Por que insistimos em subestimar Bolsonaro?

 

ARTIGO

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

 

Faço a pergunta olhando no espelho.

Por que nós, a bolha letrada progressista, insistimos em subestimar Bolsonaro? As respostas dizem muito sobre o que somos, esclarecem as causas do derretimento de nossa credibilidade pública, mostram como nos desconectamos do restante da sociedade.

Este não é um texto sobre Jair Bolsonaro. Ė um texto sobre a miséria da bolha letrada progressista brasileira. Se quiserem, podem chamar de autocrítica.

Começando pelo início, explorando cada momento da ascensão política de Bolsonaro e lembrando as narrativas que mobilizamos para subestimá-lo, para negar o que estava acontecendo. Somos ótimos negacionistas!

Ato 1) Jair Bolsonaro ganhou projeção nacional em 2014, quando os primeiros efeitos do colapso do sistema político foram verbalizados pelas urnas. Na ocasião, Bolsonaro foi reeleito deputado Federal pelo Rio de Janeiro, com um crescimento de 385% em relação à votação que tinha tido em 2010. Em 30 de outubro, assim que acabaram as eleições, Bolsonaro concedeu entrevista ao “Estado de São Paulo”, farejando um sentimento coletivo de revolta que Marina Silva e Aécio Neves não seriam capazes de se apropriar. Bolsonaro começou, então, a pré-campanha. Foram quatro anos viajando pelo país, sendo aplaudido nos aeroportos, carregado pela multidão. Dizíamos que daria em nada não. Aquele homem tosco, deputado de baixo-clero, com histórico de declarações preconceituosas nas costas. Como se elegeria presidente em um país onde 54% da população se declara parda ou preta? Como Bolsonaro venceria as eleições, sendo que as mulheres representam 51,6% da população?

Ato 2) Ficou claro desde o início da campanha presidencial de 2018 que Bolsonaro seria candidato relevante. Mas poucos apostavam na real possibilidade de sua vitória. Com pouquíssimo tempo de propaganda na TV, em partido pequeno, sem palanque nos municípios. Como Bolsonaro venceria?? Impossível. Os negros e as mulheres rejeitariam Bolsonaro. Óbvio! Lembro de Breno Altman, quadro intelectual importante dentro do Partido dos Trabalhadores, dizendo que Bolsonaro era o “candidato dos sonhos” no segundo turno.

Em 29 de setembro, ainda no primeiro turno, explodiu o “#elenão” nos 26 Estados da federação. Participei em Salvador, onde moro desde 2017. Daniela Mercury puxou a multidão. Foi o maior ato de rua que já presenciei. Parecia Carnaval. O balde de água fria não demorou a chegar. Já em 1º de outubro, o Ibope divulgou pesquisa cujo campo havia sido feito nos dias 29 e 30 de setembro, ou seja, já captando os efeitos do “#elenão”. Bolsonaro cresceu três pontos, saindo dos 36% verificados na pesquisa publicada em 26 de setembro e chegando a 39%. Entre o eleitorado feminino, o crescimento foi ainda mais acentuado. Bolsonaro cresceu 6 pontos, saindo de 18% e chegando a 24%.

O bolsonarismo mobiliza identidades hegemônicas na sociedade patriarcal brasileira e se beneficiou do clima de guerra comportamental que foi uma das características da corrida presidencial. Não digo que essa tenha sido a única razão de sua vitória. Digo que foi uma das razões.

Se Bolsonaro pudesse escolher um tema para pautar eternamente as eleições brasileiras, escolheria o tema dos costumes. Aborto, discussão de gênero nas escolas, direitos civis da população LGBT. Aqui, nesse campo, Bolsonaro domina a narrativa, vence de goleada. Na noite de 9 de outubro, as urnas mostraram Bolsonaro com impressionantes 46,03% dos votos. Por muito pouco não venceu no primeiro turno.

Ato 3) Desde que Bolsonaro começou a governar que alimentamos a expectativa de que a realidade, por si só, garantirá sua derrocada. Afinal, ele é burro, incompetente, tosco, não sabe o que faz. Enquanto isso, Bolsonaro, deliberadamente, escolheu se comportar como agitador fascista, e dia após dia conspira contra as instituições da República, investindo na organização de uma força miliciana armada. O histórico da legislação de flexibilização do comércio de armas de fogo sob o governo de Jair Bolsonaro é algo assustador.

No começo da pandemia da covid-19, em meados de março, Bolsonaro minimizou a doença, boicotou as medidas de isolamento, se apresentando como o defensor da liberdade e da economia. No começo parecia loucura, suicídio político mesmo. Luiz Henrique Mandetta ostentava mais de 70% de popularidade. Prefeitos e governadores também. Cem dias depois, Mandetta virou comentarista da Globo. A popularidade de prefeitos e governadores desce ladeira abaixo.

A sociedade não aguenta mais o isolamento social e está disposta a se arriscar para voltar à “vida normal”. A crise econômica e o desemprego já oprimem as famílias. Justamente nesse momento, no dia 7 de julho para ser exato, Bolsonaro aparece com um exame positivo para a covid-19. Não sei se o presidente está mesmo contaminado. Isso é até um tanto irrelevante. Mais importante é o uso político da questão: Bolsonaro vem a público com aparência saudável, risonho, dizendo que está se sentindo bem depois de tomar cloroquina. Bolsonaro está performando com o próprio corpo a narrativa da gripezinha.

O Brasil é muito grande. A sociedade está acostumada com graves problemas de saúde pública. A maioria dos brasileiros não tem vítima da covid no seu círculo íntimo de relações. Todos, absolutamente todos, estão insatisfeitos com a quarentena e com a crise econômica. Bolsonaro está fazendo política, com alguma habilidade e sem nenhum escrúpulo. De burro, não tem nada. É carismático e conhece bem o país que governa. Definitivamente, a realidade, por si só, não irá pará-lo.

Por que ainda insistimos em subestimar Bolsonaro, mesmo depois de tudo que aconteceu nesse país nos últimos dois anos?

Tenho duas hipóteses, elaboradas a partir de conversas com amigos, colegas de trabalho, alunos. A partir daquilo que ouço, que sinto. É que vivo dentro da bolha. Não gosto muito não. Mas reconheço que é melhor do que viver fora dela.

Primeiro, a bolha alimenta o velho sonho de uma sociedade civil organizada e capaz de impor suas agendas ao Estado e se rebelar contra governos autoritários. É o fetiche com as multidões bebido em um marxismo de anteontem que nunca fez muito sentido em um país como o Brasil. Aí, a bolha espera com ansiedade que o “Black lives matter” leve multidões às ruas para desestabilizar o governo de Bolsonaro, não sem antes derrubar os monumentos escravocratas. Se acontece nos EUA por que não haveria de acontecer aqui também?

Bolsonaro está intacto, assim como os monumentos que glorificam a escravidão. O povão não atendeu ao chamado da bolha, outra vez.

Não tenho dúvidas de que o racismo e o machismo são problemas estruturais no Brasil. Também não tenho dúvidas de que quando transformados em agenda política, essas pautas têm pouco potencial de mobilização, não são prioridades para a maioria da população.

A bolha progressista dorme sonhando com maio de 1968 e acorda em um país que ainda não universalizou o ensino médio e o saneamento básico.

A segunda hipótese nos remete à estética. Temos naturalizada em nosso imaginário certas representações do que seria uma pessoa inteligente. Numa versão já um tanto datada, inteligente seria o homem branco, usando terno e gravata e falando com perfeição o idioma de Machado de Assis e Guimarães Rosa. Em versão mais atual, seria o intelectual decolonial, representado pela pessoa indígena, pela mulher negra, perfeitamente capaz de entender, e denunciar, os dilemas estruturais da sociedade brasileira.

Bolsonaro não é uma coisa nem outra. É grotesco, feio, esteticamente repulsivo. Lembra aquele tio tosco que todos temos. Como alguém assim pode ter alguma inteligência?

Vamos projetando, então, nossos desejos na realidade, à revelia da própria realidade. E continuamos subestimando Bolsonaro, esperando sua derrocada na próxima esquina, na próxima pesquisa de popularidade.

Se for reeleito em 2022, Bolsonaro terá escolhido quatro ministros do STF até 2026, mais de 1/3 da corte. Hoje, o STF é o grande freio contra o avanço bolsonarismo. Do jeito que vai, Bolsonaro talvez nem precise de golpe de Estado. É só ter paciência e ocupar as instituições por dentro, sempre legitimado pelas urnas.

Ainda assim, se isso acontecer, continuaremos subestimando, combinando tacitamente uns com os outros de ver na realidade apenas o que queremos ver.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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