Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Genildo
Um dos maiores desafios para quem tentar interpretar a realidade no calor das circunstâncias é a compreensão do processo.
Analisar um evento aqui e outro acolá não é exercício dos mais difíceis. A dificuldade está em conectá-los, em perceber relações de causa e consequência, em entender o “princípio orientador do processo”.
Por exemplo, não é necessário ser um grande estudioso da política brasileira para saber que a execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), em 14 de março de 2018, foi um crime político motivado pela militância da parlamentar em defesa dos direitos humanos e pelas suas denúncias contra a violência policial.
Mas qual é o lugar do assassinato de Marielle Franco na crise institucional que desde 2013 desestabiliza o sistema político brasileiro?
Essa é a pergunta que tento responder neste ensaio e, para isso, reconstruo parte da história da crise brasileira, com o objetivo de destacar aquele que, na minha interpretação, é o seu aspecto mais elementar, o seu princípio orientador: a ofensiva do neoliberalismo contra o Estado.
A quem deve servir o Estado? À sociedade civil ou aos interesses de uma elite financeira que descobriu ser mais lucrativo especular na Bolsa de Valores do que investir na cadeia produtiva?
O mercado financeiro é instável, perigoso. Do dia para noite fortunas são acumuladas e perdidas. Quem coloca muito dinheiro nessa roleta russa precisa de segurança, de garantia. É por isso que o capital especulativo quer o Estado com contas públicas equilibradas, atuando como fiador da especulação. O rentismo é conservador, não gosta de correr riscos.
Está aí o núcleo duro da crise, de uma crise que não é apenas brasileira, que é mundial.
Ainda que a crise seja mundial, não tenho dúvidas de que o Brasil é o seu principal palco de manifestação. Hoje, o Brasil é um laboratório para o experimento neoliberal 3.0. Em nenhuma parte do mundo, os ataques do capital especulativo ao Estado foram tão violentos e chegaram tão longe como aqui.
É por isso que a presidenta Dilma foi golpeada.
É por isso que Lula foi condenado e, provavelmente, será preso.
É por isso que Marielle foi executada.
O golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma, o rito jurídico viciado que condenou Lula e a execução de Marielle são partes de um mesmo processo. Não é possível tratá-los como eventos isolados.
Começamos pelo golpe parlamentar travestido de impeachment.
Muitas críticas podem ser feitas à presidenta Dilma Rousseff. A desonestidade e o envolvimento com práticas de corrupção não estão entre elas. Mas de nada serviu a conduta pública ilibada da presidenta, pois desde 2011 Dilma estava apostando muito alto.
Ou, na feliz formulação de André Singer: Dilma “cutucou onças com vara curta”.
Dilma provocou o sistema financeiro, onça raivosa, na famosa “batalha dos spreads”, quando mandou os bancos públicos reduzirem os juros operacionais.
Resultado?
Os bancos privados, para não perderem mercado, tiveram que competir com os bancos públicos e em meados de 2013 a economia brasileira tinha a menor taxa de juros em anos.
Em setembro de 2013, Dilma sancionou a lei que destinava 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde. O texto determinava ainda que 50% do Fundo Social do Pré-Sal seria direcionado para educação.
Com Dilma, o Estado brasileiro foi longe demais nas suas pretensões de tutelar o desenvolvimento nacional. Soma-se essa ousadia à insistência da presidenta em combater à corrupção da classe política e teremos a explicação para o golpe parlamentar de agosto de 2016.
O motivo do impedimento foi falacioso, uma invenção, mas bem representativo dos interesses do neoliberalismo. Dilma foi criminalizada por fazer política econômica anticíclica, por preservar a função social e civilizatória do Estado em um momento de crise de acumulação.
E Lula?
Por que o golpe neoliberal o persegue tanto se ele foi bem mais tímido que Dilma no confronto aos interesses do neoliberalismo nacional e internacional? Não podemos esquecer que Henrique Meirelles, ministro da Fazenda do governo golpista e principal liderança do neoliberalismo brasileiro, foi presidente do Banco Central durante toda a “Era Lula”.
A relativa aproximação de Lula com a agenda neoliberal pode ser interpretada de duas formas: como indício de “traição” ou como maturidade política.
Ou Lula foi um traidor da classe trabalhadora ou foi uma liderança astuta o suficiente para perceber que melhor seria dar os anéis para preservar os dedos. Vale lembrar que Lula não foi golpeado, terminou dois mandatos e elegeu a sucessora.
Que o leitor e a leitora tirem suas próprias conclusões.
Mas, seja como for, se por estratégia de sobrevivência política ou se por traição à causa dos trabalhadores, fato mesmo é que nos últimos anos Lula se tornou símbolo de um dos valores fundacionais do imaginário político brasileiro: a definição do Estado como agente provedor de direitos sociais.
É por isso que Lula é o principal alvo do golpe neoliberal, que com a adesão de parte do Judiciário brasileiro utiliza a narrativa do combate à corrupção como estratégia de perseguição política.
Ao associar Lula à corrupção, a mídia hegemônica, fábrica de narrativas do golpe neoliberal, pretende vender a imagem de um Estado arcaico que é naturalmente corrupto e corruptor.
Lula é representado como a personificação desse Estado.
Se no imaginário popular Lula personifica o Estado provedor de Direitos, na narrativa elaborada pelo golpe neoliberal ele representa um Estado patrimonialista e corrupto.
E a solução para o problema? Simples: prender Lula e desmontar o Estado, o que na prática significam dois objetivos de um mesmo projeto. Por isso, o golpe neoliberal não fecha sem a completa destruição política e simbólica de Lula.
Já a execução de Marielle se deu num outro momento da cronologia da crise, quando o golpe neoliberal, nas vésperas das eleições (ao que tudo indica, teremos eleições), tenta ganhar alguma popularidade, visando sua legitimação eleitoral.
A intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro é a última cartada do governo golpista visando a legitimação eleitoral do golpe neoliberal, que sendo uma conspiração palaciana, em nenhum momento teve a sanção popular, como mostram todas as pesquisas de opinião, segundo as quais a aprovação de Michel Temer é uma margem de erro, algo próximo a zero.