Coronavirus Brasil é um programa de visualização de dados que, tem como objetivo visualizar a difusão da contaminação pelo Covid-19 no Brasil. Um geolocalizador dos dados com fase histórica que nos são apresentados em forma de tabela e, que por estar nesse suporte, não cria imagens na nossa mente e deixa essa questão extremamente abstrata e conceitual.
A função dessas visualizações é responder à perguntas encontradas em uma base de dados gigantesca, especificando qual o tamanho de negócio, e onde ele se encontra, pra onde vai e até quando dura? Acompanho o desenvolvimento dessa crise de forma prática. No início o software levava menos de 30 segundos para ativar, agora leva uns 5 minutos para dar conta dos dados, e até o fim da pandemia vai aumentar.
Importante deixar registrado que o resultado de hoje é uma viagem no tempo, as pessoas com sintomas hoje foram contaminadas pelo menos 14 dias atrás. O abril conturbado só piorou muito o que já era ruim. As curvas que eram interrompidas, mesmo que as amostragens diárias tenham um padrão de ruídos, mas apresentar um padrão randômico mostravam graves problemas na amostragem e diagnóstico. Problemas esses que se acumularam e atingiram a dramaticidade agora por total incompetência, se quisermos ser lenientes com esse desgoverno, ou projeto político dos nossos necrogovernantes.
A leitura da fase histórica traz certos padrões no crescimento dos números: 1. por questões culturais, os número caem todo final de semana, voltam a subir nas terças, e atingem novos patamares nas quintas-feiras. 2. toda quinta-feira, nosso presidente cria um novo factóide. todas suas falas infelizes se deram nas quintas-feiras para desviar a atenção desse novo patamar. Foi gripezinha, cloroquina, falas contra a quarentena, crise com Mandetta, não sou coveiro, etc. 3. 14 dias depois de cada fala há uma explosão de números, com novos patamares para novos casos e mortes.
A tendência é atingirmos o patamar de tragédia com a aceleração da curva e os custos econômicos de não fechar a economia, para diminuir o tempo de duração da pandemia no nosso território. Há que prestar atenção que há uma semana o responsável pelos números da pandemia no MS foi trocado(3) e desde então o número de mortes por covil caíram milagrosamente, mas as mortes por SRAGs mais que decuplicaram comparadas a outros anos(4) segundo dados da Fiocruz. Esses dados também vem milagrosamente reduzindo há uma semana.
Se tivéssemos feito o lockdown em março estaríamos saindo dessa enrascada por volta de 10/5, o provável agora é que saiamos dessa pandemia do coronavirus só em julho.
RoadMap
A primeira incursão nessa pesquisa do Coronavirus Brasil foi uma tentativa de criar um próprio mapa que tivesse a visualização global, como muitos outros que estão rodando a rede, para ilustrar a chamada para a nova edição da Na Borda, uma revista eletrônica de arte com o tema pandemia/virus. Essa visualização me trouxe a necessidade de criar uma versão local, em que tivéssemos tanto o país, quanto os estados brasileiros.
A primeira questão na visualização de dados é encontrar os dados. Esse tipo de visualização precisa de uma fase histórica, isso é, uma planilha com dados diários acumulativos separados por Estados. Encontrei esses dados no GitHub(1) do Wesley Cota, doutorando em física pela UFV que se encontra na Espanha. wcota programou um bot que faz varreduras nos boletins das Secretarias estaduais e municipais, bem antes do Ministério da Saúde centralizar os boletins. A normativa do Secretaria de Saúde para a notificação e centralização dos dados aconteceu só em 31/3(2). O tempo tem mostrado ser mais acertada a busca pelos dados das Secretarias do que do Ministério.
A primeira versão do Coronavirus Brasil surgiu no final de março, 26/3, que teve por objetivo criar a segurança dos dados. Isso é fazer a leitura da tabela de estados, criar a fase histórica de cada estado e plotar um gráfico com as curvas lineares com o total de contaminações e óbitos.
Aquisição, análise sintática e distribuição dos dados
Finalizada a fase de aquisição, análise sintática e distribuição dos dados com segurança, passamos para a segunda fase que é a fase de perguntas e respostas a esse dump de dados. As primeiras necessidades eram, visualizar o lugar no mapa, apresentar as totalizações do dia (total de casos, novos casos e mortes), junto a uma plotagem das duas curvas (tC e nC).
Fase de perguntas e respostas a esse dump de dados
O próximo passo era iniciar a visualização por cidades. A primeira visualização foi a plotagem das cidades no mapa nacional e a visualização dos dados de cada município. Menos abstrato mas ainda sem diferenciação.
Visualização por cidades
A segunda fase dessa visualização por municípios foi a criação de um mapa coreoplético, o que me obrigou a terminar um projeto abandonado de criar um mapa SVG com todos os municípios do brasil em vetor com seu código IBGE. Uma semana depois foi encerrada essa fase, com a visualização coreoplética nacional, estadual e das regiões metropolitanas.
Mapa coreoplético
Estamos na V7.a. do aplicativo. Falta arrumar a visualização dos mapas das cidades, para carregar mapas customizados de acordo com a programação visual do aplicativo e transportar tudo para a web.
Histórico de Abril
Antes de passarmos as leituras dos dados em si, temos no link abaixo uma visualização da fase histórica do Coronavirus Brasil no mês de Abril no Brasil e em todos os estados.
Vemos em cada localidade/dia: Novos Casos (nC) em vermelho, Total de Casos(tC) em verde, Total de Mortes(tD) em cyan, Novas Mortes(d) em azul, População Estimada e Casos/100k habitantes em roxo, Mortalidade/Infectados e Mortalidade/População em cyan. Três curvas históricas. Dois gráficos “pizza” com tC e tD por estados, lista dos 25 municípios mais atingidos.
Mapa coreoplético da infecção.
No alto, à esquerda, temos alguns números de controle. O que interessa é o quinto número, que indica a quantidade de municípios atingidos no momento da leitura de dados. Cada dado aparece com um time stamp, que mostra o horário da leitura dos dados.
Leitura de Dados e Interpretações
Números importantes foram retirados da tabela de dados: casos/100k habitantes que revelam o grau de contaminação de determinada população, mortes/infectados que indicam o grau de letalidade da infecção em cada localidade, e a letalidade em relação a população total da localidade.
A taxa de mortes/infectados locais é um indicador que pode nos dar uma idéia da subnotificação dos dados do coronavirus. A taxa global de mortalidade do vírus é 2% dos contaminados. As taxas de mortalidades brasileiras estão em média 7%, o que indica que temos 3.5 vezes mais gente contaminada há 14 dias do que os números apresentados na foto do dia. Se consideramos que em 14 dias todos os índices brutos cresceram 150% por quinzena desde o início da pandemia do coronavirus, podemos supor que hoje temos 12 vezes mais gente contaminada do que o dado do dia.
Comprovação de provável subnotificação
Rotas de Contaminação
A pandemia entrou no Brasil pelos aeroportos, mas ela se difunde pelas rodovias, essa é a tese do Professor Edmur Pugliesi da UNESP de Presidente Prudente e vem se apresentando correta. Por terra temos como eixo condutores a diagonal no estado de São Paulo Anhanguera, Marechal Rondon, Washington Luis, Imigrantes, Dutra, no Brasil BR-386, BR-101 Curitiba-Porto Alegre e Salvador-Natal, BR-116 entre Feira de Santana e Fortaleza, BR-364 Cuiabá-Porto Velho.
Pandemia difundida pelas rodovias
Estados mais isolados economicamente apresentam menores taxas de contaminação. Os estados da monocultura agrícola para exportação, MT, MS, GO, TO apresentam as baixas taxas de contaminação e difusão do virus. Isso pode mudar na época de escoamento da safra, quando caminhoneiros do país inteiro se dirigirem para lá.
No caso amazônico a contaminação se espalha pelas hidrovias. Na comparação entre as plotagens, vemos surgir o contorno dos Rios Amazonas, Madeira, Tocantins e Araguaia. Para adicionar insulto a injúria, a contaminação da amazônia seguida pelo colapso da saúde pública na região, vai dar mais uma ajuda ao nosso necrogoverno na sua política de extermínio indígena e destruição da amazônia.
Amazônia. Difusão hidroviária
Temos que as rotas comercias são as rotas de expansão do vírus. Não querer parar a economia na hora certa e minimizar o impacto foi um erro fatal. Estávamos diante de um problema de teoria dos jogos e coletivamente escolhemos a pior opção, a opção suicida. A opção em que aquela em que muitos poucos ganham muito e todos perdem muito. Somemos a isso a proposta genocida do nosso governo e temos a tempestade perfeita, depois da pandemia do coronavirus virão as dívidas. Dívidas e mais concentração de renda, mas isso eu deixo para os que entendem de economia.
Próximos Passos
Precisamos e muito que as prefeituras publiquem os microdados sobre o coronavirus seguindo protocolos mundiais. Vou falar do caso de São Paulo, que é onde estou. A Prefeitura jamais publicou os dados distribuídos por distritos, bem como a demografia dos atingidos (idade, gênero, raça), tanto por óbitos como por contaminação. O acesso a esses dados só será feito por requisição via Lei de Acesso a Informação.
Verificamos uma anomalia em Minas Gerais. Pelo seu tamanho e relação com a economia, Minas Gerais se apresenta como anomalia nesse fenômeno. Com mais de 70 mil testes na fila, o segundo Estado mais populoso do país tem números muito baixos. Minas Gerais ou tem uma população muito saudável, ou não está tão inserido assim nas rotas econômicas nacionais. É algo a ser investigado.
Notas:
Padrão noise e padrão randômico:
Padrão noise é um padrão em que existem flutuações em torno e um patamar, isto é, se temos um patamar de 200, os números variam de 180 a 220, o que é uma dispersão normal.
Padrão noise
Padrão randômico é um padrão em que os números não fazem sentido, se temos um patamar de 200, um dia está em 400, outro 20, no seguinte 32, depois 312, assim por diante.
A pandemia traz consigo uma mutação não apenas biológica, mas societal.
Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da aids e resistido até a invenção da triterapia [coquetel], ele estaria hoje com 93 anos: teria aceitado de bom grado ter se trancado em seu apartamento na rua Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer pelas complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar sobre a gestão política da epidemia que, em meio ao pânico e à desinformação, se torna tão útil como uma boa máscara cognitiva.
A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos órgãos). Mas o corpo não é para Foucault um organismo biológico dado no qual o poder age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-lo em funcionamento, definir seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades de discurso através das quais esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault poderia ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gerencia a vida e a morte das populações.
Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou “Vigiar e Punir” e o primeiro volume da “História da Sexualidade”, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social na modernidade. Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como o passo de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gerencia e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas se estendiam como uma rede de poder que transbordava a esfera legal ou a esfera punitiva, tornando-se uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendia por todo o território até penetrar no corpo individual.
Durante e após a crise da Aids, vários autores expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas relações com as políticas imunológicas. O filósofo italiano Roberto Espósito analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham a mesma raiz, munus, em latim o munus era o tributo que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum(con)munus (dever, lei, obrigação, mas também oferece): um grupo humano religado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um presente e por uma oferta. O substantivo immunitas é uma palavra proprietária derivada da negação do munus. Na lei romana, a immunitas era uma dispensação ou um privilégio que exonera alguém dos deveres corporativos comuns a todos. Aquele que foi exonerado estava imune. Enquanto quem estava com fome era aquele que tinha todos os privilégios da vida comunitária removidos.
Roberto Espósito nos ensina que toda biopolítica é imunológica: supõe uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre os órgãos isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade considera potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição de imunização da comunidade, segundo a qual a comunidade se dará a autoridade para sacrificar outras vidas, em benefício da idéia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização desse paradoxo insuportável.
O vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas reproduz e estende a toda a população as formas dominantes de manejo biopolítico e necropolítico que já estavam trabalhando no território nacional.
A partir do século 19, com a descoberta da primeira vacina contra varíola e os experimentos de Pasteur e Koch, a noção de imunidade migrou do campo do direito e adquiriu significado médico. As democracias liberais e patriarcais-coloniais européias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente econômico econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune radicalmente separado que não deve nada à comunidade. Para Espósito, a maneira pela qual a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (os judeus, mas também os ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos do manejo imunológico. Essa compreensão imunológica da sociedade não acabou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando políticas neoliberais para administrar suas minorias racializadas e populações migrantes. É esse entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.
Em 1994, no livro “Flexible Bodies”, a antropóloga Emily Martin, da Universidade de Princeton, analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises de poliomielite e AIDS. Martin chegou a algumas conclusões relevantes para analisar a crise atual. A autora afirma que a imunidade corporal não é apenas um mero fato biológico, independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que alternadamente produzem soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.
Se repensarmos a história de algumas das epidemias globais dos últimos cinco séculos sob o prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese capaz de assumir a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi quais serão as formas de suas epidemias e como você as enfrentará.
Covid 19. Proteção e isolamento.
As diferentes epidemias materializam na esfera do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações em um determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional até o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia permite estender a toda a população as medidas de “imunização” política que foram aplicadas até agora de maneira violenta contra aqueles que eram considerados “estrangeiros” tanto dentro como nos limites do território nacional.
A gestão política das epidemias encena a utopia da comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, exteriorizando seus sonhos de onipotência (e os fracassos retumbantes) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin não tem nada a ver com uma teoria do complô. Não é a ideia ridícula de que o vírus seja uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para estender ainda mais políticas autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua à nossa imagem e semelhança, nada mais é do que replicar, materializar, intensificar e estender à toda a população, as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam trabalhando no território nacional e em seus limites. Portanto, cada sociedade pode ser definida pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza frente a ela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu a cidade de Nápoles pela primeira vez em 1494. O empreendimento colonial europeu havia acabado de começar. A sífilis era como a arma de partida para a destruição colonial e as políticas raciais que viriam com eles. Os ingleses chamavam de “a doença francesa”, os franceses diziam que era “o mal napolitano” e os napolitanos que vinham da América: diziam ter sido trazido pelos colonizadores que haviam sido infectados pelos indígenas…
O vírus, como Derrida nos ensinou, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estrangeiro. Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominavam a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classe e “raça”, bem como as múltiplas restrições que pesavam nas relações sexuais e extraconjugais. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é quais serão as vidas que estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas.
A utopia da comunidade e o modelo de imunidade da sífilis é o do corpo branco burguês sexualmente confinado na vida conjugal como núcleo da reprodução do corpo nacional. Portanto, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: uma mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, um corpo fora das normas domésticas e matrimoniais que fez da sexualidade sua forma de produção, a trabalhadora sexual foi visibilizada, controlada e estigmatizada como o principal vetor da disseminação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne imaginou) que curou a sífilis. Muito pelo contrário. O isolamento das prostitutas apenas as tornou mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos e especialmente da penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual.
Meio século depois, a AIDS era para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis havia sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade não era mais considerada uma doença psiquiátrica, depois de décadas de perseguição e discriminação social. A primeira fase da epidemia afetou, prioritariamente, o chamado 4 H: homossexuais, prostitutas (hookers) — profissionais do sexo, hemofílicos e heroinomâmos (heroin users).
A AIDS remasterizou e atualizou a rede de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tecera e que a penicilina e a descolonização, movimentos feministas e gays haviam desarticulado e transformado nas décadas de 1960 e 1970. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão à homossexualidade causou apenas mais mortes. O que está transformando progressivamente a AIDS em uma doença crônica tem sido a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, o direito de dizer não às práticas sem preservativo e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização e a triterapia. O modelo de comunidade/imunidade da Aids tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina, entendida como um direito de penetração inegociável, enquanto qualquer corpo sexualmente penetrado (homossexual, feminino, todas as formas de analidade) é percebido como desprovido de soberania.
Voltemos agora à nossa situação atual. Muito antes do surgimento do Covid-19, já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Antes do vírus, já estávamos passando por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que desenvolveram sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa e a expansão do capitalismo colonial, passou-se de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma forma de produção feudal para uma forma de produção industrial-escrava e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necro-biopolítico da população.
Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para uma cibersociedade, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico, para formas de controle microprotético e mídia-cibernético. Em outros textos, chamei de farmacopornográfico o tipo de gerenciamento e produção do corpo e a subjetividade sexual dentro dessa nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporâneos não são mais regulados apenas pela passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.), mas, e acima de tudo, por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais e de transmissão. e informação.
A vida no cyberespaço. Foto: Engin Akyurt para Unsplash
No campo da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, bem como a produção de triterapias, terapias preventivas para a AIDS ou viagra são alguns dos índices de gestão da biotecnologia. A extensão planetária da Internet, o uso generalizado de tecnologias de computação móvel, o uso de inteligência artificial e algoritmos na análise de big data, o intercâmbio de informações em alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos globais de vigilância computacional por meio de satélites são índices dessa nova gestão semiotécnica digital. Se eu os chamei de pornográficos, é porque, em primeiro lugar, essas técnicas de biovigilância entram no corpo, penetram na pele, nos penetram; e segundo, porque os dispositivos de biocontrole não funcionam mais pela repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas pelo estímulo ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis somos, melhor somos controlados.
A mutação que está ocorrendo também pode ser a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política em que uma parte muito pequena da comunidade do planeta humano se autoriza a praticar práticas de predação universal a uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energia fóssil a uma sociedade de energia renovável. Também está em questão a transição de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto, no qual a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem sua posição social a partir do momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal a formas não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto dessa mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é o planeta inteiro) e da imunidade onde o vírus opera e se torna uma estratégia política.
Imunidade e política nas fronteiras
O que caracterizou as políticas governamentais dos últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das Torres Gêmeas, em face das ideias aparentes de liberdade de movimento que dominavam o neoliberalismo da era Thatcher, foi a redefinição de estados-nação em termos neocoloniais e de identidade e um retorno à ideia de uma fronteira física como condição para a restauração da identidade nacional e da soberania política. Israel, Estados Unidos, Rússia, Turquia e Comunidade Econômica Europeia lideraram o projeto de novas fronteiras que, pela primeira vez em décadas, foram não apenas vigiadas ou protegidas, mas foram reinscritas novamente por meio da decisão de erguer muros e construir diques, e defendido com medidas não biopolíticas, mas necropolíticas, com técnicas de morte.
Como sociedade europeia, decidimos nos construir coletivamente como uma comunidade totalmente imune, fechada ao Oriente e ao Sul, enquanto o Oriente e o Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de consumo, são o nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção ao ar livre da história nas ilhas que fazem fronteira com a Turquia e o Mediterrâneo, e imaginamos que assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou paradoxalmente com essa construção de uma comunidade europeia imune, aberta dentro dela e totalmente fechada para estrangeiros e migrantes.
O que está sendo testado em escala planetária por meio do gerenciamento de vírus é uma nova maneira de entender a soberania em um contexto em que a identidade sexual e racial (eixos da segmentação política do mundo colonial patriarcal até agora) está sendo desarticulado. O Covid-19 deslocou as políticas de fronteira que estavam ocorrendo no território nacional ou no super-território europeu para o nível de cada órgão. O corpo, seu corpo individual, como espaço de vida e estrutura de poder, como centro de produção e consumo de energia, tornou-se o novo território no qual as políticas de fronteira agressivas que projetamos e testamos há anos são expressas agora sob a forma de uma barreira na guerra contra o vírus.
ManifestantesRepressão policial
A nova fronteira necropolítica mudou das costas da Grécia para a porta da casa particular. Lesbos começa agora na sua porta da frente. E a borda não para de fechar, ela empurra até ficar cada vez mais perto do seu corpo. Calais explode na sua cara agora. A nova fronteira é a máscara. O ar que você respira deve ser apenas seu. A nova fronteira é a sua epiderme. O novo Lampedusa é a sua pele.
As políticas da fronteira e as rigorosas medidas de confinamento e imobilização que nós, como comunidade, aplicamos nos últimos anos a migrantes e refugiados — até deixá-los fora de qualquer comunidade — agora são reproduzidos nos corpos individuais. Durante anos, nós os tivemos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que moramos no limbo do centro de retenção de nossas próprias casas.
Biopolítica na era ‘farmacopornográfica’
As epidemias, devido ao seu apelo a um estado de emergência e à imposição inflexível de medidas extremas, também são grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas corporais e das tecnologias de energia. Foucault analisou a mudança do gerenciamento da hanseníase para o controle da praga como o processo pelo qual as técnicas disciplinares de especializar o poder da modernidade foram implantadas. Se a hanseníase foi confrontada por medidas estritamente necropolíticas que excluíram o leproso e o condenaram à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de peste inventou o gerenciamento disciplinar e suas formas de inclusão exclusivo: segmentação rigorosa da cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.
Nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.
As diferentes estratégias adotadas por diferentes países diante da extensão do Covid-19 mostram dois tipos totalmente diferentes de tecnologias biopolíticas. O primeiro, operando principalmente na Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas usadas contra a praga. Este é o confinamento doméstico de toda a população. Vale a pena reler o capítulo sobre Gestão de Peste na Europa de “Vigiar e Punir” para perceber que as políticas de gestão da Covid-19 da França não mudaram muito desde então. Aqui, funcionam a lógica da fronteira arquitetônica e o tratamento de casos de infecção em ambientes hospitalares clássicos. Essa técnica ainda não mostrou evidências de eficácia total.
Centro de São Paulo às moscas. Foto: Sato do BrasilRuas de São Paulo completamente vazias. Foto: Sato do Brasil
A segunda estratégia, lançada pela Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve a mudança de controle arquitetônico moderno e técnicas disciplinares para técnicas de bio-vigilância farmacopornográfica: aqui a ênfase está na detecção individual do vírus através da multiplicação de testes e vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes através de seus dispositivos móveis de computação. Telefones celulares e cartões de crédito se tornam instrumentos de monitoramento que permitem rastrear os movimentos do corpo individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o celular se tornou o melhor bracelete, ninguém está separado dele ou para dormir. Um aplicativo de GPS informa a polícia dos movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorados por meio de tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olho digital de um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma comunidade de usuários cibernéticos e a soberania é acima de tudo transparência digital e gerenciamento de big data.
Mas essas políticas de imunização política não são novas e não foram implantadas antes para a busca e captura dos chamados terroristas: desde o início da década de 2010, por exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos telefônicos telefones em aplicações de encontros sexuais com o objetivo de “impedir” a disseminação da AIDS e prostituição na Internet. O Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas estaduais de biovigilância e controle digital, normalizando-as e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que implementam medidas extremas de vigilância digital ainda não consideram a proibição do tráfico e consumo de animais selvagens ou a produção industrial de aves e mamíferos ou a redução das emissões de CO2. O que aumentou não é a imunidade do corpo social, mas a tolerância cidadã frente o controle cibernético estatal e corporativo.
A gestão política do Covid-19 como forma de gerenciar a vida e a morte desenha os contornos de uma nova subjetividade. O que será inventado após a crise é uma nova utopia da comunidade imunológica e uma nova forma de controle do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal que o Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Ele não troca bens físicos ou toca moedas, ele paga com cartão de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Ele não fala ao vivo, ele deixa uma mensagem de voz. Não se reúne ou coletiviza. Ele é radicalmente individual. Não tem rosto, tem uma máscara. Seu corpo orgânico está oculto para existir após uma série indefinida de mediações semi-técnicas, uma série de próteses cibernéticas que servem como máscara: a máscara do endereço de email, a máscara da conta do Facebook, a máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon pode enviar seus pedidos.
Linha de Frente no combate ao Covid 19. Foto: Tedward Quinn para Unsplash
A prisão branda: bem-vindo à telerepública da sua casa
Uma das mudanças centrais nas técnicas farmacopornográficas biopolíticas que caracterizam a crise do Covid-19 é que o lar pessoal — e não as instituições tradicionais de confinamento e padronização (hospital, fábrica, prisão, escola) — agora aparece como o novo centro de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata apenas de a casa ser o local de confinamento do corpo, como foi o caso da administração de pragas. A casa pessoal tornou-se agora o centro da economia de teleconsumo e teleprodução. O espaço doméstico agora existe como um ponto em um espaço controlado por ciber, um local identificável em um mapa do google, uma caixa reconhecível por um drone.
Se eu me interessei pela Mansão Playboy em determinada época, era porque ela funcionava na Guerra Fria como um laboratório onde os novos dispositivos para o controle farmacopornográfico do corpo e da sexualidade estavam sendo inventados. Eles foram estendidos a partir do século 21 e agora estão se expandindo para toda a população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz minha pesquisa sobre a Playboy, fiquei impressionado com o fato de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestido apenas de pijama, roupão e chinelos, bebendo coca-cola e comendo Butterfingers e que ele pode comandar e produzir a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa ou mesmo da cama. Complementada com uma câmera de vídeo, uma linha telefônica direta, rádio e música ambiente, a cama Hefner era uma verdadeira plataforma de produção multimídia para a vida de seus habitantes.
Seu biógrafo Steven Watts chamou Hefner de “um recluso voluntário em seu próprio paraíso”. Adaptado a todos os tipos de dispositivos de arquivamento audiovisual e muito antes da existência do telefone celular, Facebook ou WhatsApp, o fundador da Playboy enviou mais de vinte fitas de áudio e vídeo com mensagens e mensagens, desde entrevistas ao vivo até diretrizes de publicação.
Além disso, Hefner instalou um circuito fechado de câmeras na mansão, onde uma dúzia de playmates também moravam, e podia acessar todas as salas em tempo real a partir de seu centro de controle. Coberto com painéis de madeira e cortinas grossas, mas penetrado por milhares de cabos e cheio daquilo que na época era considerado as mais avançadas tecnologias de telecomunicações (e que hoje parece tão arcaico quanto um tantã), era, ao mesmo tempo, totalmente opaco e totalmente transparente. Os materiais filmados pelas câmeras de vigilância também foram parar nas páginas da revista.
A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy liderou envolveu, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que havia fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre a fábrica e o lar e, com ela, a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy aceitou essa diferença ao propor a criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente conectado às novas tecnologias de comunicação das quais o novo produtor semiótico não precisa sair para trabalhar ou fazer sexo — atividades que, além disso, haviam se tornado indistinguíveis. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um escritório de direção, uma cena fotográfica e um local de encontro sexual, além de uma televisão de onde foi filmado o famoso programa Playboy After Dark.
A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção imaterial que o gerenciamento de crises do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou esse novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy lançou foi a erosão (para não dizer a destruição) da distância entre trabalho e lazer, entre produção e sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida pela mídia da revista e da televisão, era completamente pública, mesmo que o playboy não saísse de casa ou mesmo da cama. Nesse sentido, a Playboy também questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina, tornando o novo operador de multimídia o que parecia um oxímoro na época, um homem doméstico.
O biógrafo de Hefner nos lembra que esse isolamento produtivo precisava de apoio químico: Hefner era um consumidor pesado de Dexedrine, uma anfetamina que eliminava a fadiga e o sono. Tão paradoxalmente, o homem que nunca saiu da cama nunca dormiu. A cama como um novo centro de operações multimídia era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com a pílula contraceptiva, medicamentos que mantinham o nível produtivo em alta e um fluxo constante de códigos semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que nutria o playboy.
Tudo isso lhe parece familiar agora? Isso tudo parece muito estranho para suas próprias vidas confinadas? Lembremos agora os slogans do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saímos de casa nem do teletrabalho. As medidas biopolíticas de gerenciamento de contágio impostas contra o coronavírus fizeram com que cada um de nós se transformasse em um trabalhador horizontal mais ou menos playboynesco. Hoje, o espaço doméstico de qualquer um de nós é dez mil vezes mais técnico do que a cama giratória de Hefner em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e controle remoto estão agora na palma da nossa mão.
Em “Vigiar e Punir”, Michel Foucault analisou as células religiosas do confinamento individual como vetores autênticos que serviram para modelar a passagem das técnicas sangrentas e soberanas de controle do corpo e da subjetividade anteriores ao século XVIII para arquiteturas disciplinares e dispositivos de confinamento como novas técnicas de gestão para toda a população. As arquiteturas disciplinares eram versões secularizadas de células monásticas nas quais o indivíduo moderno nasce pela primeira vez como uma alma trancada em um corpo, um espírito de leitura capaz de ler os slogans do Estado. Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, ele disse que morava em uma prisão tão mole quanto o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão da Playboy e a cama giratória de Hefner, convertidas em objetos de consumo pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de transição nos quais se inventa o novo sujeito protético, ultraconectado, bem como as novas formas de consumo e controle da farmacopornografia e biovigilância que domina a sociedade contemporânea. Essa mutação foi ampliada e ampliada ainda mais durante o gerenciamento de crises do Covid-19: nossas máquinas de telecomunicações portáteis são nossos novos carcereiros e nosso interior de casa tornou-se a prisão branda e ultraconectada do futuro.
Dentro de casa. Cuidado com o vão. Arte: Ocupeacidade. Foto: Sato do Brasil
Mutação ou submissão
Mas tudo isso pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células da biovigilância é que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e resistência e lançar novos processos antagônicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo entendimento da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento do corpo planetário, um parlamento não definido em termos de identidade ou política de nacionalidade, um parlamento dos corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O evento Covid-19 e suas consequências nos chamam a nos libertar de uma vez por todas da violênciacom a qual definimos nossa imunidade social.
A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem emergir de um processo de transformação política. Curarmos a nós mesmos como sociedade significaria inventar uma nova comunidade além das políticas de identidade e fronteira com as quais até agora produzimos soberania, mas também além da redução da vida à sua biovigilância cibernética. Seguir vivo, permanecer vivo como um planeta, contra o vírus, mas também contra o que pode acontecer, significa implementar formas estruturais de cooperação planetária. Como o vírus sofre mutação, se queremos resistir à submissão, também devemos sofrer mutações.
É necessário passar de uma mutação forçada para uma mutação deliberada. Devemos nos reapropriar criticamente das técnicas biopolíticas e de seus dispositivos farmacopornográficos. Antes de tudo, é imperativo mudar a relação de nossos corpos com as máquinas de biovigilância e biocontrole: elas não são apenas dispositivos de comunicação. Temos que aprender coletivamente a alterá-las. Mas também é necessário nos desalinhar. Os governos chamam ao confinamento e ao teletrabalho. Sabemos que, na verdade, eles nos chamam à descoletivização e ao telecontrole. Vamos usar o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e de resistência das minorias que nos ajudaram a sobreviver até agora. Vamos desligar os celulares, desconectar a Internet. Façamos o grande blecaute diante dos satélites que nos observam e imaginemos juntos a revolução que virá.
Educação é liberdade. Arte: BijaRi. Foto: Sato do BrasilNuvens ornamentais. Foto: Sato do BrasilPor do sol em Salvador – BA. Foto: Sato do Brasil
por Hemanuel Veras, especial para os Jornalistas Livres
Na última quinta-feira (12), o Ministro de Ciências, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), Gilberto Kassab, afirmou em entrevista ao site Poder 360 que o governo federal participa de negociações junto a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e empresas operadoras de internet para mudar a forma com que a banda larga fixa é oferecida no Brasil, tornando possível a oferta com pacotes de franquias.
A declaração foi alvo de duras críticas de associações de defesa do consumidor e muitas respostas negativas nas redes sociais, fazendo com que o MCTIC recuasse no dia seguinte, esclarecendo que não haverão mudanças no modelo atual, e que o presidente da Anatel afirmasse que a declaração do ministro foi um equívoco. Mesmo com esse recuo, essa declaração do ministro expõe uma relação próxima entre o Governo Federal e as grandes empresas de telecomunicação do Brasil.
Qual a diferença entre os modelos?
A discussão sobre o modelo de franquias na internet fixa não é inédita. Em 2016, as grandes empresas declararam que iriam passar a oferecer o modelo de franquias, no qual o consumidor compra um pacote com limite de dados e tem o acesso interrompido caso ultrapasse esse limite, a exemplo do que já acontece no acesso á internet via telefonia móvel.
A justificativa para o uso de franquias na internet móvel é técnica, uma vez que as antenas possuem menor capacidade de dados e as pessoas se locomovem enquanto utilizam a internet pelo telefone celular. Na internet fixa não existem essas mesmas dificuldades, apenas a possibilidade das empresas lucrarem mais em cima de um modelo que lhe força a pagar toda vez que ultrapassar o limite do pacote.
A comercialização desses pacotes de franquias também vai contra o Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965/2014, que em seu artigo 7 garante que a internet é essencial para democracia e proíbe a desconexão dos indivíduos, salvo em caso de não pagamento pelo serviço. No caso das franquias, se o consumidor ultrapassar a quantidade de dados prevista ele já estará impossibilitado de acessar a rede.
O que pode mudar com o uso dessas franquias?
O uso das franquias para internet fixa pode mudar a forma com que o brasileiro consome informações na internet e engessar processos em andamento de acesso à informação, educação e cultura. Segundo pesquisas do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e Comunicação (Cetic.br), 51% dos domicílios brasileiros tem acesso a internet e 68% deles utilizam banda larga fixa, enquanto apenas 22% acessam a internet via conexão móvel. Desses domicílios com acesso a internet, 79% utilizam wifi e 16% compartilham wifi com vizinhos.
O consumo por pacotes de franquias pode prejudicar o acesso à educação via internet, como cursos de Educação a Distância (EAD) ou mesmo a realização de pesquisas escolares. Segundo o Cetic.br, 43% dos usuários de internet no Brasil já realizaram pesquisas acadêmicas na internet, 37% já utilizou a rede para estudar por conta própria e 9% realizam cursos a distância. Em áreas longe dos grandes centros urbanos, os cursos a distância são uma possibilidade de dar continuidade aos estudos e ter acessos a novas formações.
O consumo cultural também pode passar por grandes restrições, uma vez que o acesso a vídeos, música e jogos eletrônicos por streaming também serão prejudicados, pois demandam grande quantidade de dados. Nesse cenário os consumidores deveriam escolher com cuidado qual conteúdo iriam consumir e definir prioridades, como no caso de acesso a serviços públicos que exigem solicitações ou pedidos realizados pela internet.
O uso das franquias também pode prejudicar a liberdade do usuário em escolher quais conteúdos quer acessar à medida que as empresas operadoras ofereçam zero rating – acesso gratuito a apenas determinados sites ou conteúdos após o fim da franquia, junto com os pacotes. Nesse cenário desanimador, grande parte dos consumidores ficaria com acesso restrito a apenas alguns sites e plataformas digitais. Ter acesso a um serviço gratuito quando você não tem mais dinheiro parece animador, mas não é necessário se continuarmos com o modelo atual de banda larga fixa, que possibilita total liberdade no acesso a rede.
O que podemos fazer para evitar essa mudança?
Uma forma de pressionar o governo a respeito desse tema é acessar a plataforma Diálogos da Anatel – http://www.anatel.gov.br/dialogo/groups/all, fazer o registro no site e deixar lá sua opinião a respeito do assunto. Essa consulta pública vai até abril e a opinião majoritária das pessoas irá fazer diferença no estudo técnico que a agência deve produzir a respeito do impacto que esse novo modelo teria no Brasil.
Outra forma de pressionar o Governo Federal e as empresas contra essa decisão é apoiar e acompanhar a atuação de organizações que militam a favor do direito das liberdades na internet, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a Coalizão Direitos na Rede, que milita por essa e outras pautas para manter a internet no Brasil livre e plural. A participação de todos é importante, assim como também é essencial vigiarmos os passos do Governo Federal e das grandes empresas de telecomunicação, para que eles não realizem um golpe na internet que construímos juntos no Brasil.