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  • Prisão de Babiy Querino reforça racismo da Justiça: ‘Pra não chapar eu escrevia’

    Prisão de Babiy Querino reforça racismo da Justiça: ‘Pra não chapar eu escrevia’

    Por: Kauê Vieira, do Hypeness  /  Retirado do Géledes 

    Bárbara Querino de Oliveira, a Babiy, teve a vida transformada pelo preconceito. Aos 21 anos, esta jovem mulher negra apaixonada pela arte foi acusada e presa por um crime que não cometeu.

    Ao Hypeness, Babiy revelou a sensação angustiante de não apenas ser acusada, mas ter a liberdade interrompida pela criminalização constante de pessoas pretas. Pior, ela foi apontada como pivô de um assalto por uma característica que tanto ama, os cabelos cacheados.

    “Ser presa por ser uma mulher negra é revoltante. Se você não tem a cabeça, o psicológico bom, pessoas para te ajudar, você fica desgostosa de tudo. Você passa a se odiar”, diz ela.

    ‘Cor parda. Cabelos longos encaracolados’
    O sistema é f*da e agiu direitinho para incriminar Babiy. Ela, o irmão Wesley Victor Querino de Souza, de 19 anos, e um primo, William Wagner de Paula Silva, de 24, foram presos pelo suposto roubo de um automóvel na zona sul de São Paulo.

    Eles não tinham nada a ver com a história e talvez nunca fossem apontados como suspeitos se não tivessem a pele escura. Se você não sabe, caro leitor, ser negro implica na perda do seu direito de ir e vir. Dúvida? Converse então com o jovem fotógrafo de Jundiaí tratado como bandido em potencial por moradores de um bairro de classe média da cidade do interior de São Paulo. Ah, o racismo…

    Babiy foi levada pelos policiais até a delegacia, lá fotografada e as imagens, sabe-se lá como, foram parar em grupos do Facebook e WhatsApp. O bastante para cidadãos de bem julgarem e condenarem a dançarina. A brecha que o sistema queria, Babiy estava pintada como ladra e membra de uma quadrilha de assaltantes de carro.

    O casal vítima do roubo de um Honda Civic era membro de um desses grupos de WhatsApp. Os dois foram até o 99º DP do Campo Grande, viram as imagens e não tiveram dúvidas da participação da jovem no crime.

    Baseados em? Para eles, o fato de Babiy ser uma jovem negra de cabelo encaracolado era suficiente para colocá-la atrás das grades. Babiy era uma jovem “da cor parda, cabelos longos encaracolados da cor preta, olhos escuros, magra, altura aproximadamente de 1,68m, aparentando ter a idade entre 18 a 20 anos”, diz o termo de declarações da delegacia.

    Babiy revela a angústia de ser taxada de criminosa por uma característica tão bonita, seus cabelos.

    Foi duro. Foi difícil pra caramba, porque eu fui reconhecida pelo meu cabelo cacheado e eu amo meu cabelo, sabe? Fora que assim, nós mulheres negras nascemos fortes, sabe? Sem perceber, a gente vê que tudo que passamos na nossa vida a cada dia é uma superação.

    Bárbara acabou condenada pelo roubo do veículo em 10 de setembro de 2017. Seu irmão e primo também foram acusados pelo crime. A jovem acabou presa em 15 de janeiro de 2018 e sentenciada a cinco anos e quatro meses de prisão e encaminhada ao Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira no Butantã, onde passou quase dois anos de sua vida.

    A rotina do cárcere é das piores possíveis. O ambiente é ainda mais delicado para uma pessoa negra. A sensação de ver dezenas de semelhantes encarcerados pode ser insuportável. Em comparação com uma pessoa branca, nascer preto no Brasil significa ter o dobro de chances de parar atrás das grades. Afro-brasileiros representam dois terços da população carcerária do país, cerca de 64% dos detentos. Babiy fala com apreensão sobre este período. Ela, no entanto, reforça a importância e o apoio de outras mulheres negras no percurso.

    “Tem gente com sentimento sim”, inicia ela que chama a atenção para as armadilhas deixadas pela modernização de métodos escravocratas típicos do Brasil.

    “Se você não é uma mina que entende seu empoderamento, não se ama por completo, você acaba tendo que lidar com questões sociais que refletem na sua vida. Você vai passar a ser odiar por ser uma mulher negra e ter sido presa por isso”, acrescenta.

    De onde vem tanto ódio?
    Perto de completar 520 anos, o Brasil não tem muito o que celebrar. O último país das Américas a abolir a escravidão (será que aboliu?) reluta em encarar seu passado e ainda acredita na violência como maior resposta para os desafios sociais.

    Democracia?

    Marielle Franco, assassinada a tiros no centro do Rio de Janeiro, não deixa mentir. Nem o feito de assumir o posto de quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro livrou a mulher preta da favela da Maré da morte.

    No caso de Babiy, os sonhos quase foram interrompidos pela impiedade do sistema judiciário brasileiro. Ela explica que durante 1 ano e 8 meses no cárcere repetiu diversas vezes que deveria se amar, mas que mesmo assim sentiu na carne as artimanhas do Estado.

    “Graças a Deus, sempre tive consciência. Amo minha cor, me amo de verdade. Não tem isso. Então, digamos que é uma forma do sistema judiciário tentar nos exterminar. Fazer com que odiemos nossa cor, nosso povo. Muito bizarro. É um puta de um genocídio, essa é a real”.

    Mas o ódio não se cria só com o ódio do promotor. Ele, na verdade, cresce com o auxílio da mídia. Os programas policialescos que dividem espaço com o império de igrejas capitalistas assumem o papel de desumanização. Apresentadores, quase todos brancos, não disfarçam sua sede por sangue. Quer dizer, Justiça.

    “Não é que a raiva faz parte da minha rotina, mas tem momentos que ela está em presente. Há momentos em que olho pra tudo, me sinto bem perdida e acho que não consigo me encaixar, que sou um lixo de pessoa. Aí me bate uma raiva por ter passado por tudo que passei. Essa é a real”, destaca.

    O roteiro parece se inspirar no cinema e cria rótulos de vilão e mocinho. O palco está armado para passar ao espectador a ideia de que o crime acontece por pura maldade. Não existe vontade alguma de contextualizar e ressaltar a concentração de renda na mão de poucos enquanto pobres e pretos – tratados como podres – como já cantaram Gilberto Gil e Caetano Veloso, se estapeiam pelas migalhas. Brasil acima de todos!

    Diferente do que é dito por aí, Babiy encontrou muita humanidade dentro do centro de detenção.

    O acolhimento das mulheres, ainda mais negras, era muito grande. A gente se ajudou muito lá dentro. 90% das mulheres do sistema carcerário são negras. Todas nós estávamos ali fortes e ajudando umas as outras. Mantendo sempre o convívio em paz. Umas são empoderadas, outras não. Tinha momentos lá dentro que a gente fazia assim, ‘ah, hoje vou ser sua psicóloga, vamos conversar’. Uma era psicóloga da outra, porque uma entendia as dores da outra, sabe? Então, uma sofreu na pele o que a outra tava sofrendo e sofreu.

    Pela arte
    Babiy precisou se desafiar psicologicamente para segurar a onda do encarceramento injusto. Assim como Preta Ferreira, que também foi presa por defender o acesso à moradia em São Paulo, a jovem de 21 anos canalizou a indignação na arte.

    “Olha, lá dentro pra não chapar eu escrevia, conversava, fazia a unha, a sobrancelha das meninas. Eu chorei bastante no começo, mas depois pensei, ‘ah não, se eu to aqui na merda, vamo aprender a lidar com essa merda’. E, basicamente eu pegava e escrevia, conversava bastante com as meninas. Isso me aliviou bastante. Eu passava horas escrevendo para as pessoas que me escreviam. Escrevia textos”, recorda.

    A tática se mostrou eficaz para Babiy, mas a verdade é que o desafio psicológico de estar atrás das grades é inimaginável. Para se ter ideia da falta de Justiça no Brasil, dos 812 mil presos, 337 mil estão presos sem condenação.

    O caso é grave e aumenta os desafios de quem senta no banco dos réus. Os já citados programas policiais exercem papel decisivo neste cenário. Supostos criminosos são julgados e condenados antes de mesmo do parecer do juiz.

    “Teria sido afetada radicalmente se as pessoas não soubessem da minha inocência. Mas a maioria sabe que sou inocente, pois acompanharam o caso. Então, apareceram alguns trabalhos”, explica Babiy.

    Ela, no entanto, reforça a existência do preconceito velado. Olhares desconfiados surgem vez ou outra.

    “Ainda tem a questão das pessoas olharem diferente, sabe? A galera sabe que eu sou inocente, mas também sabem que fiquei 1 ano e 8 meses da minha vida dentro da cadeia. Que conheci pessoas lá dentro, conheci o crime. Mas isso não interfere nada em quem eu sou. Isso não reflete na minha vida. Eu não gosto nem de ficar lembrando dessas partes. O que eu conheci lá de ruim tento esquecer. Pego aquilo que foi aprendizado mesmo. Mas tem uma galeria hipócrita. Essa é a palavra”, conclui.

    ‘Liberdade para Babiy’
    Nesta terça-feira (29), Babiy terá uma audiência de reavaliação, que pode absolvê-la ou manter a condenação. “É tudo ou nada. Penso positivo sempre, mas tenho meus pés no chão”, explica.

    A dançarina afirma que encara o momento decisivo com otimismo. Ela salienta que a audiência pode ser uma oportunidade para a Justiça se redimir. “O judiciário brasileiro vai ter a chance de tentar…tentar reconhecer seu erro. Tentar reconhecer e mostrar para as pessoas que reconheceu seu erro. Reparar não tem como”.

    A forma com que Babiy se refere ao sistema judiciário revela a inabilidade do setor em contemplar as demandas da população negra, que além de estigmatizada, sofre na pele as consequências do racismo institucionalizado. Portanto, para a dançarina é muito mais do que provar a inocência diante do júri. É um compromisso com sua história, com sua caminhada pelo certo e amparada em expressões artísticas.

    “A absolvição vai ser uma chama reacendendo, sabe? Contra o sistema judiciário, os erros que ele comete todos os dias no país. Eu creio que vai ajudar muitas pessoas. Esse é o intuito, de ajudar. O que eu passei não tem como apagar da memória, então o foco é ajudar para que as pessoas não passem pelo que eu passei”.

    Vida nova
    A verdade é que Babiy Querino só quer viver sua vida. Talvez seja o sonho de todo o negro brasileiro. Liberdade é o que todo o preto tenta.

    “As pessoas estão conhecendo a Babiy de verdade. Essa sou eu. Sou uma menina mulher. Sou nova. Sou objetiva, firme quando quero e tenho que ser. Sou uma pessoa que não desiste fácil. Não guardo nada de ninguém e ajudo no que puder”.

    A transformação passa pela mudança de endereço. Babiy não quer dar de cara todos os dias com o passado traumático. A dançarina abriu uma vaquinha para ajudá-la a mudar de casa.

    “Os policiais vivem no bairro onde eu moro. Eu não sou uma pessoa de muitos medos, mas temo pela minha segurança e a segurança da minha família. Então, é melhor me manter um pouco longe porque eles sabem que eu vou estar por aqui. Agora nem tanto porque, digamos, que aos olhos deles eu estou sentenciada. Saindo a absolvição, com fé em Deus…é um processo contra o Estado e os policiais. A gente vai dar uma cutucada bem grande neles. Eu preciso sair daqui. Aconteceu tudo aqui, na rua da minha casa. Fora a situação do meu irmão ser preso, algemado. O primeiro contato com a questão do encarceramento. Eu lembro do meu irmão, sinto saudades deles. Lembro do dia e fico triste. São questões de segurança e psicológicas”.

    Ouviram? Não se engane, pode acontecer com você se for preto e pobre. Que Babiy fique marcada não como a menina negra presa injustamente, mas como estímulo para a luta por um sistema que seja justo.

    “Comigo não tem tempo ruim. É isso. Quero contar a minha história e mostrar para as pessoas que nós devemos semear o amor. O amor me salvou, a arte, minha família e os amigos. O amor das pessoas por mim e pela minha história. O amor salva. A arte salva”.

    Não acredite em promessas vazias e que desconsideram a cultura e educação como caminhos indissociáveis da igualdade social. A própria Babiy tem uma opinião muito bem fundamentada sobre cultura. “É praticamente o ar que eu respiro. Eu vivo pra dançar e danço pra viver. Minha válvula de escape. Se estou triste, vou dançar. Se estou feliz ou com raiva, danço. Se estou com raiva também danço. Digamos que a dança é uma lavagem para alma”.

    “Eu quero que as pessoas se sintam com eu, sabe? Quero que as pessoas lavem suas almas dançando ou fazendo qualquer tipo de arte. Quero que as pessoas sejam felizes, se mantenham equilibradas por dentro e com o espírito leve. A dança e a cultura fazem isso comigo. Me deixam leve e me fazem querer lutar pelos meus. Me faz querer ensinar. Querer amar”

  • Rogério, mais um negro preso por tráfico de drogas sem drogas. Você não leu errado: sem drogas.

    Rogério, mais um negro preso por tráfico de drogas sem drogas. Você não leu errado: sem drogas.

    Por Kátia Passos e Lucas Martins

    Rogério Xavier Salles, 32 anos, foi preso em 28 de agosto, quarta-feira, enquanto trabalhava vendendo balas em um semáforo na cidade de Osasco, sob acusação de tráfico de drogas.

    O curioso é que o laudo da perícia mostra justamente o contrário: não há a presença de substâncias que possam ser reconhecidas como drogas, mesmo assim, esse foi o argumento utilizado pela Polícia Militar para mantê-lo detido.

    O juiz José Fernando Azevedo Minhoto reconheceu nesta segunda (16/09) a falta de provas: “verifico que o auto de flagrante delito padece de contornável nulidade” e aponta para o erro apresentado pelo Ministério Público “o laudo de constatação provisória teve resultado negativo para entorpecentes, isto é, na detectou no material apreendido com o indiciado a presença de cocaína”. Mas determinou apenas a liberdade provisória para Rogério, exigindo “comparecimento a todos os atos policiais e judiciais a que for chamado”. O juiz pediu a liberação.

    Rogério trabalha como ambulante vendendo balas há muito tempo. Sai de casa com uma bicicleta, escolhe o semáforo de acordo com o fluxo de carros, passa o dia oferecendo as balas e depois volta para casa até às 18h. Uma rotina comum, como a de milhões de trabalhadores brasileiros. Segundo a mãe Maria Inês, naquela quarta, Rogério estava na Avenida Internacional, 715.

    Segundo o Boletim de Ocorrência (B.O) uma viatura acionada por denúncia anônima foi até o local investigar uma suposta venda de drogas. Ao chegar no ponto de venda das balas, escolhido naquele dia por Rogério, “os policiais avistaram um indivíduo que estava sentado sobre um bloco de cimento, com características semelhantes às reportadas via COPOM e passaram a lhe abordar”. Rogério apresentou os pertences que carregava consigo: trinta e três reais em notas tocadas.

    Os policiais seguiram com a procura e “no interior do bloco de cimento que o indivíduo estava, foi localizado uma sacola plástica, sendo encontrado 16 eppendorfs com substâncias esbranquiçadas, análogas à cocaína”. Rogério foi levado para a 8° DP – Osasco, um laudo foi solicitado para o Instituto de Criminalística com o objetivo de verificar as substâncias encontradas no bloco de cimento, assim que a resposta chegou, o delegado determinou a prisão em flagrante.

    No laudo, utilizado para justificar a prisão, o perito indica que na “análise do material descrito fez o uso de teste colorimétrico empregado reagentes químicos adequados e, NÃO FOI DETECTADA a presença de substâncias rotineiramente pesquisadas neste Laboratório (Portaria SPTC 143/2017 de 10/07/2017)”.

    Laudo pericial que indica a falta de substâncias ilícitas

    A portaria apresentada no laudo é clara ao definir que “quando houver sua identificação inequívoca, deve ser expresso através dos termos – DETECTADA a presença da substância [nome da substância] constante na lista [nome da lista] da portaria ANVISA 344/98 e atualizações posteriores” e quando “os exames nos materiais resultarem em negativo, o resultado deve ser expresso através dos termos – NÃO FOI DETECTADA a presença de substâncias rotineiramente pesquisadas neste laboratório – , conforme a técnica utilizada e conforme a interpretação do perito responsável pela análise”.
    Nos casos de dúvida a portaria determina que se use “NÃO FOI DETECTADA a presença de substâncias rotineiramente pesquisadas neste laboratório devido à ausência de padrão analítico”.

    No último dia 11 de Setembro, o Ministério Público em ofício enviado ao juiz, pede que “considerando que a materialidade delitiva ainda não se encontra determinada, requeiro a concessão de liberdade provisória ao indiciado”.

    Com sequelas temos a reprise de um caso que aumenta a luta de muitas mães

    A mãe, uma testemunha de vida e luta do caráter e honestidade do filho Rogério, buscou a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio para auxiliar na luta por provas que inocentassem o rapaz.

    A Rede de Proteção está presente no territórios mais violentos e até inóspitos da cidade de São Paulo e atua contra o silenciamento de diversos casos similares ou até mais violentos como esse, no apoio às famílias vítimas e o acompanhamento diário, do começo ao fim da história, até o desfecho.

    Com o atual cenário de aval dos governos de Doria e Bolsonaro à uma violência desmedida contra, principalemente, pobres, negros e pessoas periféricas, vimos com mais frequência, a repetição de cenas como essa da prisão absurda de Rogério.

    Em alguns momentos, a legitimação de tamanha violência contra esse recorte populacional nasce também do desleixo, desinteresse e incompetência e caráter racista da Secretária de Segurança Pública do Estado de São Paulo que comete erros grotescos e muito questionáveis em seu modus operandi. Entra e sai governo e nada mudo.

    Punitivismo exacerbado, culminando em injustiça, cárcere e abuso de autoridade só são implementados nas horas que lhes interessa, então perguntamos: será que teríamos a mesma agilidade e violência inseridos no fato, se o personagem fosse outro, talvez um rapaz de 32 anos, branco portando pinos de cocaína num bairro nobre de São Paulo?

    A resposta está na cabeça de cada um, especialmente daqueles que praticam o racismo estrutural de cada dia, hora, minuto. Pensar em perigo, quando se avista um vendedor de balas num semáfoto, já é um raciocínio de extremo racismo violento.
    Danos irreparáveis e sequelas inomináveis pairam sob a pele e a mente de Rogério, sua mãe e de todos que se envolveram nesse caso. Mas quantos outros casos, quantos outros Rogérios precisarão ser encarcerados para que a Justiça e a Segurança Pública de nosso país, entenda que algo, ou melhor, muita coisa está erada?

  • Prisão abusiva de imigrante africano faz do Centro de Florianópolis praça de guerra

    Prisão abusiva de imigrante africano faz do Centro de Florianópolis praça de guerra

    SENEGALÊS GANHA LIBERDADE CONDICIONADA DEPOIS DE PRISÃO ILEGAL

    ATUALIZAÇÃO em 14/4 : Triste e pensativo, o trabalhador senegalês Ousmane Hanne deixou o Fórum da Capital no domingo, por volta de 15 horas, acompanhado por três advogados voluntários, sem reaver as mercadorias apreendidas pela Guarda Municipal. Sob os aplausos dos apoiadores, ele cumprimentos e agradeceu silenciosamente os amigos que o aguardavam do lado de fora. Depois da audiência de custódia, ele foi ouvido e liberado pela juíza Cleni Serly Rauen Vieira, da Vara do Plantão Criminal do Fórum de Florianópolis, mas ainda pode responder a processo se as denúncias apresentadas pelo delegado forem acatadas pelo Ministério Público. Durante a audiência, a juíza afirmou que a prisão não é a medida adequada para o caso. Ela determinou medidas cautelares, como obrigação de comparecer todos os meses ao juizado e não afastamento da comarca da capital por mais de oito dias. Para os advogados, a prisão do imigrante, que tinha situação e documentos regularizados, foi inconstitucional porque efetuada por guardas de trânsito e sem motivo justo. Nesta segunda-feira, às 15 horas, haverá uma reunião na Câmara de Vereadores com imigrantes e entidades apoiadoras e, no dia 25 (quinta-feira), às 17 horas, o movimento integra a Marcha contra a Violência Policial em Defesa de Direitos e Democracia, promovida pelo Coletivo Ocupações Urbanas.

    * * *

    O Centro de Florianópolis virou um campo de xenofobia, racismo e violência contra imigrantes africanos no início da tarde de pleno sábado (13/30). Dez homens da Guarda Civil em duas viaturas da Ronda Ostensiva Municipal apreenderam a mercadoria de um trabalhador senegalês que vendia camisetas e bermudas na rua Álvaro de Carvalho, imobilizaram-no com violência, empurraram-no para a traseira do camburão e o levaram algemado para o 5° DP, onde foi preso sob alegação de desacato, resistência à prisão e desobediência. Vídeos gravados por outros imigrantes do Haiti e Senegal mostram, contudo, que o rapaz não reagiu, pelo contrário, ele foi o agredido. Nas imagens, os guardas erguem seu fuzil para ameaçar a população, apontando o cano para as pessoas em volta das viaturas que protestam contra a prisão arbitrária. Vários homens, alguns de pele branca, gritam batendo corajosamente no peito: “Atira, vai, podem atirar, covardes!”. Um homem repete em vão: “Mas ele não fez nada!”. Guardas lançam spray de pimenta indiscriminadamente sobre os passantes e uma mulher com o filhinho de cerca de três anos que nada tem a ver com o conflito entra em desespero ao sentir a garganta sufocada pelo gás. Os guardas de trânsito partem nas viaturas vaiados pelos manifestantes

    Em frente à DP, advogada Daniela Felix, imigrantes e apoiadores tentam liberar trabalhador senegalês da prisão abusiva. Foto: ver. Lino Peres

    Pelo menos 20 pessoas, entre testemunhas e líderes de entidades solidárias aos imigrantes e refugiados na Grande Florianópolis, foram para a delegacia de plantão prestar apoio a Ousmane Hanne. Eles abriram Boletim de Ocorrência por agressão e prisão abusiva. O jovem, de 33 anos, veio para o Brasil há três anos trabalhar para ajudar a família, a mulher e os filhos que vivem no Senegal. Tem documentos e situação legalizada, conforme a advogada popular Luzia Cabreira, que está fazendo a assessoria jurídica do caso ao lado da advogada Daniela Felix. Elas foram chamadas com urgência ao 5° DP pelo vereador Lino Peres (PT), a pedido das entidades, para defender o imigrante, mas o delegado não só o fez passar a noite na cadeia, como manteve a prisão e encaminhou queixa-crime ao juizado. Hanne foi acusado também de insultar os policiais, embora segundo Luzia, se comunique muito mal por causa do forte acento e só domine o dialeto do país de origem, p . Neste domingo, no início da tarde, ele prestará depoimento em audiência de custódia no Fórum da Capital para que o juiz decida se vai relaxar a prisão e defina as penalidades. Será acompanhado pelas advogadas, que devem apresentar denúncia de prisão arbitrária e violência policial.

    • Foi uma ação de desrespeito aos direitos humanos, com a prisão brutal de um trabalhador pacífico e quieto, que não representa nenhum perigo para a comunidade. É indigno como tratam um imigrante que já enfrenta preconceito e dificuldades de sobrevivência em território estrangeiro. Sem falar que guardas civis não são agentes legalmente designados para a função de fiscais de mercadorias. Essa prisão inadequada gerou um processo penal desnecessário para uma justiça já tão morosa pelo acúmulo de demandas. Tudo poderia ter sido resolvido com um acordo circunstanciado em que o vendedor ficasse sujeito a apresentar a nota das mercadorias, afirma Luzia Cabreira.

    AUDIÊNCIA NO FÓRUM HOJE, PROTESTO CONTRA TRUCULÊNCIA AMANHÃ

    Tranquilos e gentis, imigrantes africanos são frequentemente vítimas de racismo e xenofobia Foto: Aline Torres (UOL, 2018)

    Revoltados, os senegaleses, que têm uma associação com 55 fundadores, solicitaram ao vereador a convocação de um ato na segunda-feira (15/4), às 15 horas, na Câmara Municipal, para manifestar sua indignação e conseguir o comprometimento dos parlamentares contra a violência do aparato de repressão da prefeitura. Foram convocados o Centro de Referência e Apoio aos Imigrantes (CRAI), o Serviço Pastoral do Migrante (SPM), o Grupo de Apoio aos Imigrantes e Refugiados  (Gairf), a Sociedade Beneficente Cultura Brasil Haiti (Haibra), o Projeto PANA, da Cáritas/CNBB e ainda a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. “Foi uma truculência enorme contra o comerciante preso, contra os senegaleses e haitianos que estavam a sua volta e também contra a população de passantes agredidos com gás de pimenta e ameaçados com armamento pesado”, atesta Lino Peres.

    Em frente à DP, a professora voluntária de língua portuguesa para estrangeiros, Elsa Nunez, reuniu numa lista o nome completo e o telefone de 12 testemunhas da agressão, entre elas três brasileiros nordestinos, dois haitianos e sete senegaleses. Quando já estava no camburão, completamente rendido, Hanne recebeu outra vez gás de pimenta nos olhos, segundo seus conterrâneos. Nascida no Chile e radicada no Brasil, Elsa explica que a única reação do trabalhador foi se agarrar à mercadoria e tentar pedir, no seu português crioulo, que os guardas assinassem o termo de apreensão para que ele pudesse recuperá-la depois. “Caso contrário, eles sabem que nunca mais vão reaver os produtos adquiridos a duras penas”, afirma a professora , que enviou um apelo aos seus amigos pelas redes sociais:

    – Estamos convocando todo mundo para segunda feira, dia 15 , às 15 horas, na Câmara Municipal, com o Vereador Lino, e a associação dos senegaleses, para discutir todos os abusos que os estrangeiros sofrem, especialmente a violência absurda e desnecessária deste sábado dia 13, no centro de Florianópolis. Convidamos todos, já que todos somos migrantes neste país. Favor compartilhar com seus contatos. Elsa Nunez, cidadã do mundo.

    “Macacos, voltem pra sua terra. Aqui não é o seu país”, gritaram os comerciantes. Foto: Marcos Bruno (CBN/Diário – 2017)

    Não é a primeira vez que policiais agridem gratuitamente imigrantes africanos nas ruas de Florianópolis.  “Batem nos camelôs imigrantes como se fossem ladrões”, denuncia Elsa. No ano passado, várias cenas violentas como a de ontem foram presenciadas pela população, sempre provocadas por denúncias da Associação Comercial. Embora gentis e tranquilos, os africanos sempre sofrem abordagens truculentas na praia de Canasvieiras, onde caminham de uma ponta a outra embaixo do sol, carregando suas mercadorias, lembra Thaís Lippel, presidente do  Coletivo Memória, Justiça e Verdade, que também acorreu à delegacia.

    Sempre que sofrem abordagem da Guarda Civil, os imigrantes têm sua mercadoria apreendida e a polícia nunca mais devolve, explica o vice-presidente da Associação Senegalesa, Manoel Chiekb. Por isso, eles foram aconselhados pelas entidades protetoras a exigirem seu direito de obter uma relação assinada pelos agentes com os produtos retidos antes de entregá-los.  “Nós temos nossas mercadorias diariamente tomadas e não podemos mais suportar essa perda”, desabafa Chiekb, que também mantém família no seu país com o trabalho de ambulante no Brasil.

    Num protesto contra os ambulantes africanos ocorrido em março de 2018, os comerciantes ofenderam os trabalhadores com palavras de racismo e xenofobia. “Volta para o seu país, macaco! O que você está fazendo no Brasil?”, gritaram.  O mesmo insulto foi dirigido contra nordestinos que criticavam o levante dos lojistas. Em junho do ano passado, no TICEN (Terminal de Integração do Centro), a polícia passou de carro por cima da mercadoria de um haitiano que foi ainda humilhado e agredido. O vice-presidente da Associação Senegalesa, que filmava a ofensiva, teve seu celular jogado ao chão e pisoteado pelos guardas que apagaram as imagens. Em função desse episódio, houve uma forte mobilização das entidades, com queixa à Corregedoria do município, que culminou com uma reunião e um termo de acordo em que a Guarda Civil se comprometeu a não depredar os pertences dos imigrantes e a não efetuar prisões arbitrárias para substituir o trabalho de fiscalização. Pela persistência das agressões, a violência e os abusos de poder continuam sendo o método preferido dos aparatos de repressão.

    ADVOGADO MOSTRA QUE SITUAÇÃO DO IMIGRANTE É LEGAL, MAS SUA PRISÃO É ILEGAL

    Enquanto Ousmane era acompanhado pelas duas advogadas na Delegacia de Polícia, um terceiro advogado, também voluntário, entrava em ação para atuar em sua defesa, depois de ser contatado por um amigo do senegalês. Guilherme Silva divulgou nas redes sociais o seguinte relato, provando que a situação de Ousmane como imigrante está legal, conforme os documentos que buscou em sua casa. Mostra também que as acusações levantadas para fundamentar sua prisão são ilegais:

    Três advogados populares atuam juntos na defesa gratuita do imigrante, que agora responde acusações em liberdade condicionada
    Aos interessados no desfecho do caso do senegalês Ousmane Hann:
    Após contato de um amigo de Ousmane Hann, fui até a 5ª DP verificar se estava ferido e me oferecer para atuar em sua defesa de forma gratuita, o que foi aceito, tendo ele outorgado procuração à mim.
    Antes disso entrei em contato com um amigo senegalês que mora com ele, fui até a casa dele e colhi documentos como comprovante de residência, identificação e documentos relacionados ao simples nacional que ele tem ativo para vender suas roupas. Levamos também comida e roupa, já que ele não comia desde cedo e estava com a roupa rasgada.
    O flagrante foi lavrado pelos crimes de desobediência, desacato e resistência, encontrando-se ele custodiado em razão disso. Entrei em contato com o plantão do fórum da capital com o objetivo de impetrar um Habeas Corpus e a informação que me foi passada é que a juíza não analisaria hoje em razão do adiantado da hora, ficando pendente a análise da legalidade do flagrante e da necessidade ou não de prisão para amanhã na audiência de custódia a ser realizada no fórum da capital às 14:00 horas.
    Fui informado ainda que o procedimento da delegacia foi acompanhado pela competente advogada e professora Daniela Félix a qual já entrei em contato. Amanhã estaremos na audiência de custódia em busca da liberdade de Ousmane, preso por estar vendendo bermudas sem nota fiscal, quando veio ao Brasil fugir da pobreza e tentar uma vida melhor, mandando dinheiro semanalmente para sua família no Senegal.
    Ousmane foi preso por uma guarda que é feita para cuidar do trânsito, pelo crime de desacato quando nem sabe falar português, por ter resistido a uma prisão ilegal e por estar comercializando produtos da 25 de março quando produtos piratas são vendidos aos quatro cantos do país.
    As ilegalidade da prisão são várias. Desde a incompetência da guarda municipal para fazer fiscalização sobre mercadorias sem nota fiscal, passando pela impossibilidade de lavratura de flagrante por resistência e desobediência (princípio da consunção), quem foi meu aluno sabe, e ainda pelo fato de que desacato nem é mais crime, conforme vem entendendo o STJ.
    Restaria quando muito a resistência, devendo ser lavrado um termo circunstanciado e logo liberado, mas não foi.
    A prioridade agora é a liberdade de Ousmane, e depois disso, sendo da vontade dele, estarei à disposição para fazer justiça sem nada cobrar, pelo direito de ser humano e viver como humano!
    O amigo de Ousmane me relatou que os imigrantes sofrem diuturna perseguição dos Guardas Municipais de Florianópolis. Ouvindo todo dia coisas como “voltem para o país de vocês” “não queremos vocês aqui” “vamos incomodar até vocês voltarem”. Além de agressões, tapas na cabeça, empurrões, gás de pimenta e investidas com as viaturas na direção dos imigrantes!
    Uma fronteira não pode fazer-nos esquecer que somos irmãos, independe da cor e da nacionalidade.
    Parabéns à quem se preocupou e estabeleceu uma rede que me fez chegar a Ousmane. Amanhã atualizo vocês!

     

     

  • Já são 365 dias de dor e indignação contra abusos de poder que mataram Cancellier

    Já são 365 dias de dor e indignação contra abusos de poder que mataram Cancellier

    PRENÚNCIO DO FASCISMO: “Já era a manifestação do projeto de morte no qual as elites brasileiras irresponsáveis estão lançando o país agora” (jurista Lédio Rosa)

    “A memória é subversiva porque é capaz de renovar a esperança e evitar que ressurjam páginas viradas da nossa história (Padre Vilson Groh)

    ALERTA CONTRA FASCISMO: Familiares, amigos. políticos e militantes de esquerda em peso na homenagem ao reitor. Foto Raquel Wandelli
    Por Moacir Loth e Raquel Wandelli

    Indignação e dor contra o abuso de poder que matou o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo marcaram o ato realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, no dia do primeiro aniversário do seu desaparecimento. Cau, como era conhecido, cometeu suicídio no dia 2 de outubro de 2017, como resposta às humilhações e torturas sofridas durante a Operação Ouvidos Moucos, levada a cabo pela Justiça Federal, Ministério Público e Polícia Federal, atendendo a argumentos forjados pelo então corregedor da própria universidade. Um ano depois, um processo de 800 páginas não encontrou uma prova sequer que justificasse a prisão, a violação dos direitos constitucionais e muito menos a proibição do acesso à universidade que dirigia por voto direto da comunidade universitária. Na homenagem política e religiosa, oito discursos emocionaram estudantes, professores, técnicos administrativos e pessoas da comunidade que lotaram o Templo Ecumênico da UFSC.

    A injustiça e o abuso de poder serviram como fio condutor para as manifestações. O microfone foi usado para defender a verdade, o respeito ao Estado Democrático e de Direito, a liberdade de expressão diante da ameaça vivida pelo Brasil com a ascensão de um candidato fascista, também sustentada no ódio cego e nas mentiras oficiais que destruíram a reputação do reitor. Antes dos discursos, a apresentação do Madrigal e Orquestra de Câmara da UFSC abriram com o Lamento Sertanejo, que já se tornou um emblema da saga do reitor suicidado.

    Padre Vilson Groh: “É preciso cultuar a memória para que as tragédias não se repitam”.  Foto Agecom

    Padre Vilson Groh lembrou o sermão do Papa sobre “os tempos difíceis”, em referência às ondas conservadoras que vêm eclodindo perigosamente no mundo. Acentuou a importância de não perdermos a memória dos que tombaram no caminho da história pela democracia e pela justiça social. “As pessoas precisam se alimentar dessa memória, que é extremamente subversiva, porque é capaz de trazer de volta a esperança”. A memória é tão transformadora, segundo ele, que pode evitar o ressurgimento de páginas viradas da história. Evocando a resistência, manifestou-se contra a naturalização do imobilismo. “Temos que arregaçar as mangas e conjurar, de forma coletiva, o verbo esperançar”, convidou. Defendeu a utilização dos espaços educativos, como a universidade, para “produzir, acalentar e materializar os sonhos do povo”. Militante pela vida dos jovens das periferias de Florianópolis, falou sobre os projetos que seu Instituto havia firmado com Cancellier (renovados pelo novo reitor) para dar apoio à formação desses jovens antes de serem assassinados pela polícia e pelo tráfico.

    Lédio Rosa: “Cau foi um inocente vítima de abuso inominável de ilegalidade do Estado”. Foto Agecom/UFSC

    O suicídio político do reitor da UFSC foi um sinal evidente dos horrores que estavam preparando para o país, no discurso dramático do seu melhor amigo, o desembargador aposentado e candidato ao Senado pelo PT, Lédio Rosa de Andrade. Amigo de infância e colega na universidade, Lédio foi ovacionado ao repudiar a irresponsabilidade da Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal. “Prenderam e humilharam um inocente; prenderam quem não poderiam ter prendido”. O processo de liquidação moral e jurídica do companheiro de juventude e movimento estudantil foi, na sua definição, “um abuso inominável de ilegalidade do Estado, que é o maior responsável por mortes de cidadãos em todo o mundo”. O Estado mata em nome do monopólio da violência desde a Idade Média, contextualizou, qualificando a perseguição e prisão de Cau como barbárie.

    Irmãos Júlio e Acioli Cancellier recebem placa com os dizeres do último artigo do reitor: “A universidade permanece”

    Dizem que quando o tempo passa a dor e a revolta amenizam, mas para Lédio, depois de um ano, a inconformidade só aumentou, agravada pelo perigo que o país sofre. “A única coisa que me conforta é pensar que ele estaria ao nosso lado agora lutando contra essa ameaça”. Seu apelo à luta com a voz embargada culminou com uma advertência sobre o perigo enunciado pelo gesto político do suicídio de Cancellier. “Não podemos duvidar da irresponsabilidade das elites deste país diante desse projeto de morte que ameaça hoje a sociedade brasileira”. O fascismo está espreitando as nossas portas, acrescentou: “Urge conter os fascistas que estão na imprensa, nas universidades e nas ruas”.  O discurso da violência está se generalizando: “Não é uma questão de esquerda ou de direita. A democracia é um valor fundamental que deve ser ensinado em sala de aula. A ordem do dia é lutar contra o fascismo”.

    Pedindo desculpas por estar num ambiente de celebração ecumênica, o estudante Isaac Kofi Medeiros anunciou que era preciso falar da indignação de toda a área jurídica com a “violência institucional” que culminou com a morte do seu mestre do Curso de Direito. Indignação com as “800 páginas de um processo infame que não encontrou um único crime cometido por Cancellier”. Aplaudido com veemência, o líder estudantil denunciou a tentativa de “criminalizar e censurar a indignação da comunidade universitária contra o abuso de poder”, referindo-se à ação judicial movida pela delegada Érika Marena contra o atual reitor e seu chefe de gabinete por causa de uma faixa estendida no hall da reitoria com fotos dos responsáveis pela prisão e abusos de poder contra o reitor envolvidos na Operação Ouvidos Moucos. “Eles se esquecem de que ali foi o palco onde milhares de estudantes se reuniram para derrubar a ditadura, entre eles, o nosso reitor”. Lamentando a ausência do líder no clima de intolerância que ameaça o Brasil, advertiu que o Estado policialesco jamais conseguirá calar a universidade, que se manterá “coesa na defesa da autonomia, da liberdade e da democracia”.

    “Indignação por acharmos que o absurdo humano e a violência institucional haviam atingido seu limite, eles retornaram neste ano e tentaram censurar até nosso luto, através de uma ação policial vergonhosa movida contra os professores Ubaldo e Aureo, a pretexto de salvaguardar a honra de alguém que nunca pensou na honra do reitor Cancellier”.

     

     

     

     

     

    Em nome dos servidores técnico-administrativos, o trabalhador Marco Martins lamentou que um reitor cuja marca era a tolerância extrema e a humildade tenha sido vítima fatal da intolerância.  “Ele era tão próximo de nós, que nunca consegui chamá-lo de professor, que dirá de reitor”. Contou que Cancellier havia implantado o diálogo e buscava permanentemente a pacificação do ambiente universitário. Num testemunho muito emocionado, revelou que quando foi surpreendido pela violência do Estado policialesco, Cancellier estava empenhado em garantir uma “convivência saudável” e “plural” na UFSC. Lutando contra as lágrimas, indagou: “Que justiça é essa?”

    Emoção e indignação marcaram a cerimônia de um ano da morte do reitor Cancellier. Foto: AGECOM/UFSC

    O diretor do Centro de Ciências Jurídicas, professor José Isac Pilatti, membro da Academia Catarinense de Letras, afirmou que o abuso institucional atirou a UFSC numa “crise injusta e inexplicável”. Com versos de Fernando Pessoa, Pablo Neruda e Cruz e Sousa, que falam sobre a permanência do significado de uma existência após a morte, referiu-se ao reitor suicidado como “luz serena e imortal”, “anfitrião das minorias” e “conciliador das maiorias”.

    Por fim, o professor do Curso de Jornalismo e Chefe de Gabinete, Áureo Moraes, encerrou a homenagem com a entrega de uma placa aos familiares com um trecho do artigo derradeiro de Cancellier, escrito em 29 de setembro de 2017, três dias antes de mergulhar no seu voo de sacrifício?

    “Ao longo de minha trajetória como estudante de Direito – na Graduação, no Mestrado e no Doutorado – depois como docente, Chefe do departamento, Diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, afortunadamente, como Reitor da UFSC, sempre exerci minha atividade tendo princípio a mediação e a resolução de conflitos com respeito ao outro, levando a empatia ao limite extremo da compreensão e da tolerância. A instituição, tenho certeza, é muito mais forte do que qualquer outro acontecimento.

    Morre o reitor, a universidade permanece. E dessa forma sua vida continua na luta pela universidade pública. É a mensagem.

     

     

    Uma Universidade sem medo

    Ubaldo Cesar Balthazar

                                            Reitor da UFSC, doutor em direito, escritor e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC e do Instituto dos Advogados de Santa Catarina.

    Há exatos 365 dias perdíamos, de forma trágica, um amigo, um líder, uma referência. O reitor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, nos deixava, após um ato de coragem.

    Digam os críticos o que quiserem. Mas, para nós que o conhecemos, foi um gesto verdadeiro de coragem. Uma medida extrema, sim. Mas julgada, por ele, como necessária, indispensável e fundamental. Um genuíno sacrifício em nome de tudo aquilo no que ele acreditava e que lhe havia sido extirpado da forma mais vil, da maneira mais indigna e por métodos que ele aprendeu, em 59 anos de vida, a combater.

    O reitor da UFSC, que apenas um ano e cinco meses antes havia assumido a função, estava no auge de sua disposição. Na semana em que foi preso, junto com outros colegas, tinha retornado de uma viagem para definir novos espaços de atuação internacional da instituição.

    Comandou, na véspera, a última solenidade de formatura. E foi despertado, na madrugada seguinte, por agentes encapuzados, fortemente armados, e conduzido –sem saber a razão– para a Polícia Federal e, depois, encarcerado na ala de segurança máxima da penitenciária estadual.

    Exilado, como disse à época, viu sua reputação ser escorraçada. Seu nome estampado em todas as mídias como “chefe” de uma organização que “desviou” R$ 80 milhões. E uma trajetória política iniciada na década de 1970, e consolidada pela brilhante carreira na UFSC, sendo simplesmente ignorada. O Cau “foi suicidado”, como diziam alguns cartazes no dia de seu enterro.

    Um homem sem nenhuma vaidade pessoal, que ostentou uma única riqueza: a intelectual. Um homem sem grandes posses e que, como milhões de educadores brasileiros, morava num apartamento de cerca de 90 m2, rodeado por quase 2.500 livros. Ali sim, talvez, existisse algum risco àqueles que contribuíram para que fizesse seu último ato político.

    Nenhum ilícito lhe foi imputado, todos os seus atos foram dentro da lei e, principalmente, todos no espírito de engrandecer a instituição que tanto amava.

    Entregamos recentemente um memorial ao ministro extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmann, e ao governador do estado de Santa Catarina, Eduardo Moreira, aos quais solicitamos providências ao que nos pareceu o uso excessivo da força e de arbitrariedades sofridas pelo reitor e pelos demais colegas no processo de condução e depois no cárcere. Isso precisa ser rigorosamente apurado.

    Sentimos, ainda, muita falta do Cau. Pelo que ele representava de equilíbrio, habilidade no trato com todos, na sua insistência pelo diálogo, pela tolerância, pela agregação. E temos dito que jamais iremos esquecer o que aconteceu.

    Ao mesmo tempo, contudo, temos uma longa batalha a travar. Precisamos enfrentar as ameaças externas à nossa autonomia, as tentativas de cerceamento da liberdade de expressão, as intimidações de que viemos sendo vítimas, os ataques de vários setores do próprio Estado que parecem estar em uma cruzada sem precedentes contra a nossa e as demais universidades públicas brasileiras.

    Um Estado que, nos parece, cada vez mais longe da regra e explicitamente associado à exceção.

    Dos princípios e valores defendidos pelo Cau não nos afastaremos. Seu legado nos inspira a fortalecer ainda mais a UFSC nos próximos quatro anos. Apesar de toda a dor e todo o luto, resistimos, retomamos nossa estabilidade, fizemos uma eleição para a reitoria e o projeto, iniciado por ele, venceu!

    Aos poucos os colegas, também injusta e arbitrariamente presos e afastados por um ano, estão voltando. Ele, o nosso Cau, não voltará. Mas a sua honra, sua dignidade e seu nome permanecem vivos e nos motivam a transformar a UFSC naquilo que ele tanto perseguiu: uma universidade em paz, harmonia, e, principalmente, sem medo.

  • UM ANO DA PRISÃO DE CANCELLIER: Universidade prepara ação judicial contra abusadores

    UM ANO DA PRISÃO DE CANCELLIER: Universidade prepara ação judicial contra abusadores

    “Que ninguém mais seja julgado, condenado e executado sumariamente como vocês e meu irmão foram”

    (Acioli Cancellier, irmão do reitor suicidado)

    Da esquerda para a direita: o irmão Júlio, o filho Mikhail, o irmão mais velho Acioli e o reitor

    Há um ano, o então reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, tornou-se a primeira vítima fatal explícita da prisão preventiva abusiva e da espetacularização da justiça no Brasil. Muito pouco, ou nada se conseguiu para reparar justiça à memória do reitor e a sua família, além de algumas derrotas à perseguição que os responsáveis pelo abuso de poder continuaram a promover contra professores e dirigentes da universidade. Esse quadro, contudo, começou a mudar. O novo reitor Ubaldo César Balthazar começa a desencadear uma vigorosa ofensiva para levar à investigação e à punição dos abusadores. A Procuradoria da Universidade deve entrar nos próximos dias com um processo judicial contra os responsáveis pelo linchamento moral e jurídico de Cancellier, desde a sua base na Corregedoria Geral da UFSC. Nesta sexta-feira pela manhã, o professor Marcos Dalmau, preso junto com Cancellier e igualmente banido da instituição com outros quatro colegas, retornou a UFSC, depois de vencer mandado de segurança impetrado no TRF4.  Foi recebido numa cerimônia emocionada pelo reitor e equipe, na qual a solidariedade e o sentimento maior de defesa da instituição e dos direitos jurídicos falou mais alto do que as intrigas e manchas na reputação lançadas pela Operação Ouvidos Moucos no seio da comunidade universitária.

    Reitor Ubaldo Balthazar e pró-reitor de Relações Institucionais, Gelson Albuquerque entregam memorial dos abusos de poder a pedido do ministro Raul Jungmann

    Um outro passo para a criminalização dos procedimentos abusivos da Ouvidos Moucos na UFSC foi dado na quinta-feira (13/9), quando o reitor Ubaldo Balthazar e o pró-reitor de Relações Institucionais, Gelson Albuquerque, entregaram um dossiê ao ministro da Segurança Raul Jungmann, a  pedido dele, no seu gabinete em Brasília. O conjunto de documentos e testemunhos relata todos os desmandos, violações dos direitos humanos e jurídicos que envolveram a prisão do reitor, dos cinco professores e de um funcionário celetista. Na mesma hora, o memorial foi encaminhado à Corregedoria do Ministério para investigar a conduta dos agentes dos órgãos federais de representação local implicados na Operação e nas perseguições: Corregedoria Geral da UFSC, Polícia Federal, Justiça Federal, Ministério Público Federal e Controladoria Geral da União. São relatos da prisão e testemunhas dos abusos da Operação que já corriam de boca em boca na UFSC, mas foram sistematicamente ignorados pelos investigadores e juízes. Em dezembro do ano passado, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, devolveu ao irmão do reitor uma representação da família contra a delegada Érika Mialik Marena, após a realização de uma apuração sumária e viciosa, comandada pelo próprio diretor de comunicação da servidora, Luiz Carlos Korff, quando ela ainda era superintendente da Polícia Federal em Santa Catarina. Dessa vez, com o escândalo da perseguição às vítimas, a denúncia alcançou outra dimensão.

    O pedido do dossiê foi motivado por manifestação do ministro Gilmar Mendes, que provocou Jungmann a investigar a delegada Érika Marena em razão do caráter absurdo e corporativista das perseguições e intimidações promovidas pela Polícia Federal aos dirigentes da UFSC, o chefe de gabinete Áureo Mafra de Moraes e o reitor Ubaldo Balthazar, numa tentativa de criminalizá-los pelas manifestações de dor e protestos da comunidade universitária pela morte de Cancellier. A primeira parte do dossiê denuncia os procedimentos persecutórios do corregedor geral da UFSC, Roldolfo Hickel do Prado, que alimentaram e subsidiaram a prisão de Cancellier e dos demais por tentativa de interdição das investigações, mesmo não tendo nenhum envolvimento com as suspeitas de desvios de verbas. Em seguida, o relatório reúne relatos que denunciam com detalhes as condições abusivas da prisão e tratamento dos professores em presídio de segurança máxima, solicitada pela delegada federal, com a anuência da juíza federal Janaína Cassol. A Corregedoria Geral da União e o Ministério Público Federal de Santa Catarina também são responsabilizados por terem encampado a  perseguição de professores e dirigentes da comunidade.

    Outra importante vitória foi o acolhimento nesta semana da manifestação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), para que o corredor do órgão, Orlando Rochadel, investigue o procurador do MPF/SC, Marco Aurélio Dutra Aydos por ter insistido em apelação de denúncia contra o reitor Balthazar e seu chefe de gabinete, mesmo depois de rejeitada pela juíza federal Simone Barbisan Fortes. O Conselho considerou suspeita a atitude do procurador que, “com consciência e vontade, desviou-se do interesse público e se utilizou do cargo público por ele ocupado para censurar a liberdade de expressão de acadêmicos, docentes e servidores da UFSC, movimentando todo o aparato de Justiça criminal para tutelar interesse próprio, com base em sentimento pessoal de justo ou injusto”.

    Até então, os algozes não só não foram punidos, como continuaram a intimidar suas vítimas. Sequer a lei que pune autoridades por abuso de poder foi aprovada. O Projeto de Lei 7596, batizado em outubro de 2017 como Lei Cancellier, por proposição do senador Roberto Requião, teve decisão favorável no Senado, mas ficou engavetado no Congresso Nacional desde o dia 10 de maio do ano passado. Essas vitórias iniciais, contudo, mostram que nem todo sistema judiciário é conivente com a rede de horrores acionada contra a UFSC desde a prisão de Cancellier.

    14 DE SETEMBRO: DATA DE HORRORES

    O reitor Luiz Carlos Cancellier teve sua reputação arruinada por uma rede de intrigas e calúnias que se estendeu das páginas da Polícia Federal para a grande mídia e redes sociais. De jurista e acadêmico respeitado, ganhou os noticiários como chefe de uma quadrilha que teria roubado R$ 80 milhões da universidade, após ser detido em presídio de segurança máxima, junto com outros cinco professores da UFSC e um funcionário terceirizado.

    No início da manhã do dia 14 de setembro, Cancellier dormia no seu apartamento vizinho a UFSC quando, surpreendido  por uma escolta de mais de cem policiais de várias partes do país, atendeu a porta enrolado numa toalha de banho. Não tinha antecedentes criminais, não respondia um processo administrativo sequer, mas foi submetido à prisão preventiva, algemado nas mãos e acorrentado nos pés, sem direito à presunção de inocência ou à defesa prévia. No Presídio Masculino de Florianópolis, foi humilhado e desnudado na frente de outros presos por duas horas, antes de vestir o uniforme laranja. Até mesmo o acesso ao seu remédio para o coração foi boicotado, como seu irmão Acioli Cancellier de Olivo constatou com uma carcereira no dia seguinte ao relaxamento da prisão. Segundo os relatos do dossiê, ao reconhecer o reitor, um aluno seu atuante na carceragem teria mostrado no celular mensagem da delegada Marena com a ordem expressa: “É para tratar como preso comum”. Como era um homem alto, cardíaco e sedentário, o professor teve muita dificuldade de se abaixar de costas para ser submetido ao exame de revista anal. “Vejam, que chances ele teria de introduzir algo no seu corpo, se foi arrancado da cama por um esquadrão de policiais?”

    Do dia pra noite, um órgão federal de polícia levou um homem de vida acadêmica ao sacrifício, transformando-o em chefe de quadrilha

    Aos 59 anos, o reitor havia sofrido uma recente cirurgia cardíaca e a interrupção do tratamento pode ter sido fatal para desencadear o estado de depressão que o levou a suicidar-se dezoito dias depois. O verdadeiro horror, contudo, ainda viria. Com o relaxamento da prisão, foi proibido pela justiça de ingressar na UFSC, à qual se dedicou nos últimos 20 anos, como aluno, professor, diretor de centro e finalmente reitor. Sabendo por fontes do Ministério Público Federal em Santa Catarina que não poderia retornar à instituição, pagou seus advogados para não deixar dívidas à família e no dia seguinte, em 2 de outubro, jogou-se de cabeça do sétimo andar do Beira-mar Shopping, em Florianópolis com um bilhete no bolso, no qual atribuía sua morte ao banimento da universidade.

    Hoje, o irmão mais velho, Antônio Acioli Cancellier de Olivo, 67 anos, matemático, sindicalista, pesquisador aposentado do INPE, em São José dos Campos, dedica sua vida para a recuperação da memória e da reputação que Cau, filho de uma família muito pobre de Tubarão, construiu a duras penas, comendo pão de trigo com banana para conseguir estudar e se sustentar em Florianópolis. A mãe, costureira e o pai trabalhador no Lavador de Carvão em Capivari, não davam conta de sustentar os sonhos de formação dos três filhos, Acioli, Luiz Carlos e Júlio, o mais novo. É com o carinho do irmão mais velho que tomava conta dos demais, que ele conta e reconta, pacientemente, sem se exaltar com os detalhes mais perversos da sua perseguição, a história do mártir da Ouvidos Moucos. Ele foi, segundo Acioli, um adolescente rebelde e genial, intransigente diante das injustiças, “com uma produção científica espantosa para quem iniciou a vida acadêmica aos 40 anos e aos 59 já era reitor”. Com Cau, Acioli aprendeu o apreço pela luta política, “embora eu, ao contrário dele, tenha começado muito mais tarde nessa esfera”.

    Líder estudantil, jornalista fichado pelo SNI durante a Ditadura, o intrépido militante do Partido Comunista Brasileiro compreendeu na maturidade que o caminho para a luta era a conciliação política e adotou-a como princípio ideológico em sua administração da reitoria. Foi quando mais ele repudiava radicalismos e acreditava na harmonia entre todas as tendências que os aparatos de repressão de Temer puxaram o seu tapete, sem deixar-lhe outra saída, a não ser oferecer a própria vida em sacrifício para denunciar a violação total dos direitos humanos, jurídicos e democráticos que ele apregoava em sala de aula. Abaixo a carta escrita por Acioli em homenagem aos professores que continuam banidos da universidade. Ao mesmo tempo ele homenageia o próprio irmão, mostrando que todos são vítimas da mesma supressão de direitos e do mesmo Estado de Exceção que vitimou Cancellier.

    “Cau se foi, seu gesto nos doeu muito, mas, em seguida, atentamos que o fez não por sua imagem enlameada, mas para mostrar a cada um de seus carrascos, que não se pode tirar o que de mais importante um homem digno possa ter: a honra. E passamos a nos orgulhar daquele gesto corajoso e heroico”.

    “E me comprometo, a cada dia, com mais intensidade, envidar esforços na luta pela rediginficação do Cau e de todos vocês. Lutar pela recuperação da honra maculada de cada um é lutar pela garantia que nenhum ser humano seja julgado, condenado e executado sumariamente como vocês todos foram. E conclamo aos que não se conformam com o arbítrio a se juntarem nessa escalada”

    (Acioli Cancellier de Olivo)

    Irmãos Cancellier, na formatura do reitor em Direito

    Meus caros professores,

    Há exatamente um ano atrás eu nunca havia ouvido falar de seus nomes. Naquela manhã fui acordado com um telefonema de uma amigo que me perguntava: Você é parente do reitor da UFSC? Ao responder que eu era irmão, disse-me que ele acabara de ser preso.

    Naquela manhã, quando a Polícia Federal invadiu as suas residências e a do Cau, a violência da ação mudou drasticamente a vida de vocês e de suas famílias; foi o ato inicial de uma tragédia que nos levou o Cau, abalou profundamente nossa família, seus familiares, os amigos em comum, a UFSC e por que não dizer, o país inteiro que não se submete à ditadura dos tanques e togas, citando um jornalista.

    Daquela data em diante, seus nomes começaram a me soar familiares e mesmo sem conhecê-los, uma empatia imensa me ligou a cada um de vocês. O sofrimento de cada um de seus familiares me fazia sofrer, pois refletia o sofrimento de cada uma dos meus.

    Cau se foi, seu gesto nos doeu muito, mas, em seguida, atentamos que o fez não por sua imagem enlameada, mas para mostrar a cada um de seus carrascos, que não se pode tirar o que de mais importante um homem digno possa ter: a honra. E passamos a nos orgulhar daquele gesto corajoso e heroico. Se no dia 14 de setembro de 2017, arrancaram da cama um homem digno, o cadáver que nos devolveram 18 dias após, não o reconhecemos. Não por seus ossos estraçalhados; não por sua carne dilacerada; não por sua face desfigurada. Não o reconhecemos porque aquele cadáver não tinha a mínima semelhança da pessoa que o Cau fora em vida: honrado, humanista, generoso e solidário.

    Um ano se passou e, em todos esses dias, minha luta tem sido em uma única direção: resgatar a honra de meu irmão. Buscar que o Estado reconheça que seus agentes erraram. Erraram em caluniá-lo; erraram em humilhá-lo; erraram em castrá-lo, apartando daquilo que ele mais se orgulhava, servir a UFSC.

    Meus caros amigos, se assim posso chamá-los, pois um sentimento de amizade e fraternidade nos uniu pela tragédia. Meus irmãos: vocês foram também vítimas da mesma injustiça; injustiça que não os levou deste mundo, mas que certamente causou perdas e danos irreparáveis. Que lhes irá devolver as angústias, sofrimentos e dores que cada um de vocês passou nestes últimos anos? Quem devolverá a cada um de seus entes queridos a alegria de viver, o brilho nos olhos e o sorriso que minguaram nestes 365 dias? Quem irá garantir que a sua tão esperada reintegração a UFSC ocorra sem traumas? Quem poderá dizer que vocês poderão ensinar, orientar e frequentar o meio acadêmico com a segurança de homens honestos e dignos, sem a certeza de um dedo acusador na figura de um aluno ou de seus próprios pares?

    Em ocasião recente fiz uma analogia, que reitero: O Cau morreu, vocês sobreviveram. Mas esta sobrevida, sem a reparação integral da honra e dignidade feridas, equivale a uma morte em vida. Tramita no Congresso Nacional projeto de Lei que pune o abuso de autoridade, cujo relator no Senado, Roberto Requião, a denominou de Lei Cancellier. Mas não podemos esperar. A cada dia que passa, sem a devida reparação da honra de cada um de vocês, um pouco de cada um morre.

    Então, meus queridos amigos e irmãos, nesta data simbólica, uno meus pensamentos aos seus; nosso familiares são solidários aos seus familiares. E me comprometo, a cada dia, com mais intensidade, envidar esforços na luta pela rediginficação do Cau e de todos vocês. Lutar pela recuperação da honra maculada de cada um é lutar pela garantia que nenhum ser humano seja julgado, condenado e executado sumariamente como vocês todos foram. E conclamo aos que não se conformam com o arbítrio a se juntarem nessa escalada, pois citando o mesmo jornalista, “nas ditaduras, não há lugar para míopes inocentes.”

    Um fraterno abraço
    Acioli Cancellier de Olivo

     

    ​COMEÇA A DESABAR NA JUSTIÇA OS DESMANDOS DA “OUVIDOS MOUCOS”

    Docente preso por Érika Marena na UFSC vence mandado de segurança no TRF4 e volta hoje ao trabalho na UFSC

    Abraço coletivo ao professor reintegrado fortalece a própria comunidade, dividida pelo processo calunioso. Foto Ítalo Padilha/AGECOM

    O professor de Administração Marcos Baptista Lopez Dalmau foi restabelecido hoje (14/9) em suas atividades docentes no Curso de Administração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de onde estava proscrito desde o final do ano passado pela Operação Ouvidos Moucos. Em cerimônia de boas vindas realizada hoje (14/9) pela manhã, ele foi recepcionado no gabinete do reitor Ubaldo Balthazar e equipe, alem de gestores da área e colegas de trabalho. Seu retorno cumpre decisão da 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), tomada na terça-feira (11), que acatou o mandado de segurança da defesa do professor contra as medidas cautelares impostas pela Justiça Federal de Florianópolis que o afastaram da instituição. A vitória de Dalmau em habeas corpus individual abre importante precedente para que os outros quatro professores banidos da universidade possam retornar à sala de aula, como seu colega da Administração Eduardo Lobo, que teve seu pedido para retornar negado pelo mesmo TRF4 no início do ano passado.

    Dalmau recebe o abraço de Acioli que estende luta pela memória do irmão a todos os perseguidos. Foto: Ítalo Padilha/AGecom

    A cerimônia reuniu, além do reitor, pró-reitores e secretários da UFSC, o chefe de Gabinete Áureo Mafra de Moraes; o irmão do ex-reitor Cancellier, Acioli de Olivo; o chefe do Departamento de Administração, Pedro Antônio de Melo; o diretor do Centro Socioeconômico, Irineu Manoel de Souza, que foi candidato de oposição a Ubaldo, e a vice-diretora Maria Denize Henrique Casagrande. Abraçado por todos eles, o primeiro professor a ser reintegrado às atividades docentes desde a prisão, se disse, mais tarde, “emocionado e feliz com a solidariedade e o carinho com que foi recebido no campus e nas instalações do Curso de Administração”.

    Dalmau foi preso em 14 de setembro com outros quatro professores, um servidor terceirizado e o reitor da universidade, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, todos incriminados pela Operação Ouvidos Moucos, sob suspeita de desvio de verbas do Ensino a Distância do Programa Universidade Aberta. Comandada pela delegada Érika Marena, responsável pela prisão de Cancellier, com o aval da juíza da 1ª Vara Criminal Federal de Florianópolis, Janaína Cassol, a operação prometia desvendar um esquema milionário de desvios de verbas da educação. Passado um ano da prisão, o braço catarinense da Lava Jato nada concluiu e postergou a investigação, depois de emitir um relatório que resultou no indiciamento de outros 23 docentes da UFSC.

    Outros quatro professores – Marcio Santos, Rogério da Silva Nunes, Gilberto de Oliveira Moritz e Eduardo Lobo -, também investigados pela operação, continuam impedidos de retornar às suas atividades. Eles recorreram ao próprio TRF-4 em mandados diferentes, mas como tiveram seus pedidos negados, apelaram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ainda aguardam decisão.

    Reitor e equipe manifestam solidariedade ao professor reabilitado Marcos Dalmau e aos demais que permanecem afastados. Foto: JL

    Pela decisão unânime, Marcos Dalmau deveria reassumir seu cargo de professor e atuar em sala de aula com a notificação da universidade, o que aconteceu ontem (13/9). A relatora responsável por analisar o mandado de segurança em favor de Dalmau, Salise Monteiro Sanchotene, votou a favor do retorno do docente, seguida pelos desembargadores Luiz Carlos Canalli e Claudia Cristina Cristofani. O parecer foi unânime, mas com restrições: até o final das investigações, Dalmau está impedido de “atuar nas atividades que gerem percepção ou pagamento de bolsas relacionadas ao ensino à distância (EAD) e ao Laboratório de Produção de Recursos Didáticos para Formação de Gestores (LabGestão)”.

    “Essa decisão vem reparar uma injustiça perpetrada contra o impetrante, que ficou impedido de exercer seu trabalho durante quase um ano, por conta da ilegalidade do afastamento indeterminado, sem mera previsão de formação de culpa, em face de uma marcha pré-processual confusa, retardatária e revestida de autoritarismo injustificável”, afirmou o advogado Adriano Tavares da Silva, que defende o professor da UFSC .

     

     

    Conselho propõe inquérito contra procurador que criminalizou manifestações na UFSC

    Por Marcelo Auler
    O conselheiro Leonardo Acciolly da Silva quer que o corregedor do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Orlando Rochadel investigue o procurador da República de Santa Catarina, Marco Aurélio Dutra Aydos por ele “com consciência e vontade, desviou-se do interesse público e se utilizou do cargo público por ele ocupado para censurar a liberdade de expressão de acadêmicos, docentes e servidores da UFSC, movimentando todo o aparato de Justiça criminal para tutelar interesse próprio, com base em sentimento pessoal de justo ou injusto”. Na suposta defesa da honra da delegada federal Erika Mialik Marena, Aydos tentar processar o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Ubaldo Cesar Balthazar e o seu chefe de gabinete, Áureo Mafra de Moraes, por conta de críticas feitas por manifestantes não identificados, em cerimônia na UFSC, aos responsáveis pela Operação Ouvidos Moucos que levou o antigo reitor, Luiz Carlos Cancellier, ao suicídio. Depois de ver sua denúncia rejeitada, Aydos continua tentando processar o reitor e o chefe de gabinete.

    Insistência de Aydos

    Apesar de a denúncia do procurador Aydos contra o reitor e seu chefe de gabinete ter sido rechaçada pela juíza Simone Barbisan Fortes, em 30 de agosto, como informamos em Juíza rejeita denúncia contra reitor e “adverte” agentes públicos, ele não se deu por vencido.

    Quatro dias depois, em 3 de setembro, recorreu da decisão à 3ª Turma Recursal de Santa Catarina. Insiste na sua posição de processar os dois por não terem impedido que durante uma cerimônia na universidade, em dezembro de 2018, manifestantes não identificados expusessem uma faixa com críticas à delegada, a juíza Janaína, ao procurador da República, André Stefani Bertuol,  ao corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Rickel do Prado e ao superintendente da CGU, Orlando Vieira de Castro Junior. Ou seja, cobrou de ambos a censura à livre manifestação da comunidade acadêmica.

    Neste recurso (leia aqui) chega a dizer que a juíza Simone, invertendo os papéis, perdoou os agressores da delegada mesmo sem procuração para tal.  Na peça com 13 laudas, ele expõe:

    Exorbitou a decisão recorrida em excesso passional e argumentativo que normalmente fazem parte da defesa prévia, fazendo-se lamentável disfunção de justiça, consistente na condenação da vítima, de um lado, e perdão, ilegítimo, dos agressores, de outro lado. A ninguém é conferido direito de “perdoar por procuração” – um “horror” que deturpa a essência da Justiça, segundo extraordinária lição do filósofo Emmanuel Lévinas (in Quatro leituras talmúdicas, São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 56).” (grifo do original)

    Em seguida insistiu nas críticas à juíza:

    “A decisão recorrida abrigou no largo guarda-chuva da justa causa tudo quanto encontrou para perdoar por procuração. A magistrada simplesmente substituiu-se à Ofendida para decidir que ela não devia ter representado criminalmente. Mas com que direito? O cenário do equívoco é metajurídico. Construiu-se uma narrativa histórica de alegado progresso, não apenas questionável, mas também falseável (segundo o método de Popper, que aqui é aplicável, por tratarmos de uma teoria, não de um fato). Em primeiro lugar, é preciso resgatar a autoridade do Supremo Tribunal Federal, que não ampara essa narrativa.”

    Procurador contesta afirmações de Nassif sobre o fascismo

    Onde está o fascismo?

    Nesta sua apelação, ele também criticou o jornalista Luís Nassif de tentar intimidar a Justiça, ao escrever no JornalGGN – MPF denuncia reitor da UFSC por não censurar manifestação – que ele, Aydos, “colocou o MPF na ante-sala do fascismo”. Para o procurador, o fascismo esteve próximo da manifestação ocorrida na universidade com críticas à delegada. Diz na sua peça:

    “(…) é oportuno refutar com veemência tentativas de intimidação à Justiça, mal disfarçadas sob o manto sempre sagrado da crítica, exemplificadas na verve do jornalista Luís Nassif, que deseja ver na denúncia do Ministério Público a “ante-sala do fascismo”. No nascimento da modernidade, criou-se a imprensa como uma instituição liberal, bem retratada por Jürgen Habermas como a primeira grande “transformação estrutural do espaço público”. Naquele tempo havia publicistas. Mas Leibnitz (1646-1716), contemporâneo do nascimento da modernidade, já registrava, a propósito, que essa criação típica da Inglaterra, a dos “public spirits” inspirados pelo amor à coisa pública que praticaram outrora gregos e romanos, já estava desaparecendo e ficando fora de moda em seu tempo (…)

    Hoje os publicistas desapareceram. Remanescem os ideólogos, tipos forjados da adulteração do original, que decretam respostas antes de fazerem as perguntas. Uma via de esclarecimento mútuo consiste em usar o esquecido ponto de interrogação do teclado e reformular seus decretos. Podemos perguntar, por exemplo. Onde fica a ante-sala do fascismo?

    Assim como outras formas de dominação descobertas pela modernidade, o fascismo não é uma experiência completamente reeditável. Ocorreu na Itália, sob circunstâncias dadas, e não se repetirá jamais de modo completamente igual, porque a história não se repete. Mas um fenômeno desses, depois de descoberto, integra o arsenal de agressões que forma o subterrâneo bárbaro de nossa civilização. Elementos de fascismo, assim como dos totalitarismos nazista e soviético, eventualmente podem emergir na superfície civilizada de democracias. Normalmente emergirão em contextos fortemente ideologizados, à revelia da consciência dos atores.

    Vale então conhecer um bom retrato da ascensão do fascismo italiano no extraordinário romance de Ignazio Silone, Fontamara. Numa das cenas memoráveis do livro, presenciamos uma cerimônia típica do Fascismo, o exame da população em praça pública a partir de duas perguntas: Viva quem? Abaixo quem?

    A solenidade de que trata a presente causa ecoa vividamente as cerimônias daquela descoberta italiana. Ergue-se a fotografia de um servidor público em praça pública com a descrição, sempre sumária, de seus alegados malfeitos. Como o fascismo é um movimento de massas, é sempre suficiente que se grite “Abaixo” alguém, para liberar o exército de seguidores para barbarizarem. É extraordinariamente curto o passo da violência simbólica para a violência física”.

    Leia os detalhes e conheça os documentos em: https://marceloauler.com.br/por-querer-censura-na-ufsc-procurador-sera-investigado/