Foi lançado na última quarta (21) em Belo Horizonte, o Relatório de Prevenção à Letalidade Juvenil e Adolescente, desenvolvido pela Secretaria de Segurança e Prevenção. A data foi escolhida por ser o Dia Internacional de Combate ao Racismo no mundo.
Considerando-se a faixa etária entre 15 e 29 anos em recorte de 100 mil habitantes, o relatório aponta que a taxa de 173,8 em 2012 caiu para 91,1 em 2017. Porém, no somatório de pretos e pardos (considerado o total de negros), o percentual chega aos 76% do número de homicídios na capital mineira, sendo que mais de 84% são causados por arma de fogo.
O percentual é maior que em um comparativo a nível nacional (72,33%) e de cidades consideradas muito violentas, como Rio de Janeiro, onde a taxa é de 80%, segundo o relatório.
OJornalistas Livres conversou com a Deputada Federal Áurea Carolina (PSOL), com a Diretora Municipal de Políticas para a Igualdade Racial Makota Kisandembu e a Gerente Municipal de Prevenção à Criminalidade e Violência Juvenil, Etiene Martins, sobre a importância do relatório e quais os caminhos podem ser tomados a partir dele. Ouça abaixo:
O artigo 5o da Constituição Brasileira garante a inviolabilidade do direito à vida. Mas as conclusões apresentadas pela Anistia Internacional no relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, que será lançado hoje, revela que estamos violando sistematicamente o direito à vida no Brasil. São cerca de 58 mil homicídios por ano no país. É uma letalidade altamente seletiva: 77% das vítimas são jovens negros, moradores da periferia. Como se essas vidas não tivessem valor algum para a nossa sociedade e para o Estado. Ao invés de o Brasil reagir com políticas públicas para enfrentar uma situação duas vezes superior à considerada epidêmica pela Organização Mundial de Saúde, o Congresso avança em pautas que tendem a dirimir direitos conquistados e a expor ainda mais essa população à violência, como a tentativa de reduzir a maioridade penal e a proposta de revogação do Estatuto do Desarmamento. “Há uma focalização dos homicídios e da penalização em um certo tipo de pessoa, de um determinado território”, explica Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. “São sujeitos considerados ‘matáveis’, quase descartáveis. É como se a cada dois dias derrubássemos um avião lotado de jovens – e isso não é notícia no jornal.”
A boa notícia é que a sociedade brasileira, por meio dos movimentos sociais, está reagindo aos retrocessos e omissões. Leia, a seguir, a entrevista completa com Átila Roque.
Por Maria Carolina Trevisan, especial para Jornalistas Livres
Jornalistas Livres – O relatório apresentado pela Anistia Internacional este ano evidencia uma série de graves violações a direitos humanos e revela que o parlamento reforça medidas conservadores, na contramão do enfrentamento às violações. Há alguma surpresa, na sua opinião?
Átila Roque – O que chamou a atenção da Anistia no caso do Brasil no ano passado, foi a agressividade da agenda conservadora no âmbito do Legislativo, que fez avançar a sua pauta. Terminamos o ano com muitos direitos importantes sob risco. São propostas que estão em tramitação ou já foram aprovadas na Câmara e aguardam confirmação do Senado. Percebemos que, diante de um certo vazio de lideranças no Congresso, acabou acontecendo a ascensão de uma liderança muito oportunista no sentido de engavetar uma série de propostas que significam um grave retrocesso em várias áreas importantes para a agenda de direitos humanos e que agora estão sujeitos a serem aprovados pelo Congresso.
Jornalistas Livres – É possível destacar algum avanço na garantia de direitos humanos no país?
Átila Roque – Um ponto positivo foi que houve uma mobilização importante da sociedade na defesa desses direitos, especialmente de parcelas bastante significativas da juventude, tanto no que diz respeito à tentativa de redução da maioridade penal, como no que se refere aos direitos das mulheres e, mais para o final do ano, a mobilização dos estudantes, com várias manifestações importantes. Isso mostra que apesar do enorme baixo astral da agenda legislativa e do enorme descrédito que as instituições e os partidos estão sofrendo devido à crise do próprio modelo político, existe ainda uma força de participação da sociedade muito disposta a não recuar nas conquistas da democracia.
Jornalistas Livres – Diante desse cenário conservador atuante no Congresso, qual a importância das Comissões Parlamentares de Inquérito que se instauraram e se mantiveram ativas, como, por exemplo, a CPI contra o genocídio da juventude negra?
Átila Roque – Tivemos duas CPIs tratando especificamente do genocídio da juventude negra, uma na Câmara e outra no Senado. A Anistia vem tentando, há um ano e meio, mobilizar a sociedade e pautar, no marco da campanha Jovem Negro Vivo, a agenda do alto índice de homicídios no Brasil, o impacto que isso tem sobre a juventude brasileira e a juventude negra em particular. A gente vem demandando, por um lado, que a própria sociedade rompa essa cortina de silêncio e invisibilidade sobre essa agenda e por outro lado que o Estado coloque esse tema no marco de prioridades que a gente acha que ele deve ter. O fato de o Congresso ter respondido com as CPIs merece destaque. Foram momentos em que essa agenda entrou de maneira muito qualificada no debate parlamentar. Em geral, esse debate chega no parlamento por vias muito tortas e marcadas por estereótipos e preconceitos, com uma visão conservadora, como aconteceu no debate sobre a redução da maioridade penal. Foram momentos em que esse debate pode chegar à agenda do Legislativo de maneira muito mais qualificada.
Jornalistas Livres – Em relação aos índices de homicídio, quais as tendências observadas pela Anistia?
Átila Roque – Os dados mais recentes mostram uma assustadora continuidade no crescimento desses índices. No último Mapa da Violência, a curva dos últimos 10 anos, referentes ao homicídio de jovens entre 15 e 29 anos, há uma situação bastante dramática. Quando você olha os jovens brancos, há um decréscimo da ordem de 33%. Quando você olha, nessa mesma faixa de idade, os jovens negros, há um crescimento de 33%. Ou seja é um espelho invertido, o que leva a gente a pensar que em grande medida, a taxa de homicídios de jovens negros é o que está sustentando a taxa de homicídios na faixa tão alta de 56 mil, ou 58 mil, segundo o Fórum de Segurança Pública Brasileiro.
“São quase 60 mil mortos por homicídio. Embora tenha caído em grandes cidades como no Rio de Janeiro e em São Paulo e tenha se interiorizado, de certa maneira, você não vê uma redução significativa para o patamar de calamidade que nós vivemos.”
O fato é que o Brasil vive uma situação que pode ser considerada de emergência, de epidemia de homicídio. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, uma taxa de homicídios por cem mil habitantes, acima de 10, já pode ser considerada epidêmica. O Brasil, em média, está em mais ou menos 25 homicídios por cem mil habitantes. Ou seja, nós estamos mais no patamar da calamidade, porque 60 mil mortos por homicídio no ano é muito acima de várias guerras.
Jornalistas Livres – É uma taxa muito expressiva e que preocupa por sua seletividade racial e geracional.
Átila Roque – A taxa absoluta de quase 60 mil homicídios por ano é muito alta sob qualquer aspecto. A taxa relativa, de 25 homicídios por 100 mil habitantes também é muito alta, porque está muito acima do patamar de epidemia. A taxa por idade e o registro por cor também são muitos elevados. Mais de 50% dessas mortes são de jovens. E entre os jovens, 77% são negros. Isso significa uma focalização da vitimização de jovens negros e pobres, da periferia. Mostra que há uma letalidade altamente seletiva.
Jornalistas Livres – Como o Estado reage? Há um desenho de política pública para enfrentar essa situação?
O Juventude Viva [programa federal com desdobramentos municipais, desenhado especialmente para enfrentar o homicídio de jovens negros] é uma gota no oceano. É um programa que, quando você olha o conceito, é um meritório. Agora, o alcance dele, diante da tragédia que estamos vivendo é absolutamente pífio, para não dizer quase ridículo, considerando o tamanho do problema que a gente enfrenta no Brasil. O Governo Federal, o ministro da Justiça, vem há anos prometendo e adiando a publicação de um Plano Nacional de Redução de Homicídios, que traria um conjunto de iniciativas integradas, que envolveria o Estado e a União, focados na redução de homicídios. Nós estamos esperando isso há oito anos. A última vez que o ministro Cardoso prometeu isso foi no ano passado, no encerramento do encontro anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quando ele disse que o plano estaria pronto e seria apenas questão de fechar os detalhes, para lançar não um “plano” mas um “pacto”. Estamos até agora esperando esse pacto. Já passou um ano desse momento.
Então, isso tudo sugere que estamos vivendo um impasse: o Estado brasileiro não está conseguindo focar e dar prioridade àquilo que é a maior emergência humanitária que o Brasil vive. É uma situação que, daqui a 10 anos, vai nos deixar na mesma ou pior. Porque se você não fizer alguma coisa, de forma organizada para reverter isso, isso não vai se reverter naturalmente. Pelo contrário. O que a gente deve assistir é o que estamos começando a ver nos dados: uma focalização cada vez maior dos homicídios, com a penalização cada vez maior de um certo tipo de pessoa, de um determinado território, que estão sendo considerados sujeitos ‘matáveis’, quase descartáveis, e a sociedade, o Estado consegue dormir todos os dias com essa tragédia. São 30 mil mortes de jovens por ano, é como se a cada dois dias você estivesse derrubando um avião lotado de jovens, 77% negros, e isso não é notícia no jornal.
Jornalistas Livres – O relatório diz que um dos pontos importantes para combater essa violência é a transparência na área da segurança pública. Como o senhor vê o posicionamento do governador Geraldo Alckmin, que impôs sigilo de 50 anos aos registros dos Boletins de Ocorrência?
Átila Roque – Essa medida do governador Alckmin é inacreditável. Vai na contramão do que pedem os especialistas e dessa reivindicação por maior transparência e por maior sistematização dos dados. São Paulo, que já foi um evento nessa área, está entre os estados que no passado deram exemplo, junto com o Rio de Janeiro. Hoje está caminhando a passos largos para um retrocesso gravíssimo. Se essa medida se confirmar, vai ser realmente assustador.
O que temos hoje no Brasil é uma situação em que a participação da polícia nos índices de homicídios é muito alta, ainda que os dados sejam fragmentados. Mostram que a participação do Estado, através da polícia, nesse total de homicídios é altíssima. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, olhando apenas os “autos de resistências”, ou seja, não estamos falando de todas as mortes que envolvem policiais, mas se a gente olhar apenas a situação em que a própria polícia diz que matou em legítima defesa, nós tivemos uma média nos últimos quatro anos de 15%. Ou seja, cerca de 15% do total de homicídios ocorridos no Rio de Janeiro são de pessoas mortas pelas mãos da polícia, supostamente em ações de legítima defesa. Mas diversas pesquisas mostram que essas mortes tratam-se de execuções sumárias e não de resistência seguida de morte. O relatório “Você matou meu filho”, lançado pela Anistia no ano passado, faz uma análise dos autos de resistência ocorridos no Rio em 2014 e também uma análise histórica desde 2011: há fortes indícios que a maioria dos casos de auto de resistência se tratou, na verdade, de execuções.
Foto: Lina Marinelli
Jornalistas Livres – Então é correto afirmar que uma parte importante dos homicídios no Brasil é causada pela polícia.
Átila Roque – Temos uma situação em que a polícia é parte do problema. A gente tem dificuldade de falar do conjunto do Brasil porque não há transparência, coleta uniformizada por parte das instâncias do estado, que têm responsabilidade sobre o controle e o monitoramento das ações policiais, com medidas efetivas nesses casos. O Ministério Público se omite e não atua no marco da sua responsabilidade constitucional, afinal de contas cabe ao MP o controle externo da ação policial, que não está fazendo isso. A Justiça, por sua vez, atua de maneira lenta, quase parada. Então, o número de situações que chega a qualquer tipo de responsabilização é quase nulo e a Polícia Civil também não investiga esses episódios. É quase uma cadeia de cumplicidade. Embora seja uma palavra forte, é como se tivesse todo um sistema funcionando para manter e autorizar a má atuação da polícia, no sentido de que ela pode continuar exercendo um papel de executora de pessoas consideradas traficantes ou bandidos, ou que quer que seja.
Jornalistas Livres – Como isso se reflete no sistema prisional?
Átila Roque – O campo da Segurança Pública e da Justiça no Brasil, que em qualquer sociedade funciona como um termômetro, um importante patamar de cidadania, está se revelando num enorme déficit de Justiça, uma enorme violência. O que a gente vê é esse sistema funcionando para penalizar um certo tipo de pessoa, muito mais como um fator de repressão, controle e até eliminação de um certo perfil de cidadão do que uma instância recuperadora, garantidora de um patamar de civilidade e eventualmente de punição e responsabilização daquela pessoa que está em confronto com a lei.
“É um país que está prendendo as pessoas erradas”
É, na verdade, um instrumento de controle e supressão de direitos da própria vida de uma certa parte da população. Ao traçar um paralelo entre a taxa de homicídios (quase 60 mil por ano) e a taxa de resolução de homicídios (entre 5 e 8%), ou seja, menos de 8% obtém qualquer resultado da Justiça, encontra-se um número altíssimo de impunidade. Como pode um país em que o crime contra a vida é praticamente impune, ter, esse mesmo país, a quarta maior população prisional do mundo? É um país que está prendendo a pessoa errada! A maior parte dessas quase 600 mil pessoas que estão hoje nas prisões, nas piores condições possíveis, não cometeram crimes violentos, não cometeram crimes contra a vida. São pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio ou o chamado “tráfico de drogas”, porque o usuário é enquadrado como traficante, e 40% dos presos estão em prisão provisória – passam mais tempo na prisão do que no final das contas é a pena.
“Basicamente o sistema de Justiça ou prende ou mata o jovem negro pobre. E a população do território de favela. Essa é a situação. Quem está morrendo são eles e quem está sendo preso também são eles – e cada vez mais elas.”
Jornalistas Livres – Sobre o posicionamento político do Brasil, o que significa o país não ter se candidatado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, como chama a atenção o relatório?
Átila Roque – Isso foi visto como uma surpresa negativa. Desde o início o Brasil tem participado e ocupado assento na Comissão de Direitos Humanos. Pela primeira vez, o Brasil declinou da participação. É muito surpreendente que um país como o nosso, que tem reivindicado uma posição de protagonismo internacional político e econômico, no momento em que tem a oportunidade de ocupar um lugar de importância como essa comissão, espaço em que os Estados membro das Nações Unidas exerce seu mandato fundamental de monitorar as condições de direitos humanos do mundo, se furte voluntariamente a ocupar esse lugar. O Brasil está quase dizendo para o mundo que ele é um ator secundário. Quase declarando e assinando com firma reconhecida que não tem competência para estar em um espaço global de defesa dos direitos humanos tão importante como a comissão.
Jornalistas Livres – O Brasil também não ratificou o Tratado sobre Comércio de Armas.
Átila Roque – Quando o tratado foi aprovado, o Brasil foi um dos primeiros países a assinar, aderiu imediatamente. Mas desde então, a ratificação ainda não foi feita. O que cria uma enorme frustração e uma reversão de expectativas. Havia uma expectativa de que o Brasil fosse um dos primeiros a ratificar, dada a importância desse tratado no mundo de hoje. É mais fácil exportar arma do que banana. Existe muito mais controle do comércio internacional sobre banana do que armas de porte médio e pequeno, as que mais matam. Hoje o Brasil está mandando uma sinalização muito negativa ao não priorizar, não pressionar o Congresso.
Foto: Bruno Miranda/Na Lata
Jornalistas Livres – No conjunto dos países pesquisados pela Anistia, como vai o Brasil? Há algum motivo de orgulho?
Átila Roque – A Anistia não faz ranking. Normalmente não traçamos esse paralelo porque a gente prefere não comparar países. Mas podemos dizer que nós estamos entre os países que mais mata no mundo. Provavelmente em termos absolutos corre o risco de ser o país que mais mata e está entre os mais desiguais e mais violentos, mantendo um nível muito alto de violência de defensores de direitos humanos.
Se você olha o volume de pessoas mortas no campo ou lideranças indígenas camponesas que são assassinadas, o Brasil é dos países que mais mata no mundo. Então, se você traçar um paralelo, o cenário dos direitos humanos no Brasil não nos orgulha. Tem avanços pontuais, mas estamos vivendo um momento em que tem uma grave ameaça de retrocesso. Ainda não se configurou porque ainda não foram medidas aprovadas, foram parcialmente aprovadas.
Espera-se que a reação da sociedade possa reverter a situação. Mas estamos falando de grandes riscos. A situação brasileira não corresponde aos avanços que nós logramos em outras esferas, como o protagonismo global, a luta contra a pobreza, o avanço da democracia. O Brasil obteve grandes avanços ao longo dos últimos 30 anos do ponto de vista da Constituição, mas mantém ainda um patamar alto de violação, devido à dificuldade de implementação desse marco legal avançado, que não corresponde ao que nós gostaríamos de ver.
Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil
Destaques do relatório: * Sistema internacional de proteção aos direitos humanos corre risco; * Drama dos refugiados é um tema central no mundo; * Violência continua e retrocesso no Legislativo é grande ameaça no Brasil.
A Anistia Internacional lançou mundialmente na noite desta terça feira (23) seu Relatório Anual 2015/2016. O relatório apresenta um cenário dramático para os direitos humanos no mundo e no Brasil, com um cenário em grave deterioração.
Foto por Bruno Miranda
Segundo a Anistia Internacional, são muitos os governos que estão buscando enfraquecer as instituições criadas para proteger os direitos das pessoas. O processo, com características globais, atingiu gravemente a ONU. Segundo Salil Shetty, secretário geral da Anistia Internacional, “a ONU foi criada para ‘ salvar as futuras gerações dos flagelos da guerra’ e ‘reafirmar a fé nos direitos humanos fundamentais’ , mas se encontra no momento mais vulnerável do que nunca diante dos enormes desafios”.
O agravamento da situação em escala mundial ameaça fazer desmoronar o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, duramente construído ao longo dos últimos 70 anos, desde a fundação da ONU em 1945. “Não somente nossos direitos estão sendo ameaçados, como também as leis e o sistema que as protegem”, advertiu Shetty. Em 2015, mais de 122 Estados realizaram torturas ou maus-tratos e 30 ou mais países obrigaram refugiados a retornarem a países onde estariam em perigo.
O tema dos refugiados está no centro da abertura do relatório da Anistia Internacional: “O ano passado aplicou um teste rigoroso da capacidade do sistema internacional de responder às crises e aos deslocamentos em massa de pessoas, e seu resultado mostrou que o sistema é lamentavelmente inadequado. Existem hoje mais pessoas desalojadas e em busca de refúgio em todo o mundo do que em qualquer momento desde a Segunda Guerra.”
O encerramento da introdução do relatório é pungente. Salil Shetty reconhece que o documento é insuficiente para retratar o tamanho da ameaça sobre toda a humanidade: “suas páginas não conseguem carregar a profundidade da tragédia que as crises de 2015 imprimiram em cada ser humano –sobretudo a crise dos refugiados, agora agravada pelo inverno no hemisfério Norte. Em situações como essa, proteger e fortalecer os sistemas de proteção civil e de direitos humanos não pode ser considerado uma opção. É literalmente uma questão de vida ou morte.
BRASIL
Foto por Bruno Miranda
O relatório traça um cenário abrangente sobre o Brasil, reunindo as denúncias que foram divulgadas ao longo de 2015 no país pela mídia independente, as organizações de defesa dos direitos humanos e os diferentes movimentos sociais.
Dos homicídios cometidos pela polícia e a consequente impunidade às seguidas repressões e cerceamento ao direito à manifestação; dos violentos conflitos de terra com a morte de dezenas de sem terra e pequenos agricultores; da violência contra jovens negros nas favelas e periferias à cometida contra lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI) e aos indígenas; das condições prisionais desumanas à prática cotidiana da tortura; da fragilização dos direitos das crianças e jovens à ofensiva contra as mulheres, à perseguição aos defensores dos direitos humanos; até o desastre ambiental de Mariana.
Este cenário acontece num pano de fundo institucional de grave retrocesso no Legislativo; o Congresso Nacional mantém agenda fortemente regressiva contra os direitos humanos.
Leia a seguir a íntegra do relatório da Anistia Internacional sobre o Brasil.
INTEGRA DO RELATÓRIO SOBRE O BRASIL
Graves violações de direitos humanos continuaram sendo denunciadas, como homicídios cometidos pela polícia, tortura e maus-tratos de pessoas presas. Jovens negros moradores de favelas e periferias corriam maiores riscos. As forças de segurança, com frequência, usaram força excessiva ou desnecessária para reprimir manifestações. Conflitos por terras e recursos naturais provocaram a morte de dezenas de pessoas. Comunidades rurais e seus líderes continuaram a sofrer ameaças e ataques de proprietários de terras, principalmente no Norte e Nordeste do país. Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI) continuaram a enfrentar discriminação e violência. Intensificou-se a oposição da sociedade civil às novas leis e emendas constitucionais que ameaçavam retroceder direitos sexuais e reprodutivos, bem como direitos das mulheres e das crianças; jovens e mulheres tomaram a frente dessas mobilizações. O Brasil não se candidatou à reeleição para um assento no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Segurança pública
A segurança pública e o alto número de homicídios de jovens negros continuaram entre as maiores preocupações. O governo não apresentou um plano nacional concreto para a redução dos homicídios no país, apesar de ter anunciado em julho que o faria. Segundo um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública referente a 2014, mais de 58.000 pessoas foram vítimas de homicídios; o número de policiais mortos foi de 398, uma pequena queda de 2,5% com relação ao ano anterior; e mais de 3.000 pessoas foram mortas pela polícia, um aumento de aproximadamente 37% com relação a 2013.
Execuções extrajudiciais
Em 2015, o número de homicídios durante operações policiais permaneceu alto, mas a falta de transparência na maioria dos estados impossibilitou que se calculasse o número exato de pessoas mortas em consequência dessas operações. Nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, a quantidade de pessoas mortas por policiais no cumprimento de suas funções aumentou significativamente, mantendo-se a tendência observada em 2014. Os homicídios cometidos por policiais em serviço raramente foram investigados, e os relatos de que os agentes envolvidos tentavam alterar a cena do crime e criminalizar as vítimas eram frequentes. Policiais muitas vezes tentavam justificar as mortes como atos de legítima defesa, alegando que as vítimas teriam resistido à prisão. Em setembro, um menino de 13 anos foi morto durante uma operação policial em Manguinhos e um adolescente de 16 anos foi morto a tiros na Maré, duas favelas do Rio de Janeiro.
Em fevereiro, 12 pessoas foram mortas a tiros e outras quatro foram feridas por policiais militares durante uma operação no bairro de Cabula, em Salvador, na Bahia. Após as mortes, os moradores relataram que se sentiam ameaçados e que temiam as frequentes visitas que a Polícia Militar começou a fazer ao local. Uma investigação da Polícia Civil concluiu que os policiais militares agiram em legítima defesa. Porém, as organizações que trabalharam sobre o caso encontraram fortes evidências indicando que as 12 pessoas foram vítimas de execuções extrajudiciais. O Ministério Público condenou as ações dos policiais militares envolvidos nas mortes e questionou a imparcialidade da investigação conduzida pela Polícia Civil. Eduardo de Jesus Ferreira, um menino de 10 anos, foi morto por policiais militares diante de sua casa no Complexo do Alemão, conjunto de favelas do Rio de Janeiro, no dia 2 de abril. Os policiais tentaram adulterar a cena do crime e remover seu corpo, mas foram impedidos pelos familiares e vizinhos do menino. Após receberem ameaças de morte, a mãe de Eduardo e outros membros da família tiveram que deixar a cidade. Cinco jovens negros com idades entre 16 e 25 anos foram mortos a tiros no bairro Costa Barros, no Rio de Janeiro, em 29 de novembro, por policiais militares do 41º Batalhão de Polícia Militar. Policiais efetuaram mais de 100 disparos em direção ao automóvel dentro do qual os homens estavam sentados.
Surgiram denúncias de que, em várias cidades, policiais fora de serviço cometeram homicídios como parte de grupos de extermínio. Em Manaus, no Amazonas, 37 pessoas foram mortas num único fim-de-semana de julho. Em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, 18 pessoas foram mortas numa única noite, e as investigações iniciais apontavam o envolvimento de policiais militares. Em fevereiro, Vitor Santiago Borges, de 29 anos, foi atingido por disparos feitos por membros das forças armadas na favela da Maré. Em razão dos ferimentos, ele teve ficou paralisado. As autoridades não prestaram a devida assistência a Vitor ou a sua família, nem conduziram uma investigação completa e imparcial sobre as circunstâncias dos disparos. Desde abril de 2014, o Exército vinha desempenhando funções policiais na comunidade. Os soldados foram destacados para atuar na Maré no período que antecedeu a Copa o Mundo e deveriam ter deixado o local logo após o evento. Porém, continuaram a realizar funções de policiamento na comunidade até junho de 2015. Nesse período, os moradores denunciaram um grande número de violações de direitos humanos cometidas pelas forças armadas, como violência física e disparos contra os residentes.
Impunidade
Policiais responsáveis por execuções extrajudiciais desfrutaram de quase total impunidade. Das 220 investigações sobre homicídios cometidos por policiais abertas em 2011 na cidade do Rio de Janeiro, houve, até 2015,somente um caso em que um policial foi indiciado. Em abril de 2015, 183 dessas investigações continuavam abertas. O Congresso Nacional instituiu duas Comissões Parlamentares de Inquérito, uma no Senado e outra na Câmara, para investigar o alto índice de homicídios de jovens negros. Ao mesmo tempo, uma lei que altera o atual Estatuto do Desarmamento para permitir maior acesso às armas de fogo ganhou impulso no Congresso. O Brasil não ratificou o Tratado sobre o Comércio de Armas. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instalada em outubro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para investigar homicídios cometidos por policiais e tem sua conclusão prevista para maio de 2016. A Polícia Civil do Rio de Janeiro anunciou que todos os casos de homicídios cometidos pela polícia seriam investigados pela Divisão de Homicídios.
Condições prisionais, tortura e outros maus-tratos
Em março, a Presidente nomeou 11 especialistas para o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O grupo integra o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e seu mandato incluirá visitas e inspeções a locais de detenção. Superlotação extrema, condições degradantes, tortura e violência continuaram sendo problemas endêmicos nas prisões brasileiras. Nenhuma medida concreta foi tomada pelas autoridades para resolver o grave problema de superlotação e as condições cruéis da Penitenciária de Pedrinhas no estado do Maranhão. Em outubro, foi revelado que um interno de Pedrinhas havia sido morto e parcialmente canibalizado por outros presos. Rebeliões de presos ocorreram em diversos estados. Em Minas Gerais, três detentos foram mortos durante uma rebelião no presídio de Teófilo Otoni, em outubro, e dois foram mortos em circunstâncias similares no presídio de Governador Valadares em junho. Em outubro, ocorreram distúrbios na penitenciária de Londrina, no Paraná.
Foto por Bruno Miranda
Direitos das crianças e adolescentes
O sistema de justiça juvenil também apresentou superlotação severa e condições degradantes. Houve grande número de denúncias de tortura e de violência contra meninos e meninas, sendo que vários adolescentes morreram em custódia no decorrer do ano. Em agosto, a Câmara dos Deputados aprovou uma emenda à Constituição reduzindo a idade em que crianças e adolescentes podem ser julgados como adultos de 18 para 16 anos. No fim do ano, a emenda ainda não havia sido aprovada pelo Senado. Caso aprovada, a emenda violará diversas obrigações do Brasil diante da legislação internacional de direitos humanos relativa à proteção dos direitos da criança e do adolescente.
Liberdade de manifestação
No dia 29 de abril, no Paraná, uma manifestação contra as mudanças nas regras que alteram os benefícios de previdência social e aposentadoria dos professores estaduais foi confrontada com uso desnecessário e excessivo da força pela Polícia Militar. Os policiais usaram gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar os manifestantes. Mais de 200 pessoas ficaram feridas e pelo menos sete foram detidas temporariamente. Em consequência do incidente, a Defensoria Pública e o Ministério Público iniciaram ações judiciais contra o governo do estado. No fim do ano, o caso ainda aguardava conclusão. Em outubro, o Senado aprovou um projeto de lei que tipifica o terrorismo como um crime específico no Código Penal. Temia-se que, caso aprovada em sua forma atual, a lei pudesse ser usada para criminalizar manifestantes e classifica-los como “terroristas”. No fim do ano, a lei ainda aguardava aprovação final da Câmara dos Deputados.
Direito à moradia
Desde que o Rio de Janeiro foi escolhido em 2009 para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, milhares de pessoas foram removidas de suas casas para dar lugar às obras de infraestrutura para o evento. Muitas famílias não receberam a devida notificação, nem indenizações suficientes ou reassentamento adequado. A maioria das 600 famílias da comunidade de Vila Autódromo, próxima ao futuro Parque Olímpico, foi removida pela Prefeitura. Em junho, integrantes da guarda municipal agrediram os moradores que permaneceram no local e protestavam pacificamente contra as remoções. Cinco moradores ficaram feridos, entre eles, Maria da Penha Macena, que teve o nariz quebrado. No fim do ano, os residentes que ainda permaneciam no local estavam vivendo em meio aos escombros das demolições e sem acesso a serviços básicos como água e eletricidade. Na cidade do Rio de Janeiro, a maioria dos condomínios que fizeram parte do programa Minha Casa, Minha Vida para famílias de baixa renda estavam sob o controle de milícias (grupos criminosos organizados, formados principalmente por antigos policiais civis e militares ou fora de serviço e bombeiros) ou de outras gangues criminosas organizadas. Essa situação deixou milhares de famílias sujeitas à violência, sendo que muitas delas foram forçadas a abandonar suas casas por causa de intimidações e ameaças.
Defensores dos Direitos Humanos
O Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH) não foi capaz de oferecer a proteção prometida em suas disposições. A falta de recursos continuou a prejudicar sua implementação e deixou os defensores em perigo, enquanto a ausência de um marco legal para o programa também comprometeu sua eficácia. Um projeto de lei visando à criação de um marco legal para embasar a coordenação dos governos federal e estaduais na proteção dos defensores tramitava no Congresso no fim do ano. Conflitos por terras e recursos naturais continuaram a provocar dezenas de mortes a cada ano. Comunidades rurais e seus líderes foram ameaçadas e atacadas por proprietários de terras, principalmente no Norte e Nordeste do país. Em outubro, cinco pessoas foram mortas em Vilhena, no estado de Rondônia, no contexto dos conflitos por terras naquela área. Raimundo Santos Rodrigues, também conhecido como José dos Santos, foi morto a tiros em 25 de agosto na cidade de Bom Jardim, no Maranhão. Sua esposa, que estava com ele, também foi atingida por tiros. Raimundo Santos Rodrigues era membro do Conselho da Reserva Biológica do Gurupi, uma área de proteção ambiental na floresta Amazônica no estado do Maranhão. Por muitos anos, ele fez denúncias e campanhas contra a exploração ilegal de madeira e o desmatamento na Amazônia, trabalhando para defender os direitos de sua comunidade. Raimundo também era membro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bom Jardim. Ele havia recebido várias ameaças de morte, que foram reiteradamente denunciadas às autoridades pela Comissão Pastoral da Terra e por uma organização local de direitos humanos. No entanto, nada foi feito para protegê-lo.
Casos de ameaças, ataques e assassinatos envolvendo defensores dos direitos humanos raramente eram investigados e permaneciam praticamente impunes. Temia-se que os responsáveis pela morte de Flaviano Pinto Neto, líder da comunidade quilombola do Charco, no Maranhão, em outubro de 2010, não fossem levados à Justiça. Apesar de uma investigação minuciosa ter sido realizada, em outubro os tribunais indeferiram as ações contra os acusados e culparam a vítima por sua própria morte. No fim do ano, não estava claro se o Ministério Público iria recorrer da decisão.
O rompimento de uma barragem da mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, no estado de Minas Gerais, no dia 5 de novembro, foi considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil. O acidente resultou em mortes e ferimentos, além de outras sérias violações dos direitos humanos, que incluíam privar famílias e comunidades inteiras de acesso suficiente à água potável e a abrigos seguros, bem como a informações confiáveis sobre o que estava acontecendo. A lama tóxica que tomou conta dos cursos d’água também violou o direito aos meios de subsistência dos pescadores e de outros trabalhadores que dependiam direta ou indiretamente das águas do Rio Doce.
Direitos dos povos indígenas
O processo de demarcação das terras indígenas continuou extremamente demorado, apesar de o governo federal contar com a autoridade legal e os meios financeiros para pôr em prática o processo. Vários casos estavam pendentes no fim do ano. Ataques contra membros das comunidades indígenas continuaram sendo praticados de modo generalizado, e os responsáveis raramente foram levados à Justiça. A situação da comunidade Guarani-Kaiowá de Apika ́y,no Mato Grosso do Sul, deteriorou de forma dramática e muito preocupante. Uma ordem de despejo que teria deixado a comunidade sem ter onde viver foi temporariamente suspensa em agosto. No fim do ano, porém, o risco de expulsão permanecia. Em 29 de agosto, fazendeiros locais atacaram a comunidade indígena Ñanderú Marangatú no município de Antonio João, no Mato Grosso do Sul. Um homem, Simião Vilhalva, foi morto e várias mulheres e crianças ficaram feridas. Nenhuma investigação foi aberta sobre o ataque, nem foram tomadas quaisquer medidas para proteger a comunidade contra novos atos de violência.
Uma emenda à Constituição que transfere a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo, onde a frente de pressão do agronegócio tem grande força, foi aprovada por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados em outubro. No fim do ano, a emenda aguardava aprovação do Plenário da Câmara. Caso aprovada, impactará de forma bastante negativa o acesso à terra para os povos indígenas.
Direitos sexuais e reprodutivos
Novas leis e emendas constitucionais que estavam sendo debatidas no Congresso representaram uma séria ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos, assim como aos direitos das mulheres. No fim do ano, tramitavam no Congresso Nacional alguns projetos de lei, como o Estatuto do Nascituro, que propunham criminalizar o aborto em todas as circunstâncias. Outra proposta visava impedir o acesso a abortos seguros e legais no sistema público de saúde, mesmo nos casos atualmente permitidos pela legislação brasileira, como quando a vida da mulher corre risco ou a gravidez resulta de estupro. Caso aprovada, a medida também impediria a assistência de emergência para vítimas de estupro.
Foto de Capa: município de Serra (ES), o mais violento do país com mais de 300 mil habitantes – Bruno Miranda / Jornalistas Livres