nenhum deles portava drogas ou armas.

    — Nós “estava” dentro do ônibus, não estava com nada. Nós “é” humilhado na favela e na “pista” — disparou Y., de 14 anos, que havia saído do Morro São João, no Engenho Novo, com quatro colegas.

    Sem comer desde que haviam sido recolhidos pela PM, no fim da manhã, a todo momento os jovens pediam por comida. Os lanches só foram entregues cerca de quatro horas depois de a ida para a praia ser interrompida. (…)

    Pedindo anonimato, quatro funcionários da Secretaria municipal de Desenvolvimento Social que estavam no local disseram não concordar com o recolhimento dos menores. Uma conselheira tutelar, que também preferiu não se identificar, não conteve a revolta com a situação que, segundo ela, tornou-se corriqueira:

    No início, o critério era estar sem documento e dinheiro para a passagem. Agora, está sem critério nenhum. É pobre? Vem para cá. Só pegam quem está indo para as praias da Zona Sul. Tem menores que, mesmo com os documentos, são recolhidos. Isso é segregação. Só hoje (domingo) foram cerca de 70. Ontem (sábado), foram 90. (…)


    Polícia alega situação de risco. Procurada, a Polícia Militar afirmou, por meio de nota, que “as ações ocorreram visando a proteger menores em situação de risco ou em flagrante de ato infracional”. O defensor público Rodrigo Azambuja, porém, contesta a versão oficial.

    — A situação de risco é quando a criança está na rua ou sendo explorada. Se ela estiver nessa situação, pode haver uma abordagem, mas da equipe de assistência social, não da polícia — diz Azambuja, acrescentando: — Isso (impedir que os adolescentes cheguem às praias da Zona Sul) é crime, está previsto no artigo 230 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que proíbe “privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente”. (texto do site do Jornal Extra (24/08/2015)

    O caso ganhou imensa repercussão. O governador Pezão mostrou desconhecer a lei e, como de costume, defendeu a ação da polícia:

    “Não achei (que passou do limite). Repercussão sempre dá, quando não age e quando age. Quantos arrastões nós tivemos praticados por alguns desses menores? Não estou falando que são todos que estavam ali, mas tem muitos deles que são mapeados. Se tiver algum excesso, vai ser coibido.” (Governador Luiz Fernando Pezão)

    Tão revoltada a Defensoria Pública do Estado ficou com o caso que conseguiu na justiça um habeas corpus preventivo que impedia a Polícia Militar de apreender jovens que não estivessem em flagrante crime ou ato infracional. A decisão confundiu os cariocas. A saber pelo que se ouvia nas ruas, muitos entenderam que a PM não poderia mais abordar menor algum.

    Parece que a própria PM se atrapalhou (ou quis se atrapalhar). Por pirraça ou não, no primeiro fim de semana de forte calor da nova temporada, a polícia não agiu energicamente e viu o circo pegar fogo, sobretudo no Arpoador. Conta um barraqueiro de praia que, no fatídico dia 20 de setembro, foram os seguranças dos prédios e dos hotéis que apareceram para acudir a população e a própria polícia, que sofria uma chuva de cocos e pedras. Muitos moradores relataram que, ao pedirem socorro para policias militares, recebiam como resposta algo como “a Justiça não deixa”. Foi instantâneo: a internet foi inundada por vídeos mostrando a correria, as ações dos ladrões na praia e a ação de “grupos de moradores da Zona Sul” agredindo passageiros do ônibus 476 que seguia viagem de Copacabana em direção ao subúrbio. Era a declaração de guerra.

    Grupos que pediam mais policiamento e mesmo atos de justiçamento explodiram no Facebook, como o caso do Alerta Assaltos — Zona Sul. Nele, um policial civil postou uma mensagem violenta que, rapidamente, viralizou na rede. Embora sob muitas críticas, muitos cariocas não só apoiaram o texto como adicionavam novas mensagens de ódio.

    Por outro lado, grupos de menores de bairros pobres, reunidos numa página de Facebook, sob o nome de Coreto e o Injeta, devolviam as ameaças, desafiavam a polícia e ainda demonstravam os objetos roubados em fotos. Tanto assombro as páginas provocaram que foram parar nos telejornais cariocas. A rixa crescia e, nas ruas da Zona Sul, não se ouvia falar de outra coisa. Um muro no bairro de Benfica, na Zona Norte, foi pichado com uma mensagem que diz muito sobre uma parte do sentimento.

    Quem semeia miséria… colhe fúria.

    Outra postagem que mobilizou a internet foi da filósofa Ângela Moss, personagem curiosa desta trama. Foi ela quem, no final da década de 80, insultou outros de “sub-raça” na reportagem da Manchete. Quase 30 anos depois, ela se mostrou absolutamente arrependida: “não há como negar: essa é a face triste de uma sociedade sem compaixão e egoísta e sim, um dia já foi a minha face. É triste, mas do alto da minha idade atual tenho orgulho de ver como eu era menor e em quem eu me transformei”.

    Fui atrás do perfil de Ângela no Facebook. Ela me disse: “Acho que enquanto nos perdemos nessa discussão boba de zona norte x zona sul nós nos esquecemos que somos os mesmos 99% e que aquele 1% contra o qual deveríamos estar lutando está lá em cima só fomentando essa merda. Porque enquanto lutamos uns contra os outros não lutamos contra eles! Esse choque não é entre ricos e pobres: é entre remediados e pobres!”

    Na véspera do fim de semana, o calçadão de Copacabana estava em polvorosa. As opiniões se dividiam entre aqueles que criticavam e apoiavam uma possível ação dos justiceiros.

    Vendedor de canga há 40 anos em Copacabana, Mário José (foto acima) criticou os justiceiros.

    “Têm pessoas que acham que têm que matar. Mas não! Porque isso é um problema do Estado. O problema é estrutural e social! Quem tem que tomar atitude sobre isso são as autoridades.”

    Já um outro homem, de 50 anos, morador de Copacabana, que não quis se identificar, pensava diferente. Ele, todo musculoso, disse que cogitava bater em ladrões que flagrasse em ação no bairro.

    “Justiceiro é uma palavra um pouco forte, muito midiática, muita palhaçada. Isso aqui é o morador jovem daqui, que está indignado com a situação e fica tentando tomar defesa de seu território, digamos assim. E eu também estou indignado.”


    Menino de 11 anos morre no Caju. A PM é suspeita, mas a Zona Sul segue.. pedindo mais polícia | No meio de uma semana tão explosiva nos noticiários dos “arrastões”, com extensas reportagens em todos os veículos e autoridades convidadas a se explicar no estúdio, o menino Herivaldo, de 11 anos, morre com um tiro na cabeça enquanto corria para comprar uma bolinha de ping-pong no bairro do Caju.

    Herivaldo morreu com um tiro na cabeça aos 11 anos de idade. Deu azar até depois de morrer. Na semana do crime, só se falava em “arrastões na Zona Sul”.

    Cinco agentes da PM da UPP da região aparecem como os únicos suspeitos da morte e são afastados das ruas. Um escândalo que não perturba o protagonismo da Zona Sul. A população desta parte da cidade, afinal, não frequenta as favelas da região do Caju, e uma boa parcela está bem mais preocupada em manter os pivetes longes de suas ruas e praias.

    Uma declaração de guerra da população, um esquema de guerra do governo.

    Na quinta-feira, 24 de setembro, representantes da Secretaria Especial de Ordem Pública, da Guarda Municipal, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e da Polícia Civil se reuniram no quartel-general da Polícia Militar do Rio de Janeiro para afinar a operação conjunta do fim de semana. A decisão da PM foi de antecipar em um fim de semana o início da Operação Verão. Foram anunciados quase mil homens. Só da PM, 17 bloqueios a ônibus, motos e carros suspeitos. Alguns deles, montados até mesmo em bairros distantes da praia, como ocorreu no longínquo ano de 1992. O carioca da Zona Sul vive, então, seu sonho dourado: um policial em cada esquina — e até mesmo junto aos quiosques.

    Carioca da Zona Sul vive seu sonho dourado: um policial em cada esquina — e até mesmo junto aos quiosques. Em alguns pontos da praia, havia mais agentes de segurança do que banhistas.

    Não era um dia normal de praia. Em vez de carros particulares estacionados na orla, quem chegava à praia do Arpoador na manhã do sábado era recebido por uma fila de carros oficiais e um enorme conteiner da Polícia Militar. Os gritos típicos dos vendedores ambulantes disputando a clientela nas areias eram abafados pelo zunido de um helicóptero da polícia sobrevoando a orla. O céu nublado indicava que, no primeiro dia da Operação Verão, até o sol pareceu ter se intimidado de aparecer na praia.

    Mas como quem faz das areias do Rio seu lugar de trabalho não pode se dar o luxo de ficar em casa por medo da violência, a ambulante Luciana Adriano voltou a levar seus biscoitos e empadas para vender em Ipanema, com o objetivo de complementar a renda mensal da família. A estreia havia sido no sábado, 19, primeiro dia do fatídico fim de semana de “arrastões” no Arpoador.

    “Eu fiquei muito assustada. Vi tudo acontecer. Escondi o dinheiro do que havia vendido e tentei me afastar da confusão”, conta a moradora de Vilar dos Teles, em São João de Meriti, que, para chegar ao Arpoador, enfrentou mais de duas horas e meia de ônibus e metrô. Mãe de dois filhos adolescentes, ela diz ter se emocionado vendo um dos meninos detidos pela polícia na última semana sendo algemado.

    “Meu filho mais velho, de 17 anos, costumava vir à praia aqui com os amigos. Mas eu sempre orientei para ficar longe de confusão, procurar os lugares mais vazios da praia e, de preferência, ficar mais tempo na água, tomando cuidado para não se afogar. Em dia de praia cheia, é muita gente misturada e, na hora da confusão, por causa de um, todo mundo paga. Ainda mais se for preto”.

    Luciana tem uma piscina em sua casa e é lá que ela prefere que os filhos fiquem no próximo verão:

    “Se depender de mim, eles não virão para cá este verão. O mais novo, eu não vou deixar. Já eu, vou continuar vindo, não tenho escolha”.

    Quem bate ponto na praia também todo fim de semana, há 20 anos, é a avó da diarista Franciele Castro, de 22 anos, que tem uma barraca no Arpoador. Por causa disto, Franciele cresceu frequentando esse ponto das areias do Rio. Acompanhada da amiga Juliana Coelho e levando o filho Victor Hugo, de 1 ano e 2 meses, ela, que vive em Ramos, voltou à praia, apesar de ter presenciado os problemas do fim de semana anterior.

    “Não fiquei com medo, nem vou deixar de vir à praia, estou acostumada. E também estou acostumada com barulho de tiro na favela, vou ficar com medo de arrastão?”

    A reportagem entrevistou outras dez pessoas entre o sábado e domingo. Todas demonstraram apoio ao número de policiais na orla, mesmo aqueles que disseram “não confiar muito na polícia”.

    Quem também não gosta muito da polícia é um jovem de 7 anos, morador de uma favela no bairro de São Cristóvão, o último personagem dessa história. Encontrei com ele a bordo 474, em direção à Zona Sul, no sábado. Ele era mais saliente de um grupo de mais três amigos — todos menores de dez anos e desacompanhados dos pais — que se revezavam sentados na janela do ônibus. Sem sorrir uma única vez, enquanto o ônibus seguia seu trajeto, ele arremessava pequenas balinhas nos pedestres nas ruas e nos motoristas de carros. Quando o coletivo em que estávamos finalmente chegou à Copacabana e parou no engarrafamento, o grupo começou a xingar com palavrões cabeludos os passageiros de outros ônibus emparelhados.

    “Cadê sua mãe e seu pai?”

    Quando o policial da blitz olhou para a cara do jovem pela janela, mandou o ônibus parar. Lá da frente, o motorista gritou: “perdeu menor! vai voltar para casa”. O policial entrou, perguntou onde estavam os pais de cada um e mandou todos descerem. Além deles, mais dois jovens negros que estavam sem camisa no fundo do ônibus. Eu, de idade similar aos dois jovens , — porém ‘branco’ e com barba universitária — fui ignorado pelo PM. Mesmo assim, para acompanhar a história, resolvi descer também. Só consegui ouvir o policial dizer ao menores: “fiquem na moral, sem bagunça”. Em seguida, os devolveu para dentro do ônibus.

    Exatas 24 horas depois, reencontrei o jovem e outros dois amigos numa praça do Arpoador. Estavam apreendidos por 15 policiais, que esperavam a chegada dos agentes da Secretaria Municipal de Assistência Social. Enquanto não chegavam, um dos PMs (que não está na foto abaixo) zoou o garoto mais irascível, o mesmo que arremessava balinhas nos pedestres: “você de novo, hein? Quarta vez já! Hoje não tava roubando? Só hoje, né?”

    Ultimo capítulo desta triste história. Uma criança solta na rua, sem pai, nem mãe. E o policial pergunta: “”você de novo, hein? Quarta vez já! Hoje não tava roubando? Só hoje, né?”

    Os agentes da Prefeitura chegaram, pegaram a criança pelo braço sem nem mesmo dar-lhe um “boa tarde” e o levaram para dentro da van. De lá, ele apontou para o chefe da operação e ameaçou: “eu marquei tua cara, hein? Eu marquei tua cara”! Do meu lado, um morador de Copacabana resmungou baixinho em minha direção “que filho da puta, com essa idade e falando desse jeito. É mole? Cacete neles!”


    Outra morte, e a polícia segue… | Na manhã de terça-feira, 29 de setembro, a PM do Rio fez mais uma vítima jovem nos morros cariocas. Dessa vez, Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos. Ao que indicam amigos, um varejista do tráfico de drogas no Morro da Providência. Um vídeo, absolutamente conclusivo e revoltante, mostra cinco policiais militares envolvidos na ocorrência fraudando a cena do crime. Agonizante, Eduardo é pego pela mão por um PM que simula um tiro com uma pistola para deixar vestígios de pólvora sobre o jovem.

    Nos próximos fins de semana, entretanto, a orla da Zona Sul deverá manter-se repleta de policiais defendendo a paz para além do túnel. Pena que no fim deste túnel não há luz. No fim deste túnel, há apenas a polícia.