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  • Reunião ministerial: totalitarismo à vista

    Reunião ministerial: totalitarismo à vista

     

    ARTIGO

    Fábio Faversani, professor titular de História Antiga na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

    Assisti à reunião ministerial de 22 de abril completa e cheguei a duas conclusões:

    1) O governo Bolsonaro não tem rumo nenhum, nem para fazer o mal que deseja, e tem impulsos diferentes, sempre contra os interesses populares e muitas vezes em confronto aberto e direto com a democracia; e 2) que, apesar disso tudo, o eleitorado que apoia o governo não se afastará do presidente, mas, ao contrário, o que se vê ali galvaniza esse apoio e fortalece a militância em sua defesa, que é alimentada por um discurso que sustenta uma saída totalitária. Parece absurdo? Vejamos ponto a ponto.

    A reunião tem início com o ministro Chefe da Casa Civil, general Braga Netto apresentando o esboço de um plano de recuperação da economia que ele alcunhou de “Plano Marshall brasileiro”.  Esse apelido dado pelo militar já deixa claro um entendimento pífio, quer da economia, quer da história. O que se vê é uma lista na qual tudo é prioridade, confusamente lida, como um aluno apresentando seminário que não preparou. Um vexame!

    Mas isso não assusta nem afasta o eleitor fiel de Bolsonaro. Para esses, só Paulo Guedes entende de economia e ninguém mais, nem o presidente, nem seus eleitores. Essa ideia da economia como um domínio técnico misterioso a ser gerido sem transparência, delegado a um todo poderoso que assegure que os interesses do “mercado” serão atendidos não é nova. Basta lembrar do papel de um Henrique Meirelles com Lula ou, pior, Joaquim Levy com Dilma. O problema é que Guedes também não entende muito de economia, como logo demonstrou, delirando com um Brasil que ia começar a voar e que a saída para a crise econômica se dará com investimentos privados exclusivamente (em nenhum lugar do mundo isso vai acontecer, muito menos no Brasil!). Para ele, acabar com desigualdades era coisa que o PT fazia e o governo de Bolsonaro não segue esse caminho. Para o eleitor de Bolsonaro é isso mesmo! Políticas de redução de desigualdades é sinônimo de dar bolsa para quem não trabalha (ideia absurda e antiliberal defendida largamente também pelo PSDB por seguidas campanhas) e que o governo deve ajudar apenas os ricos, os grandes empresários, que vivem com inúmeras dificuldades e são eles que geram riquezas, empregos.

    Em outras palavras, Bolsonaro dá consequência a uma ideia muito difundida de que favorecer os pobres é favorecer mais pobreza e que isso não deu certo com o PT, quebrou o Brasil. O que se deve fazer é isso mesmo: favorecer os ricos, que vão gerar mais riqueza e fará o Brasil um país próspero, com muito investimento e empregos. Não se trata de reduzir as desigualdades, mas de escapar individualmente à pobreza. Nesse entendimento, quem fica pobre quando o mercado cresce é vagabundo. Cada um olha para si e pensa: “Eu não sou vagabundo; se os ricos começarem a ganhar mais eu vou ter oportunidade e vou ganhar mais!”. Quem tem que se preocupar, nesse sentido, é quem não correr atrás. O que uns chamam de precarizados, muitos se percebem como empreendedores, futuros casos de sucesso, que o Estado só atrapalha.

    Como essa população cresce, um grande contingente sem direitos e sem perspectiva de ter aposentadoria vai sendo integrado como parte importante do eleitorado (cada vez mais importante do que aqueles com carteira assinada, com direitos). Assim, para muitos, não faz sentido a defesa de direitos, que são vistos como privilégio de vagabundos, pois são para cada vez menos pessoas que têm direitos. A cada vez que temos uma reforma trabalhista, uma reforma previdenciária diminui o número de pessoas que têm direitos… e elas não começaram com Bolsonaro. Para esse público, a visão econômica de Guedes, excludente, que aprofunda desigualdades e retira direitos, é motivo para aplauso. O Estado não vai nos proteger. Quem diz isso é petista demagogo ou, pior ainda, os privilegiados entre os privilegiados, os vagabundos entre os vagabundos, os funcionários públicos! Esse, como disse Guedes, o governo deve abraçar e colocar uma granada em seu bolso. Deveria gerar horror, especialmente quando a pandemia mostra que o serviço público é fundamental! Mas não…

    Faz muitos anos e muitos governos que essa demonização do serviço público como privilégio, ineficiência e vagabundagem é reforçada. Nenhum eleitor de Bolsonaro se assusta com a ideia de colocar uma granada no bolso do funcionalismo público. Pelo contrário, todos que são contra a democracia e o acesso universal aos serviços básicos para todos puxam o pino da granada rindo! É horrível, é chocante, mas é assim. Para os bolsonaristas, Guedes está sendo sincero, correto e agrada o mercado. Isso que importa. A chave, afinal, há décadas é essa: agradar ao mercado sobre todas as coisas. Guedes repete a música de Raul Seixas: “A solução é alugar o Brasil!”

    Depois, Bolsonaro faz um ataque à imprensa. Diz que são todos uns pulhas, inimigos a serem ignorados na melhor das hipóteses. Ao longo da reunião, o presidente retomará esses ataques. Qual eleitor de Bolsonaro não assina embaixo e se engaja nisso? Precisa ser lembrado que não foi Bolsonaro e seus eleitores que criaram palavras de ordem contra a imprensa? Xingar a Globo só se tornou hábito da direita recentemente. Tiveram com quem aprender. O pouco apreço à imprensa visto como mentirosa e odiosa não é novo e nem é exclusividade de bolsonaristas. A questão das concessões publicas para órgãos de imprensa, o domínio de uma imprensa corporativa e todos esses temas nunca foram debatidos e enfrentados no Brasil e nossa democracia frágil tem aí belos pés de barro.

    Onyx Lorenzoni repete a mesma ideia de que o PT quebrou o Brasil e o governo Bolsonaro estava recuperando a economia. Veio a pandemia e a histeria que a acompanha prejudicou o governo, que deveria retomar o caminho original que estava levando o Brasil a voar. Obviamente, os indicadores do Brasil pré-pandemia eram os de “pibinho”. Não havia nenhuma economia pronta para voar. Mas a parte mais delirante é que o Brasil estava tendo amplo reconhecimento internacional positivo. A pergunta que fica é: em que planeta está esse senhor? O Brasil perdeu a confiança internacional especialmente, mas não apenas, por seu atrelamento automático aos EUA e por sua agenda ambiental desastrosa. A baixa confiança em uma recuperação econômica com um governo claramente sem projeto e uma Chancelaria olavista delirante completam o cenário desastroso.

    Mas, para o eleitor de Bolsonaro, ser amigo do Trump é tudo. Para esses, Trump não tem nenhum respeito internacional porque defende os EUA sobre todas as coisas. Bolsonaro também. É a luta contra o globalismo! Faz sentido? Nenhum! Mas é uma mensagem fácil de entender. O globalismo é ruim e o isolamento do Brasil é bom. Ficamos com Trump e de que nos importa o mundo? A relação com a China ocupa um lugar especial no pensamento anti-globalista e anti-comunista do eleitor de Bolsonaro. Para esses, ali é só comércio, sem ideologia. Isso foi repetido por Guedes. Alguém ainda precisa contar isso para os chineses. Enquanto eles não sabem, a posição do Brasil no mercado internacional vai se deteriorando. Adiante, Bolsonaro também reafirma essa confusão.

    Mais adiante o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, delira que após a pandemia cinco ou seis nações vão se sentar para redefinir a ordem mundial. A nova globalização seria pautada em valores de liberdade e excluiria a China. Para o eleitor de Bolsonaro, nada demais. É um desejo, delirante. Se você disser para um eleitor de Bolsonaro que o Brasil não estará no centro de negociações sobre a ordem pós-pandemia e que, ao contrário, a China estará, ouvirá que você está torcendo contra o Brasil, que não é patriota e é comunista. Esse tipo de bobagem, de descalabro absurdo não afasta o eleitor de Bolsonaro, ao contrário, faz com que o sentimento de patriotismo se reforce. 

    O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, apela para que as mentes estejam abertas para o momento extraordinário e que o Estado precisa ter um papel destacado e atuar para dar liquidez ao mercado, diferentemente do que se esperaria antes da pandemia. Diz o óbvio: o endividamento do governo vai ser enorme e Guedes e Onyx estão errados ao falar em retomar o rumo anterior. O governo deveria focar em dar liquidez ao mercado, ajudar quem precisa e reduzir desigualdades regionais e melhorar a infraestrutura. Atacou quem quer manter os dogmas de sempre, mesmo a situação sendo totalmente nova e exija respostas novas. Falou e ninguém ouviu.

    Mas, bem ao final da reunião, Guedes retomou a palavra e disse que não é apegado a dogmas, mas sabe tudo sobre retomada da economia, estudou todos os casos importantes, Alemanha da década de 40, Chile da década de 70 – atualizadíssimo o “Posto Ipiranga”. Mesmo que não seja obviamente verdade, para o eleitor de Bolsonaro o que interessa é que Guedes é quem governa a economia e governa para o mercado, como outros antes dele. As fissuras são claras, e Braga Netto com seus planos desenvolvimentistas e Marinho com suas dúvidas sobre o dogma não mandam. Quem manda é Bolsonaro e Bolsonaro manda Guedes comandar. Essa confusão é a alegria dos apoiadores de Bolsonaro e sua aposta de que o PT quebrou o Brasil e a redenção está no “Posto Ipiranga”.

    Qual o prazo de validade dessa promessa que não vai se cumprir? É impossível dizer. Mas uma crise econômica brutal vem aí e a renovação do bode expiatório está pronta: o PT quebrou o Brasil e, depois, a pandemia foi usada por governadores e prefeitos, além da imprensa, para disseminar o pânico e, com isso, quebrar o governo Bolsonaro. Para completar, o STF não permitiu que o governo federal conduzisse a situação, dando poder para governadores e prefeitos. Assim, STF se soma aos culpados pelas mortes e pela brutal crise econômica que virá. A resposta para a crise econômica será desmantelar o serviço público, cortar mais direitos, adotar medidas que favoreçam as grandes empresas e os mais ricos. Afinal, políticas que visem maior igualdade quebram o país. O Estado salva os ricos e daí para baixo é salve-se quem puder.  

    Depois, vem o Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e declara que o governo deveria se aproveitar que há uma pandemia e passar todas as reformas infralegais sem nenhum debate. Para ele, a pandemia é uma oportunidade de ouro, pois a retirada de toda a proteção hoje existente seria fácil agora que a imprensa só fala em Covid. Sem a atenção da sociedade, restaria “passar a boiada”. O eleitor bolsonarista aplaude isso, de retirar a proteção ao meio ambiente, aos povos originários e quilombolas, tudo isso que só atrapalha. O discurso dele é que sem o Congresso e sem a sociedade para debater as medidas, o único obstáculo seria o Judiciário, que decide contra tudo que o governo tenta fazer de ilegal. Para o eleitor bolsonarista, o Judiciário protege quem não merece. A justiça é injusta. Merece ser atacada e desrespeitada. Nada novo.

    O Presidente do BNDES, Gustavo Montezano, diz que concorda plenamente com Salles e que a pandemia é uma oportunidade impar para retirar tudo que atrapalha os negócios. A lógica do governo e dos eleitores que o apoiam é clara: proteger meio ambiente e populações vulneráveis é coisa de ONGs pilantras que controlam a imprensa e a Justiça. O debate público (ou mi-mi-mi) e a democracia atrapalham que o governo Bolsonaro faça o que é preciso fazer. Essas falas que são escandalosas e chocantes para quem tem apreço pela democracia, soam como música para eleitores de Bolsonaro que a desprezam como um empecilho.

    Bolsonaro retoma a palavra para reclamar de seus ministros que só querem elogios e porque as críticas são todas para o presidente. Diz que ninguém pode deixar de defendê-lo e seguir o que ele “pensa”. Assim, o presidente afirma sua posição de que ele é mais importante do que qualquer ministro. Esse é um elemento novo e que tem sido muito bem aceito pelos bolsonaristas. A ideia é que os ministros devem ser fiéis ao presidente e devem se expor nas disputas políticas. Bolsonaro está lá para brigar. Isso inclui os ministros. No caso do Ministério da Justiça é dito que falta combate e são feitos vários ataques à inação de Moro.

    O então ministro Sérgio Moro se manifesta a seguir e nada diz sobre as críticas de Bolsonaro claramente dirigidas a ele e às suas omissões na defesa do presidente. Ele apenas pede para incluir a segurança pública e o controle da corrupção no plano Pró-Brasil, apresentado na abertura da reunião. Ao eleitor bolsonarista, Moro aparece acovardado e sem compromisso com a proteção do governo. A recusa de Moro se dá porque ele não quer defender o governo, e não porque defender o governo ou o presidente, família e amigos é errado. Fosse errado, teria dito algo. Não disse nada. Para o eleitor bolsonarista, Moro é, assim, um egoísta arrogante que só pensa em si. Portanto, não há conflito moral ou ético na cobrança do presidente por proteção. As coisas seriam assim mesmo, sempre. As investigações não são feitas para apurar a verdade, crimes, mas, sim, para prejudicar as pessoas. A polícia não tem uma atuação republicana e impessoal. Sendo assim, se há uma investigação é porque alguém quer prejudicar alguém. No caso, opositores querem investigar Bolsonaro, sua família e amigos.

    O que Bolsonaro e seus eleitores esperam não é o funcionamento republicano das instituições, que nunca existiu. O que eles querem é que as instituições assegurem a sua impunidade, que não sejam feitas investigações que o comprometam, pois isso seria armação da oposição para prejudicar o governo. Sendo assim, ou as instituições funcionam para proteger Bolsonaro e sua família e amigos, ou vai mudar a pessoa lá na ponta, o chefe, o ministro. Historicamente, isso está na memória da população desde o famoso “Engavetador Geral da República”, que atuou no governo Fernando Henrique Cardoso. Mais recentemente e em sentido oposto, sob o comando do próprio Moro essa justiça injusta foi exposta, funcionando com uma celeridade e seletividade ímpares não para punir crimes, mas para destruir um setor político e muito especialmente inviabilizar a candidatura de Lula à Presidência. Sendo assim, parece claro que a justiça não funciona de forma republicana, mas serve para punir quem não tem força política.

    O então Ministro Nelson Teich diz que primeiro é necessário enfrentar a pandemia porque, enquanto não houver resposta para a doença, o medo não permitirá que a adoção de nenhuma medida no campo econômico tenha sucesso. Expressa ainda sua preocupação que os hospitais particulares vão ter prejuízo nesse período de Covid por conta da restrição de atendimento a outros pacientes. Assusta um ministro da Saúde estar mais preocupado com lucros dos hospitais privados do que com a saúde pública? Com o fortalecimento do SUS? Assusta mais ainda essa passagem não ter sido comentada em lugar nenhum que eu tenha visto. Impressiona que o debate sobre como enfrentar a pandemia não se torna o centro do debate da reunião ministerial depois disso. Há um entendimento tácito, rapidamente expresso pelo presidente, de que a pandemia não é nada disso, muitos mortos por Covid são vítimas de comorbidades, segue o baile. Nada que assuste o eleitor de Bolsonaro que acha que a pandemia é uma invenção da extrema-imprensa e governadores e prefeitos de oposição para prejudicar o presidente com a ajuda do STF, que não permite que o governo federal atue.

    Mais adiante, tais agentes públicos serão qualificados como “bosta”, “estrume”.  O presidente do Banco Central diz nesse sentido que respeitar o teto dos gastos e a reforma da Previdência levaram à queda dos juros. Mas que há muito medo, gerado pela imprensa, e que por isso haverá dificuldades econômicas. As dificuldades econômicas não virão pela resposta insuficiente do governo, mas pelo medo incutido na população por prefeitos, governadores e imprensa, com apoio do STF. Reitero: o governo prepara a justificativa para a catástrofe econômica e a agenda de reformas que aprofundem a desigualdade, o desmonte do serviço público e a retirada de direitos. Vamos ter um mix de o PT quebrou o Brasil com a pandemia não permitiu nossa economia voar como base para um recuo sem precedentes na proteção aos trabalhadores, na qualidade do serviço público e na proteção a setores vulneráveis da sociedade.

    O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, fala dos ladrões, todos do PT, PMDB que cobravam 25% de juros. Afirma também que não deu dinheiro para a Band e por isso recebeu críticas da emissora. Menciona a seguir a detenção da filha de um deputado que teria desrespeitado o isolamento e diz que, se fosse com ele, pegaria suas 15 armas e seria matar ou morrer, mas não deixaria a polícia atuar. O governador do estado em que ocorreu o fato seria ladrão também. Reclama que todos são ladrões e não eram criticados. Agora, os que compõem o governo Bolsonaro não estão roubando e estão sendo atacados. Volta-se à cobrança por proteção. Essa contraposição é central: os outros são ladrões e mal intencionados e vale tudo para se contrapor a esses: descumprir a lei, desrespeitar direitos.

    Por outro lado, proteger os seus também é marcado por um vale tudo. Sendo assim, a base de apoio do governo não trabalha com a distinção respeito ou desrespeito às leis. O pressuposto é que todos desrespeitam as leis, que são complicadas, difíceis de obedecer por cidadãos e governo. O que faz uns serem punidos, ou não, é o controle político das instituições. Assim, para o bolsonarismo é fundamental defender o desrespeito às leis e às instituições para alcançar seus fins. Atender à lei é obedecer aos tribunais, aos governadores, aos prefeitos, aos parlamentos. Para o bolsonarismo (e esse é um ponto fundamental!), cada vez mais a aposta totalitária sobe no sentido de existir só o Chefe Supremo e seu povo único, sem intermediação nenhuma (no máximo com a mediação das mídias sociais).  

    A ministra Damares Alves afirma que tudo é uma questão de valores e coloca a par dos povos tradicionais a existência de um 1,3 milhão ucranianos e fala que o STF deve retomar a pauta da liberação do aborto e que o Ministério da Saúde está tomado por feministas que só têm essa pauta. Afirma a seguir que houve um complô para transmitir a Covid para indígenas e que houve uma operação secreta com generais da Amazônia para conter isso que seria feito só para prejudicar Bolsonaro. Damares afirma que governadores e prefeitos estão violando direitos humanos ao prender pessoas que desrespeitam o isolamento. Anuncia que o Ministério está tomando providências, que vai jogar duro, que vai prender governadores. Isso tudo, que pode parecer chocante, para o eleitor bolsonarista é música: ataque às feministas, inimigos imaginários na Amazônia (ONGs talvez?), colocar na prisão os adversários políticos. O compromisso com uma saída autoritária para a crise que se forma no pós-pandemia está anunciado de forma explícita nessa reunião ministerial em vários momentos.  

    O ministro da Educação, Abraham Weintraub, desenvolve a ideia de que não há povos indígenas, ou povos tradicionais. Há um só povo, o povo brasileiro. A relação do governo deve ser direta com o povo e esse povo uno e indivisível deve ser atendido de forma direta, sem intermediação das instituições. O ministro da Educação expressa uma teoria totalitária e obviamente isso agrada bastante aos que apoiam Bolsonaro. Ele afirma que aceitou o convite para participar do governo para acabar com Brasília, pois a capital federal “é um cancro de corrupção e privilégio”. Interessante que ele afirma que tais características se mantêm sob o governo atual. Seu projeto é defender a liberdade e, diz ele, “por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”.

    Paradoxalmente, a defesa da liberdade é construída pelo encarceramento dos agentes públicos que formam “Brasília”. O Estado é o inimigo do governo Bolsonaro. As instituições são um obstáculo para que o governo liberte o povo. Há uma luta e é preciso que todos no governo se protejam uns aos outros. Queixa-se que está respondendo processos no Comitê de Ética da Presidência da República. Isso porque é militante e se coloca contra os privilégios. Os inimigos o perseguem e caberia aos amigos dar-lhe proteção e não ouvidos aos inimigos. A proteção, assim, não é apresentada mais uma vez como privilégio, mas como salvaguarda para lutar contra os privilegiados, contra “Brasília”. Afirma que a lei não é igual para todos e, claro, não deve ser. O problema é quem a lei vai favorecer.

    A resposta do Ministro da Educação é clara: temos que ser protegidos e a Justiça não pode nos alcançar porque a Justiça é parte desses privilégios contra os quais estamos lutando. As noções de justiça e liberdade são entendidas de uma forma diferente por pessoas que apoiam Bolsonaro e os que se opõem a ele. E são esses entendimentos diversos que levam as pessoas a terem essas posições políticas diversas. Não é o contrário! Por isso é inútil querer convencer que o entendimento dado a esses valores por Bolsonaro é absurdo. Quem apoia Bolsonaro concorda com esses valores e quem se opõe a Bolsonaro discorda. O que está em disputa não é Bolsonaro, mas a adesão a valores democráticos e humanitários que são anteriores à aparição de Bolsonaro no centro do cenário político brasileiro. Bolsonaro sempre falou os absurdos que fala hoje. Revelar que Bolsonaro e seus ministros falam absurdos, como nesse vídeo, não vai tirar apoio dele. Pelo contrário, vai galvanizar ainda mais os que o apoiam em torno dele. A democracia brasileira é frágil e permitiu que ataques às instituições e à República fossem longe demais. E esses ataques vem de longe! As fórmulas todas usadas pelo ministro da Educação apontam claramente para uma ruptura institucional, representada por destruir “Brasília”.  

    Partindo da fala de Weintraub, o presidente diz que concorda com ele, que Brasília é perigosa e que ele mesmo se aproximou de quem não devia. Os privilegiados se afastam do povo. Bolsonaro diz que as pessoas não lembram, mas a liberdade foi assegurada por 1964 e que, caso o outro lado tivesse tomado o poder, a miséria seria geral no Brasil. A falsificação que o golpe de 1964 nos livrou do comunismo que dominava o poder no Brasil, como revisionismo histórico sem fundamento, só pode seguir sendo afirmado porque nossa democracia não teve uma justiça de transição vivida em outros países. Já virou rotina elogiar a ditadura no Brasil. O presidente recomenda, então, que todos se aproximem do povo, que no domingo saiam às ruas e rompam o isolamento (apesar das críticas que virão dos “bostas” de sempre). Reclama que a família é perseguida injustamente e aí diz que é preciso trocar todo mundo para que sua família não seja prejudicada. É preciso se defender e proteger os seus familiares e amigos. Lamenta que seja muito fácil impor uma ditadura nesse momento em que todos estão em casa. E defende que é por isso que quer que o povo se arme. O povo não vai permitir uma ditadura e vai defender a liberdade. “Povo armado jamais será escravizado.” E quem escraviza o povo? Os poderes constituídos, prefeitos e governadores “bostas” que fazem decretos para manter as pessoas em casa.

    Bolsonaro condena que existam divisões dentro do governo e que haja ministros que sejam elogiados pela imprensa por seu bom trabalho, “apesar do presidente”. Apela para que todos se mantenham unidos porque o que “os caras querem é a nossa hemorroida, é a nossa liberdade”. O governo luta contra os “bostas” privilegiados e esses querem tirar a liberdade deles, incriminando-os. Se não houver proteção e informação para os que estão no governo, a ditadura dos “bostas” privilegiados se instaura e quem está no governo vai acabar na cadeia, perderá a liberdade. Há um embate no horizonte próximo e o que está em disputa é quem vai acabar na cadeia: os que estão no governo ou os que estão na oposição. Alguém vai perder a hemorroida. Quem não tem proteção, perde a liberdade. Não é possível que todos sejam livres. Há uma guerra aberta e uns vão prender aos outros. Tanto faz se crimes foram cometidos ou não. É o dilema da “libertoida”: todos que estão na política serão atacados em suas hemorroidas, mas quem tem proteção sairá livre. É isso que Bolsonaro esperava de Moro, que seguisse fazendo o trabalho que realizava antes de ser ministro: livrar amigos e prender inimigos.

    Não existe impessoalidade e nem funcionamento institucional independente jamais. A fragilidade de nossa democracia levou a esse entendimento de que a justiça é sempre injusta. Importa controlá-la, pois a hipótese de seu funcionamento independente e impessoal inexiste. O que se colocou em disputa é quem controla a Justiça: “Curitiba”, “Brasília” ou Bolsonaro? “Curitiba” foi eliminada da disputa.

    A reunião ministerial mostrou muita confusão, muito palavrão, ausência completa de planos para enfrentar a pandemia, quer do ponto de vista sanitário quer do ponto de vista econômico. A catástrofe se avizinha e é no conflito mais agudo que virá no pós-pandemia que o governo mostra elementos importantes em que busca uma unidade que ainda não tem.

    Em primeiro lugar, no campo econômico, a ala militar reclama uma pauta desenvolvimentista e há uma ou outra voz que reclama políticas de proteção social. O próprio presidente demonstra que não adere totalmente à orientação de Guedes que é clara: aprofundar a concentração de riqueza, desmantelar o serviço público e retirar direitos.     

    Em segundo lugar, no campo político, aprofunda-se assustadoramente a saída autoritária. Isso está no cerne de toda a reunião ministerial. O pós-pandemia trará um aprofundamento dos ataques do governo às instituições e na aposta de que o governo deve se relacionar diretamente com o povo, um povo único, patriota e fiel ao Chefe Supremo. Aqueles que não estão de acordo são os privilegiados e devem ser neutralizados, presos e destruídos. Afinal, a liberdade dos inimigos significa um ataque à hemorroida do governo. Não pode haver oposição, pois a oposição obsta as ações do governo no curto prazo e os coloca na cadeia no final.

    Em terceiro lugar, como base a essa unidade do povo, as noções de que direitos são privilégios e, portanto, proteção é coisa de gente “mimizenta” e direitos é coisa de feministas, gayzistas, abortistas etc. A unidade do povo é dada por uma pauta moral e econômica excludente, de ódio.

    Unindo esses três elementos se vê claramente que a reunião ministerial aponta para um rumo em que a nossa frágil democracia está em grave risco. O fato de termos chegado até aqui mostra que as instituições falharam em exercer o tão falado sistema de pesos e contrapesos. Uma ruptura institucional é declaradamente desejada e tem apoio por parte da população que não tem qualquer apreço pela democracia. Esse grupo, que não é pequeno, não se afastará de Bolsonaro por ele desrespeitar as instituições e as leis. Pelo contrário, é isso que esses apoiadores do governo mais desejam. A cada arroubo autoritário, maior o apoio e agressividade desse setor. 

    De fato, temos um Judiciário que funciona mal e é venal. Está aí claramente uma imprensa corporativa que não tem compromissos sólidos com a democracia e que é alimentada pelos interesses mais obscuros de forma sistemática. Presente também se faz uma classe política largamente corrompida, desacreditada, e afastada dos interesses dos diversos segmentos das classes populares. Sobretudo, temos a precariedade e o limitado alcance dos direitos de cidadania. Foi esse conjunto de fragilidades que permitiu que ocorresse a eleição de Bolsonaro. Ou as instituições funcionam e dão um basta a esse curso claro de desrespeito à ordem democrática e à construção de uma saída autoritária para a crise ou a democracia brasileira perecerá com o caos pós-pandemia. A reunião ministerial deixou claro: ou é #foraBolsonaro ou é #tchauDemocracia.  

  • URGENTE: Por uma Frente Ampla para evitar que Bolsonaro nos leve para o abismo

    URGENTE: Por uma Frente Ampla para evitar que Bolsonaro nos leve para o abismo

    Por Humberto Mesquita*

     

     

    Não sei por onde começar! Pelo Corona Vírus ou pelo Demônio que está vomitando monstruosidades contra o povo brasileiro? Pela capacidade de destruir dessa maldita pandemia ou pela desenfreada ação de um grupo cujo líder foi eleito por milhões de desinformados —inocentes ou não.

    Mas os dois fatores se unem num mesmo objetivo que é a destruição. Comecemos então pelo vírus que foi menosprezado pelo outro “vírus”.

    O Brasil tinha tudo para se livrar da peste, porque ela não chegou de surpresa aqui. Ela começou na China, ainda em janeiro, se espalhou pela Europa em fevereiro e deu sinais claros de que chegaria aqui tão furiosa como lá.

    Mas, o Brasil como os Estados Unidos, ambos governados por idiotas, menosprezaram a sanha devastadora do novo vírus. “Era um simples resfriado” gritaram os dois. E se mostraram presentes em espaços públicos como a desafiar a pandemia. O resultado veio em março e hoje estamos assistindo a uma verdadeira hecatombe, a um massacre de milhares de brasileiros, seja dos castelos ou dos barracos.

    Desprezo pela Ciência e pela vida

    E o “asno” que governa o Brasil, investindo-se da condição de ditador, isolando-se até mesmo do seu “I love you Trump”, que reconheceu seu erro,  continua a minimizar o vírus, pregando receituário negado pela ciência, e  condenando  a solução médica do isolamento. Para coroar suas arbitrariedades demitiu o Ministro Mandeta, da Saúde, nomeou outro médico, Nelson Teich, que não suportou mais do que 29 dias no cargo e se demitiu.

    Junto com esses, o demônio já havia demitido o Sérgio Moro porque queria interferir nos rumos da Policia Federal, “para proteger a família e amigos”. Sérgio Moro também escolheu o momento para se desentender com ele, quando percebeu que seu “patrão” não lhe presentearia  mais com uma  vaga no STF, depois de  já ter recebido de presente, por serviços prestados durante as eleições presidenciais, o Ministério da Justiça.

    O “chefe”, aos gritos de que “quem manda aqui sou eu”, ou que “ministro que não seguir minha cartilha vai para a rua”, entrou definitivamente em cena para desafiar a tudo e a todos. Fez manifestações contra Congresso, contra STF, pregou um novo AI-5, xingou jornalistas, pouco se importando com as consequências de seus atos, porque acredita que tem a guarda dos militares que o rodeiam.

    Formou-se uma contraposição, constituída pela Rede Globo de Televisão, pelos novos desafetos do “rei Bolsonero” e pelo “herói Sergio Moro”.

    Agora, surgiu um novo ator que é o empresário Paulo Marinho, um homem que foi muito próximo do Bozo e seus filhos, com denúncias contundentes contra ele, os filhos e membros da Policia Federal.

    Num momento como esse, ninguém pode se colocar como única oposição

    A Frente Ampla, no passado, foi formada por Carlos Lacerda, Jango Goulart e  Juscelino Kubitschek,  independente de ideologias.  “Diretas Já” teve em seu bojo Lula, Ulysses Guimarães, FHC, Tancredo Neves, Orestes Quércia, entre outros, com as mais variadas tendências políticas. Tanto na Frente como nas Diretas existia um inimigo comum.

    Hoje nós temos um inimigo comum, e não vejo razão para não se unirem outra vez, o Lula de ontem e o Lula de hoje, com FHC, o governador Dória, Flavio Dino, Boulos, Ciro Gomes, e todas as forças que se opõem a esse governo semi-ditatorial que aliciou os militares para tentar dar o golpe definitivo na democracia e implantar, possivelmente, a mais sangrenta ditadura.

    Está faltando reação: a sociedade civil precisa se engajar nessa luta.

    OAB, ABI, entidades ligadas à cultura, sindicatos, associações de classe, membros do Congresso Nacional e do Judiciário precisam sair dessa modorra e enfrentar o inimigo. Somos todos covardes, esperando um milagre que não acontecerá se as forças vivas dessa nação não se manifestarem. Hoje o que estamos vendo são notas vazias de repúdio, nada mais do que isso.

    Nem o povo pode ir às ruas por conta dessa maldita Covid-19, que mesmo menosprezada pelo “grande vírus” tem sido, neste caso, sua aliada. As multidões não podem protestar pelas ruas.

    Como a única maneira de se manifestar em protesto, atualmente, é o panelaço, o povo tem se debruçado sobre o parapeito das janelas. Tudo nos incomoda, tudo nos aflige e nossas armas limitam-se ao som estridente, mas passageiro, dos panelaços que também não bolem com a estrutura criada por esse verdadeiro anticristo.

    “Deus, salve o Brasil”, suplicamos.  Mas não adianta. Deus não é mais brasileiro. Só a Frente Ampla pode livrar o País do pior.

     

    *Humberto Mesquita é jornalista e escritor, repórter e apresentador de debates na TV.

     

  • OS MAUS MILITARES E OS PÉSSIMOS CIVIS

    OS MAUS MILITARES E OS PÉSSIMOS CIVIS

     

    ARTIGO

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

     

    Sob olhares complacentes de muitos civis, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) vai assumindo, cada dia mais, a sua face militarizada. Como se não bastassem o presidente e seu vice serem militares, são militares também os integrantes da “cozinha” do Palácio do Planalto – Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. Além disso, 2.500 outros ocupantes de cargos no atual governo são militares ou seus parentes.

    Com o pedido de demissão do ministro da Saúde, Nelson Teich, até esse cargo, em plena pandemia de coronavírus, passa a ser exercido, interinamente, por um general, Eduardo Pazuello. Sua missão, ao que parece, será autorizar o uso da controvertida substância cloroquina no tratamento de pacientes com o covid-19, na contramão do que recomendam as autoridades da área de saúde de quase todos os países e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Oficialmente, o Brasil é uma democracia, com as “instituições funcionando”, como fazem questão de dizer civis e militares que apoiam o governo. Em que pese isso não ser a expressão da verdade, pois as instituições não funcionam para todos (o ex-presidente Lula que o diga) a pergunta que deve ser feita é: mantida a situação atual, por quanto tempo mais as instituições ainda funcionarão?

    Apesar de todos os problemas que tem criado para o Brasil e para os brasileiros, Bolsonaro continua contando com o apoio do que se pode definir como “maus militares” e “péssimos civis”, pessoas que não levam em conta os interesses da maioria da população e nem mesmo os chamados interesses nacionais. Vale dizer: os interesses efetivamente brasileiros num mundo em rápida e profunda transformação.
    “Mau militar” era como Ernesto Geisel, penúltimo general a ocupar a presidência da República
    após o golpe de 1964, definia o capitão reformado Bolsonaro. Já “péssimos civis” ou
    “vivandeiras de quartel” foram termos cunhados pela imprensa na década de 1950, para se
    referir aos políticos que viviam pedindo a intervenção militar contra governos legitimamente
    eleitos como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Em meados de 1960, a mesma
    denominação foi utilizada para os civis que “clamavam” para que os militares impedissem “a
    comunização do Brasil”, diante das Reformas de Base propostas pelo presidente João Goulart.

    Devidamente repaginadas “as vivandeiras” reapareceram em 2016 e se mantém em plena
    atividade nos dias atuais.

    TINTURA ESCURA

    O governo Geisel (1974-1978) deu início à descompressão política ou, como preferia dizer o seu ministro da Justiça, Petrônio Portela, à “abertura lenta, gradual e segura”. Geisel percebeu que não havia como manter a “panela de pressão” tampada, devido à recessão, à crise econômica internacional, provocada pelo segundo choque do petróleo, e ao desgaste dos próprios militares no poder, incluindo aí fartas acusações de corrupção.

    O início da abertura valeu a Geisel (1907-1996) o adjetivo de “comunista” por parte de seu ministro do Exército, general Sílvio Frota. Frota, aliás, fez uma lista à la marcathismo, onde denunciava a “presença de 100 comunistas no governo”. Geisel, por sua vez, agiu rápido e em uma verdadeira ação de guerra, demitiu Frota, antes que ele pudesse esboçar qualquer reação. Detalhe: o chefe de gabinete do general Frota era um jovem militar de nome Augusto Heleno.
    Geisel pode ser entendido como um dos últimos militares a se preocupar com o
    desenvolvimento autônomo do Brasil, ao elaborar e colocar em prática o II Plano Nacional de Desenvolvimento. Ele instituiu o Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), de modo a diversificar a nossa matriz energética. Deu início à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em parceria com o Paraguai. Assinou acordo com a Bolívia para que ela ofertasse gás ao Brasil e ainda firmou um acordo nuclear com a então Alemanha Ocidental. Era o Brasil assumindo o seu tamanho e a sua importância no mundo e deixando de lado a subserviência aos Estados Unidos.
    Em entrevista concedida aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso de Castro, em 1993,
    publicada em livro pela Fundação Getúlio Vargas, Geisel afirmou que os “militares devem ficar
    fora da política partidária, mas não da política em geral.” Segundo ele, todo político que
    começa a se “exacerbar em suas ambições logo imagina uma revolução a cargo das Forças
    Armadas”. Não por acaso, Geisel é um nome nada querido entre os militares que estão hoje
    no poder.
    Não é por acaso também que os documentos liberados pelo governo dos Estados Unidos
    sobre o período da ditadura no Brasil (1964-1985) apontam apenas ele como tendo sido
    conivente com torturas e repressão política. Convenientemente, esses documentos ignoram o
    mais repressor desse ciclo de generais-presidentes, Emílio Garrastazu Médici.

    Em recente artigo publicado no “Estado de S. Paulo”, diário conservador paulistano, o vice-
    presidente Hamilton Mourão tentou colocar-se como um estadista e sutilmente distanciar-se
    de Bolsonaro. Para alguns, seu artigo, de cunho nitidamente autoritário, pode ser entendido
    como um esboço de programa de governo, para a eventualidade de impeachment de
    Bolsonaro. Mas Mourão não conseguiu nem uma coisa e nem outra. Ele apenas confirmou a
    avaliação de que não há diferença entre os dois, exceto o tom mais escuro da tintura que usa
    nos cabelos.

    RONDON E GÓIS MONTEIRO

    Como oficial de patente inferior, o capitão reformado Bolsonaro não fez o curso de Estado
    Maior das Forças Armadas, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, chegando no máximo a ser
    um professor de educação física. Talvez isso o tenha levado a votações menos alinhadas com
    os interesses privativistas e estadunidenses nos 27 anos em que esteve na Câmara dos
    Deputados, como integrante do “baixo clero”. Situação que se alterou completamente ao
    chegar ao poder e rodear-se de grupos, seja na política, na economia (que ele diz não entender
    nada) e também em se tratando das relações exteriores, que passaram a se pautar pela
    cartilha do Tio Sam.
    Os militares sempre estiveram presentes na história do Brasil, desde os primórdios da própria
    República (proclamada por eles), passando por movimentos como o Tenentismo, a Coluna
    Prestes, a Revolução de 1930, o golpe de 1964 e a luta armada contra a ditadura militar entre
    1968 e 1974. Diferentemente de agora, amplos setores militares tiveram, ao longo da história,
    grande preocupação com o desenvolvimento econômico e social brasileiro e estiveram à
    frente de importantes projetos e lutas nesse sentido.
    Desses militares, talvez o nome mais conhecido seja o do marechal Cândido Mariano Rondon
    (1865-1958), que se notabilizou como o primeiro presidente do Conselho Nacional de Proteção
    aos Índios e um dos criadores do Parque Nacional do Xingu, ao lado dos irmãos Villas-Boas e
    de Darcy Ribeiro. Em 1956, em sua homenagem, o território de Guaporé passou a denominar-
    se Rondônia. Se estivesse vivo, Rondon estaria indignado com o tratamento que o governo
    Bolsonaro vem dispensando aos índios e com o desmatamento e destruição da floresta
    Amazônica.
    Ainda na primeira metade do século passado, nomes como os do coronel Mário Travassos
    (1891-1973) e o do general Pedro de Góis Monteiro (1880-1956) se destacaram como
    formuladores de importantes medidas para os interesses brasileiros. É de Travassos o livro

    “Projeção Continental do Brasil”, um dos primeiros estudos sobre geopolítica feitos no país.
    Sua maior contribuição, no entanto, foi ter introduzido o conhecimento científico na formação
    de oficiais do Exército brasileiro, capacitando-os a entender os problemas e desafios do país e
    do mundo. Esse tipo de ensino foi suprimido das academias militares depois do golpe de 1964.
    Já o general Góis Monteiro merece ser lembrado pela enorme contribuição que deu para a
    condução da diplomacia e da política externa brasileira, especialmente no que diz respeito às
    críticas ao imperialismo das grandes potências e à necessidade de o Brasil se organizar para
    não ficar a mercê desses interesses. Góis Monteiro antecipou, em décadas, problemas
    atualíssimos, como os graves riscos do governo brasileiro ser subalterno aos Estados Unidos,
    como é o caso de Bolsonaro.
    Durante o período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o golpe de 1964,
    não havia um pensamento monolítico tanto em termos de formação quanto na visão de
    mundo dos oficiais das Forças Armadas brasileiras, o que possibilitava o debate, muito distante
    da ordem unida que passou a vigorar nas décadas seguintes.

    O PETRÓLEO E O SUBMARINO

    Antes de 1964, ainda estavam presentes as lições desses e de outros grandes militares. Lições
    nas quais certamente se inspirou o marechal Júlio Horta Barbosa (1881-1965), presidente do
    Conselho Nacional do Petróleo, ao assinalar, por exemplo, que “pesquisa, lavra e refinação do
    petróleo constituem as partes de um todo, cuja posse assegura poder econômico e poder
    político”. Horta Barbosa notabilizou-se como um dos principais defensores do monopólio
    estatal do petróleo e um dos expoentes da campanha “O Petróleo é nosso”, uma das maiores
    já realizadas no país. Na época, o Brasil discutia a necessidade de se instituir esse monopólio e
    a criação de uma empresa para o setor, que viria ser a Petrobras.
    Outros generais, como José Pessoa (1885-1959), que comandou a Escola Militar do Realengo,
    tinha posição semelhante no que diz respeito ao desastre que seria para o Brasil entregar aos
    trustes estrangeiros a exploração e o aproveitamento das nossas riquezas minerais. Em
    meados do século passado já era sabido que o Brasil possuía enormes reservas de urânio e
    nióbio, o que gerava a cobiça internacional.
    Por isso, o almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976) buscou implementar um
    programa nuclear para o Brasil, no que encontrou fortíssima oposição dos Estados Unidos. A
    título de exemplo, os Estados Unidos propuseram à Organização das Nações Unidas (ONU) o
    Plano Baruch, que previa a internacionalização de minérios radioativos que ficariam sob a

    guarda de um organismo da própria ONU sobre o qual os EUA tinham total ascendência. Como
    representante do Brasil na ONU, Álvaro Alberto conseguiu derrotar a proposta.
    Os esforços de Álvaro Alberto foram retomados recentemente por outro almirante, Othon
    Luiz Pinheiro, que presidiu a estatal Eletronuclear até 2015. Criada como subsidiária da
    Eletrobras, ela tinha, entre suas funções, construir o primeiro submarino nacional movido a
    propulsão nuclear, fundamental para patrulhar a extensa costa brasileira, a “Amazônia azul”,
    como a Marinha define o território marítimo brasileiro, cuja área corresponde à superfície da
    floresta Amazônica. Othon Luiz pagou caro pela “audácia”, ao ser preso e condenado, por
    suposta corrupção, em uma operação desdobramento da Lava Jato.
    O “crime” de Othon Pinheiro, em última instância, teria sido não fazer concorrência e nem ter
    dado a devida publicidade a compras de material para o projeto do submarino nuclear
    brasileiro, que se tornava mais necessário ainda depois da descoberta do pré-sal. No caso,
    cabe a pergunta que a mídia corporativa brasileira não fez: qual país no mundo divulga edital
    de concorrência para a realização de projetos estratégicos ligados à segurança nacional?

    OS CIVIS SEMPRE CONSPIRARAM

    A tradição de políticos, empresários e intelectuais conservadores e liberais baterem às portas dos quartéis é longa no Brasil. Ela se faz presente em governos de cunho popular, sempre tachados de “esquerdistas”. Foi assim que Getúlio Vargas, logo após instituir o monopólio estatal do petróleo e criar a Petrobras, enfrentou uma campanha difamatória de tal porte (o “Mar de lama”) que acabou pondo fim à vida com um tiro no peito. Foi assim também que, em duas oportunidades, antes de tomar posse e próximo ao fim de seu mandato, Juscelino Kubitschek teve que enfrentar o golpismo de militares insuflados por civis da UDN.
    A primeira dessas tentativas aconteceu com a Revolta de Jacareacanga, que estava diretamente ligada às eleições de 1955 ganhas por ele e João Goulart. A dupla, que fazia parte da chapa PSD-PTB, havia vencido os políticos da UDN, à qual se ligava parte dos oficiais da Aeronáutica. Esses oficiais não aceitavam o resultado das eleições e foram contidos pelo então ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott (1894-1984). A Revolta de Jacareacanga durou 19 dias e teve lugar no sul do Pará.
    Já a Revolta de Aragarças, que eclodiu no início de dezembro de 1959, começou a ser articulada dois anos antes. O objetivo era bombardear os Palácios de Laranjeiras e do Catete, no Rio de Janeiro. Alguns de seus integrantes tinham participado de Jacareacanga e o objetivo, como sempre, era afastar do poder “políticos corruptos e comprometidos com o comunismo internacional”.

    Ela contou com a participação de militares da Aeronáutica e do Exército, mas durou apenas 36 horas. Seus líderes, depois de rumarem de avião para a cidade de Aragarças, em Goiás, fugiram para países vizinhos, só retornando ao Brasil no governo de Jânio Quadros.
    Mais uma vez, coube ao general Lott derrotar os golpistas.
    As principais características de Lott eram o legalismo e a profunda convicção democrática.
    Características que incomodavam os militares que participaram do golpe de 1964. Seu enterro,
    em 1984, um ano antes da saída do general João Figueiredo do poder, não teve condecorações
    marciais ou honras de mérito militar, mas contou com a presença de Leonel Brizola, então
    governador do Rio de Janeiro, que decretou luto oficial pela perda de tão importante
    personagem da história brasileira.
    Como comprova René Dreifuss no monumental livro “1964, a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe”, as “vivandeiras” de quartel nunca deixaram de conspirar com os militares para derrubar governos dos quais discordavam e não conseguiam vencer pelo voto. A UDN, no período compreendido entre 1946 e 1964, não ganhou uma única eleição presidencial. Recentemente, o caso que mais se assemelha é o do PSDB que, igualmente cansado de perder eleições, deu início, através de seu candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, ao golpismo que acabou por derrubar Dilma Rousseff.
    Dreifuss relata, com riqueza de detalhes, como se deu a articulação entre civis no pré-1964. Além de baterem às portas dos quartéis, civis como os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, esse último também um poderoso banqueiro, mobilizaram dezenas de grandes empresários, ruralistas, donos da mídia e intelectuais com o objetivo de derrubarem Goulart. A articulação contava com o apoio dos Estados Unidos.
    O então maior magnata da mídia brasileira, Assis Chateaubriand, dono dos Diários e Emissoras Associados, abriu todas as baterias de seus jornais, emissoras de rádio, de televisão e da maior revista da época, o Cruzeiro, contra Goulart. Roberto Marinho ainda não possuía televisão, mas garantiu todo o espaço de seu jornal e da rádio Globo para que Carlos Lacerda e quem mais quisesse atacar Goulart.
    Recursos desses empresários e também de Washington financiaram entidades como o
    Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos
    (IPES). A atuação do IBAD influenciou as eleições para o Congresso Nacional, onde inúmeros
    parlamentares conservadores tiveram suas campanhas bancadas por ele.

    Já o IPES produziu parte do material de propaganda contra Goulart veiculado como notícia em
    jornais, rádios e até no cinema, em um popular informativo semanal que antecedia a exibição
    dos filmes. Nos dias atuais, quem mais se assemelha ao IPES é o Instituto Millenium, um think
    tank sediado no Rio de Janeiro, que se propõe a promover “valores e princípios de uma
    sociedade livre, baseados no direito de propriedade e no livre mercado”.

    DE BRAÇOS DADOS

    Nos 21 anos em que durou o regime militar no Brasil, maus soldados e péssimos civis
    estiveram de braços dados. O economista Roberto Campos, por exemplo, foi o primeiro
    ministro do Planejamento no governo Castelo Branco. Seu alinhamento aos interesses dos
    Estados Unidos era tamanho que seu apelido se tornou “Bob Fields”. No governo Bolsonaro,
    seu neto, que tem o mesmo nome, preside o Banco Central.
    Já o híbrido de militar e político, Juracy Magalhães, foi nomeado também no governo de
    Castelo Branco como embaixador brasileiro nos Estados Unidos. É dele a tristemente célebre
    frase “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Frase que antes do chanceler
    terra-planista de Bolsonaro, Ernesto Araújo, fazia corar de vergonha os nossos diplomatas.

    A relação dos péssimos políticos – fisiológicos e integrantes das bancadas do Boi, da Bíblia e da
    Bala – é enorme. Há quatro anos, eles estiveram na linha de frente na ferrenha oposição e na
    derrubada da presidente Dilma Rousseff, num golpe travestido de impeachment.

    Desses, os nomes de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer,
    vice-presidente de Dilma, e do juiz e até poucas semanas atrás, ministro da Justiça de
    Bolsonaro, Sérgio Moro, talvez sejam os mais emblemáticos. Cunha só deu início ao processo
    de impeachment contra Dilma, porque ela não aceitou pedir que o PT “aliviasse a barra para
    ele” em um processo na Comissão de Justiça do Legislativo. Acusado em vários processos de
    corrupção, Cunha foi afastado da presidência da Câmara e perdeu o mandato. Condenado a
    mais de 15 anos, recentemente teve a prisão preventiva substituída pela domiciliar, por estar no grupo de
    risco da pandemia do covid-19.
    Michel Temer integrou a articulação do golpe contra Dilma. Também ele tentou chantagear a presidente sob o argumento de que se ela aceitasse colocar em prática o plano “Estrada para o futuro”, o oposto de tudo o que defendia o PT para vencer a crise que então se esboçava, não haveria problema. Antes, Temer certificou-se de que teria o apoio dos militares, valendo-se do      descontentamento que sabia existir entre os de farda e a presidente que instituiu a Comissão Nacional da Verdade, para apurar graves violações de direitos humanos acontecidas no Brasil entre 1946 e 1988.
    A Comissão da Verdade, como ficou conhecida, durou pouco mais de três anos, tempo suficiente para deixar parte dos militares de cabelo em pé. Ao contrário de outros países da América do Sul, que também enfrentaram ditaduras brutais, como Argentina e Chile, aqui o pacto que viabilizou a transição democrática anistiou a todos, torturados e torturadores, impossibilitando que muitos militares fossem julgados por crimes que cometeram nos “anos de chumbo”.

    Foi a partir da Comissão da Verdade, no entanto, que o Brasil ficou sabendo que entre os próprios militares houve muita resistência às atrocidades cometidas. Em duas décadas de ditadura, o regime perseguiu, prendeu ou torturou 6.591 militares. Essa informação sem dúvida incomodou e, mais uma vez, maus soldados e péssimos civis
    estavam juntos na deposição de uma presidente legitimamente eleita.

    Não foi por acaso que o então deputado Jair Bolsonaro, ao votar pela abertura do processo de
    impeachment contra Dilma, o fez prestando homenagem ao torturador coronel Brilhante
    Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos mais atuantes órgãos na repressão política
    durante a ditadura. Mesmo já reformado, Ustra continuou politicamente ativo nos clubes
    militares, na defesa da ditadura e nas críticas anticomunistas.

    MORO, O PIOR

    De todos os péssimos civis, o que recentemente mais danos políticos e econômicos trouxe ao país foi Moro. Como juiz de primeira instância responsável pela Operação Lava Jato, ele cometeu barbaridades jurídicas para incriminar, sem provas, o ex-presidente Lula (casos do Triplex e do sítio em Atibaia) e tirá-lo da eleição de 2018. Some-se a isso que, em nome do “combate à corrupção”, destruiu a indústria brasileira, jogou milhões de trabalhadores no desemprego e o país na dependência tecnológica de outras nações.

    A Lava Jato também possibilitou o acesso de representantes estadunidenses à gestão de empresas como a Petrobras e a Odebrecht que, além de ilegal, desdobrou-se em multas milionárias e conhecimento, pelos concorrentes, de seus planos estratégicos. Para quem assistiu ao filme Snowden (2016) do premiado diretor estadunidense Oliver Stone, as escutas que órgãos de inteligência dos Estados Unidos fizeram em várias partes do mundo, inclusive aqui, espionando a própria Dilma e os contratos que estavam sendo elaborados para a exploração do pré-sal brasileiro, fazem parte dessa lógica.

    O resultado do combate à corrupção apresentado pela Lava Jato é pífio. O que não impediu a mídia corporativa brasileira, TV Globo à frente, de tentar transformar Moro em “herói no combate à corrupção.” Moro saiu do governo Bolsonaro, depois de compactuar por 16 meses com todas as ilegalidades e absurdos que o presidente e filhos praticaram. Mas sair do governo não significa deixar a política, como alerta o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, para quem “Moro é o candidato dos Estados Unidos à presidência do Brasil”.

    Maus soldados e péssimos políticos, antes unidos na eleição de Bolsonaro, começam a se
    dividir. Em que pese a inércia do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) que continua se recusando a colocar em pauta a penca de pedidos de impeachment contra Bolsonaro, parte dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) está se movendo.
    Bolsonaro, cada vez mais enrascado, em queda acelerada junto à opinião pública e à frente
    de um governo que o mundo considera um perigo, corre atrás dos políticos do Centrão e do apoio da caserna na tentativa de barrar um possível processo de impeachment. Cargos
    começam a ser distribuído a rodo para esses senhores.
    O Plano de Desenvolvimento que o general Braga Neto, para alguns o “presidente operacional do Brasil”, anunciou para a retomada do crescimento, quando a pandemia amainar, está fadado ao fracasso. O capital internacional sumiu e o pouco que sobrou do empresariado brasileiro não se arriscará num cenário de enorme incerteza. Se o Estado não assumir a retomada da economia, o Brasil não terá futuro. Só que isso, para desespero dos péssimos políticos e dos maus militares, é muito parecido com a agenda que o PT colocou em prática nos anos que governou e com o projeto de “Plano para o Brasil” que Lula acaba de lançar.
    Os péssimos políticos só admitem mudanças para que tudo continue como está. Tanto que criticam Bolsonaro, mas cobrem de elogios a agenda ultraliberal colocada em prática pelo seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Os maus militares também estão com Bolsonaro, mas não falta até entre eles quem já admita que “o presidente está causando confusão em demasia”. Enquanto isso, os cidadãos indignados, em quarentena por causa do covid-19, não saem das janelas e gritam cada vez mais alto e forte, de todos os cantos do Brasil: “Fora Bolsonaro”.
    Como sabia Geisel, tentar tampar a panela, numa situação dessas, não surtirá efeito.

     

  • Morre o ministério de Teich, mas os negócios não podem parar

    Morre o ministério de Teich, mas os negócios não podem parar

     

     

     

    Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana*  

     

    #Sextou. Falecimento. Viemos informar que hoje, 15 de maio de 2020, veio a óbito o ministério do senhor Nelson Sperle Teich à frente da pasta da Saúde. Mais uma sexta-feira de exonerações. Nesse ano, desde a Sexta-Feira da Paixão, esta é a segunda Sexta-Feira da Exoneração. Mandetta quase sai na sexta, pois saiu na quinta à tarde. Será que Bolsonaro cairá numa sexta-feira? Brasileiro: profissão esperança.

    Nelson Teich teria sido apresentado ao presidente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Além da relação com Guedes, o médico também tem outras proximidades com a economia, a ver pelo seu currículo: além de ter se formado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em Medicina, e ter se especializado em oncologia no Instituto Nacional de Câncer (Inca), ele possui especialização em Economia da Saúde pela Universidade de York, na Inglaterra, e vários cursos de formação complementar em economia ou administração na área da saúde. Atualmente é diretor executivo da empresa de consultoria MedInsight – Decisions in Health Care e presidente da COI – Clínicas Oncológicas Integradas. Foi sócio do Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Denizar Vianna, na empresa MDI Instituto de Educação e Pesquisa, que funcionou entre 2009 e 2019, empresa esta que, de acordo com uma reportagem da BBC Brasil, trabalhava com “pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências sociais, humanas, físicas e naturais e treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial”.

    Já na época da campanha, o médico apoiou Bolsonaro, atuando como seu consultor na área de saúde. Era um nome bem cotado para o Ministério, já no início do mandato, mas acabou sendo preterido em favor de Luiz Henrique Mandetta – a quem mais tarde substituiria. Tornou-se ministro com o apoio de nomes importantes como o de Meyer Nigri, dono da empresa Tecnisa, que atua no mercado imobiliário, e de Fábio Wejngarten, secretário de Comunicação do atual governo.

    Em seu discurso de posse, Teich havia dito que não haveria nenhuma mudança brusca e que as decisões deveriam ser tomadas com base em informações sólidas, não em emoções. Também disse que saúde e economia não competem entre si, mas se complementam. Defendeu um grande projeto entre o SUS, o empresariado e o governo, para se realizarem os testes e mais pesquisas sobre o novo coronavírus. Por fim, disse que havia um “alinhamento completo” entre ele e o governo e que pretendia fazer de tudo para que o país possa voltar o mais rápido possível à normalidade, com o fim do isolamento.

    Pelo jeito o “alinhamento completo” não era tão completo assim. Teich e Bolsonaro discordavam em relação ao uso da cloroquina: para o primeiro, a substância ainda deveria ser melhor estudada; para o segundo, o tratamento com este medicamento deveria ser imediatamente ampliado e já começar a ser utilizado no princípio da doença. Além disso, os dois divergiram em relação ao isolamento social: Teich só descobriu que o presidente havia permitido que salões de beleza, barbearia e academias voltassem a funcionar durante uma coletiva de imprensa, quando foi perguntado por um repórter sobre a medida. A resposta, um tanto desconcertada, e depois de muito balbuciar, foi a de que esta decisão não havia partido do Ministério da Saúde.

    As redes sociais continuam não perdoando e, parafraseando a letra de uma canção sertaneja, soltam um meme onde se lê: já foram três os que caíram na ilusão de exercer um cargo “técnico”.

    Atualização da situação da pandemia, em números, durante a curta vida do ministro: em 17/4 haviam 34.221 casos confirmados e 2.171 mortos no Brasil; em 15/5 são 218 mil casos confirmados e 14.816 mortos no Brasil. Os dados deixam claro que o fim do isolamento só aumentará o número de mortes, que crescem, a cada dia, dada a crise política e a flexibilização do isolamento, que é a única política efetiva, comprovada para redução do número de vítimas. É bom lembrar que diversas pesquisas têm mostrado a ineficácia da cloroquina para o tratamento da Covid-19.

    Mas, por que o genocida mantém a sua “convicção”?

    No momento, é possível pensar nessa pergunta por meio de uma outra: o que a “morte” desse empresário da saúde, como ministro, pode revelar?

    A historiografia profissional já demonstrou, amplamente, que a ditadura de 1964 só foi possível pela aliança criminosa entre empresários e militares. Os primeiros sempre se direcionaram em busca de vantagens e maiores lucros para os seus negócios, e os segundos, sempre em busca de fama e protagonismo, mas também de dinheiro e poder. O resultado foi um dos episódios mais sombrios de nossas história, repletos de casos de corrupção e violência, que comprometeram a democratização da sociedade brasileira e aprofundaram as desigualdades sociais que nos impedem, até hoje, de progredir em direção a um mundo mais sustentável e justo.

    Mas, como bem nos mostra Maria Victória Benevides, “Os empresários acreditavam que os militares agiriam como ‘restauradores da ordem’ e depois desalojariam o poder em seu benefício, no papel de eficientes “leões de chácara” das grandes finanças. O que, obviamente, não ocorreu”. Será que haverá uma reatualização da história em breve?

    Ainda não é possível saber. O que se sabe é que, ao contrário do que pensam alguns intelectuais, essa conjunção entre empresários e grupos políticos para saquear a sociedade e o Estado está longe de ser uma jabuticaba. Em um certo sentido, as elites brasileiras estavam na vanguarda das mutações mais recentes do capitalismo global.

    Em livro esclarecedor, publicado em 2016, com o título “Dinheiro Sombrio: a história secreta dos bilionários por trás da ascensão da direita radical”, a jornalista Jane Mayer revela, com detalhes, como os grandes empresários sequestraram a democracia para promover políticas públicas que só atendem aos seus próprios interesses. 

    A autora descreve, logo no começo de seu livro, um encontro promovido pelos bilionário Charles e David Koch, em 2009, enquanto Barack Obama tomava posse como presidente dos Estados Unidos. A agenda do encontro, que reuniu um seleto grupo de bilionários e representantes políticos conservadores, era impedir que o novo presidente democrata, eleito em um clima de grandes expectativas, pudesse implementar políticas que contrariassem os interesses desses grandes capitalistas.

    Charles e David Koch são donos da Koch Industries, a segunda maior companhia privada dos EUA que possui negócios envolvendo petróleo, carvão, produtos químicos e outros. Em 1980 David Koch concorreu à vice-presidência dos EUA pelo Partido Libertário, mas recebeu apenas 1% dos votos. Esse fracasso reforçou a ideia de que a forma de chegar ao poder seria promovendo intelectuais e políticos que apoiassem a sua agenda “anarco-totalitária”. Nas eleições de 2016, em que foi eleito Trump, o grupo Koch investiu 886 milhões de dólares em seus candidatos.

    Com amplo apoio financeiro de diversos outros grupos econômicos, os irmão Koch aceleraram uma agenda ideológica que vinha sendo construída desde os anos 1970. Essa agenda propagava a ideia de um governo limitado, menos impostos, assistência social mínima, menos supervisão e regulação das atividades industriais, especialmente em relação ao meio ambiente.

    Se achou tudo isso muito familiar, você não está confundindo, essa versão de um capitalismo sem freios é a mesma defendida pelo governo Trump e adaptada ao Brasil por setores empresariais, que podem estar representados por Dória, pelo Partido Novo, por Luciano Huck, por Nelson Teich ou mesmo Bolsonaro. A estratégia empresarial é fazer valer sua agenda, indireta ou diretamente, pouco importando quem estiver à frente do governo. Mas, por vezes, o interesse militar pode falar mais alto, ainda que ele não seja excludente em relação à agenda atualizada do capitalismo.

    Ao tornar evidente a necessidade de políticas públicas e de um Estado organizado, a pandemia da Covid-19 colocou em xeque diversos elementos da ideologia do anarco-capitalismo, mas por si só não será suficiente para quebrar sua força discursiva e o poder político e econômico acumulado. No Brasil, em particular, nas últimas décadas empresários e grupos políticos locais descobriram como mobilizar a guerra ideológica e cultural para chegar ao poder.

    Assim, a cultura do empreendedorismo, a celebração heroicizante de empresários do passado e do presente, a glamourização do risco e da precariedade abriram caminho para uma adesão inédita de novos setores sociais à falsa utopia do anarco-capitalismo. As grandes transformações no mundo do trabalho, com a expansão da terceirização e da gig-economy ou uberização, contribuiu para a ilusão de que somos todos capitalistas. De que o grande inimigo é o estado cobrador de impostos.

    É apenas com a crise que o motorista de aplicativo pode descobrir que no fim das contas ele vai precisar do Estado, do SUS, do cheque de 600 reais etc. As relações precarizadas de trabalho geram a ilusão de não ter patrão. Na verdade, em um mundo em que no meio de uma grande crise estamos às vésperas ver o primeiro ser humano a acumular sozinho 1 trilhão de dólares, Jeff Bezos, da Amazon, é muitas vezes difícil experimentar individualmente a extensão das desigualdades e injustiças sociais.  

    Esses grandes empresários, que os letrados da direita tentam transformar em grandes heróis, são, muitas vezes, herdeiros mimados, acostumados com todo tipo de ilegalidades e mamatas, que odeiam o Estado e a política sempre que se tornam forças que ameaçam seus interesses comerciais. Uma das estratégias desses homens é o segredo, o agir nas sombras enquanto os letrados e empresas que estão em suas listas de beneficiados fazem o debate público. Teich parece que fracassou nessa missão, pois há um obstáculo frente a essas ‘demandas’, a saber: o projeto de poder autoritário de Bolsonaro.

    E, para efetivar esse projeto autoritário, pelo menos nesse momento, há um grupo com bastante experiência: os homens de farda, tendo as polícias militares como retaguarda, bem como as milícias digitais. Como se vê, olavismo e militarismo são as duas faces da mesma moeda. O artigo publicado ontem por Mourão deixa isso bem evidente. O serviço pode ser feito via golpe ou apenas assegurando a continuidade do governo. Enquanto isso, o governo é edificado em cima de milhões de cadáveres. O que também parece ser uma atualização negativa de um passado que não enfrentamos como se deveria.

    Por outro lado, Bolsonaro precisa do apoio empresarial para se sustentar no poder. A atual dissociação entre capitalismo e democracia não significa que projetos autoritários, dentro, nas margens e fora da própria democracia, se sustenta apenas pela força, violência e por “pequenas maiorias”. É preciso apoio do grande capital e, também, dos “pequenos”, isto é, os precarizados: como barbeiros, donos de salão, motorista de uber etc. 

    Há ainda esperança. A análise das redes e as pesquisas mostram que cada vez mais Bolsonaro perde apoio. A sociedade civil e os setores democráticos precisam reagir rápido e em meio à pandemia.  De todo modo, se Deus for mesmo brasileiro ele deve estar escutando Elis Regina cantar para ele:

    Cai o rei de espadas

    Cai o rei de ouros

    Cai o rei de paus

    Cai não fica nada

     

    (*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI

    Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP

  • Mandetta é demitido, serviçal de Bolsonaro assume

    Mandetta é demitido, serviçal de Bolsonaro assume

    As jornalistas Kátia Passos e Laura Capriglione, dos Jornalistas Livres, comentaram ao vivo a demissão do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o anúncio do presidente Bolsonaro da posse do novo ministro, Nelson Luiz Sperle Teich, para a pasta. A demissão ocorre em meio a possibilidade de agravamento da crise do coronavírus, com previsões de aumento de casos e mortes para maio e junho.

    Depois de cerca de três semanas de conflitos públicos entre o presidente e Mandetta, que envolveu provocações contra o ministro em redes televisivas por parte de Bolsonaro, desrespeito às recomendações da OMS que o ministério da saúde adotou e ensaios de demissão a novela chegou ao fim, nesta tarde. Ao mesmo tempo em que o ministro anunciava sua saída, falando do ministério, o presidente anunciava seu substituto, falando do palácio do planalto. 

    Para Laura a demissão demonstra, contrariando as avaliações que colocam o presidente como líder decorativo substituído pelo alto escalão  militar do governo, que o poder ainda permanece em parte com Bolsonaro, a situação “deixou claro que Bolsonaro não está com a bola toda, mas não está isolando daquilo que é a espinha dorsal de seu governo: os militares, que continuam sustentando o governo”. Já Mandetta voltará a posição de político local, segundo Laura, por conta dos contrapontos que ele apresentou ao posicionamento do governo como “aparecer com a camisa do SUS”, contraria os planos estabelecidos do neoliberalismo palaciano que tem como grande plano privatizar o SUS.

    Em sua avaliação o substituto, Nelson Teich, vem para defender os interesses das empresas de saúde privada. Teich, que já foi consultor do hospital Albert Einstein em São Paulo, integra a comitiva de Bolsonaro desde a campanha. Ele é “um cara que nós podemos temer muito pelo que virá. A tendência é que agora Bolsonaro consiga alinhar o que não estava alinhando. Você tem o Paulo Guedes, um fundamentalista da retirada de dinheiro dos serviços públicos com um cara que defende o SUS [Mandetta]. Agora você tem um alinhamento”. O mercado e a economia serão colocados em prioridade e “dias piores virão”.

    Para Kátia, Nelson Teich é o “cara que está em consonância com as ideias do Bolsonaro e as ideias do mercado e é óbvio que alguém que não esteja em consonância com as ideias do presidente vai ser demitido. E se existir algum que não concorde com as ideias do presidente, fatalmente, vai estar fora”. O papel de Moro e Paulo guedes, respectivamente ministros da Justiça e Economia, também foi lembrado. “Esse monstro moral, que se travestiu durante um longo tempo como juiz, mas é o lado bonitinho e cheiroso dos milicianos que cercam a família Bolsonaro. Esse é o Sérgio Moro” que se disse contrário aos presos que não cometeram crimes violentos ou que cumpriam progressão de penas a saírem em meio a crise. Já Paulo Guedes, que representa o mundo financeiro, mas consegue ser mais radical do que símbolos  dos neoliberalismo como economistas do FMI (Fundo Monetário Internacional), que hoje defendem intervenções pesadas na economia. 

    Kátia também pontuou que, por mais que o Mandetta tenha tido certa liderança pouco antes de ser demitido, ele “no início da pandemia patinava sobre o isolamento social. Fora o histórico dele, de ter sido um dos caras que voltou contra o fomento e o engrandecimento do SUS”. Enquanto deputado Mandetta votou pelo PEC do teto dos gastos e foi favorável a expulsão dos médicos cubanos. 

    O papel da comunicação, que tem sido um contraponto ao Bolsonaro, e o comportamento das igrejas, que têm realizado campanhas para o fim do isolamento, em meio a pandemia também foi abordado. 

    Veja o debate