Movidos pelo interesse em compreender a realidade das pautas LGBTIA+ no legislativo dos estados brasileiros, os jovens Marcos Salesse, Hugo Martins, Matheus Gonçalves e Adeilson Viana, desenvolveram a Cartilha “LGBTIA+ no Legislativo dos Estados”. O material foi publicado nesta terça-feira (28), e apresenta um panorama dos Projetos de Lei (PL), criados entre 2018-2020, que tramitam nas Assembleias Legislativas dos estados brasileiros, e também da Câmara Legislativa do Distrito Federal. A ação integra um trabalho feito pelo grupo para o programa Todxs Embaixadorxs (Todos Embaixadores), da startup social Todxs Brasil (Todos Brasil).
Com o levantamento, o grupo conseguiu identificar uma baixíssima presença das pautas LGBTIA+ no legislativos de diversos estados. Algumas dessas unidade federativas não apresentaram nenhum PL que tratasse das demandas desta população, como foi o caso de Santa Catarina, Rondônia, Acre, Amapá, Alagoas e outros.
Disponibilizado gratuitamente na plataforma Issuu, os interessados podem não só conferir a cartilha digitalmente, como baixar a íntegra do material. Segundo um dos desenvolvedores do conteúdo, essa é mais uma das formas de munir os LGBTIA+ com uma ferramenta fundamental na luta pelos direitos dessa população.
“Com a cartilha a gente consegue visualizar um panorama geral da situação das nossas pautas no Brasil”, explica Marcos Salesse, estudante de jornalismo na UFMT. “É fundamental que a gente tenha materiais como esse, assim podemos entregar aos nossos uma ferramenta imprescindível na luta por direitos, que é a informação”.
Uma grande vitória foi comemorada por todo o movimento LGBT, na última quinta-feira, 1. As travestis e transexuais ganharam no Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de alterar o nome e o gênero no registro civil mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Assim, a decisão da Suprema Corte garantiu os efeitos do Projeto de Lei João Nery, de autoria dos Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika kokay (PT-DF), que tramita desde 2013 na Câmara.
Todos os ministros da Corte reconheceram o direito, e a maioria entendeu que, para a alteração, não é necessária autorização judicial. Votaram nesse sentido os ministros Edson Fachin, Luiz Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e a presidente da Corte, Cármen Lúcia. Ficaram vencidos, nesse ponto, o ministro Marco Aurélio (relator), que considerou necessário procedimento de jurisdição voluntária (em que não há litígio) e, em menor extensão, os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que exigiam autorização judicial para a alteração.
Essa era uma reivindicação urgente, já que muitas pessoas trans não dispõem de recursos para as cirurgias exigidas ou simplesmente não desejam realizá-las. Além disso, juízes conservadores ou que deliberadamente confundiam suas fés particulares com exercício de julgar vinham botando obstáculo para garantir a cidadania das pessoas trans.
Mesmo com a lentidão já conhecida da Justiça, o STF foi mais rápido do que o Congresso em garantir esse direito da população trans. Desde 2013, tramita na Câmara o projeto de Lei João Nery (5002/2013), que nunca entrou na pauta para ser votado ou debatido, mesmo sendo uma reivindicação ampla do movimento LGBT organizado. O conservadorismo da maioria dos parlamentares na Câmara dos Deputados nunca deixou a proposta de Jean Wyllys e Érika Kokay avançar.
Jean Wyllys quer ampliar direitos garantidos pelo STF com Lei. Foto: PSOL na Câmara
De acordo com um dos autores do PL, o deputado federal Jean Wyllys, a única ressalva que deve ser feita é que o projeto ainda prevê coisas que não foram deliberadas na ação do STF. “O acesso à hormonoterapia, às cirurgias de redesignação através do SUS, verbas para educação e cultura e a criação de um programa nacional que estude e planeje ações para reduzir o preconceito contra as pessoas trans também estão previstas”, observou.
A presidente da associação Nacional de Travestis e Transexuais, Keyla Simpson, e suas amigas incendiaram os laudos que tratam suas identidades de gênero como doença, após a decisão do STF. Um gesto simbólico que significa a queima das amarras da patologização e da estigmatização anticientífica contra as pessoas trans. Um grito de liberdade e de visibilidade. Confira o vídeo:
De acordo com a ativista trans Alessandra Ramos, que comentou a decisão do STF ao vivo para os Jornalistas Livres, mudar o nome é uma das coisas mais importante para as pessoas trans. “Ao fazer isso, o Estado brasileiro reconhece que ser travesti, transexual e transgênero não é algo do outro mundo e reconhece institucionalmente a nossa existência. Isso é o primeiro passo para sermos respeitadas e respeitados e possamos lutar por mais direitos”, destacou.
Feito por mulheres negras, travestis e transexuais, migrantes, lésbicas e bissexuais, dos povos originários, prostitutas, defensoras descriminalização do aborto, mães, indígenas e tantas outras, o Encontro transformou a maior cidade da província de Santa Fé em um local de fortalecimento e luta. Com oficinas de temas como ativismo feminino, sexualidade, aborto, bissexualidade e lesbianidade, HIV, maternidade, prostituição e trabalho sexual, estupro, tráfico de mulheres, violência de gênero, mulheres dos povos originários, mulheres campesinas e rurais, afrodescendentes, e mulheres migrantes e latinoamericanas, o encontro autoconvocado ainda teve cerimônia de abertura, ato das mulheres e rodas de conversas informais durante a programação. A relatoria completa do que foi debatido em cada uma delas pode ser encontrada na página do Encontro.
Foto: Agatha Azevedo | Jornalistas Livres
A rede de feministas que se formou através do Encontro contra os casos de violência na Argentina tem conseguido êxito, porém a luta ainda está longe do fim. Na agenda de lutas deste ano estavam as denúncias a artistas e figuras públicas como Cristian Aldana, vocalista da banda argentina “El Otro Yo”, por casos de violência contra mulher, estupro e pedofilia; o combate à morte de mulheres trans e travestis e à impunidade dos assassinos, lembrando o aniversário de um ano do caso de Marcela Chocobar, assassinada de maneira cruel e negligenciada do direito de estar nas estatísticas de feminicídio e de ter um enterro digno; e inúmeros casos de mulheres desaparecidas pelas redes de tráfico e prostituição.
Foto: Agatha Azevedo | Jornalistas Livres
Como conquistas, esta edição foi marcada pela primeira roda de mulheres afro, e comemorou a resolução do caso de Belén, jovem de 27 anos da cidade de Tucumán acusada de assassinar o próprio filho, presa e condenada a 8 anos de prisão por ter tido um aborto espontâneo, que só saiu da cadeia graças à pressão popular. Também foi pontuada a importância de seguir com as grandes manifestações do “Ni Una Menos”, marcha que é filha do Encontro de Mulheres e que diz não ao feminicídio no país e na América Latina.
A tradicional marcha de mulheres foi reprimida pelas forças da polícia. Este é o segundo ano que isso acontece, e a polícia tenta impedir que a marcha passe em frente à Igreja e proteste contra ela com balas de borracha e spray de pimenta. Mais um reflexo do avanço da direita na América Latina e da política que se instaurou com o início do governo de Maurício Macri, no final de 2015.
Para o Brasil, o modelo argentino que surgiu em 1985 e traz delegações de mulheres de todos os cantos do país serve para apontar um caminho de união diante do cenário atual. Abaixo, é possível sentir um pouco do que foi dito no Encontro. As falas aqui citadas não tem nomes. Esta opção política se dá por entender a construção horizontal do Encontro argentino, que colocou mais de 70 mil mulheres divididas em 67 oficinas em diálogo, e não pertence à nenhuma organização, mas à pluralidade de opiniões e vozes da mulher argentina e migrante.
“Quantas companheiras trans terminaram o Ensino Médio? Precisamos ser capacitadas e aprender para poder ocupar postos de trabalho, e que nestes nós sejamos incentivadas a terminar os estudos, porque mais do que uma cota trans, na Argentina nós precisamos de respeito e de conseguir concluir a escola.”
Foto: Agatha Azevedo | Jornalistas Livres
“Devemos levar em conta qual é a nossa história e onde estamos parados para ver onde temos que lutar. Dar espaço para a cultura é dar uma arma de luta pra nós mulheres. Nos confortamos quando estamos juntas. Temos que dialogar para mudar.”
Foto: Agatha Azevedo | Jornalistas Livres
“Nós eramos 5 irmãs. Porque eu considero que somos todas irmãs. E mataram a minha irmã trans. Marcela Chocobar, desaparecida, assassinada, esquatejada. Nós encontramos seu corpo destroçado, sem pele. A mataram com tanto ódio que Marcela, que era alegre e divertida, sempre presente, não pode ser reconhecida. Somos 5 irmãs que estivemos sempre juntas e me custa dizer que hoje somos 4. Seguimos pedindo que se encontrem os restos do corpo dela, e há um ano de sua morte, nos dói dizer que ela ainda é considerada um homicídio simples.”
“As redes de tráfico de mulheres são fruto da existência da prostituição compulsória e dos prostíbulos como um lugar que aceita a mulher como mercadoria. Ela é tão mercadoria que é submetida a exames de HIV e doenças para a proteção dos clientes que as consomem e se sentem totalmente descartáveis. Muitas mães ainda procuram suas filhas. E da porta pra dentro do puteiro, não existe proteção, não existe camisinha, não existe choro.”
“Queremos que escutem nosso pedido de justiça. Em Salta, norte argentino, temos registrados 53 casos de companheiras violentadas pela Polícia e pelo patriarcado. Além de ser difícil dizer o que acontece com mulheres em situação vulnerável e de prostituição, de ser dolorido dizer, denunciar, ainda temos que aguentar a justiça nos pedindo para assinar papeis sendo que a maioria de nós não sabe ler e escrever. Somos pobres, excluídas do estado, muitas em situação de rua, e o tema não é só o tráfico de mulheres, a polícia também é parte disso. O mesmo que nos batia na rua era o que recebia a denúncia.”
“A gente se exalta não porque não nos ouvem, não nos respeitam e nossa violência sofrida, guardada ao longo dos anos, é tanta que dói, machuca e tem que sair.”
“Para ter direitos, temos que nos meter na política, porque ela que transforma a realidade. Temos que pressionar nossos dirigentes em nossos movimentos para que nos coloquem nos espaços de decisão porque não pode haver uma trans mais sem saúde, educação, morrendo e sem trabalho.”
“Nós somos a classe obreira, nós construímos tudo. Então se rompermos tudo, vamos reconstruir tudo. O encontro é de todas e respeitaram nossas decisões, aqui não tem liderança, não tem movimento, aqui existem mulheres que resistem e querem brigar pela mudança.”
“Cuidamos muito de nós mesmas que estão perto da gente, diante deste mundo que estamos. Dói ver que a sexualidade e a expressão da sexualidade de uma irmã possa causar a ela risco de morte.”
“Temos que levar nossas lutas não somente na mente, mas também no coração, porque é com o coração que chegamos às pessoas.”
“É um dia importante pra nós. Fico muito feliz quando estou em um local onde as pessoas se interessam pelo assunto, que nos entrevistam, que registram os nossos momentos, e não só o de discussão política, mas também o cultural. E que não fique apenas ali, que isso vá se expandir para que a sociedade veja o nosso dom, veja de que nós somos capazes, e que temos os mesmos direitos , e que nós temos capacidade de sermos inseridas e estarmos dentro da sociedade”, declarou Marina sobre o Dia da Visibilidade Trans.
Eu tive a honra de registrar suas palavras e algumas imagens um dia antes da trágica morte por embolia pulmonar e parada respiratória da artista e ativista baiana Marina Garlen na madrugada do domingo, 31 de janeiro, em São Paulo. Ela estava na cidade desde o dia 25 representando a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) por ocasião das atividades em comemoração do dia 29, o Dia da Visibilidade Trans. A Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, que estava patrocinando as atividades da rede ANTRA, arcará com o translado do corpo para a sua cidade natal.
Expulsa de casa aos 16 anos, Marina acabou indo “atrás do sonho” na Europa, onde viveu por 17 anos como profissional do sexo, o que lhe possibilitou várias conquistas, como a compra da casa própria. De volta para o Brasil, a baiana atuava como cabeleireira, maquiadora e fazendo shows em casas noturnas, trabalho que já realizava há 35 anos. Depois da entrevista, eu tive a fortuita oportunidade de ver sua última performance dublando uma música antiga da cantora Vanusa, e entendi porque sua poderosa e fascinante presença de palco lhe renderam um troféu e o título de Diva Trans em 2011.
A presidente do Fórum Municipal de Travestis e Transexuais Nicolle Mahier contou que esteve com Marina no dia 28, e que ela comentou que tomou chuva no dia 25. Se sentia gripada e sentia febril. No dia 29, antes de fazer o show, Marina havia dito que ainda se sentia um pouco fraca, mas já estava melhor. No dia seguinte, ela ligou para Nicolle pedindo que o marido dela, que é taxista, a levasse do hotel onde estava para a casa de um amigo por conta de fortes dores no peito. Ainda comentou que não iria na Marcha pela Paz, realizada naquele dia pela ONG Cais, porque se sentia muito fraca e preferia ficar descansando.
Marina ainda marcou horário para que o taxista a buscasse para levá-la ao aeroporto. Um pouco antes do horário marcado Nicolle mandou algumas mensagens, mas Marina não respondeu. Algumas horas depois, toda a comunidade de travestis, mulheres transexuais e homens trans de São Paulo e do Brasil, ficou sabendo da perda de uma das suas mais aguerridas guerreiras.
Marina foi conduzida ao hospital da Barra Funda. Segundo Nicolle, a médica que a socorreu informou para algumas pessoas que foram até o local que “ela estava com uma mancha preta no pulmão, mas como ainda não foi feita a necrópsia, não se sabe se foi o silicone industrial (que era usado antigamente pelas travestis para tornear seus corpos) que vazou para o pulmão… mas, até o momento, isto é apenas hipótese.”
Confira o áudio com a última entrevista da artista:
“Eu me chamo Marina Garlen, tenho 49 anos de idade e sou ativista da causa LGBT. Fiz parte do Comitê de Cultura LGBT da Presidência da República, do Ministério da Cultura. Sou estudante, sou de Salvador, e eu fui convidada para estar aqui representando a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) para fazer parte das atividades da Visibilidade Trans que em todo Brasil está sendo comemorada este ano.
Eu tenho certeza que assim como existe o Dia do Orgulho Gay, assim como existe a Visibilidade Lésbica, a Visibilidade Trans é uma maneira que nós temos de mostrar para a sociedade, para os políticos, para as pessoas que nós existimos, e que nós precisamos de Direitos. É um momento para mostramos também os dotes que nós temos, e não é só o de trabalhar apenas em salão de beleza, não!
Vamos deixar a prostituição seja uma questão de opção, e não de necessidade. Está na hora da sociedade entender que nós somos capazes, que nós estudamos. Existem muitas travestis e transexuais amigas da ANTRA que são professoras, outras são advogadas, assistentes sociais etc. Eu fui convidada no ano passado pela Fernanda de Morais para participar deste evento aqui, em São Paulo. Essa é a primeira vez que eu participo do evento.
Acho que nem teria necessidade de ter visibilidade trans, mas apesar de vivermos em um país democrático, a sociedade brasileira é arrogante, preconceituosa e machista. Por isso é importante gritar. Gritar para que as pessoas nos ouçam, vejam que nós estamos aqui. Somos artistas, somos prostitutas, somos jornalistas, somos professoras, somos médicas. A única coisa que nos falta é oportunidade.
Que as pessoas abram as sua mentes, que os empresários, os diretores de teatro, os donos das grandes empresas comecem a abrir espaço para que nós possamos ser inseridas no mercado de trabalho, nas escolas, porque sem educação, infelizmente, não é possível avançar. Hoje [Dia da Visibilidade Trans] é um dia importante para nós.
Espero que a sociedade veja o nosso dom, veja de que nós somos capazes, e que temos direitos, e também capacidade de sermos inseridas e estarmos dentro da sociedade participando.
Uma vez que pagamos os nossos impostos como qualquer cidadão – e nós temos esse dever – creio que os direitos também devem ser iguais. É muito importante essa visibilidade, pois esta é a maneira que temos de dizer para as pessoas que não somos marginais, que não somos bichos de sete cabeças. É uma maneira de abrir portas, de conscientizar as pessoas para que elas nos enxerguem como pessoas e cidadãs de fato.”
Lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis ficam sem espaço na maior parada LGBT do mundo, programada e dirigida ao público gay masculino.
A maior parada LGBT do mundo há tempos vem sofrendo de uma aparentemente insolúvel crise de identidade, com a fragmentação de suas bases e a evasão das letrinhas L, B e T, que, não se sentindo representadas, realizam suas próprias marchas em contraponto ao megaevento popularmente chamado de Parada Gay. A sabedoria popular acerta em cheio no título de um evento que se pretende inclusivo, mas que na prática é pensado, programado e dirigido exclusivamente ao público gay.
Lésbicas e bissexuais há 11 anos já realizam suas próprias marchas, sem muitos patrocínios, o que faz com que a ausência de trios e cenários mirabolantes coloque todo mundo no chão da rua, no mesmo nível e na mesma sintonia. Neste ano, as mulheres feministas da marcha convidaram oficialmente travestis e mulheres transexuais lésbicas não só para a caminhada como também para a construção do evento. A voz das mulheres ecoou firme no espaço publico das ruas onde os direitos civis devem ser conquistados.
Manifestantes trans na Parada LGBT de 2003
A APOLGBT (Associação da Parada do Orgulho LGBT) funciona o ano inteiro enquanto entidade e só faz um evento anual, com debates, premiações e apresentações culturais alguns dias antes da manifestação de rua. Se isolou do processo político de suas bases, principalmente com relação à evolução do movimento organizado de travestis e transexuais. “É bem capaz de eles nem saberem que existe um movimento organizado de homens trans”, diz a antropóloga Regina Faccini que esteve à frente da APOLGBT junto com Alexandre Peixe, homem trans conhecido como Xandi. Segundo Regina, “a primeira (e única) parada que pautou a visibilidade de travestis e transexuais foi a de 2003, a Parada do 1 milhão de participantes, que paradoxalmente se chamou ‘Construindo políticas homossexuais ’”.
Regina prossegue: “Naquele momento, as pessoas à frente da entidade pareciam querer contribuir e respeitar as travestis e transexuais que ali militavam, mas não havia ainda acúmulo de reflexão que indicasse que ‘políticas homossexuais’ talvez não contemplassem as pessoas agrupadas sob o T. Na verdade, é como se as coisas tivessem mudado rápido demais e estivessem mudando numa velocidade gigantesca nos últimos anos, especialmente no que diz respeito às pessoas travestis e transexuais nos. Estou falando de algo que aconteceu há 12 anos”.
De fato, homossexualidade diz respeito à orientação sexual, expressa nas letras L (lésbicas), G (gays) e B (bissexuais). É diferente de identidade de gênero, que diz respeito às demandas pertinentes aos segmentos de travestis, mulheres transexuais e homens trans. Essa disparidade de demandas sempre se refletiu no esvaziamento da representatividade da parada com relação à comunidade T, que no final do ano passado realizou, no dia 16 de dezembro, a I Marcha pela Cidadania T, por ocasião da abertura do IX Encontro Regional Sudeste de Travestis e Transexuais.
O próprio tema escolhido pela organização como bandeira de luta, “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim, respeitem-me!”, embora tente trazer uma resposta à chamada “cura gay” e reforçar que a homossexualidade não é “opção sexual”, remete a uma explicação genética que é questionável e não representa a comunidade T.
“A gente não nasce de forma alguma (com personalidade definida), a gente simplesmente nasce”, declara Luciano Palhano, do Ibrat (Instituto Brasileiro de Transmasculinidade), “e vai ao longo do tempo se socializando, se adaptando ou não às normas de gênero hegemônicas na sociedade. Pessoas Ts, ao se descobrirem inadaptados ao seu corpo e ao gênero designado quando nasceram, vão ao longo da vida reconstruindo sua identidade corpórea e de gênero. Simone de Beauvoir crava uma verdade inabalável: não se nasce mulher (ou homem), torna-se”.
E lá vai a carreata com seus corpos coloridos e sexualizados: drags, transexuais e travestis são mer@s corpos-objetos de enfeite, chamarizes exóticos para uma manifestação que perdeu representatividade e legitimidade perante sua própria comunidade. Sem fazer qualquer juízo de valor à caracteristica carnavalesca da Parada do Orgulho lGbt, porque celebrar e assumir publicamente o desejo é um ato político, e não podemos esquecer que não é só de pão e circo que vive uma pessoa LGBT.
A cantora transexual Renata Peron, alguns dias antes da parada, soltou uma nota pública denunciando a organização por recusar o seu tradicional número de cantar o Hino Nacional no início do evento. Liberaram depois que a nota pública repercutiu nas redes sociais.
Neste ano, o Fórum de Travestis e Transexuais conseguiu com muito custo um carro — que funcionou, pois no ano passado o que foi disponibilizado teve problemas mecânicos e não saíu do lugar. Também em 2014, pela primeira vez, foi incluído no tema da Parada a palavra transfobia: “País vencedor é país sem homo-lesbo-transfobia”. Aconteceu depois que a transfeminista Daniela Andrade, criou uma peticão on-line que obteve 6.500 assinaturas pedindo que o tema incluísse demandas da comunidade T.
Kaká di Poly
Assim que cheguei na paulista, a primeira pessoa que vi foi a Drag Kaká di Polly, figura emblemática que esteve presente em todas as paradas desde 1997. Ela contou como fez para que a 1° Parada do Orgulho LGBT de São Paulo acontecesse: “Eu deitei no chão pra parar o trânsito, porque a polícia nao queria liberar, justificando que tinha muita gente… Naquele tempo, sendo a primeira, era mesmo muita gente, umas mil pessoas”.
Neste ano, ela reclama: “Virou um grande negócio, né? Olha eu aqui, com o pé quebrado… Mas não reclamo de estar no chão. Quem pode pagar 1.500 reais por uma camiseta que dá acesso aos trios? A cidadania não está lá, está aqui, dançando na rua”.
Resolvo seguir o conselho de Kaká e permanecer no chão, embora o crachá de imprensa dê acesso a todos os carros. Vamos nos misturando à multidão, eu e o meu velho parceiro Ennio Brauns, espremidos nas calçadas pelos cordões de segurança, que preservavam um espaço interno grande e vazio ao redor dos carros, diminuindo excessivamente os espaços laterais por onde passavam os pedestres. Há uma multidão diversa de pessoas de todas as etnias, estilos, faixas etárias, mas predominantemente de periferia, que ocupavam o coração financeiro de São Paulo naquela manhã de sol de inverno, comemorando (ou não) o dia do Orgulho LGBT.
Chegamos enfim ao carro 6, do Fórum Municipal de Travestis e Transexuais, e fiquei emocionado ao ver que uma foto minha ajudava compor uma linda e necessária homenagem à travesti Verônica Bolina, trazendo para a avenida a urgência do tema da transfobia de que foi vítima nossa companheira, torturada e espancada dentro das dependências de uma delegacia pelos próprios agentes que deveriam, por lei, preservar a integridade física dela.
A propósito, a tradicional entrevista coletiva de imprensa, que acontece horas antes da Parada e reúne entre outras autoridades o governador, o prefeito e representantes da APOLGBT, foi marcada por um ato político. O repórter Victor Amatuci, do blog Imprença e dos Jornalistas Livres, exibiu o áudio de um depoimento no qual Verônica Bolina afirmava que não havia sido torturada e entregou um dossiê sobre o caso, exigindo do governador Geraldo Alckmin (PSDB) providências imediatas na apuração dos culpados.
Subimos no carro das mulheres transexuais e travestis, que pela primeira vez podem exibir seus corpos e cidadania reconstruídos. De lá, vi uma pequena ilha de homens trans, perdidos num mar de gente… São eles, meus pares políticos. A última fronteira de resistência. Existimos.
Exibimos também nossos corpos transformados: tórax formatados, enfaixados, envelopados… Cicatrizes ostentadas com orgulho. Pequenos peitos redondos enfeitam o tórax de Heitor Marconato, provando que não é necessário submeter o corpo a nenhuma cirurgia para ser quem se é. Cada ser transexual adapta seu corpo conforme sua necessidade. Somos dissidentes e não vamos ceder às normas.
Luciano Palhano, o coordenador do Ibrat, exibe seu corpo negro e generoso. Xandi, que um dia foi o presidente da APOLGBT, continua firme na sua militância e marcha orgulhoso. Outr@s companheir@s carregam faixas e cartazes numa microparada de orgulho T.
Desço imediatamente e vou ao encontro d@s brav@s guerreiros do asfalto. Encontro surpreso um garoto que há alguns dias não queria assumir sua transexualidade, mas que desta vez exibe com orgulho seu peito enfaixado, carregando nas costas o filho, ao lado da esposa sorridente. Vamos juntos arrancar das mãos do Estado patriarcal nosso direito a existir. Somos poucos e frágeis, mas juntos somos fortes. Encontrei enfim o minúsculo t dessa sopa de letrinhas.