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  • “É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí” diz primeira apresentadora transgênero da Bolívia

    “É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí” diz primeira apresentadora transgênero da Bolívia

    Por Maycon Esquer

    Aos 26 anos, Leonie Dorado acaba de entrar para a história da televisão em seu país como a primeira apresentadora de notícias transgênero da história televisiva da Bolívia. Mas a conquista pessoal também é histórica  na comunidade LGBTIA+ da Bolívia, onde ser trans e ao mesmo tempo ocupar espaços de trabalho, principalmente com tamanha visibilidade nacional, pode soar como uma realidade inalcançável. “É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí”, afirma Leonie Dorado.

    O acontecimento, histórico, foi fortemente comemorado pela comunidade LGBT do país latino-americano, assim como da América do Sul, e representa um passo importante para um horizonte de inclusão trabalhista da comunidade trans boliviana. “Foi uma felicidade muito grande, estar à frente de um noticiário é uma responsabilidade jornalística muito grande”, conta Leonie.

    Não é a primeira vez que Leonie se torna a primeira mulher trans a ocupar espaços na sociedade boliviana. Antes de entrar para a história da televisão boliviana esse ano, em 2019, a ativista, que também é musicista, entrava para a história da música do seu país ao se apresentar no “Festival Internacional Festi Jazz”, evento que acontece todos os anos desde 1987.

    “Concentrado na cidade de La Paz, o festival de jazz recebe gente do mundo todo, inclusive artistas do Brasil. Eu resolvi encarar esse desafio ano passado e consegui”, relata Leonie relembrando o esforço e a disciplina que teve. “Eu penso que foi tudo atitude. Levei quase seis meses para me preparar para esse festival e no final deu tudo certo”, declara orgulhosa.

    Leonie Dorado nasceu em La Paz, capital administrativa da Bolívia. Estudou música clássica desde os seis anos de idade no Conservatório Nacional de Música, onde aos 18 anos também estudou licenciatura em Música. Aos 21 anos decidiu estudar Comunicação Social em Buenos Aires, Argentina. Em 2015, depois de concluir a graduação no exterior, Leonie decidiu regressar à Bolívia e iniciar sua transição de gênero. Ao mesmo tempo, começou a se dedicar a outras coisas.  

    Apesar da formação, Leonie conta que é essa a primeira vez que exerce a profissão de jornalista e que sua entrada nos meios de comunicação surge exatamente como um projeto da Abya Yala Televisión, canal boliviano de alcance nacional operando desde 2012, que atualmente tem apostado na “construção e difusão dos direitos individuais e coletivos que fortalecem o respeito à diversidade e inclusão social”.

     Assim como qualquer apresentadora de noticiários do seu país, em Ahora Bolívia, programa em que ela é âncora na Abya Yala Televisión, Leonie trata de temas nacionais e internacionais desde a cidade de La Paz, a segunda cidade mais populosa do Estado Plurinacional da Bolívia. “Abya Yala está mostrando uma pessoa trans não mais de um ângulo físico, como se fossemos um experimento humano, mas sim nos mostrando em um espaço social comum, como é o espaço na televisão”, explica Leonie.

    “Eu tive apenas um mês de preparação para estar à frente de um noticiário”, comenta Leonie ao relatar o desafio ancorar o “Ahora Bolívia”, em um projeto que surgiu em plena pandemia. “No começo, eu estava muito nervosa mas agora, que é o segundo mês que estou nos meios de comunicação, já percebo um grande avanço. As pessoas que me sintonizam hoje em dia podem ver esse crescimento que venho tendo no meu desenvolvimento jornalístico”, declara.

    FOTO:  Arquivo Pessoal

    Puro Ativismo

    A jornalista conta que o que a motivou a fazer parte da iniciativa da Abya Yala Televisión foi, principalmente, ver a “situação lamentável” das pessoas trans em seu país.

    “Mundialmente, as ONGs e outras organizações que zelam pelos direitos humanos da comunidade LGBTIA+ têm hoje em dia uma preocupação especial com transgêneros, porque são as pessoas que mais enfrentam discriminação dentro e fora da comunidade”, revela Leonie.  

    A jovem tem rompido barreiras no seu país ao mostrar, com o cargo que ocupa em uma cadeia de televisão nacional, uma pessoa trans exercendo uma “profissão comum” em um “espaço comum”. “Mostrar uma pessoa trans exercendo uma profissão comum,  como uma jornalista, advogada, veterinária, ou engenheira, é muito importante”declara Leonie ao argumentar sobre o significado da sua conquista para a comunidade trans.

    Coletivo LGBTIA+ na Bolívia

    Em termos legais, nos últimos anos a Bolívia teve avanços quanto à garantia de direitos à comunidade LGBTIA+. O artigo 5º da Lei Contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação – Lei Nº 45 de 2010 – proíbe a discriminação por motivos de orientação sexual e de identidade de gênero e o artigo 281º do Código Penal do país – modificado pela Lei Nº 45 – tipifica como delito qualquer ato de discriminação baseado na orientação sexual e/ou identidade de gênero. A promulgação da Lei Nº 807, em 2016, também estabeleceu a criação do procedimento para a troca do nome próprio e permitiu a utilização de nome social à comunidade transexual e transgênera do país. Porém, o coletivo LGBTIA+, especialmente a comunidade trans, à qual Leonie é parte, segue tendo tropeços.

    “A Bolívia é um país onde temos muitas leis aprovadas, como a Lei de Identidade de Gênero e agora há pouco também se aprovou uma lei que permite a pessoas do mesmo sexo casar-se legalmente em um matrimônio civil”, esclarece Leonie. “Mas como em qualquer outro país, no geral podemos falar de América Latina, a comunidade trans segue tropeçando, não consegue ter acesso a fontes trabalhistas, não pode formar uma família, não pode adotar”.

    Trabalhar na pandemia

    Com mais de 80 mil casos de coronavírus e mais de 3000 mortes, a Bolívia atualmente enfrenta um caos desencadeado não apenas pela pandemia mas também pela ebulição política que aconteceu junto com o final de 2019. Entre outubro e novembro do ano passado, os bolivianos foram espectadores de um turbulento processo que envolveu a deposição e fuga de Evo Morales Ayma – presidente eleito pelo partido “Movimento ao Socialismo” – para o México, e posteriormente para a Argentina, onde atualmente se encontra exilado, e a posse de Jeanine Añez – atual presidente interina do país andino do partido liberal-conservador Movimento Democrático Social .

    O conflito ainda é lido de duas maneiras pela população boliviana cada vez mais polarizada. Parte dos bolivianos acredita na narrativa de que o caso se resume à fuga de um líder populista por ter fraudado as eleições. Para outra parte, no entanto, houve um golpe de estado movido por forças políticas das classes médias urbanas e da direita do país, que não conseguiu se eleger em nenhuma das últimas eleições presidenciais. 

    Os efeitos da pandemia do novo coronavírus na Bolívia, então, se cruzam não apenas com a carência hospitalar mas também com o cenário dramático da política atual. “Eu penso que se tivesse feito isso em uma época que não tivéssemos que viver essa pandemia, de todas as formas teria sido complicado, mas agora é duas vezes mais complicado”, explica a apresentadora sobre como tem sido o seu trabalho. “Na Abya Yala temos protocolos de biossegurança muito rigidos. Quando apresento o jornal, meu companheiro está a quase dois metros de mim”.

    Bastidores do noticiário | FOTO: Arquivo Pessoal

    Manifesto à comunidade trans

    Outra bandeira do ativismo de Leonie, além da garantia de direitos básicos à comunidade LGBTIA+, é a luta pela conscientização dos riscos de tratamentos invasivos na população trans durante o período de transição. A ativista intitula como “O Surgimento da Nova Ideologia Pós-Moderna” a corrente que defende que a comunidade trans “não desperdice anos de vida lutando contra seus próprios corpos”, não se submetendo a cirurgias plásticas invasivas ou ao uso indiscriminado de hormônios. 

    “Existem problemas de trans-feminicídio, sim, claro que existem. As pessoas ainda matam outras simplesmente por serem trans”, afirma Leonie, que durante a transição não fez uso de hormônios e nem se submeteu a operações plásticas. “Mas o que eu quero esclarecer é que outra grande porcentagem de morte de pessoas trans são os tratamentos invasivos, e não estamos falando de deformações corporais, estamos falando de tumores cancerígenos, problemas graves”, insiste.

    Enquanto ocupa o seu espaço no país latino-americano e tradicionalmente conservador, Leonie amplia a sua voz para abrir caminhos para que a comunidade trans do seu país também possa reivindicar o seu espaço na sociedade.

    “Pelo simples fato de você ser um ser humano, você já tem direitos trabalhistas, independente do gênero”, diz Leonie. “A sociedade sempre escondeu as pessoas trans, não só nessa época. Mas as pessoas trans podem e merecem ocupar espaço na sociedade e por isso temos que ir abarcando esses espaços”.Leonie Dorado sentencia: “Não é fácil! As coisas não vão ser cor de rosa do dia para a noite. No nosso caso, sempre temos que nos esforçar duas vezes mais para que nossos frutos sejam reconhecidos, por isso é muito importante não desistir e seguir adiante”. Um  exemplo disso é a sua própria história, que neste momento renova as esperanças de inclusão social e representatividade da comunidade trans da Bolívia.

  • 200 mil mulheres e dissidências debatem realidade possível no 34º Encontro na Argentina

    200 mil mulheres e dissidências debatem realidade possível no 34º Encontro na Argentina

     

    Por Fernanda Paixão, do Coletivo Passarinho, em Buenos Aires

    Com fotos de Vivian Ribeiro e Nuria Alvarez

     

     

    O que não se nomeia, não existe.

    Essa máxima atravessou os debates do 34ª Encontro Nacional de Mulheres, evento anual em que se encontram mulheres e dissidências em uma cidade diferente da Argentina a cada edição. Cerca de 200 mil participantes conformaram o Encontro e habitaram a cidade de La Plata neste último fim de semana, durante os dias 12 a 14 de outubro. E se a questão da linguagem  e a importância de nomear como um ato político foi uma constante nesse Encontro, o desfecho desta 34ª edição pode ser considerado exitoso: a partir de agora, o grito uníssono é por um Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans, Travestis, Bissexuais e Não-Bináries.

     

    O que melhor caracteriza os encontros são a coletividade organizada e afetiva e a participação popular, tanto nas inúmeras atividades e marchas nas ruas e nas praças quanto nas dezenas de grupos de discussão nas universidades e escolas sobre temáticas que interpelam às diversidades. Não é à toa que conta, em grande parte, com cobertura colaborativa: o encontro massivo de mulheres e dissidências de diversas nacionalidades debatendo para construir perspectivas e repensar propostas políticas e combater o patriarcado capitalista heteronormativo parece não ser fato noticioso para as grandes mídias argentinas.

     

     

    Das divergências

     

    Apesar de ser organizado horizontalmente, há uma forte divisão na comissão organizadora entre as que querem manter o nome original, desde sua primeira edição, em 1986, e entre quem segue a campanha “Somos Plurinacional”, que defende a mudança oficial por um nome mais inclusivo e democrático. Dessa forma, estariam nomeadas, devidamente representadas e com suas existências reivindicadas xs migrantes, os povos originários e as dissidências sexuais.

     

    Portanto, um evento tão abrangente em seu conteúdo é permeado por embates partidários e posturas obsoletas que reproduzem as práticas patriarcais que são denunciadas pelas próprias diversidades que participam e compõem os encontros. As grandes divergências que geram os conflitos centrais do Encontro são derivados de uma lógica que a maioria que os conforma quer combater: o conservadorismo, o pensamento colonizador, a opressão do capitalismo e do patriarcado. Em diversos grupos de debate e nos discursos nas praças foi enfatizado categoricamente que o que não se nomeia, não existe. Nomear –ou escolher não nomear– é um ato político.

     

    A cada Encontro fica mais claro que as concepções de “mulher” e “nacional” ficaram no tempo, e não correspondem ao que se dá a cada ano. A comissão organizadora liberou comunicados que deixavam clara a divergência, fincando a bandeira do “Encontro Nacional de Mulheres” como um “nome histórico” referente ao evento. A campanha Somos Plurinacional defende, por sua vez, que a ideia de “nacional” exclui xs migrantes e povos originários e a palavra “mulher” reforça o binarismo patriarcal que não dá conta das diversidades que conformam o encontro. Ainda assim, há um segundo nível de debate, já que os povos originários não seguem a ideia de Estado e, portanto, não se veem unanimemente representados no termo “nação” e, por outro lado, as chamadas dissidências também rechaçam a invisibilização de sua autenticidade ao serem agrupados em um termo tão abrangente e que acaba se esvaziando.

     

     

    Xs silenciadxs tomam a palavra

     

    Muito ainda há que se debater. Nesse aspecto, o Encontro é um espaço extremamente fértil: foram 114 grupos de discussão com temáticas urgentes, essenciais para construir novas maneiras de pensar, de descolonizar os corpos e as mentes, de relacionar-se unxs com xs outrxs a partir de um lugar novo. Em 2019 deu-se o primeiro grupo temático sobre pessoas não-binárias que, como muitos outros, teve que de desdobrar em dois, três ou quatro salas. Nos encontros também é onde se percebe a demanda que existe por certos temas. Na abertura do segundo dia de discussão, x mediadorx abriu a sessão esclarecendo a importância da mudança oficial do nome do Encontro, porque “o que não se nomeia, não existe”, e que ficava determinado uso da linguagem inclusiva em todo o âmbito da discussão. “Se alguém errar, tudo bem, estamos em desconstrução. É só se corrigir e seguir”, pontuou.

     

    A palavra tem peso e um enorme valor nesse contexto de encontro. Todxs estão em desconstrução e em constante reflexão ao mesmo tempo que promovendo mudanças sociais, seja em um âmbito macro ou micro. A palavra é política, o pessoal é político. Os relatos pessoais compartilhados, gatilhos de lágrimas, sorrisos de cumplicidade e abraços de contenção e por identificação se unem aos questionamentos de falta de representatividade institucional, de amparo legal, de políticas públicas, de direitos sobre o próprio corpo e poder de decisão.

     

    No ato político de tomar a palavra e reivindicar existências, há um movimento de descolonização do pensamento também em relação às próprias formas de relacionar-se afetivamente. Os grupos de discussão desta temática se desdobraram em pelo menos seis grupos, em salas lotadas. Predominaram reflexões sobre formatos de relacionamento, sobre o próprio desejo, o autoconhecimento, sem as amarras e etiquetas sociais, vinculados à responsabilidade afetiva.

     

    Através da fala e da escuta, em um grande e coletivo processo de empatia e compartilhamento, se constroem sentidos e se geram novos pontos de vista. Em um depoimento emocionado no grupo de não-bináries, umx jovem profundamente tocadx por ter em volta a tantas outras pessoas com quem se podia identificar, enfatizou: “Só conheço a uma pessoa não-binária, e na minha cidade é muito difícil, são muito conservadores. Criem laços de confiança, se apoiem, conversem com essas pessoas. É muito importante.”

     

     

    Apesar dos desencontros

     

    Superando as censuras e os inúmeros problemas logísticos do evento  em La Plata, entre dias de chuva e frio, a atmosfera de encontro e coletividade encheu as ruas. Nesses dias de encontro, predomina a realidade de uma vida possível, as ruas repletas de cânticos no lugar do medo, com debates construtivos e a potente vontade de construir um mundo igualitário.

     

    No sábado, primeiro dia do 34º Encontro, a abertura dos grupos de discussão foi seguida de uma marcha contra os travesticídios, que já expressava a notável quantidade de participantes reunidxs para esta edição. Diversas atividades culturais fecharam a primeira noite e, no domingo, deu-se continuidade aos grupos de discussão para, depois, fechar as conclusões que seriam lidas no palco do Estádio Ciudad, no dia seguinte. A tarde de domingo foi reflexo do poder da coletividade, em rádios abertas, apresentações artísticas e assembleias nas praças, banhadas pela luz do sol inesperado em um fim de semana inteiro previsto com chuvas torrenciais.

     

    O Encontro foi, e continua sendo, um grande transformador da história do movimento feminista argentino há 34 anos, com poucas iniciativas comparáveis em outros territórios. Dele, nasceu a campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, de grandes proporções e visibilidade internacional – que quase culminou na aprovação da lei no ano passado, em 2018.

     

    O desfecho foi igualmente uma mistura de tensão e comemoração. Os portões abriram uma hora mais tarde, o que provocou um alvoroço de uma multidão correndo para ocupar o espaço de audiência do estádio. Os agrupamentos políticos levavam enormes bandeiras e lutavam por posicionar-se o mais próximo possível do palco. A confusão resultou em pessoas machucadas, algumas caíram com os empurrões, e, outra vez, um clima anti-sororidade contradisse o propósito do Encontro.

     

    Mas o ponto alto do conflito no evento de fechamento foi a tentativa de impedir o inevitável: o grito em uníssono pela mudança oficial do nome do evento. O público cantava em coro, enquanto integrantes da campanha Somos Plurinacional eram impedidas de falar a respeito no microfone do palco, dedicado, naquele momento, à leitura das conclusões de cada grupo de discussão.

     

    Ao passarem com dificuldade por uma barreira de algumas integrantes da comissão organizadora contrárias à mudança do nome, as jornalistas Claudia Vasquez Haro, professora e militante trans, e Zulema Enríquez, quechua  e também docente, anunciaram o caráter inclusivo do evento e a mudança do nome, apoiadas por uma multidão que não deixava de soar o cântico “plurinacional e com as dissidências”. Por aplausômetro, ficou decidido que o encontro era plurinacional e das dissidências, da mesma forma que assim se decidiu a próxima sede do Encontro: na província de San Luis.

     

    “Estamos muito felizes de poder abarcar todos os corpos que habitam esse espaço”, disse Claudia, em entrevista após o anúncio do novo nome. “Isso mostra que temos um feminismo potente, que reúne todas as diversidades, a pluriculturalidade e expressões de forma horizontal. Todas as particularidades que temos, de diferentes mulheres, feminidades e corpos dissidentes, faz o movimento feminista na Argentina ser o mais potente da região latino-americana e caribenha. Estamos felizes que essas questões foram discutidas em todos os grupos de debate, pelas redes sociais, na mídia, e que esse 34º Encontro termina sendo plurinacional.” No palco, Zulema enfatizou: “O feminismo não é mais branco e europeizado, os feminismos são favelados, indígenas, comunitários, trans e travestis, são afro, são do povo.”

     

    A mensagem final deste encontro pode ser lida como um chamado a seguir discutindo, questionando e transformando, até encontrar palavras que correspondam, para dar sentido e linguagem ao movimento das bases e dos pensamentos que, na prática, já está acontecendo. A linguagem é construção e um preciso reflexo da nossa expressão.

     

  • Raio-X: violência contra pessoas trans mata maioria negra e jovem a tiros

    Raio-X: violência contra pessoas trans mata maioria negra e jovem a tiros

    O Brasil, em 2018, manteve a liderança no perverso ranking dos países que mais matam a população trans no mundo. Foram 163 casos de assassinatos no ano passado. Não se tratam de número oficiais – aliás, praticamente não há números oficiais no país quando se fala em população trans. Os dados vêm de um seríssimo trabalho desenvolvido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA). Segundo a Transgender Europe, instituição que monitora dados como esses em diversos países, 41% dos assassinatos de pessoas trans em todo o planeta ocorrem no Brasil.
    O novo Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais foi apresentado nesta semana que marcou, mais precisamente em 29 de janeiro, o Dia Nacional pela Visibilidade Transexual.

    Maioria é com arma de fogo

    Os dados são de arrepiar. E de dar muito medo. A cada 48 horas uma pessoa trans é brutalmente assassinada no país. Em 53% dos casos, o algoz utiliza a arma de fogo para matar sua vítima. O dado é ainda mais aterrorizante se observarmos o contexto: no primeiro mês de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro ampliou radicalmente a possibilidade de possuir armas no país. A ministra dos Direitos Humanos defende que meninos usem azul e meninas, rosa.

    Os tiros assustam, mas há ainda casos de mortes com facas, pedras, paus, linchamentos e mutilação dos corpos mortos. Em janeiro deste ano, em Campinas, um assassino arrancou o coração de uma travesti após matá-la.

    Racismo Trans nas ruas

    O levantamento chama a atenção para o racismo brasileiro. O escandaloso percentual de 82% das pessoas mortas eram pretas ou pardas. Vemos ainda que 65% dos assassinatos foram direcionados àquelas que são profissionais do sexo. 60% deles aconteceu nas ruas.

    Rio é o estado que mais mata. Nordeste é a região

    Em números absolutos, o Rio de Janeiro foi o que mais matou a população trans em 2018, com 16 assassinatos. Bahia (15), São Paulo (14) vem em seguida. O Ceará, estado de Dandara dos Santos, que liderou o ranking em 2017, agora foi o quarto estado que mais matou, 13 pessoas. No ranking proporcional à população de cada estado, os estados do Mato Grosso, Sergipe e Roraima lideram a lista. Não há lugar seguro para a população trans no Brasil – apenas o Acre e o Amapá não tiveram nenhum caso registrado.

    O nordeste segue sendo a região do país mais perigosa para a população trans, foram ao todo 59 casos de assassinatos.

    Os mortos são jovens

    A dramática expectativa de vida da população trans no Brasil é de 35 anos. A alta incidência de assassinatos antes dessa idade puxa a marca para baixo. Em 2018, a média de idade das pessoas trans assassinadas era de 26,4 anos – queda de 1,3 ano em relação a 2017. 60,5% das vítimas tinham entre 17 e 29 anos. A vítima mais jovem tinha apenas 17.

    Semana da Visibilidade

    Nesta semana de memória e reafirmação da identidade, diversos eventos foram realizados pelo Brasil. No Rio de Janeiro, houve um dia de acolhimento e troca de ideias na Biblioteca Parque do Centro na segunda-feira. Falou-se sobre prevenção ao suicídio, empregabilidade, empreendedorismo, processo transexualizador e ainda das pessoas trans na política. Em 2018, pela primeira vez o Brasil elegeu uma deputada transexual. Erica Malunguinho da Silva (PSOL) será deputada estadual em São Paulo. Na terça-feira, a FioCruz também recebeu um evento para debater a questão transexual. À noite, um ato na Cinelândia encerrou as celebrações.

    Transexuais falam

    A luta pela visibilidade transexual ganha força, apesar de tantas ameaças. Uma dessas pessoas que se somam à militância trans é o filho do governador do Rio de Janeiro, Erick Witzel. Ele, que é chef de cozinha, falou como é importante perceber que existe uma comunidade trans que acolhe e abraça.

    – Hoje para mim estar aqui é surreal porque até meses atrás, até o final do ano passado, jamais imaginaria estar num lugar assim, falando como uma pessoa trans. A minha forma de lidar com a minha transição foi me esconder. Quando eu optei por fazer a transição, eu saí de casa, fui morar em outro bairro, fui me esconder. (…) Eu admirava as pessoas que militavam, que estavam lutando pela causa, mas eu dizia “não é para mim”. Até que a mídia fez isso para mim. A mídia disse que eu era o filho trans e mudou totalmente. Agora estou muito feliz de estar aqui!

    Sobreviventes falam

    Amanda Costa também é chef de cozinha. Hoje é celebrada por maravilhosos pratos que prepara e tempera, mas, por muito pouco, essa história não ficou pelo caminho. Em 2004, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Amanda foi abordada e sequestrada. Ao se negar fazer sexo com o homem, foi baleada pelas costas. Ficou dois meses no hospital e sobreviveu.

    – Conviver com esse número alarmante de mortos é triste. A gente reivindica porque a gente que são pessoas em vulnerabilidade. São crimes de ódio. São homicídios de perseguição. Isso nos traz um medo, sobretudo, com esse novo governo. Hoje em dia, as pessoas falam mesmo. Até o ano passado, as pessoas respeitavam mais. Esse governo que temos hoje é composto por pessoas que incentivou outras pessoas a não terem respeito por nós. É por isso que hoje tenho muitas amigas que fugiram para a europa e não querem mais viver no Brasil.

    Exiladas falam

    Rafaela Firmo é uma dessas pessoas que fugiram do Brasil. Antes de partir para a Itália há quase dois anos, ela sofreu três atentados aqui no país. Hoje não pensa mais em voltar.

    – Eu sinto muita falta do meu país. Muitas vezes eu me pego chorando sozinha. Mas, quando eu paro e penso, eu vejo que essa foi a melhor escolha que eu tive para minha própria segurança. Para eu poder viver, eu preciso estar fora do Brasil. Se eu quiser viver, eu preciso estar fora do Brasil. Dentro do Brasil, eu sei que a cada segundo a minha expectativa de estar viva vai se rebaixando cada vez mais e mais.

    LGBTfobia pode ser tipificada como crime

    O mês de fevereiro está tomado de expectativa pela comunidade LGBT. O Supremo Tribunal Federal marcou para o dia 13 de fevereiro uma sessão que pode tipificar a lgbtfobia como crime análogo ao racismo. A demanda é antiga da comunidade LGBT, que hoje se vê com poucas defesas perante o judiciário brasileiro. Wescla Vasconcellos, do Fórum de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro, fala como se resume a luta trans no Brasil.

    – Eu, como uma pessoa trans, sou uma sobrevivente. É um país que muito mata e que pouco oferece de política pública. Ainda mais esse governo que a gente tem com Bolsonaro e Witzel. A gente luta por política pública, dignidade, direitos humanos para nós, pessoas travestis e transexuais.

    O recado final ecoa o grito que se ouviu essa semana na Cinelândia.

    Ih, ih, ih, respeita as travesti!

  • Os Demônios de Daniela Mercury

    Os Demônios de Daniela Mercury

    Nem demorou tanto assim.

    A sanha fundamentalista em busca da demonização daquilo que lhe atinge ou ameaça é sempre assim: bastou viralizar, tem que demonizar.

    No show que fez ontem à noite em Garanhuns-PE, Daniela Mercury fez várias falas em relação aos Direitos Humanos, democracia, homofobia, censura, entre outras coisas… e algumas dessas falas viralizaram em pequenos vídeos soltos nas redes sociais. A principal delas, denunciando a censura à peça “O Evangelho Segundo Jesus: Rainha do Céu”, estrelado pela atriz travesti Renata Carvalho.

    Na página “alagoasweb”, uma matéria chamou a atenção: “vídeo de Daniela Mercury exaltando demônios em show no Festival de Inverno repercute na web”. O vídeo nada mais é do que a cantora baiana mandando o povo “jogar seus demônios pra cima”… mais uma falácia daqueles que demonizam tudo.

    Mas… será mesmo que Daniela não exaltou demônios naquela noite?

    Creio que sim!

    Numa sociedade fundamentalista e retrógrada, Direitos Humanos, democracia, igualdade e posicionamentos contra a homofobia, censura e toda forma de preconceito são verdadeiros demônios. E os “santos” odeiam demônios…

    Gosto dos demônios de Daniela. Quem dera possuíssem o Brasil. Quem dera possuíssem algumas igrejas e lugares de proliferação de ódio, desrespeito e intolerância. Quem dera chegassem e não saíssem nunca.

    Aliás, isso me faz lembrar que Jesus uma vez foi acusado pelos religiosos de sua época de estar a serviço do “príncipe dos demônios”, exatamente por expor a hipocrisia dos que se achavam competentes para dizer quem tinha ou não demônios (Mateus 12).

    Os demônios de Jesus e os demônios de Daniela são os mesmos… os mesmos que incomodaram e continuam incomodando os religiosos de ontem e de hoje. Os demônios da justiça, da igualdade, da fraternidade, da paz… Benditos demônios que fariam toda a diferença em uma sociedade cada vez mais reacionária, retrógrada, machista, racista, misógina, violenta e tantas outras “bênçãos” mais…

    Daniela exaltou esses demônios…

    Jesus estava a serviço desses demônios…

    Benditos sejam esses demônios!

    Benditos sejam!

     

     

     

  • A importância da discussão LGBT na agroecologia

    A importância da discussão LGBT na agroecologia

    Por Patrícia Adriely
    Há pelo menos quatro décadas, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais lutam contra o preconceito e empenham-se pelo seu reconhecimento na sociedade brasileira. A Parada do Orgulho LGBT, realizada anualmente em São Paulo, por exemplo, é uma das maiores celebrações da diversidade do mundo. No campo, essa luta também é importante. Por isso, o movimento agroecológico busca discutir e evidenciar essa pauta.

    “Agroecologia e LGBTfobia não combinam. Por isso que as gays, as bi, as trans e as sapatão estão todas organizadas para construir um projeto agroecológico feminista, colorido e antirracista. Discutir democracia e agroecologia sem discutir a sexualidade e as subjetividades de nossos povos, nós não conseguiremos avançar”, disse Luiz Filho, integrante do GT de Juventudes da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
    O assunto foi uma das pautas na Plenária das Juventudes, promovida durante o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado entre os dias 31 de maio a 3 de junho no Parque Municipal, no centro de Belo Horizonte. Dê Silva, estudante da Universidade Federal de Mato Grosso, saiu do encontro muito satisfeita com as discussões. “Nessa plenária a gente conseguiu ter vários debates importantes na perspectiva de que a agroecologia compreende toda a diversidade. Defender esse projeto da agroecologia é defender as mulheres, os LGBTs, os negros, como seres que compõem todo esse universo”, declarou.

     
    Essa reflexão é importante porque o sujeito LGBT do campo ainda é invisível dentro do movimento agroecológico, conforme afirmou Alexandre Bezerra Pires, que também participou da plenária. “A gente precisa aprender a se desafiar, a dizer que no mundo rural também há gays, lésbicas, trans e bissexuais que estão vivendo lá e que também constroem agroecologia”, disse. Segundo ele, muitos jovens sofrem preconceito até mesmo na própria família, o que faz com eles deixem o campo para ir para a cidade grande, espaço em que há maior aceitação.

    Assim, a partir dessa constatação, o GT de Juventudes assumiu a questão como uma bandeira importante para abrir espaço para que o LGBT do campo afirme sua identidade, assim como outros grupos que se fortalecem dentro da agroecologia.
  • Mamba Negra e o protagonismo político da música eletrônica em São Paulo

    Por Monica Ferreira, Maíra Vargas e Paula Pretel, especial para os Jornalistas Livres.

    Mamba negra, uma das cobras mais venenosas do continente africano, também é o nome do coletivo de música eletrônica mais popular da emergente cena underground paulistana. Capaz de reunir em um único espaço o que há de mais moderno e inclusivo na cidade, já firmou seu nome na noite, dando voz à luta dos marginalizados, e é protagonizado por mulheres, transexuais, negros e identidades diversas que foram historicamente excluídas dos ambientes conservadores e heteronormativos.

    Se representatividade importa, o coletivo é liderado por duas mulheres. Carol Schutzer, dj internacionalmente conhecida como Cashu, e a cantora, atriz e militante Laura Diaz, que também dá voz ao Teto Preto, grupo conhecido pelo single GASOLINA. Precursoras do movimento de ocupação dos espaços públicos como forma de lazer e sociabilidade no centro, a Mamba Negra começou em 2013, “em uma conjuntura de bastante efervescência política, urbana e cultural em São Paulo. Todo esse circuito mais independente e de festas menores começou a se reaquecer, muito além dos clubes”, completa Laura.

     

    DJ Cashu

    Ela também destaca que as ocupações de moradia influenciaram essa movimentação cultural, pois “sempre foram pontos muito importantes do centro de São Paulo, de resistência, e de atividade para crianças e pessoas carentes de programação cultural”, diz. O palco da Mamba Negra quase sempre é a rua, e os eventos fechados costumam ocorrer em prédios degradados ou locais ignorados pelo poder público. A Mamba Negra já esteve presente na ocupação das escolas secundaristas, em 2016, no Cine Marrocos, prédio tombado nos arredores do Teatro Municipal de São Paulo, e na Cracolândia.

    Embalada pela sonoridade techno, o coletivo já atraiu atenção de festas consagradas no exterior, a exemplo da Dekmantel, na Holanda. O que tornou possível até mesmo a participação de Mirik Milan, prefeito da noite de Amsterdam, em evento realizado em São Paulo no último mês, quando foi debatida a dificuldade encontrada pelos coletivos de cultura independente em estabelecer um debate frutífero com a Prefeitura Municipal. Debate este que inclui discussões acerca da regulamentação das festas e formalização por alvarás.

    A Prefeitura precisa democratizar a informação básica para legalização dos eventos de coletivos como a Mamba Negra, que esbarram na burocracia e na necessidade de emissão de muitos laudos técnicos – de órgãos distintos – para a formalização de um único ato. Isso sem falar nos ditos imóveis “inalvaráveis”. Acerca disso, Laura Diaz propõe a criação de uma espécie de aluguel social que permita a utilização de imóveis abandonados, direcionando o valor arrecadado ao abatimento das dívidas fiscais e tributárias dos seus proprietários. De quebra, tornaria possível fugir dos preços exorbitantes das locações firmadas nos últimos três anos.

     

     

     

     

    Cantora, atriz e militante, Laura Diaz

    O processo de desestatização do Governo Dória trouxe ainda mais dificuldades para coletivos como a Mamba Negra, visto que ampliou a atuação das parcerias público privadas e ainda criou a ANEP – Associação da Noite e Entretenimento Paulistano, que representa o alto empresariado de casas noturnas, dificultando ainda mais o diálogo entre a cultura independente e a Prefeitura.

    Os atentados à existência e à legitimidade do movimento provocaram uma onda de resistência da contracultura, uma vez que o público vê ameaçado esse ambiente de acolhimento e liberdade. Dani Ishikawa, 38, diz que frequenta as festas desde que elas começaram a ocorrer fora do circuito de clubes. “Acho que isso representa mais o underground. Me sinto melhor, sim, como mulher”, fala a respeito, ressaltando que todas as festas possuem recomendações e regras contra machismo, abuso e homofobia. Guilhermina Biazzon, 24, que se identifica como travesti, acredita que a Mamba é indispensável à continuidade do protagonismo de minorias. “É nessa cena que me sinto livre para ser quem eu sou”, garante Gui.

    Pela porta que eu escancarei passarão todas as minhas irmãs

    Euvira começou a carreira fazendo Artes Visuais na UFBA, com o coletivo artístico Baphão Queer. Depois de viajar pelo Brasil e América do Sul, retornou a Salvador, onde a cultura drag é muito influente. A personagem foi criada completamente avessa aos padrões comuns daquela localidade, que até o momento exacerbavam o feminino e limitavam-se a reconhecer como drag apenas quem se montasse dentro do estereótipo de beleza imposto à mulher. Foi no Âncora do Marujo, bar soteropolitano, que encontrou espaço para mostrar sua personagem de novo conceito ao público. Após um ano performando, Euvira decidiu vir a São Paulo.

    Não demorou muito para captar a atenção das curadorias artísticas das festas do circuito de música eletrônica. Começou a atuar como performer nas festas ODD, Mamba Negra e Capslock. Num processo de tornar crítica a sua atuação e de enriquecer a diversidade nos meios em que estava, Euvira notou que a cena tinha muito a caminhar quando o assunto era representatividade.  “Só o fato de eu ser negro, bicha, pobre, nordestino, da periferia e ocupar um lugar de destaque em uma festa onde majoritariamente as pessoas são brancas, de classe média, sulistas, héteras, já é um grande diálogo, já tô falando muita coisa. Porque não era pro meu corpo estar ali, era pra eu estar ou num presídio, ou num caixão, ou limpando vidro de carro, ou vendendo bala. Enfim, este foi o lugar escolhido pra mim e este é o lugar que habitam a maior parte das pessoas que eu vivi próximo… vizinhos, amigos, primos…“.

    Sob a percepção de que o negro ocupava somente demandas braçais e que não habitava um lugar de protagonismo na cena, nasceu a Coletividade Namíbia.

    Formada por artistas visuais, djs, produtores e performers, a Coletividade tem como símbolo um raio, sinônimo de propagação, e procura inserir esses profissionais nas cenas que antes não manifestavam preocupação em, de acordo com Euvira, “desembranquecer” o seu pessoal. Com isso, uma gama de artistas que não viam seus trabalhos contemplados puderam desfrutar de visibilidade no underground.

    Sobre o assunto, Euvira ainda destaca que “A música eletrônica é tão negra quanto atabaque”, e traz à tona o fato da house e do techno terem por base artistas negros, como os pioneiros Frankie Knuckles, Juan Atkins e Kevin Saunderson. Após a difusão desses estilos musicais pela mídia e a popularização das festas eletrônicas em clubes, a periferia se distanciou dessa cultura. Agora, quem não desfrutou desse protagonismo reescreve sua própria história. “Pela porta que eu escancarei passarão todas as minhas irmãs”, finaliza.

    Euvira é a idealizadora da Coletividade Namíbia

    Já, Ana Giselle começou sua carreira discotecando em Recife no ano de 2014. A convite de Euvira veio para São Paulo, lugar onde encontrou uma forma remunerada de expressar-se artisticamente, como dj e performer.  Para Gisa, que se identifica como travesti e “transalien”, quando está performando no palco leva consigo a luta diária de todas as travestis, pretas e periféricas que almejam serem reconhecidas civil e profissionalmente. Estar em lugar de destaque nestas festas e exercer uma função artística é mostrar a toda uma comunidade que é possível galgar um caminho diferente daquele que a sociedade historicamente induz. “Na minha época eu não tinha nenhum exemplo e foi bem mais difícil aceitar quem eu sou, porque o medo de sofrer o tanto que uma travesti sofria, e ainda sofre, sempre vinha em primeiro lugar. Mas viver uma vida numa pele que não é a sua é, na realidade, a maior violência que podemos cometer conosco. Enfrentar o mundo sendo quem se é de verdade é incrivelmente mais poderoso”, acrescenta.

    Ana Giselle é performer

    A “lista trans”, que concede acesso gratuito aos transexuais em festas, surgiu nesta efervescência de protagonismos, fruto de um diálogo aberto sobre inclusão. Da mesma forma que Euvira se incomodava com negros exercendo papéis condicionados, as pessoas trans cansaram de ser vítimas da transfobia estrutural, responsável por marginalizar a comunidade no mercado de trabalho. Segundo Gisa, a lista trans não é mais que um processo de regularização do acesso ao lazer e cultura. E mais, a oportunidade de trabalhar em festas garante às pessoas trans a sua própria subsistência.

    Este momento de representatividade trans na noite tem trazido muitos artistas pra contribuir com a cena. Porém, segundo Ana Gisa, é preciso disseminar este exemplo e exigir que mais espaços sejam abertos, não apenas de maneira paliativa. “Representatividade trans é muito sobre o processo de humanização dessa população na sociedade. É sobre ver uma pessoa trans ou travesti, enquanto um ser humano que pode transitar em todo e qualquer espaço como qualquer outro. Fora da margem, fora das ruas, fora da prostituição, lugares estes para onde sempre fomos empurradas, onde acostumaram a nos ver e acreditaram que estávamos por opção. Quando eu estou performando, às vezes passa pela minha cabeça quantas Ana Giselles não poderiam estar lá brilhando tanto quanto eu, mas não tiveram a chance porque a sociedade as tirou todas as expectativas de uma vida melhor e as mataram antes, mataram seus sonhos”, completa Ana Gisa.

    Tantos feitos devem ser comemorados, mas a Mamba Negra constata que a sobrevivência da cena está diretamente ligada ao reconhecimento da música eletrônica como cultura. Além disto, a não abrir mão dos espaços que já conquistou, mas expandí-los.

    Frente às dificuldades criadas pela especulação imobiliária e a ausência de interesse do Estado em dialogar com o movimento, o futuro da festa pode parecer incerto. Diferente disso, acabou despertando um sentimento de urgência e resistência. Verbalizando a postura que a Mamba Negra tomará ante esse painel, Laura Diaz é incisiva em sua última mensagem para os Jornalistas Livres: “Bate mais!”.

    Fotografias: Núbia Fernandes Moraes / @nubiafernandesmoraes