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  • NÃO É POSSÍVEL NEGOCIAR COM BOLSONARO!

    NÃO É POSSÍVEL NEGOCIAR COM BOLSONARO!

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Dia 29 de junho, o presidente Jair Bolsonaro sanciona a “Lei Aldir Blanc”, que regulamenta auxílio financeiro para profissionais da cultura nesses tempos de pandemia. Essa é uma das dimensões mais tristes dessa doença maldita: a morte da arte. Não existe arte sem aglomeração. Tomara que passe logo. A vida humana não pode ser apenas fenômeno biológico.

    30 de junho, Carlos Alberto Decotelli se demite da chefia do Ministério da Educação depois de virem a público notícias de que ele fraudou currículo acadêmico. Doutorado falso na Argentina, trabalho docente na Fundação Getúlio Vargas desmentido pela instituição, plágio em dissertação de mestrado. Decotelli foi-se antes de chegar.

    Primeiro, Bolsonaro sanciona lei que ajuda profissionais da cultura, categoria que sempre desprezou, chamava de “vagabundos”, alimentando todo tipo de mentiras para jogar a população contra a Lei Rouanet. Depois, correu com um ministro que “apenas” mentiu no currículo.

    Vamos combinar, né? Num governo em que os ministros ameaçam prender juízes do STF, que dizem sem nenhum pudor que aproveitarão a pandemia para derrubar legislação ambiental, o que é mentir no currículo Lattes? O governo diz que procura um “técnico” para comandar a pasta da educação, o que sugere que o novo indicado não será alinhado à guerra cultural olavista.

    Algo está diferente. Já há umas duas semanas que o tigrão tá meio tchuchuca, com comportamento mais próximo do que se espera de um presidente da República, que por dever de ofício é obrigado a respeitar os ritos da democracia liberal.

    Por quê? O que está acontecendo?

    Em texto publicado na Folha de São Paulo em 15 de junho, Arthur Lyra, cacique do “Centrão”, disse que o governo está “amadurecendo”. Prova dessa maturidade seria a aproximação com o próprio Centrão, que ao tirar o governo de extrema-direita golpista e trazê-lo ao plano da sobriedade institucional estaria colaborando para a defesa da própria democracia brasileira.

    Conte outra!

    De centrão, o Centrão tem muito pouco. Historicamente quase sempre esteve inclinado à direita, ainda que por pragmatismo fisiológico tenha se mostrado capaz de apoiar agendas progressistas.

    Além do mais, carece de ser muito ingênuo para achar que a moderação no tom é resultado de amadurecimento. O problema do presidente nunca foi imaturidade, falta de experiência política. Bolsonaro passou quase 30 anos no Congresso Nacional. É impossível ficar tanto tempo no Parlamento e não aprender alguma coisa. Bolsonaro não é bobo. Tolo é quem continuar achando que ele é idiota.

    Bolsonaro é ideológico e está convencido de que lidera revolução destinada a sanear o Brasil e construir futuro melhor. Não é cortina de fumaça. Não é hipocrisia. É ideologia mesmo, sincera como toda ideologia.

    É crença. É utopia, o que torna Bolsonaro tipo político especialmente perigoso. Não há acordo possível com quem está convencido de que é responsável por acelerar a marcha da história rumo ao progresso.

    Na lógica da revolução bolsonarista, o contrato social da redemocratização formalizado na Constituição de 1988 é o antigo regime, o sistema corrupto que assaltou os cofres públicos e maculou os valores família cristã brasileira ao estimular na sociedade hábitos licenciosos.

    O futuro idealizado pelo bolsonarismo é uma sociedade dominada por proprietários armados e senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, representados diretamente pelo chefe do Executivo, sem mediação institucional. Na utopia bolsonarista, o Estado é mínimo e a casa é grande.

    O bolsonarismo também opera com certo conceito de “democracia”, que é palavrinha elástica o suficiente para permitir os mais diversos usos. “Democracia” é conceito que está sempre sendo disputado. Parte da imprensa liberal comemorou a pesquisa DataFolha publicada em 29 de junho que aponta 75% da população brasileira se dizendo defensora da “democracia”. A comemoração é otimista demais. Cabe muita coisa no guarda-chuva da “democracia”. Por isso, o substantivo precisa tanto de adjetivo.

    Qual a democracia a sociedade brasileira apoia tanto?

    Não há tirano que se diga tirano. Acho mesmo que não há tirano que se considere tirano, que acorde pela manhã e pense “Hoje vou matar, torturar, reprimir só porque sou malvadão”. Os tiranos acreditam estar agindo em nome do “bem comum”, da “justiça”, do “progresso”, da “vontade de Deus”.

    Na auto-representação todos somos virtuosos, até mesmo os tiranos, até mesmo os fascistas.

    A prisão de Queiroz coloca uma bomba no colo do presidente da República. É muito difícil imaginar que a mulher e as filhas de Queiroz, ou os outros funcionários dos gabinetes dos Bolsonaro, ficarão calados, que não vão assinar acordo de delação com o MP em algum momento.

    Para além dos generais palacianos, as Forças Armadas não responderam à convocação golpista. E vejam que Bolsonaro tentou, tentou muito.

    A construção de uma rede miliciana junto às PMs é operação complexa. Demanda tempo para doutrinar a tropa. Diante do cerco institucional liderado por Alexandre de Moraes e Celso de Melo, Bolsonaro se viu obrigado a recuar. O bolsonarismo sabe que ainda não está pronto para a batalha final.

    Que as instituições não se iludam achando que é possível disciplinar Bolsonaro. Não é. O recuo é tático e não ideológico.

    Um Bolsonaro “moderado” é ainda mais perigoso do que o Bolsonaro virulento. O Bolsonaro virulento tensiona, agita, nos obriga a ficar em constante vigilância. Um Bolsonaro “soft” que sanciona lei para ajudar artista, que procura “ministro técnico” para a educação, nos faz achar que a situação voltou à normalidade.

    Não voltou!

    Não devemos dormir tranquilos enquanto Bolsonaro for o presidente. Bolsonaro é a encarnação do caos. Não é o resultado do caos. É o caos em si.

    Pior do que o Bolsonaro agitador, ameaçando a nação com golpe de Estado, é o Bolsonaro “paz e amor”. Assim, ganha-se tempo para organizar o projeto golpista. A ruptura será sempre o horizonte do bolsonarismo.

    Bolsonaro se enxerga como revolucionário e não vai parar. Será sempre ameaça à democracia. Se for reeleito em 2022, indicará quatro ministros para o STF até 2026. É mais de 1/3 da corte.

    Ou a democracia derruba Bolsonaro ou Bolsonaro derrubará a democracia, nem que seja aos poucos, ocupando por dentro as instituições da República.

    Não é possível negociar com Bolsonaro. Não é possível conviver com Bolsonaro.

  • Bolsonaro contra o bolsonarismo

    Bolsonaro contra o bolsonarismo

    ARTIGO

    Daniel Pinha, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
    Na última semana assistimos à queda de dois personagens importantes da cena política brasileira. Na mesma quinta-feira, 18 de junho, Abraham Weintraub era demitido do Ministério da Educação e Fabrício Queiroz, amigo e empregado da família Bolsonaro, preso. Cada um ao seu modo, representam faces do bolsonarismo: o lunático-antidemocrático-clássico (Weintraub) e seu discurso de ódio à democracia; o miliciano (Queiroz), em sua prática violenta de controle territorial urbano utilizando-se da inserção no aparelho estatal.
    A derrocada deles abre caminho para colocar Bolsonaro contra o bolsonarismo. E não porque o “bolsorista-raiz” tenha se decepcionado com a incompetência de Weintraub ou os diversos crimes cometidos por Queiroz. A queda dos dois revela as profundas dificuldades de Bolsonaro em cumprir a utopia autoritária que tanto promete a seus seguidores. O bolsonarismo é um fenômeno político e cultural que não se resume à figura de Jair Bolsonaro. Tal fenômeno carrega traços de duração mais longa, remetendo a uma cultura política autoritária formada ao longo da nossa experiência republicana, intensificada no contexto da Ditadura Militar brasileira. Ao mesmo tempo, dá vazão a sentimentos antidemocráticos que remetem à experiência da crise democrática contemporânea.
    Bolsonaro deu voz e coesão a segmentos sociais que converteram a tendência anti-sistêmica de uma crise representativa em sentimento antidemocrático. Em junho de 2013 o problema central era o sistema representativo e não a democracia. A necessidade de alargamento democrático por meio de melhor funcionamento dos serviços do Estado (“padrão FIFA”), maior participação da sociedade civil nas decisões políticas e combate à corrupção, bandeiras mestras em 2013, não atacavam diretamente princípios democráticos.
    Em 2020, o bolsonarismo manifestado nas redes e ruas desloca o problema, da representação ao próprio sistema democrático. O combate é ao Congresso e ao STF enquanto instituições, criando um clima de ameaça constante de golpe. O objetivo é dar super-poderes a quem já é Chefe do Estado, isto é, o presidente da República. Ou ainda, restaurar o projeto de 64, com os militares no poder, Bolsonaro à frente. Em um caso e no outro, o maior objeto de desejo dos bolsonaristas é canalizar a representação em um (um sujeito ou uma corporação), realizando o sonho autoritário de um governo livre das diferenças. Somente assim, seria possível realizar a outra parte da utopia autoritária: o saneamento moral da política brasileira, em nome do fim da corrupção e restauração do ordenamento moral da família tradicional.
    As quedas de Weintraub e Queiroz tornam essa utopia muito mais distante. Estes casos colocam o bolsonarista na incômoda condição de ver sua principal liderança negociar no interior deste sistema democrático, que é o atual. Uma negociação nada virtuosa, diga-se de passagem. Weintraub é uma figura popular entre os bolsonaristas não por suas realizações à frente do Ministério da Educação. Nem mesmo um projeto de desmonte do modelo atual ele conseguir desenvolver. Em sua última ação, revogou cotas para negros e indígenas na pós-graduação, medida já suspensa pelo próprio MEC. Nesta e em outras ações ele gritou, mais do que agiu – para a sorte da educação no país. Mesmo assim, entre os apoiadores de Bolsonaro, Weintraub saiu do governo sendo considerado um ícone, por suas polêmicas, movimentação debochada na conta do Twitter, pela declaração que se tornou pública na reunião ministerial, de que “prenderia todo mundo, a começar pelo STF”.
    O bolsonarista identificava em Weintraub um igual a ele: governando com um celular na mão, mais ocupado em denunciar e destruir “o sistema” do que em edificar algo. Ainda assim, foi demitido. Foi demitido como qualquer eleitor radical bolsonarista seria. E por quais motivos? Porque Bolsonaro cedeu às pressões do Congresso e do STF. Porque Bolsonaro utilizou cargos do Ministério da Educação para negociar com os deputados do “Centrão”, em busca de uma base parlamentar mínima para se manter no governo. Porque Bolsonaro não quis se indispor com o STF por Weintraub, como o fez na proteção de seus filhos, assumindo uma queda de braço com Moro. A fidelidade ideológica de Weintraub não foi suficiente para deixá-lo no cargo, tampouco sua disposição para o combate. A utopia autoritária manifestada na voz de Weintraub se mostrou uma quimera, uma fantasia irrealizável.
    No caso de Queiroz, a situação é ainda mais delicada. Ele encarna a presença das práticas corruptas no interior da família Bolsonaro. O bolsonarista-raiz costuma se vangloriar de que não há escândalos de corrupção no governo, entendendo corrupção em sentido estrito, isto é, práticas de enriquecimento ilícito pelo ato de roubar dinheiro público. Incentivar o ódio e a violência na política não é um problema. Aparelhar Polícia Federal para proteção de filhos, não é problema. Incentivar invasão a hospitais em meio a uma pandemia, com mais de mil mortes por dia, também não é problema. Problema é “roubar”. Com Queiroz, este sentido estrito de “roubo” fica evidente.
    Escancarado
    A imprensa trata o Caso Queiroz como “escândalo das rachadinhas”, isto é, repasse obrigatório de parte do salário dos assessores parlamentares ao partido, de modo que o mandato possa se manter forte em suas bases eleitorais. Uma prática corrupta, que se torna ainda mais grave quando as investigações indicam o destino do dinheiro. O dinheiro das “rachadinhas”, segundo denúncia do Ministério Público, pagou mensalidade escolar e plano de saúde das filhas de Flávio Bolsonaro. E isto para citar apenas um exemplo, sem detalhar o quanto estes recursos serviram para fortalecer a atuação das milícias nas bases eleitorais dos Bolsonaros. Estamos falando, portanto, da prática corrupta circunscrita aos limites do entendimento de corrupção definidos pelo próprio bolsonarismo. Para completar a situação: Queiroz foi encontrado na casa do advogado de Flávio e Jair Bolsonaro. Ainda vem muita coisa por ai.
    O caso Queiroz expõe a inviabilidade do projeto de saneamento moral anticorrupção por meio do governo Bolsonaro. E coloca em xeque, ainda, a situação dos militares no governo: por que os militares apoiariam um golpe para fortalecer Bolsonaro no poder, em meio ao escândalo do caso Queiroz? Ao contrário do caso Moro, que fez os generais do governo se unirem em torno do governo – já que também eles estavam implicados em prática criminosa, tendo que assegurar a versão do presidente para salvar a própria pele – o caso Queiroz isola a família Bolsonaro e seus vínculos com as milícias. O avanço das investigações tornará ainda mais insustentável a retórica de saneamento moral anticorrupção endossada pelos militares.
    Estarão os militares dispostos a levar até o limite o apoio a um governo corrupto e clara vinculação com milicianos? Se este quadro acarretará em perda de apoio ao presidente, ainda é impossível prever. O recuo de um bolsonarista-raiz demandaria revisão de práticas que lhe conferem não apenas uma identidade política, mas também, pessoal; uma identidade que lhes constitui enquanto sujeito no mundo. Este é um movimento possível, mas lento e gradual.
    O saldo, entretanto, é negativo para o presidente. E estamos só no começo. A queda de Weintraub e a prisão de Queiroz coloca o Bolsonaro contra o bolsonarismo, deixando ainda mais evidente que ele é incapaz de realizar o projeto de futuro que desperta em seus seguidores, a utopia autoritária que sustenta sua retórica antidemocrática no presente.
  • Laços de Fabrício Queiroz com milícias deixam Bolsonaro nas cordas

    Laços de Fabrício Queiroz com milícias deixam Bolsonaro nas cordas

    Por Dacio Malta*

     

     

    Há tempos Bolsonaro vinha exercendo a presidência da República no curralzinho do Alvorada.

    Todos os dias, pela manhã, a caminho do Planalto, ele parava por 30, 40 minutos para, com a desculpa de cumprimentar os admiradores, mandar seus recados à nação.

    “E daí?”, “Quer que eu faça o quê?”, “Basta, porra!”, “Chegamos ao limite”, “Não sou coveiro” e outra bravatas e baboseiras saíram de lá.

    Em seguida, ele entrava no carro e voltava a ser um Zé Mané em meio ao bando de ignorantes que o cercam.

    Desde quinta-feira passada, quando prenderam Fabricio Queiroz, o capitão é apenas isso: um Zé Mané – escondido como Márcia, mulher do Queiroz; e fujão como o ex-ministro Abraham Weintraub.

    Ele não para mais no curral pois entendeu que, nesses dias de festas juninas, sua batata está assando.

    Encontrar Queiroz na casa do advogado da família foi a ponta do iceberg.

    As rachadinhas de Queiroz são o menos importante. Se elas produziram enriquecimento ilícito do 01, em meio a lavagem de dinheiro, utilização desavergonhada de caixa dois e superfaturamento em lojas de chocolate, são crimes que Flávio  responderá com consequente perda do mandato e a prisão.

    O importante nesse imbroglio é o envolvimento da famiglia com a milícia, que mais dia menos dia ficará explícito.

    Essa é a verdadeira importância de Queiroz: o seu elo com a milícia.

    É possível que ele permaneça calado. Militar reformado da PM, Queiroz foi treinado para isso, assim como os matadores de Marielle, presos há meses e que, até agora, continuam assumindo sozinhos a responsabilidade pelo assassinato da vereadora e de seu motorista.

    O que poderá mudar o comportamento de Queiroz será a prisão de sua mulher. Mesmo que continue mudo, ela poderá aceitar uma delação premiada, o que levará o capitão a lona. No momento, ele está nas cordas.

    Assessorado por toscos e despreparados como ele, não restará outro opção senão o caminho da roça.

    Já passou da hora de as forças políticas irem conversar, seriamente, com o vice Mourão, garantindo sua posse, mas estabelecendo limites para a governança. 

     

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

    Leia mais Dacio Malta em:

    Bolsonaro facilita fuga de Abraham Weintraub para os Estados Unidos

     

    CADÊ O QUEIROZ? BRAÇO DIREITO DE BOLSONARO TEM A SENHA PRA DERRUBAR O PRESIDENTE

    COM BOLSONARO, BRASIL SE TORNA O PARAÍSO DO CORONAVÍRUS

  • A queda de Queiroz ou como derrotar o Bolsonarismo?

    A queda de Queiroz ou como derrotar o Bolsonarismo?

    ARTIGO

    Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana*

     

    A cidade de Atibaia está novamente no centro dos escândalos da República. Um ano e meio depois a pergunta foi respondida: onde está o Queiroz? Será que agora responderemos a uma outra: quem mandou matar Marielle? A queda de Queiroz é simbólica e real. Ele estava sendo protegido por pessoas que frequentam o salão do Palácio do Planalto. Mas, do ponto de vista simbólico ela representa uma esperança para pensarmos sobre a seguinte questão: como derrotar o bolsonarismo?

    Pesquisa divulgada essa semana, pelo Instituto Democracia e pelo jornal Valor, coordenada, entre outros, pelo cientista político Leonardo Avritzer, aponta que diminuiu o apoio às ideias golpistas. Ainda assim, o número de apoiadores ao atual governo e a uma possível intervenção militar chama a atenção. Das pessoas entrevistadas, 29% acham que um golpe militar se justificaria em caso de muita corrupção.

    A boa notícia é que quase metade dos eleitores de Bolsonaro não avalia o governo como ótimo e bom.

    Um dos aspectos que merece destaque, mencionado por Avritzer, é o fato de que 94% dos que apoiam o governo não confiam na Rede Globo. Acreditamos que esse número não seria muito diferente se a pergunta fosse em relação à Folha de São Paulo. Tomando a Globo como uma metáfora da grande imprensa, isto é, da curadoria jornalística de empresas familiares e com interesses do grande capital, devemos nos perguntar: em quais veículos de comunicação os apoiadores do governo confiam? Seria apenas nos canais de rádios e pastores que apoiam Bolsonaro e receberam mais de 30 milhões de reais em repasses? É certo que no ambiente de TV aberta canais como Record, SBT e RedeTV têm funcionado, em maior ou menor grau, como vitrines governistas.

    Essas vitrines não agem apenas omitindo ou distorcendo a realidade para reforçar as narrativas que interessam ao governo. De modo mais grave, esses canais promovem valores antidemocráticos em uma variedade de programas que misturam notícias, marketing e entretenimento atualista sem qualquer responsabilidade pela qualidade jornalística das informações. Do programa do Ratinho, no SBT, ao de Sikera Jr., na RedeTV, os setores populares são entretidos por uma teia formada por violência, preconceito, exploração religiosa e mentiras. A recente aprovação pelo Congresso Nacional para que esses canais possam novamente promover jogatinas disfarçadas de sorteios é a cereja do bolo.      

    Considerando que para cerca de 25% a 35% da população brasileira a produção de realidades paralelas, isto é, de fake news, é a principal fonte de notícias, podemos afirmar que uma significativa parcela da sociedade constrói suas opiniões e toma decisões fundadas em desinformação.

    Essas notícias simuladas são replicantes, no sentido de que uma vez liberadas na websfera sua disseminação é descontrolada. Promovidas em diversas frentes, desde as mídias tradicionais até as diversas plataformas da Internet que democratizaram e tornaram imersivas a produção e distribuição da desinformação em tempo real e sem interrupções, as notícias simuladas e replicantes acabam por tornar muito caro e ineficaz a sua eliminação. Claro que tudo isso ocorre por nossa incapacidade coletiva em criar barreiras institucionais à sua disseminação, ao contrário, socialmente não paramos de premiar e remunerar seus veículos. 

    Assim, as chamadas fake news são muito mais do que mentiras ou simulações pontuais. Ao contrário, elas são a produção de todo um pacote, um ambiente, um sistema alternativo, onde você pode viver. É o ambiente da desinformação. Um lugar e uma comunidade onde as coisas são simuladas sem compromisso com o regime de verdade que é a base das democracias modernas, desde sua invenção no século XVIII.

    Afinal, uma característica da fake é que ela é uma mentira que funciona, simulando, confundindo e substituindo a notícia real e seus contextos. Ainda que o termo desinformação seja mais preciso, é a ideia de fake news que hoje é partilhada e vivida por todos e todas. É a ideia que exprime um dos nossos dramas. E como superá-lo? O que fazer frente esse dado de nossa realidade, isto é, as fake news? Associado a isso, como derrotar esse projeto de barbárie baseado em fake news?

    Em nossas reflexões, temos chamado a atenção para o necessário reconhecimento da força do bolsonarismo como fenômeno político e social no Brasil contemporâneo. E, por isso mesmo, precisamos nos perguntar também como derrotá-lo.

    A resposta passa pelo fortalecimento dos democratas que vivem em nosso país nas suas mais diversas matizes ideológicas, em especial, no centro, na centro-esquerda e na esquerda brasileira. Em outras palavras: como fortalecer a esquerda, a centro-esquerda e o centro, bem como as frentes amplas que vêm se formando?

    Como ponto de partida achamos que isso deve ser feito a partir do que disse essa semana a jornalista Tereza Cruvinel, quando afirma que não é o momento de julgarmos o papel do judiciário e do STF em sua conivência, para dizer o mínimo, com o lava-jatismo e com o Golpe de 2016: “Se formos acertar contas pelo retrovisor, deixando que trucidem o Judiciário, seremos levados todos juntos pelo vagalhão autoritário”.

    O pacto que forjou a permanência da Lei da Anistia mostra o quão perigoso pode ser essa perspectiva. Mas, em momentos de emergência, é preciso acordos amplos e provisórios. No entanto, eles não podem apagar e silenciar o passado, mas ser possibilidade de construir outros futuros, repensando, inclusive, o modelo de conciliação que fracassou. Precisamos assumir a responsabilidade de viver em um tempo verdadeiramente paradoxal e agitado, isto é, atualista. Porém, sem um mínimo comum será muito difícil construirmos uma um país mais justo.

    E como fazer isso? Uma possibilidade passa por formas concretas de equilibrar a assimetria de forças que hoje existe entre a máquina de comunicação bolsonarista e as estruturas competitivas, organizadas por forças partidárias, movimentos sociais e setores da mídia tradicional.

    Esse equilíbrio de forças, na luta pela comunicação, passa por, pelo menos, duas frentes de luta. A primeira é um esforço de compreender e combater as formas e estratégias ilegais, mobilizadas pela máquina bolsonarista, ou seja, a sua identificação, punição e regulação.

    Nessa frente é preciso cobrar, expor e combater tanto as empresas que se beneficiam da máquina de fake news, quanto os diversos sujeitos políticos e sociais que usam do poder econômico para movimentar essa máquina e esses recursos. O STF não vai fazer tudo. Ele por si só é incapaz de defender a nossa democracia. Precisamos discutir e tornar essa luta um programa de ação com reivindicações concretas e bem definidas.

    Por exemplo, as grandes empresas precisam ser reguladas na forma como usam suas verbas de publicidade para promover ideologias e visões políticas particulares. Assim como fazemos um esforço legal permanente para controlar o abuso do poder econômico nas eleições, precisamos pensar em formas concretas de regulá-lo também na guerra cultural permanente que vivemos.

    Nessa frente de combate temos muito a aprender com o ativismo digital, renovado a partir de uma agenda progressista que denuncie e combata empresas e empresários. Isso, além de cobrar das autoridades constituídas a criação e a execução de leis que regulamentem esses abusos.

    Como segunda frente, é preciso admitir que os setores emancipatórios ainda não conseguiram se apropriar das ferramentas legítimas e legais, abertas por esse momento de avanço tecnológico nas formas de comunicação.

    É preciso reconhecer, em primeiro lugar, que tanto os partidos políticos quanto as associações da sociedade civil, no campo emancipatório, ainda não foram capazes de se apropriar integralmente das novas ferramentas de comunicação digital. Portanto, é urgente compreender as causas que levam a essa dificuldade, mas, antes disso, reconhecê-la.

    Em outras palavras, não é só atribuir o sucesso e/ou certa estabilidade do bolsonarismo apenas à manipulação das fakes news e ao uso de robôs. É preciso reconhecer que houve um intenso trabalho de formação de um exército de ativistas digitais, assim como o engajamento de pessoas comuns que se politizaram a partir dessa nova forma de fazer política controlada pelo bolsonarismo. Essa formação articulou de modo eficiente espaços sociais analógicos e digitais, desde a loja maçônica das pequenas cidades até os grupos de WhatsApp organizados com disciplina e tecnologia.

    Tudo isso está intimamente articulado com as atuais transformações do capitalismo contemporâneo, em especial, com as transformações do mundo do trabalho que vem produzindo centenas de trabalhadores informais (precariado?) e desempregados. Partes desses órfãos vivem às margens do Estado e da proteção social. Alguns, inclusive, consideram-se empreendedores. Como afirma Guy Standing: “No modelo neoliberal, o desemprego tornou-se uma questão de responsabilidade individual, tornando-o quase “voluntário”. As pessoas passaram a ser consideradas como mais ou menos “empregáveis” e a resposta foi torná-las mais aptas para o trabalho, atualizando suas “habilidades” ou reformando seus “hábitos” e “atitudes””.

    Incorporar parte dessas pessoas ao campo progressista é um desafio necessário. Nessa direção, num terceiro plano de possibilidades o campo emancipatório precisa construir pontes, assumindo de antemão seu compromisso antirracista e antipatriarcal, entre as diversas agendas e demandas que atendem à política da diversidade, em torno de uma efetiva agenda para a maioria, o que deve passar pelo necessário viés interseccional, ou seja, considerar as dimensões de classe, raça e gênero que estruturam as opressões. Hoje, em grande medida, é a direita e a extrema-direita que monopolizam o discurso da maioria. São elas que se colocam como representantes da voz da maioria do povo brasileiro.

    Ao lado disso, é preciso rever a relação do campo progressista com a nação, com os símbolos nacionais e com a história nacional, o que pode implicar na proposição de uma agenda positiva em relação à nação, no sentido de se criar novos heróis, heroínas e símbolos, por exemplo. Em outras palavras, precisamos de novas formas de celebrar a nossa história comum. Do contrário, a direita e a extrema direita continuarão a monopolizar os símbolos de solidariedade, como vêm fazendo com a camisa da seleção brasileira, e ao construir suas histórias paralelas.

    Ainda no plano regulatório, mesmo que reconhecendo as dificuldades políticas da sua execução, é preciso, também, enfrentar o problema do abuso de poder por parte dos conglomerados de mídia, de grandes grupos corporativos e empresariais, e das corporações religiosas, que hoje exercem, no Brasil, um poder econômico, político e cultural com regulação fraca e obsoleta. Por outro lado, é preciso algum tipo de aliança com parte desses setores com vistas à produção de um país menos desigual e combativo em relação à produção viral de realidades paralelas.

    Sem renovar e atualizar as regras do jogo político, para restaurar algum tipo de equilíbrio e paridade de forças, essas corporações, nacionais e internacionais, continuarão no seu trabalho de destruição das estruturas do Estado liberal, já que o Estado tornou-se o grande adversário para a continuidade de seu projeto de acúmulo de poder corporativo. Sem nenhum tipo de recomposição de forças esses setores continuarão a enfraquecer e a saquear a riqueza coletiva acumulada, ao longo dos séculos, nos estados nacionais.

    De algum modo, o campo progressista, os grandes conglomerados de comunicação e o Judiciário e parte do Legislativo têm, agora, um inimigo comum: as fake news. Não sem razão, muitos têm celebrado algumas edições do Jornal Nacional.

    Não custa retomar: o sucesso das fake news se explica, em grande parte, por elas serem um substituto funcional da verdade. Um substituto funcional que imita a verdade, imita seus efeitos e pode ser usado como plataforma para avançar agendas que distorcem o interesse coletivo. As fake news funcionam, isto é, entregam para as pessoas aquilo que geralmente elas esperam de uma informação verdadeira. Ao mesmo tempo, grupos de interesse trabalham nas suas sombras para avançar agendas particulares. Certamente a turma de Paulo Guedes não toma decisões baseadas na guerra cultural do bolsonarismo, mas a utiliza como agitação e distração, como bem ficou demonstrado pelo amplo apoio popular à última reforma da previdência.

    Portanto, sem abdicar da necessidade de uma política de segmentação e atendimento de direitos de vários grupos sociais, o campo emancipatório precisa reunir essas demandas em uma nova forma de representar, falar e formar maiorias, o que inclui, também, nesse momento, em construir acordos provisórias com certos setores dominantes e parte da classe média que havia abandonado a agenda progressista. Também envolve ter um programa de ação que atenda às novas configurações de classe, ao precariado, ao pequeno empresário, ao trabalhador precarizado, que pode ser branco ou negro, que hoje tem sido capturado pelo populismo de direita para pautas regressivas. Esse alargamento da agenda é uma das formas de dar consequência à demanda interseccional.

    Sem algum tipo de aliança, dada a urgência do momento que vivemos, o combate ao universo paralelo do bolsonarismo ficará sempre fragilizado. E ele se atualiza a todo instante. Nós somos os obsoletos nessa guerra de trincheira digital. Nessa direção, é preciso reconstruir, no discurso e na prática política, o lugar do Estado e das políticas públicas, em  nome de projetos de futuro que superem e atendam as demandas sociais concretas que hoje se multiplicam.

    Esperamos que a simbólica prisão de Fabrício Queiroz nos motive a enfrentar o positivo e necessário processo de repactuação para que a vida democrática, assentada nos valores da Constituição de 1988, permaneçam vivos e atualizados.

    (*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem.

    Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP

  • MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    MÍDIA, MENTIRAS E INTERVENÇÃO MILITAR

    ARTIGO

    Angela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

     

    O Queiroz finalmente foi preso. Estava em Atibaia, na Grande São Paulo, em uma residência, disfarçada como escritório, de propriedade do advogado do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da República.
    A prisão aconteceu nesta quinta-feira (18/6) depois de um fim de semana marcado por atos antidemocráticos, que tentaram colocar em xeque a autoridade do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, exigiam intervenção militar e a volta da ditadura.
    Em qualquer país do mundo, que se pretenda minimamente democrático, atos assim são considerados terroristas e tratados como tal. O agravante, no caso brasileiro, é que esses atentados foram cometidos por apoiadores do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e, pior ainda, estimulados por declarações que ele vem fazendo em meio ao caos econômico e à pandemia de covid-19.
    No domingo (14/6), um dos acusados de soltar rojões em frente ao STF, em Brasília, Renan Sena também foi preso. Seu celular será periciado, mas já se sabe que o teor das trocas de mensagens é bombástico, porque demonstra sua ligação com figuras de peso do governo federal.

    Nesse mesmo dia, o agora ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, aquele que durante reunião ministerial disse que “tinha que botar todos os vagabundos na cadeia, começando pelo STF”, não só estava entre os manifestantes, como se encontrava em lugar público sem máscara para proteção contra o covid-19. Em função do cargo que ocupa, não foi preso, mas terá que pagar multa. Sua permanência na equipe de Bolsonaro, que já era muito complicada, tornou-se quase impossível.
    No dia anterior, um grupo de 78 militares reformados (entre os signatários estão 12 brigadeiros, cinco almirantes e três generais) havia lançado manifesto contra o ministro do STF, Celso de Melo, relator das investigações que apuram as acusações feitas pelo ex-ministro Sérgio Moro de que Bolsonaro estaria interferindo politicamente na Polícia Federal. O manifesto, com pesadas críticas a Celso de Melo, parece ter garantido ânimo aos manifestantes.

    O repúdio de setores dos militares reformados começou depois que o ministro do STF disse que os generais que ocupam cargos no Palácio do Planalto deveriam depor como testemunhas no inquérito. Caso não comparecessem, poderiam ser conduzidos “debaixo de vara”, termo jurídico que significa serem obrigados a comparecer. A tentativa de intimidação dos militares reformados não surtiu efeito. Entre segunda e terça-feira, a Polícia Federal prendeu seis pessoas e cumpriu 21 mandados de busca e apreensão solicitados pela Procuradoria-Geral da República e autorizados pelo ministro do STF, Alexandre de Morais. Entre os presos estão a militante de extrema-direita, Sara Giromini, que usa o pseudônimo de Sara Winter em homenagem a uma espiã nazista.
    Já entre os alvos de busca, apreensão e quebra de sigilo bancário estão além de 11 parlamentares (dez deputados e um senador), blogueiros e youtubers, o publicitário Sérgio
    Lima e o empresário Luís Felipe Belmonte, ligados ao Aliança pelo Brasil, partido que o
    presidente da República pretende fundar, desde sua saída do PSL, no final do ano passado.
    Todos são bolsonaristas de carteirinha. Possuem fotos e imagens ao lado do “Mito” e estão
    sendo acusados de financiamento e/ou envolvimento com redes de fake news.

    Na noite de terça-feira, através de uma sequência de tweets, Bolsonaro postou que irá tomar “todas as medidas legais” para proteger seus aliados investigados pelo Supremo. Ele frisou também que não vai “assistir calado” enquanto “direitos são violados e ideias são
    perseguidas”. Na manhã de ontem (17/06), respondendo a pergunta de uma apoiadora no
    jardim do Palácio da Alvorada, disse que houve abuso na operação autorizada pelo STF contra
    seus aliados e que “está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”.
    Não por acaso, o governo Bolsonaro foi o único num total de 132 países de todo o mundo que
    não aderiu a uma iniciativa para estabelecer o compromisso de não difundir desinformação
    em meio à pandemia de covid-19. Até aliados de Bolsonaro como Israel, Hungria e Estados
    Unidos assinaram. Na América do Sul, só o Brasil ficou de fora desse compromisso.
    Enquanto a temperatura entre Bolsonaro e os demais Poderes sobe, a popularidade do
    presidente derrete de forma acelerada. A soma dos que consideram seu governo ruim ou
    péssimo já está em torno de 50%, ao mesmo tempo em que piora acentuadamente a
    expectativa para o restante do seu mandato.

    O caos em que Bolsonaro e seus apoiadores transformaram o Brasil não aparece como tal na mídia corporativa, também autodenominada grande mídia, mas tem sido alvo de frequentes reportagens e comentários em jornais, revistas e TVs de todo o mundo. Com exceção de veículos do Grupo Globo, os demais têm feito de tudo para transmitir a imagem de que “as instituições estão funcionando”, e que os problemas, quando não há como sonegá-los da população, são atribuídos aos “inimigos do Brasil”, aos que querem atrapalhar o governo, enfim aos “esquerdistas e comunistas”.
    Depois de 18 meses à frente do Palácio do Planalto, Bolsonaro não tem nada, mas exatamente nada, para apresentar como obra ou ação de seu governo a não ser criar todo tipo de problema interno (com mulheres, negros, índios, LGBTs, ambientalistas, professores, estudantes, cientistas, aposentados, pequenos e médios empresários, artistas) e externamente transformar o Brasil, de um protagonista respeitado, em pária mundial.
    Sem qualquer explicação a não ser o alinhamento e a subserviência aos interesses dos Estados Unidos, o governo Bolsonaro passou a hostilizar a Argentina, quase declara guerra à Venezuela, criticou a França, Alemanha e Noruega e não tem medido estocadas contra a China. Detalhe: China e Argentina são, respectivamente, o primeiro e o terceiro parceiros
    econômicos do Brasil.

    Ao contrário do que tenta argumentar o ministro da Economia, Paulo Guedes, não foi a
    pandemia que criou o caos em que o país se encontra. O caos já estava instalado. O Brasil
    fechou 2019 – o quarto ano após a deposição de Dilma Rousseff – com recordes históricos
    negativos: quase 12 milhões de desempregados, cerca de 40 milhões de pessoas trabalhando
    na informalidade, a doença e a fome voltando a se instalar entre os mais pobres e os novos
    pobres.
    O Brasil não quebrou ainda, devido às reservas de 390 bilhões de dólares deixadas pelos
    governos de Lula e Dilma. Reservas que Guedes e a própria mídia reconhecem como sendo a
    âncora do país. Só que tanto Guedes quanto a mídia se esquecem de acrescentar que elas
    foram fruto dos governos petistas, aqueles que, segundo essa mesma mídia, “quebraram o
    Brasil”.
    Há três meses, o covid-19 fazia sua primeira vítima fatal e de lá para cá o Brasil já se aproxima das 50 mil mortes e de um milhão de infectados. Isso, segundo dados oficiais. Como há uma enorme subnotificação, os números reais são muito maiores, podendo ser multiplicados por no mínimo seis. Em outras palavras, o Brasil já superou os Estados Unidos, transformando-se no epicentro mundial da pandemia e não há sinal de que a curva esteja prestes a começar a descer.
    Em plena pandemia, no entanto, o Brasil continua sem ministro da Saúde. O ocupante interino do cargo, cuja interinidade parece que será permanente, Eduardo Pazuello, é um general com especialização em logística. Os outros 22 militares que passaram a atuar na Pasta também não são do ramo. Os dois ministros que o antecederam nesse governo, ambos médicos, saíram, por discordâncias com Bolsonaro querer “receitar” cloraquina – uma droga no mínimo controvertida – para os tratamentos contra a covid-19, e ameaçar prefeitos e governadores que defendem o isolamento social.
    Por si só, o descaso de Bolsonaro para com o combate à pandemia seria motivo de sobra para que fosse aberto processo de impeachment contra ele. O presidente da Câmara dos
    Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já coleciona em seu poder 35 pedidos nesse sentido,
    oriundos de partidos políticos, entidades da sociedade civil e até de cidadãos comuns. Maia
    resolveu deixá-los na gaveta, por considerar que o momento “não é oportuno”.
    A mídia corporativa brasileira também não considerava o momento “adequado” para tratar do assunto. Talvez a prisão do Queiroz possa contribuir para que mude de ideia. Mesmo o Grupo Globo, que nos últimos meses passou a fazer críticas a Bolsonaro e à sua péssima atuação em relação à pandemia, não parecia nada disposto a colocar em pauta o  ]impeachment, ao contrário do que fez com Dilma Rousseff.
    Nas demais TVs, Bolsonaro continua nadando de braçadas e o apoio a ele nos telejornais pode
    até aumentar com a nomeação do deputado Fábio Faria (PSD-RN) genro de Sílvio Santos, dono
    do SBT, para o ministério das Comunicações. É importante lembrar que o ministério das
    Comunicações foi recriado para abrigar um integrante do “Centrão” e contemplar a mídia
    “chapa branca”, sempre de olho nas verbas oficiais de publicidade, que, apesar da crise, não
    param de crescer.

    Quem se lembra que Sílvio Santos mandou tirar do ar o Jornal do SBT, principal telejornal de sua emissora, no sábado, dia 23/05? Motivo: o Planalto não havia gostado da cobertura do dia anterior sobre a reunião ministerial que teve o sigilo levantado pelo STF. A truculência da ação de Santos, sem paralelos na história da mídia brasileira, revoltou até as emissoras afiliadas ao grupo, com vários “rebatizando” a sigla como Sistema Bolsonarista de Televisão.

    Mas se o apoio ao governo justifica o fato de que parte da mídia não abordava o tema impeachment, o que leva o Grupo Globo, que agora se coloca na oposição, a também, até agora, ter fugido do assunto? Será que a prisão de Queiroz e os desdobramentos que ela certamente trará vão alterar essa situação?
    O acompanhamento atento dos noticiários do Grupo Globo (O Globo, G1, CBN, TV Globo, GloboNews, Época, Valor Econômico) indica que os problemas da família Marinho com o governo se limitavam aos “excessos” de Bolsonaro e de alguns de seus ministros “terra plana” como Damares Alves, Abraham Waintraub e Ricardo Salles. Guedes continua sendo queridinho da família, que defende com unhas e dentes a sua agenda ultraliberal para o Brasil (redução de direitos sociais, estado mínimo, privatizações, submissão aos interesses dos Estados Unidos).

    Em outras palavras, para a família Marinho, pouco importa quem seja o ocupante da
    presidência, desde que a agenda ultraliberal continue sendo adotada e aprofundada e que o
    PT não retorne ao poder. Foi para isso que ela teve participação tão intensa no golpe,
    travestido de impeachment, contra Dilma. Foi para isso que ela jogou pesado em 2018 para
    que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse preso e não pudesse disputar as eleições.
    O sonho da família Marinho e da “elite do atraso” da qual é parte, sempre foi emplacar na
    presidência da República um candidato de centro, que poderia ser desde o seu funcionário e
    apresentador Luciano Huck até o banqueiro João Amoêdo, passando por Henrique Meirelles,
    Álvaro Dias e Geraldo Alckmim. Como nenhum deles decolou nas pesquisas de opinião pública,
    a solução, para neutralizar Lula e o PT, acabou sendo apoiar Bolsonaro.
    Nesse processo de estimular e ampliar o ódio ao PT, a Globo, mas não só ela, também se valeu de fake news. Exemplos?
    A condenação, sem provas, de Lula, seguida por sua prisão é fruto, em grande medida das mentiras que a mídia, Globo à frente, pregou ao povo brasileiro. A tentativa de comparar Lula, um humanista, a Bolsonaro, um autoritário com nítidas inclinações fascistas, é outro exemplo dessas mentiras estampadas em jornais como o Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo.
    A mídia corporativa se aproveita do senso comum, que ela mesma difundiu, de que é independente e que apenas apresenta a verdade ou a realidade ao seu público, para divulgar, como notícia, os seus próprios interesses. Para essa mídia é muito confortável, agora, em que o caos está instalado, tentar jogar a responsabilidade por iludirem o povo brasileiro exclusivamente nas fake news, no “Gabinete do Ódio” e nos militantes bolsonaristas.

    Não resta dúvida que eles possuem enorme responsabilidade pelas mentiras que são contadas diariamente aos brasileiros. A título de exemplo, basta lembrar que relatório produzido a pedido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News identificou mais de 2 milhões de anúncios pagos pela então Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em sites de fake news e até de pornografia. Muitos deles são exatamente os que agora estão sob investigação.
    Só que essas mentiras não surtiriam efeito se não tivessem tido e não continuassem tendo o beneplácito ou mesmo o apoio da mídia corporativa, quando lhe é conveniente. Exemplos? Quando o grupo Globo, mesmo agora que se posiciona de forma crítica contra Bolsonaro e é ameaçado com censura e não renovação da concessão, fez alguma reportagem investigativa sobre o teor das fake news? Qual veículo da mídia corporativa teve a coragem de romper com a farsa do tríplex atribuído a Lula? Qual veículo dessa mídia resolveu ir fundo nas denúncias que o advogado Tacla Durán quer fazer contra a turma da Operação Lava Jato em Curitiba? Qual veículo se dispôs a investigar, para valer, as denúncias envolvendo o clã Bolsonaro? Qual veículo de mídia investigou a fundo o paradeiro de Queiróz e suas ligações com o clã Bolsonaro?
    Enquanto a mídia corporativa, inclusive a Globo, em última instância, passava pano para Bolsonaro, ele se sentia cada dia mais à vontade para fazer ameaças, aprofundar crises e tentar estabelecer clima para um golpe de estado, na realidade um autogolpe.
    Como não existe nenhuma força política interna ou externa ameaçando-o politicamente (corrupção é crime previsto no Código Civil), um possível golpe teria como objetivo apenas ampliar os seus poderes. Algo como governar de forma absoluta, livre dos freios e contra freios do Legislativo e do Judiciário, como acontece apenas nas ditaduras.
    É interessante observar como todas as crises no governo Bolsonaro são provocadas por ele,
    por seus filhos ou por gente muito próxima a eles. Crises quase sempre seguidas por ameaças
    autoritárias e insinuações de que, com o apoio dos militares, que já estão em seu governo,
    poderia haver um endurecimento “em nome da democracia” ou “em defesa da democracia”.

    Essa retórica propositalmente confusa acaba sendo reproduzida e amplificada pelas fake news.
    É ela que está na origem de termos como “intervenção militar constitucional” ou “ditadura
    militar democrática”, que povoam cartazes de apoiadores de Bolsonaro em manifestações.
    Como nenhum dos que gritam esses slogans consegue explicar o que seria uma ditadura
    militar democrática, acabaram sendo apelidados de “gado”, por apenas seguirem o berrante
    do dono. No caso, uma manada cada dia mais agressiva e reduzida.
    Os “300 do Brasil”, de Sara Giromini, não passam de uns 30 gatos pingados. Até no
    “curralzinho”, armado pelo governo na saída do Palácio da Alvorada, a militância bolsonarista
    dá sinais de desalento. Tanto que os gritos de “Mito” deram lugar a cobranças em relação ao
    número de mortos pela pandemia e à inação do governo.
    Irritado com as cobranças, Bolsonaro estuda por fim ao “curralzinho”, ao mesmo tempo em
    que vem redobrando as insinuações de que teria apoio dos militares para um endurecimento.
    Sintomaticamente, Bolsonaro ainda não falou nada depois da prisão de Queiroz.
    A exceção dos militares que ocupam cargos em seu governo – perto de 2.500 – e dos de pijama
    que assinaram o manifesto, não se tem notícia de postura inquieta nos quartéis. Ao contrário.
    Mesmo as informações sobre esse setor sendo poucas, o que se sabe é que os militares não
    demonstram entusiasmo para aderir a uma aventura antidemocrática como parece desejar
    Bolsonaro.
    Pesquisas divulgadas nos últimos dias apontam para um visível desgaste na imagem dos
    militares brasileiros junto à opinião pública, exatamente pela excessiva aproximação e
    participação no governo Bolsonaro. O caso do ministério da Saúde é o mais sintomático. Em
    outras palavras, as críticas ao governo Bolsonaro estariam contaminando a própria imagem
    dos militares enquanto instituição.
    Um autogolpe do capitão, respaldado pelos militares, teria ainda muitos problemas com os
    quais se defrontar. Como se sustentaria interna e externamente? Com a crise econômica se
    aprofundando, a saída da pandemia, que ainda parece distante, promete ser nada alentadora.
    Basta lembrar que a queda na venda do comércio, em maio, foi a maior nos últimos 20 anos, e
    os dados da produção industrial estão descendo ladeira abaixo.
    Donald Trump, em plena campanha eleitoral para a reeleição, não parece disposto a apoiar
    uma aventura desse tipo por parte de seu declarado “love”. As Forças Armadas dos Estados
    Unidos certamente não demostrariam simpatia por seus colegas brasileiros, especialmente

    depois que a maior autoridade militar do país, general Mark Milley, pediu desculpas por “sua
    presença em ato ao lado de Trump ter criado a percepção de envolvimento dos militares na
    política interna”.
    O discreto comandante do Exército brasileiro, general Edson Leal Pujol, certamente viu com interesse essa declaração do colega. É desnecessário lembrar a diferença que existe entre Pujol e, por exemplo, o general Luis Eduardo Ramos, que ocupa a Secretaria de Governo de
    Bolsonaro. Mesmo descartando golpe militar, Ramos não deixou de advertir a oposição para “não esticar a corda”. Foi com Pujol e não com Ramos que o ministro do STF, Gilmar Mendes,
    manteve um encontro reservado no fim de semana, no qual, obviamente, o enfrentamento aos atos antidemocráticos esteve em pauta.
    Uma aventura golpista traria ainda problemas extras como criar novas dificuldades para o
    Brasil junto à comunidade internacional, afastar investidores e condenar o país a um isolamento político e econômico maior e mais profundo do que o já experimentado. Em síntese: mesmo que um autogolpe ou algo no gênero se concretizasse, sua continuação seria pouco provável.
    Quanto ao futuro imediato, como lembra a ex-presidente Dilma, “parte da direita rompeu com
    o neofascismo, mas sustenta o neoliberalismo de Guedes”. O que explica o fato de os pedidos de impeachment contra Bolsonaro não andarem na Câmara dos Deputados e explica, também, como o próprio STF, antes tão complacente com todos os ataques à democracia, finalmente resolveu reagir.
    Paralelo a isso e tendo em vista o aprofundamento da crise econômica e sanitária, os verdadeiros manifestantes em defesa da democracia e contrários a Bolsonaro estão de volta às ruas. Espera-se igualmente que a Justiça mantenha a disposição de ir fundo no desbaratamento da rede de fake news e na criminalização de seus financiadores e divulgadores. Espera-se também que Queiroz não tenha nenhum infarto ou coisa que o valha e possa falar sobre tudo o que sabe. Se isso acontecer, dificilmente o coração do bolsonarismo não será atingido.
    Os próximos dias prometem muitas emoções.

     

     

  • Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

    Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

    Por Dacio Malta*

    Não resta dúvida que a entrevista do lobista Paulo Marinho à Monica Bergamo, e mais as 8 horas de depoimentos que ele prestou à Polícia Federal e ao Ministério Público, abalam o senador Flávio Bolsonaro mas, principalmente, o seu pai  — o presidente da República.

    Como o inquérito corre em segredo de justiça, não se sabe o que Marinho apresentou aos investigadores. Ele diz apenas que mostrou “provas” da ligação de um delegado com os Bolsonaros, e “ampliou as denúncias”.

    O lobista tem se mostrando excessivamente confiante em relação a esses depoimentos. Mas o que teria de novo? Seriam vídeos, gravações, fotos? Ninguém sabe.

    Se forem apenas fatos — mesmo com nomes, datas, locais e horários—  será difícil a investigação ganhar musculatura. Será a palavra de um contra o outro.

    O fato de Fabrício Queiroz  — e sua filha—  serem demitidos em uma mesma data, entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, já foi respondido, no passado, pelo próprio capitão.  Queiroz foi demitido porque Flavio foi eleito senador, e precisava exonerar seus assessores na Assembleia Legislativa do Rio.

    A filha de Queiroz foi pra rua pelo mesmo motivo. Como candidato a presidência da República, o capitão não voltaria para a Câmara dos Deputados.

    É claro que todos poderiam continuar ganhando seu dinheirinho até dezembro, e não ter os proventos suspensos no início de outubro.

    Mas, tecnicamente, a argumentação faz sentido.

    A verdade é que o imbróglio que envolve a famiglia Bolsonaro só será esclarecido quando Queiroz for localizado e preso — para prestar o depoimento que ele deve desde dezembro de 2018.

    Já se passaram 18 meses.

    Como é sabido, Queiroz tem enorme intimidade com milicianos, mas esses, como bons mercenários que são, não garantem a sua segurança.

    Hoje vivemos uma pandemia. E se Queiroz for infectado e morrer?

    Toda a narrativa da rachadinha, do envolvimento da família com milicianos, da lavagem de dinheiro, da compra e venda de imóveis, da franquia de uma marca de chocolates e outros crimes, irão para o lixo.

    Durante os 14 meses em que Sergio Moro foi ministro da Justiça, ele não moveu uma palha para que Queiroz fosse localizado. O ex-juiz, considerado traidor pelos bolsonaristas, prestou enorme serviço ao chefe, a partir do momento em que não se interessou pelo caso. Ou guardou as informações para ele.

    Agora que o presidente tem a Polícia Federal na mão, e mais a superintendência do Rio de Janeiro, a localização de Queiroz torna-se ainda mais difícil.

    E assim como pergunta-se “Quem mandou matar Marielle?”, a indagação “Cadê o Queiroz?” continuará sem resposta.

    Ele sabe que os procuradores têm “uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente”. Por isso sumiu.

    Ninguém sabe onde vive, com que recursos, onde está sua mulher e sua filha. Até mesmo os oito funcionários do gabinete — que mensal e candidamente entregavam parte dos salários para a caixinha do então deputado—  estão desaparecidos.

    Se a investigação contra Flavio Bolsonaro for para valer, é preciso saber cadê o Queiroz.

     

     

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

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