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  • LULIZAÇÃO DE BOLSONARO?

    LULIZAÇÃO DE BOLSONARO?

    A comparação entre Lula e Bolsonaro não é nenhuma novidade no debate político nacional. É que Lula e Bolsonaro são as mais carismáticas lideranças políticas da história recente brasileira. Nos últimos 20 anos, somente Lula e Bolsonaro tiveram um “ismo” pra chamar de seu.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Lula e Bolsonaro são muito diferentes.

    Lula nunca atentou contra as instituições da República. Lula foi condenado pela justiça em processo flagrantemente manipulado. Ficou preso mais de ano. Viu a família ser devassada. Mesmo assim, em nenhum momento, jogou sua militância contra o Poder Judiciário. Lula se submeteu a todos os ritos do direito penal, mesmo sabendo que estava sendo injustiçado.

    Já Bolsonaro, até bem pouco tempo atrás, dia sim e dia também vinha a público ameaçar a nação com golpe de Estado, atiçando sua malta raivosa contra nossa democracia.

    Lula só ganhou seu ismo depois de governar e conseguir construir aquilo que de mais próximo chegamos de um Estado de Bem Estar Social. Bolsonaro virou mito antes de subir a rampa do Planalto, alimentado tão somente pelo ódio coletivo à política institucional e pelos preconceitos que fazem do brasileiro médio um dos piores tipos sociais do mundo.

    Entre Lula e Bolsonaro, a comparação, se possível, se dá muito mais pelas diferenças do que pelas semelhanças.

    Mas de uns dias pra cá, parece que o próprio Bolsonaro vem se inspirando em Lula. Talvez ainda seja cedo para dizer que se trata de tendência, mas a novidade na crônica política é a aparente lulização de Bolsonaro.

    Junho de 2005, Roberto Jefferson (ó ele aí, minha gente!) denuncia o mensalão, esquema de compra de apoio parlamentar no varejo, que estaria sendo organizado a partir do gabinete do presidente da República. O governo quase acabou ali. Perdeu José Dirceu, cotado na época para ser o sucessor de Lula.

    Para sobreviver, Lula precisou se aproximar do PMDB, entregar três ou quatro ministérios gordos, de porteira fechada. Pouca gente lembra que a tão mal falada aliança entre o PT e o PMDB não foi projeto original. O PMDB disputou as eleições de 2002 com candidatura própria. A aliança foi produto das circunstâncias. Questão de sobrevivência mesmo.

    A esquerda raiz, mais ideológica, nem precisou da crise do mensalão e da aliança com o PMDB pra pular fora. Bastou a real politik, a realidade de ser governo, para os “companheiros” se desencantarem. Nasceu assim o PSOL, em junho de 2004.

    Poucas coisas são mais melancólicas, e caricatas, do que o militante de esquerda desencantado.

    Lula, sabido que só ele, fez dos limões uma limonada. Furou a bolha, ampliou sua base de apoio social. Depois do mensalão, Lula se tornou, de fato, líder popular. Catapultado pelo Bolsa Família e pela política de valorização do salário mínimo, Lula, finalmente, conquistou o subproletariado, que historicamente rejeitava o PT.

    Lula passaria a ser odiado pela esquerda ideológica e amado pelo povo. Foi bom negócio. A esquerda entende pouco de povo.

    Talvez esteja acontecendo algo semelhante com Bolsonaro neste exato momento. Por um capricho do destino, 15 anos depois, também em mês de junho, Bolsonaro viu a porca torcer o rabo. A prisão de Fabrício Queirós foi para Bolsonaro o que o mensalão foi para Lula. A diferença é que o mensalão era esquema de governabilidade, enquanto Queiros é o fio solto de esqueminhas de corrupção de baixo clero que enriqueceram o clã Bolsonaro.

    A solução encontrada por Bolsonaro está sendo semelhante à de Lula. Não duvido que Bolsonaro, que de burro tem nada não, esteja deliberadamente se inspirando em Lula.

    Aproximou-se do Centrão, se afastou dos aliados mais ideológicos e está investindo em políticas redistributivas, descobrindo como é gostoso, e importante, ser amado pelo povão. Depois das caneladas iniciais, o auxílio emergencial é um sucesso. Povão tá feliz da vida. A economia varejista nas regiões periféricas nunca viu tanto dinheiro circulando. Uma festa. Não consigo deixar de ficar um pouquinho feliz com isso.

    Meio que obrigado pela pandemia, contra a vontade, Bolsonaro está colocando os pobres no orçamento.

    Bolsonaro está tentando furar a bolha. A classe média bolsonarista raiz começa a fazer movimentos de desembarque.

    À direita e à esquerda, as bolhas são mimadas, agressivas quando contrariadas. Costumam investir todas as suas energias na destruição dos “traidores”.

    Com Lula, já sabemos o que aconteceu: terminou dois mandatos com alto índice de aprovação popular e ainda elegeu a sucessora.

    Bolsonaro conseguirá fazer o mesmo? Será capaz de se tornar presidente, deixando de se comportar como agitador fascista? Deixará de lado os devaneios revolucionários para se tornar um conservador no sentido estrito do termo?

    Para isso, terá que romper com o bolsonarismo, o que envolve abandonar Paulo Guedes, o mais bolsonarista dos ministros da esplanada. O bolsonarismo é organicamente neoliberal. Sua utopia é a sociedade pré-moderna, clânica, onde a casa é grande e o Estado é mínimo. A casa é grande exatamente porque o Estado é mínimo. E vice-versa.

    O neoliberalismo radical de Gudes só sobrevive no bolsonarismo.

    Tá aí a escolha que Bolsonaro terá que fazer. Pra sobreviver, precisará abandonar o bolsonarismo e ser um tantinho lulista, fazendo a tal comparação ter algum sentido.

    Se tomar o lugar de Lula como encarnação do Estado provedor de direitos sociais, Bolsonaro deixará de ser apenas o representante do ódio, do caos, para se tonar líder popular.

    Bolsonaro é carismático, comunica bem com o povão. Conseguindo se reinventar, fica imbatível. Insistindo no radicalismo ideológico, não termina o mandato.

    Enquanto isso, a esquerda, assistindo da arquibancada o jogo ser jogado, se vê diante de um dilema existencial: torcer para que Bolsonaro continue sendo o agitador fascista, o que na prática significa torcer contra a própria democracia e contra o bem-estar da população mais pobre. Ou torcer para que Bolsonaro se acomode às instituições da República e, finalmente, trabalhe para o bem do povo, o que significaria ostracismo político que duraria pelo menos uma década.

    A ver se Bolsonaro luliza de fato, acontecendo, nos sobrará pelo menos o triunfo estético. Lula é muito mais bonito que Bolsonaro. Quem guenta com aquelas covinhas que se formam nas bochechas quando o rosto todo sorrir?

  • Não é negacionismo científico. É pior!

    Não é negacionismo científico. É pior!

    É muito comum associar o bolsonarismo ao negacionismo científico. O bolsonarismo seria eticamente repulsivo, entre outras coisas, porque nega os consensos científicos, porque rejeita os fundamentos da ciência cartesiana, porque desobedece a comunidade científica. Implícita está a ideia de que a ciência sempre é humanista, é sempre virtuosa. Como se não fosse possível ser, ao mesmo tempo, perverso e seguidor dos protocolos científicos.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Essa relação imediata entre entre ciência e virtude é algo ingênua e facilmente desmentida pela própria história da ciência. A ideia de que o bolsonarismo é necessariamente negacionista também não se sustenta na crônica política, especialmente no que se refere ao enfrentamento à pandemia da covid-19.

    A forma como governo de Jair Bolsonaro está enfrentando a pandemia da covid-19 não tem nada, absolutamente nada, de negacionista, de anticientífica. Pelo contrário, é perfeitamente coerente com o pensamento científico. Está correta do ponto de vista técnico.

    Desde o primeiro dia de pandemia, as autoridades sanitárias nacionais e internacionais recomendaram: o isolamento social é o único jeito de combater a pandemia. Fecha tudo, esvazia as ruas, dá um tapa na curva pra preservar o sistema de saúde, enquanto os cientistas trabalham num medicamento ou numa vacina.

    Este é a solução científica eticamente adequada para combater a pandemia. Mas não é a única saída cientificamente possível. Como nem tudo são flores nesta vida, há também a solução científica eticamente repulsiva.

    O científico eticamente adequado é tão científico quanto o científico eticamente repulsivo. Por isso, a discussão jamais, sob hipótese alguma, pode ser apenas científica. Tem que ser também políticamente normativa, um tantinho filosófica.

    O governo de Bolsonaro escolheu a estratégia científica eticamente repulsiva. Foi coerente com sua própria essência. Não podemos negar.

    Não é incompetência. Não é negacionismo científico. É pior!

    Quando Bolsonaro boicotou as medidas de isolamento, fritou dois ministros da saúde, vetou a lei que decretava a obrigatoriedade do uso de máscaras e gastou apenas 1/3 do orçamento previsto para o combate à pandemia, estava escolhendo um método cientificamente autorizado para lidar com o problema.

    Deixa o vírus correr, infectar as pessoas, até o momento em que a populacao estiver naturalmente imunizada, custe o que custar, morra quem morrer.

    Num país de 210 milhões de habitantes, de proporções continentais, qual será o custo da estratégia? Quanto tempo leva?

    0,1% de mortos? Parece pouco, né? Em números absolutos são 210 mil pessoas. Se for 0,2%? Ainda assim será pouco? 420 mil pessoas! E vamos somando, de 0,1 em 0,1%. Até onde vai? Será que chega em mim, no meu pai, na minha mãe? A cada, 0,1%, a chance aumenta. Vale pra você também, leitor e leitora. É uma bomba relógio. Tic, tac, tic, tac.

    O governo brasileiro está disposto a pagar o preço, seja ele qual for. Estamos com quase 85 mil mortos. E contando. E o vírus circulando, e as pessoas morrendo. Em algum momento, virá a tal imunidade natural do rebanho. É o que a ciência diz.

    Os que sobreviverem ficarão imunes. Os que morreram, em sua maioria pessoas mais frágeis, não voltam mais. Óbvio! A ciência também diz isso. Sobram os mais fortes, aptos e saudáveis. Na história da ciência, a estratégia bolsonarista tem nome: eugenia, darwinismo social. Na história politica tem nome também: genocídio!

    Nomear as coisas com os nomes que elas têm é, antes de tudo, ato político desestabilizador, como percebemos na reação histérica dos generais à entrevista de Gilmar Mendes.

    Dizer que o bolsonarismo é obscurantista, negacionista, ignorante, significa ser indulgente. Não se trata de nada disso. É pior. É muito pior.

    Quando Osmar Terra participou do programa da Globo News, no começo de maio, e disse que as pessoas não deveriam ficar trancadas em casa, que tinham que ir mesmo pra rua se infectar, ele estava cientificamente correto, certinho.

    A máxima “obedeçam a ciência”, tão ventilada no início da pandemia, pode ser muito perigosa. Não é tudo que a ciência manda que a gente tem que obedecer não. Carece de ter cautela, de selecionar repertórios, caso a caso, com lupa ampliada em cada situação.

    Há no meio disso tudo apenas duas certezas, que podem ser provadas, cientificamente: 1°) Bolsonaro e seus cumplices são genocidas. 2°) A ciência não detém o monopólio da virtude.

  • Qual será o lugar de Aras na história da crise democrática brasileira?

    Qual será o lugar de Aras na história da crise democrática brasileira?

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Não é nenhuma novidade ver profissionais do Direito ocupando posição de grande influência política no Brasil. É algo tão antigo quanto a própria existência nacional. Basta lembrar de Joaquim Nabuco, que no final do século XIX disse que as “faculdades de Direito são a antessala da Câmara dos Deputados”.

    Mas algo mudou no perfil da atuação política dos profissionais do Direito. Empoderados pela Constituição de 1988, eles não se contentam mais em serem apenas bacharéis eleitos que se locupletam com cargos políticos e gordos salários. Pretendem interferir na realidade nacional, participar ativamente do debate público. Têm seus próprios projetos de nação. Estão convencidos de que podem mesmo salvar o país.

    Vários são os nomes: começando por Joaquim Barbosa e chegando até Sérgio Moro, passando por Deltan Dallagnol, Luís Roberto Barroso e tantos outros. Aqui, neste ensaio, quero tratar de um personagem específico, alguém que vem constantemente frequentando o noticiário político: Augusto Aras, Procurador Geral da República.

    Aras representa bem a complexidade da crise democrática brasileira.

    Membro do Ministério Público Federal desde 1987, Aras está longe de ser “bolsonarista raiz”, tampouco é “terrivelmente evangélico”. Na campanha para a PGR, Aras até piscou para os conservadores, falou em “ideologia de gênero”, criticou a criminalização da homofobia. Estava interessado no emprego.

    Bastam dois cliques no Google para descobrir que o jurista baiano não tem compromisso de longa data com a agenda conservadora nos costumes. Bem pelo contrário, pois Aras chegou a oferecer, em 2013, uma festa em homenagem ao ex-deputado petista Emiliano José. Zé Dirceu e Rui Falcão estavam entre os convivas. Por muito menos, o Bolsonarismo já colou o selo de “comunista” na testa de outros.

    Jair Bolsonaro, que de bobo não tem nada, sabe que o PGR é estratégico para a sobrevivência política do presidente da República. Bolsonaro acompanhou de perto, de dentro da Câmara dos Deputados, o que Rodrigo Janot fez com Michel Temer. Duas denúncias em exercício de mandado, o que acabou consumindo todo o capital político de Temer, que não fez mais nada a não ser se defender.

    Fica, então, a pergunta: por que Bolsonaro escolheu um não alinhado para posição tão decisiva? Certamente, havia outros candidatos mais palatáveis à ala ideológica do governo. Difícil saber o que passa na cabeça do presidente. Resta apenas tatear a crônica e sugerir algumas hipóteses. Vamos lá.

    Aras foi indicado por Bolsonaro em 5 de setembro de 2019. Naquela altura, as relações de Bolsonaro com Moro já estavam um tanto estremecidas. COAF, Juízes de garantia e a disputa pelo controle da Polícia Federal. Não eram poucos os pontos de tensão.

    Estava claro para todos que bolsonarismo e lava-jatismo não eram aliados orgânicos.

    A Lava Jato foi determinante para pavimentar a chegada de Bolsonaro no Palácio do Planalto, mas jamais deixou de ter seu próprio projeto de poder. Esse projeto tem nome, sobrenome e horizonte cronológico: Sérgio Moro, 2022. No horizonte lava-jatista, Bolsonaro sempre foi visto como um momento de transição.

    Bolsonaro, escaldado, precisava de alguém no comando do Ministério Público que fosse capaz de agir como contraponto à Lava Jato. Sob todos os aspectos, Aras era o nome ideal. Crítico histórico da Lava Jata, Augusto Aras foi o principal antagonista de Rodrigo Janot, o PGR que entre 2015 e 2017 atuou como fiador dos menudos de Curitiba.

    Para além de rivalidades, vaidades e projetos pessoais de poder, entre Janot e Aras há uma clara diferença naquilo que se refere ao conceito de Ministério Público. Desde a década de 1990 que Janot defende um Ministério Público ativo politicamente, cuja função seria “representar os interesses da sociedade civil, que ainda não é capaz de se fazer representar pelo voto”, como disse em conferência ministrada no congresso anual da OAB em 1996.

    Na época, Janot era o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, a ANPR. Na lógica de Janot, o despreparo da sociedade civil faz com que o voto seja manipulado por políticos profissionais inescrupulosos, cabendo ao Ministério Público a missão de tutelar o povo.

    Já Augusto Aras defende um MP contido e respeitador do sistema político-partidário. Em sua produção intelectual, Aras se mostra muito preocupado com a fragilização dos partidos políticos, o que seria o principal fator de enfraquecimento da democracia representativa brasileira. Nas palavras do próprio Aras:

    “Os partidos políticos são relevantes para a sociedade brasileira, em especial porque despersonalizam o poder político institucionalizado. Todas as vezes que nós temos os salvadores da pátria e aventureiros do poder político, nós corremos o risco de mitificações que geraram ditaduras, como as de Mussolini (Itália) e Hitler (Alemanha) e, no Brasil, com os coronéis da região Nordeste e os caudilhos do sul.”

    Tal como Janot, Aras também vê certo despreparo do povo, que ainda não teria se interessado em fiscalizar a fidelidade partidária dos seus eleitos. Mas enquanto Janot vê a solução no Ministério Público ativista, Aras argumenta que saída passa pela própria política institucional, pelo fortalecimento dos partidos, cabendo ao poder judiciário apenas criar jurisprudência para coibir a infidelidade partidária.

    “Temos de evitar aventureiros”, afirmou Augusto Aras em entrevista ao Jornal “A Tarde” publicada em 19 de junho de 2016.

    Hoje, Aras é subordinado leal de Jair Bolsonaro, que trocou de partidos diversas vezes e que, neste exato momento, é um presidente sem partido. O mundo não gira. O mundo capota.

    O que estou querendo dizer é que a jornada que Augusto Aras está movendo contra a Lava Jato não é apenas estratégia para agradar o chefe e faturar a indicação para o STF. É produto de convicção política, é questão conceitual. Para Aras, o MP não pode aceitar que uma de suas forças tarefas conspire para a destruição do sistema político/partidário.

    Seria superestimar demais Bolsonaro e sua equipe imaginar que eles, conhecendo as convicções teóricas de Aras, sabiam que o procurador baiano é o homem ideal para colocar freios na Lava Jato? Ou será que o governo da décima maior economia do mundo se deixou levar pelo papinho da ideologia de gênero que Aras lançou durante a corrida à PGR e escolheu o chefe do MP baseado apenas nisso?

    Fato mesmo é que Aras está fazendo dois trabalhos. É o protetor dos milicianos fascistas que ocupam o Palácio do Planalto. Mas é também o inimigo mais perigoso que a Operação Lava jato já teve.

    Muitos já tentaram, mas ninguém conseguiu acuar a Lava Jato com a eficiência de Augusto Aras. Os operadores sentiram o golpe e colocaram os pés pelas mãos, numa tentativa desesperada de alargar o apoio na opinião pública ao bater, com pelo menos cinco anos de atraso, na porta de José Serra. Aconteceu no último 3 de julho.

    A Lava Jato tenta, desesperadamente, tirar o nariz da água.

    Retomo a pergunta inicial: qual será o lugar de Augusto Aras na história da crise democrática brasileira?

    Depende da avaliação. O que é pior para o Brasil?

    Se acharmos que é Bolsonaro e sua quadrilha, colocaremos Augusto Aras na lata de lixo da história, junto com outros colaboracionistas. Se acharmos que é a Lava Jato, talvez o jurista baiano tenha alguma chance de sair disso tudo com alguma menção honrosa na biografia.

    E você? O que acha?

     

  • Por que insistimos em subestimar Bolsonaro?

    Por que insistimos em subestimar Bolsonaro?

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Faço a pergunta olhando no espelho.

    Por que nós, a bolha letrada progressista, insistimos em subestimar Bolsonaro? As respostas dizem muito sobre o que somos, esclarecem as causas do derretimento de nossa credibilidade pública, mostram como nos desconectamos do restante da sociedade.

    Este não é um texto sobre Jair Bolsonaro. Ė um texto sobre a miséria da bolha letrada progressista brasileira. Se quiserem, podem chamar de autocrítica.

    Começando pelo início, explorando cada momento da ascensão política de Bolsonaro e lembrando as narrativas que mobilizamos para subestimá-lo, para negar o que estava acontecendo. Somos ótimos negacionistas!

    Ato 1) Jair Bolsonaro ganhou projeção nacional em 2014, quando os primeiros efeitos do colapso do sistema político foram verbalizados pelas urnas. Na ocasião, Bolsonaro foi reeleito deputado Federal pelo Rio de Janeiro, com um crescimento de 385% em relação à votação que tinha tido em 2010. Em 30 de outubro, assim que acabaram as eleições, Bolsonaro concedeu entrevista ao “Estado de São Paulo”, farejando um sentimento coletivo de revolta que Marina Silva e Aécio Neves não seriam capazes de se apropriar. Bolsonaro começou, então, a pré-campanha. Foram quatro anos viajando pelo país, sendo aplaudido nos aeroportos, carregado pela multidão. Dizíamos que daria em nada não. Aquele homem tosco, deputado de baixo-clero, com histórico de declarações preconceituosas nas costas. Como se elegeria presidente em um país onde 54% da população se declara parda ou preta? Como Bolsonaro venceria as eleições, sendo que as mulheres representam 51,6% da população?

    Ato 2) Ficou claro desde o início da campanha presidencial de 2018 que Bolsonaro seria candidato relevante. Mas poucos apostavam na real possibilidade de sua vitória. Com pouquíssimo tempo de propaganda na TV, em partido pequeno, sem palanque nos municípios. Como Bolsonaro venceria?? Impossível. Os negros e as mulheres rejeitariam Bolsonaro. Óbvio! Lembro de Breno Altman, quadro intelectual importante dentro do Partido dos Trabalhadores, dizendo que Bolsonaro era o “candidato dos sonhos” no segundo turno.

    Em 29 de setembro, ainda no primeiro turno, explodiu o “#elenão” nos 26 Estados da federação. Participei em Salvador, onde moro desde 2017. Daniela Mercury puxou a multidão. Foi o maior ato de rua que já presenciei. Parecia Carnaval. O balde de água fria não demorou a chegar. Já em 1º de outubro, o Ibope divulgou pesquisa cujo campo havia sido feito nos dias 29 e 30 de setembro, ou seja, já captando os efeitos do “#elenão”. Bolsonaro cresceu três pontos, saindo dos 36% verificados na pesquisa publicada em 26 de setembro e chegando a 39%. Entre o eleitorado feminino, o crescimento foi ainda mais acentuado. Bolsonaro cresceu 6 pontos, saindo de 18% e chegando a 24%.

    O bolsonarismo mobiliza identidades hegemônicas na sociedade patriarcal brasileira e se beneficiou do clima de guerra comportamental que foi uma das características da corrida presidencial. Não digo que essa tenha sido a única razão de sua vitória. Digo que foi uma das razões.

    Se Bolsonaro pudesse escolher um tema para pautar eternamente as eleições brasileiras, escolheria o tema dos costumes. Aborto, discussão de gênero nas escolas, direitos civis da população LGBT. Aqui, nesse campo, Bolsonaro domina a narrativa, vence de goleada. Na noite de 9 de outubro, as urnas mostraram Bolsonaro com impressionantes 46,03% dos votos. Por muito pouco não venceu no primeiro turno.

    Ato 3) Desde que Bolsonaro começou a governar que alimentamos a expectativa de que a realidade, por si só, garantirá sua derrocada. Afinal, ele é burro, incompetente, tosco, não sabe o que faz. Enquanto isso, Bolsonaro, deliberadamente, escolheu se comportar como agitador fascista, e dia após dia conspira contra as instituições da República, investindo na organização de uma força miliciana armada. O histórico da legislação de flexibilização do comércio de armas de fogo sob o governo de Jair Bolsonaro é algo assustador.

    No começo da pandemia da covid-19, em meados de março, Bolsonaro minimizou a doença, boicotou as medidas de isolamento, se apresentando como o defensor da liberdade e da economia. No começo parecia loucura, suicídio político mesmo. Luiz Henrique Mandetta ostentava mais de 70% de popularidade. Prefeitos e governadores também. Cem dias depois, Mandetta virou comentarista da Globo. A popularidade de prefeitos e governadores desce ladeira abaixo.

    A sociedade não aguenta mais o isolamento social e está disposta a se arriscar para voltar à “vida normal”. A crise econômica e o desemprego já oprimem as famílias. Justamente nesse momento, no dia 7 de julho para ser exato, Bolsonaro aparece com um exame positivo para a covid-19. Não sei se o presidente está mesmo contaminado. Isso é até um tanto irrelevante. Mais importante é o uso político da questão: Bolsonaro vem a público com aparência saudável, risonho, dizendo que está se sentindo bem depois de tomar cloroquina. Bolsonaro está performando com o próprio corpo a narrativa da gripezinha.

    O Brasil é muito grande. A sociedade está acostumada com graves problemas de saúde pública. A maioria dos brasileiros não tem vítima da covid no seu círculo íntimo de relações. Todos, absolutamente todos, estão insatisfeitos com a quarentena e com a crise econômica. Bolsonaro está fazendo política, com alguma habilidade e sem nenhum escrúpulo. De burro, não tem nada. É carismático e conhece bem o país que governa. Definitivamente, a realidade, por si só, não irá pará-lo.

    Por que ainda insistimos em subestimar Bolsonaro, mesmo depois de tudo que aconteceu nesse país nos últimos dois anos?

    Tenho duas hipóteses, elaboradas a partir de conversas com amigos, colegas de trabalho, alunos. A partir daquilo que ouço, que sinto. É que vivo dentro da bolha. Não gosto muito não. Mas reconheço que é melhor do que viver fora dela.

    Primeiro, a bolha alimenta o velho sonho de uma sociedade civil organizada e capaz de impor suas agendas ao Estado e se rebelar contra governos autoritários. É o fetiche com as multidões bebido em um marxismo de anteontem que nunca fez muito sentido em um país como o Brasil. Aí, a bolha espera com ansiedade que o “Black lives matter” leve multidões às ruas para desestabilizar o governo de Bolsonaro, não sem antes derrubar os monumentos escravocratas. Se acontece nos EUA por que não haveria de acontecer aqui também?

    Bolsonaro está intacto, assim como os monumentos que glorificam a escravidão. O povão não atendeu ao chamado da bolha, outra vez.

    Não tenho dúvidas de que o racismo e o machismo são problemas estruturais no Brasil. Também não tenho dúvidas de que quando transformados em agenda política, essas pautas têm pouco potencial de mobilização, não são prioridades para a maioria da população.

    A bolha progressista dorme sonhando com maio de 1968 e acorda em um país que ainda não universalizou o ensino médio e o saneamento básico.

    A segunda hipótese nos remete à estética. Temos naturalizada em nosso imaginário certas representações do que seria uma pessoa inteligente. Numa versão já um tanto datada, inteligente seria o homem branco, usando terno e gravata e falando com perfeição o idioma de Machado de Assis e Guimarães Rosa. Em versão mais atual, seria o intelectual decolonial, representado pela pessoa indígena, pela mulher negra, perfeitamente capaz de entender, e denunciar, os dilemas estruturais da sociedade brasileira.

    Bolsonaro não é uma coisa nem outra. É grotesco, feio, esteticamente repulsivo. Lembra aquele tio tosco que todos temos. Como alguém assim pode ter alguma inteligência?

    Vamos projetando, então, nossos desejos na realidade, à revelia da própria realidade. E continuamos subestimando Bolsonaro, esperando sua derrocada na próxima esquina, na próxima pesquisa de popularidade.

    Se for reeleito em 2022, Bolsonaro terá escolhido quatro ministros do STF até 2026, mais de 1/3 da corte. Hoje, o STF é o grande freio contra o avanço bolsonarismo. Do jeito que vai, Bolsonaro talvez nem precise de golpe de Estado. É só ter paciência e ocupar as instituições por dentro, sempre legitimado pelas urnas.

    Ainda assim, se isso acontecer, continuaremos subestimando, combinando tacitamente uns com os outros de ver na realidade apenas o que queremos ver.

     

  • NÃO É POSSÍVEL NEGOCIAR COM BOLSONARO!

    NÃO É POSSÍVEL NEGOCIAR COM BOLSONARO!

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Dia 29 de junho, o presidente Jair Bolsonaro sanciona a “Lei Aldir Blanc”, que regulamenta auxílio financeiro para profissionais da cultura nesses tempos de pandemia. Essa é uma das dimensões mais tristes dessa doença maldita: a morte da arte. Não existe arte sem aglomeração. Tomara que passe logo. A vida humana não pode ser apenas fenômeno biológico.

    30 de junho, Carlos Alberto Decotelli se demite da chefia do Ministério da Educação depois de virem a público notícias de que ele fraudou currículo acadêmico. Doutorado falso na Argentina, trabalho docente na Fundação Getúlio Vargas desmentido pela instituição, plágio em dissertação de mestrado. Decotelli foi-se antes de chegar.

    Primeiro, Bolsonaro sanciona lei que ajuda profissionais da cultura, categoria que sempre desprezou, chamava de “vagabundos”, alimentando todo tipo de mentiras para jogar a população contra a Lei Rouanet. Depois, correu com um ministro que “apenas” mentiu no currículo.

    Vamos combinar, né? Num governo em que os ministros ameaçam prender juízes do STF, que dizem sem nenhum pudor que aproveitarão a pandemia para derrubar legislação ambiental, o que é mentir no currículo Lattes? O governo diz que procura um “técnico” para comandar a pasta da educação, o que sugere que o novo indicado não será alinhado à guerra cultural olavista.

    Algo está diferente. Já há umas duas semanas que o tigrão tá meio tchuchuca, com comportamento mais próximo do que se espera de um presidente da República, que por dever de ofício é obrigado a respeitar os ritos da democracia liberal.

    Por quê? O que está acontecendo?

    Em texto publicado na Folha de São Paulo em 15 de junho, Arthur Lyra, cacique do “Centrão”, disse que o governo está “amadurecendo”. Prova dessa maturidade seria a aproximação com o próprio Centrão, que ao tirar o governo de extrema-direita golpista e trazê-lo ao plano da sobriedade institucional estaria colaborando para a defesa da própria democracia brasileira.

    Conte outra!

    De centrão, o Centrão tem muito pouco. Historicamente quase sempre esteve inclinado à direita, ainda que por pragmatismo fisiológico tenha se mostrado capaz de apoiar agendas progressistas.

    Além do mais, carece de ser muito ingênuo para achar que a moderação no tom é resultado de amadurecimento. O problema do presidente nunca foi imaturidade, falta de experiência política. Bolsonaro passou quase 30 anos no Congresso Nacional. É impossível ficar tanto tempo no Parlamento e não aprender alguma coisa. Bolsonaro não é bobo. Tolo é quem continuar achando que ele é idiota.

    Bolsonaro é ideológico e está convencido de que lidera revolução destinada a sanear o Brasil e construir futuro melhor. Não é cortina de fumaça. Não é hipocrisia. É ideologia mesmo, sincera como toda ideologia.

    É crença. É utopia, o que torna Bolsonaro tipo político especialmente perigoso. Não há acordo possível com quem está convencido de que é responsável por acelerar a marcha da história rumo ao progresso.

    Na lógica da revolução bolsonarista, o contrato social da redemocratização formalizado na Constituição de 1988 é o antigo regime, o sistema corrupto que assaltou os cofres públicos e maculou os valores família cristã brasileira ao estimular na sociedade hábitos licenciosos.

    O futuro idealizado pelo bolsonarismo é uma sociedade dominada por proprietários armados e senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, representados diretamente pelo chefe do Executivo, sem mediação institucional. Na utopia bolsonarista, o Estado é mínimo e a casa é grande.

    O bolsonarismo também opera com certo conceito de “democracia”, que é palavrinha elástica o suficiente para permitir os mais diversos usos. “Democracia” é conceito que está sempre sendo disputado. Parte da imprensa liberal comemorou a pesquisa DataFolha publicada em 29 de junho que aponta 75% da população brasileira se dizendo defensora da “democracia”. A comemoração é otimista demais. Cabe muita coisa no guarda-chuva da “democracia”. Por isso, o substantivo precisa tanto de adjetivo.

    Qual a democracia a sociedade brasileira apoia tanto?

    Não há tirano que se diga tirano. Acho mesmo que não há tirano que se considere tirano, que acorde pela manhã e pense “Hoje vou matar, torturar, reprimir só porque sou malvadão”. Os tiranos acreditam estar agindo em nome do “bem comum”, da “justiça”, do “progresso”, da “vontade de Deus”.

    Na auto-representação todos somos virtuosos, até mesmo os tiranos, até mesmo os fascistas.

    A prisão de Queiroz coloca uma bomba no colo do presidente da República. É muito difícil imaginar que a mulher e as filhas de Queiroz, ou os outros funcionários dos gabinetes dos Bolsonaro, ficarão calados, que não vão assinar acordo de delação com o MP em algum momento.

    Para além dos generais palacianos, as Forças Armadas não responderam à convocação golpista. E vejam que Bolsonaro tentou, tentou muito.

    A construção de uma rede miliciana junto às PMs é operação complexa. Demanda tempo para doutrinar a tropa. Diante do cerco institucional liderado por Alexandre de Moraes e Celso de Melo, Bolsonaro se viu obrigado a recuar. O bolsonarismo sabe que ainda não está pronto para a batalha final.

    Que as instituições não se iludam achando que é possível disciplinar Bolsonaro. Não é. O recuo é tático e não ideológico.

    Um Bolsonaro “moderado” é ainda mais perigoso do que o Bolsonaro virulento. O Bolsonaro virulento tensiona, agita, nos obriga a ficar em constante vigilância. Um Bolsonaro “soft” que sanciona lei para ajudar artista, que procura “ministro técnico” para a educação, nos faz achar que a situação voltou à normalidade.

    Não voltou!

    Não devemos dormir tranquilos enquanto Bolsonaro for o presidente. Bolsonaro é a encarnação do caos. Não é o resultado do caos. É o caos em si.

    Pior do que o Bolsonaro agitador, ameaçando a nação com golpe de Estado, é o Bolsonaro “paz e amor”. Assim, ganha-se tempo para organizar o projeto golpista. A ruptura será sempre o horizonte do bolsonarismo.

    Bolsonaro se enxerga como revolucionário e não vai parar. Será sempre ameaça à democracia. Se for reeleito em 2022, indicará quatro ministros para o STF até 2026. É mais de 1/3 da corte.

    Ou a democracia derruba Bolsonaro ou Bolsonaro derrubará a democracia, nem que seja aos poucos, ocupando por dentro as instituições da República.

    Não é possível negociar com Bolsonaro. Não é possível conviver com Bolsonaro.

  • O BAIXO CLERO NO PODER

    O BAIXO CLERO NO PODER

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

     

    Dezoito de junho de 2020, o dia em que Fabrício Queiroz, o personagem mais folclórico da crônica política brasileira contemporânea, foi preso, alimentando toda a sorte de memes e piadinhas. O brasileiro tem capacidade única de gracejar no caos. Deve ser uma qualidade.

    Queiroz é personagem social típico do Rio de Janeiro. Se Moacyr Luz estava certo quando disse que o Rio de Janeiro é a cara do Brasil, o retrato 3 X 4 que sintetiza o corpo nacional, poderíamos dizer que Queiroz é também um tipo ideal brasileiro que, diferente do weberiano, existe em carne e osso.

    Quem foi criado no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense ou ali por São Gonçalo e Niterói, já conheceu pelo menos um Queiroz na vida. PM corrupto, violento, envolvido com milícias. Mas também carismático, com aparência de ser gente boa. Bom de churrasco, corrente de São Jorge no pescoço, safo na resenha futebolística, com ginga pra sacolejar bonitinho ao som de uma boa roda de samba. Sorriso largo. É perfeitamente possível simpatizar com Queiroz.

    Bandido de baixo clero, rouba no esqueminha, no rolo, no varejo. O Brasil, hoje, é governado por uma quadrilha de bandidos de baixo clero. Bolsonaro sempre foi corrupto, mas como era ladrão miúdo, passou batido pelo tribunal moral lava-jatista que pauta a política brasileira desde 2014. Bolsonaro roubava na rachadinha, superfaturando nota do posto de gasolina. Qual delegado da PF, qual procurador do MP tem interesse em investigar ladrão de galinha? Não dá capa de jornal, não dá mídia.

    Foi justamente essa mediocridade que permitiu a Bolsonaro performar o honesto no processo de radicalização da crise democrática. Até hoje, há quem considere os crimes da família Bolsonaro como sendo de menor potencial ofensivo. O brasileiro médio, cidadão de bem, não tolera o crime de colarinho branco, mas lida bem com o esqueminha, com o rolo. Uma questão de identidade mesmo. Bolsonaro e Queiroz representam muito bem o brasileiro médio.

    Queiroz ficou um ano encarcerado em Atibaia, norte de São Paulo. Não estava escondido não. Estava preso mesmo, sob controle. Era isso ou a vala. Mandar Queiroz para o plano espiritual não seria tão fácil. O cara era muito conhecido, não podia amanhecer morto assim, sem mais nem menos. Para dar fim em Queiroz teria que dar fim também na esposa e nas filhas. Operação complexa. Não excluo também o fato de os Bolsonaro gostarem mesmo de Queiroz, de existir vínculo afetivo sincero entre eles. Os brutos também amam.

    Queiroz foi preso numa casa onde tinha um quadro velho do AI-5 e um bonequinho de Tony Montana, personagem vivido por Al Pacino em filme de máfia. O covil de Queiroz renderia um ensaio de interpretação do Brasil.

    Quem delatou Queiroz foi a filha do Olavo de Carvalho!!!! A filha do guru do bolsonarismo, rompida com o pai, delatou Queiroz. Que roteirista é esse?

    Queiroz foi encontrado na casa de Frederick Waseff, advogado da família Bolsonaro. Na década de 1990, Wassef era membro de seita satanista, chegou a ser acusado de ter matado criança num ritual macabro em Guaratuba, no Paraná. O cara é advogado da família do presidente da República!! Desse aí não tem como gostar não. Não deve ter sido fácil para o Queiroz conviver um ano com esse sujeito barra pesada.

    A prisão de Queiroz sugere o enfraquecimento político do presidente Jair Bolsonaro. Já há mais de um ano que o esquema das rachadinhas coordenado por Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro é de conhecimento público. Durante esse tempo todo, a Justiça fez vista grossa, deixando o caso Queiroz em banho maria. Agora, exatamente quando as instituições da República dobram a aposta no confronto ao governo, Queiroz foi preso.

    Queiroz, seus filhos, sua esposa, os ex-funcionários de Flávio Bolsonaro nos tempos da ALERJ. Essas pontas não ficarão juntas por muito tempo. Em breve, alguém dará com a língua nos dentes. Flavio não é exceção, não é a ovelha negra da família. Flávio não inventou o esquema. Aprendeu com o pai. As investigações chegarão no gabinete do próprio Jair Bolsonaro. É tão óbvio quanto a existência do sol.

    Os generais palacianos sabem perfeitamente disso. Diferente do que vinha acontecendo já há algum tempo, eles não saíram em defesa do presidente Bolsonaro. Simplesmente silenciaram, num gesto que sugere constrangimento e inclinação ao desembarque. Ao ingressar no governo de Bolsonaro, as Forças Armadas se envolveram na pior encrenca de sua história. Sairão sujas dessa aventura, contaminadas pela corrupção rasteira do baixo clero bolsonarista, com mais de 200 mil mortos da covi1-19 nas costas. O Exército brasileiro é responsável direto pelo Ministério da Saúde. Em algum momento, essas pessoas serão responsabilizadas, moral e penalmente. Para a reputação dos militares, Bolsonaro será mais danoso do que foi a ditadura.

    A ditadura deixou algum legado de desenvolvimento e infraestrutura. Bolsonaro só deixará cinzas, corpos e escândalos de corrupção.

    O caso Queiroz praticamente sepulta a possibilidade de um autogolpe apoiado pelas Forças Armadas. É difícil imaginar que um número grande de oficiais da ativa apoiariam um golpe sem projeto, sem nenhum fundamento ideológico. Seria um golpe tão somente pretoriano com o único objetivo de salvar os parentes e amigos de Bolsonaro das garras da justiça.

    Por outro lado, é prudente não dar Inês como morta antes da hora. O golpe militar clássico apoiado pelas Forças Armadas não é a única carta que Bolsonaro tem na manga. Há também o projeto do golpe miliciano sustentado pelas PMs estaduais. Esse projeto está em curso. Enquanto escrevo este texto, enquanto o leitor me lê, há gente nos batalhões das PMs tentando doutrinar a tropa.

    A PM fluminense já é bolsonarista. São Paulo começa a perder o controle sobre a sua corporação. É difícil saber como está a situação nos outros estados. Fato é que a Presidência da República, hoje, é o único trunfo de Bolsonaro, é questão de sobrevivência. O tom ameno dos últimos dias não é uma trégua, tampouco intensão sincera de reconciliação com os outros poderes. É estratégia para ganhar tempo visando a mobilização e a formação ideológica das PMs estaduais.

    Assim que as condições políticas ficarem plenamente satisfatórias, as instituições da República precisam agir, de forma rápida e eficiente. O caso Queiroz tem potencial para ser a bala de prata já tantas vezes anunciada. Carece de saber usar.

    Seria irônico se Bolsonaro caísse por causa de Queiroz, bandido de baixo clero. Seria coerente também. São feitos do mesmo barro.