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    Morar no Refúgio

    Refugiados e Movimento de Moradia organizam Fórum para debater as dificuldades que enfrentam no país e procurar soluções conjuntas

    No último sábado, 30 de maio, o Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem-Teto de São Paulo — GRISTS e o Movimento Sem-Teto do Centro — MSTC organizaram o 1º Fórum Morar no Refúgio. O espaço de debate reuniu imigrantes, refugiados, movimento de moradia, organizações e entidades especializadas, para levantar as dificuldades que os refugiados enfrentam e procurar soluções conjuntas.

    Esse foi o primeiro Fórum chamado pelos próprios refugiados. O grupo se formou em 2014, durante a gravação de um longa-metragem da cineasta Eliane Caffé, nas instalações da ocupação Hotel Cambridge: “Percebemos o grande número de refugiados na ocupação, e a proximidade entre o brasileiro de baixa renda e o refugiado, ligados principalmente pelo problema da falta de moradia”, relata Eliane. Aquele grupo continuou a se encontrar e se fortaleceu, formando um coletivo de Imigrantes e Refugiados de diversas etnias.

    Desses encontros e desse coletivo, surgiu a ideia de organizar o Fórum que teve como principal pauta o problema da obtenção de documentação, que impede que o refugiado fique em situação legal no país, e acarreta em outras dificuldades como a de alugar uma moradia, trabalhar e estudar, por exemplo.

    O evento durou o dia todo, pela manhã, refugiados, movimento de moradia e entidades tiveram espaço para expor e problematizar o tema proposto. Pela tarde, os participantes foram divididos em grupos de trabalho para debater e procurar as possíveis soluções.

    Pitchou Luhata Luambo

    Pitchou Luhata Luambo, coordenador GRISTS, iniciou as falas da mesa “não estamos aqui para apontar os culpados, mas para achar soluções juntos. As casas que acolhem os refugiados ficaram pequenas, os três meses de acolhida não são o suficiente. A demora na emissão dos documentos faz com que, passado esse período, o refugiado não consiga alugar uma casa. Ficamos dependentes do movimento de moradia. Alguns não são bons e exploram o imigrante e o refugiado. Quando procuramos as autoridades, não temos respostas.”. Pitchou é advogado, no Brasil, trabalhava como operador de empilhadeira, sua documentação foi emitida com rapidez, em 10 meses, mas, passado um ano, quando foi renová-la, a demora e a burocracia do processo fez com que ele perdesse o emprego. Isso por que ficou sem carteira de motorista, indispensável para exercer o ofício.

    Leonor Solano

    Faltam pessoas e informação. Os refugiados reclamam que, além da demora, eles não sabem a quem recorrer e como proceder, a informação é escassa e de difícil acesso. Também relatam que a dificuldade nos últimos tempos aumentou, devido ao número de refugiados e imigrantes que chegam ao país. Leonor Solano é professora, trabalha em uma escola privada e se considera brasileira, mas reclama que não consegue fazer uso de benefícios como pró-uni e financiamentos na Caixa Econômica Federal. Aliás, o difícil acesso às universidade, para aqueles que querem retomar os estudos, e a dificuldade para a validação do diploma daqueles que já são formados, também foram levantados pelos imigrantes e refugiados.

    Carmem Silva, liderança do MSTC e da FLM — Frente de Luta por Moradia, também participou da mesa. Dispensando o microfone “minha voz ecoa forte pelos meus direitos e pelos direitos dos meus irmãos”, Carmem lembrou que ela também já foi uma estrangeira no próprio país. Ela chegou em São Paulo no início da década de 90, vinda do nordeste em busca de melhores condições de vida. A cidade não foi receptiva e ela acabou em situação de rua, até que entrou para a FLM, “lá recuperei a minha dignidade”. Carmem pontua que, embora falasse a mesma língua, as barreiras principais que enfrentou, e que os imigrantes e refugiados enfrentam, são as culturais. “O movimento de moradia acolhe a todos, sem excluir ninguém. Tentamos ressocializar o indivíduo.”.

    Carmem Silva

    A líder relata que o movimento de moradia não só não recebe auxílio para ajudar esses imigrantes e refugiados, como acaba sendo ainda mais criminalizado pelos órgãos públicos: “Alegam nas reuniões de reintegração de posse que nossas ocupações estão cheias de estrangeiros. Não levam em conta que eles abrem as portas aos refugiados, sem lhes garantir estrutura nenhuma”.

    A experiência do movimento com os imigrantes e refugiados começou tímida. No início eram poucos e principalmente latino-americanos. Nos últimos 3 anos o número cresceu, e as etnias e nacionalidades também. Haitianos, congoleses, nigerianos… chegam aos milhares em busca de acolhimento e oportunidades. No Fórum, havia representantes do Senegal, Mali, Burkina Faso, Gana, Argélia, Benim, Camarões e República Democrática do Congo.

    De acordo com o CONARE, Comitê Nacional para os Refugiados, o Brasil possui atualmente 7.289 refugiados reconhecidos (outubro de 2014), de 81 nacionalidades distintas (25% deles são mulheres) — incluindo refugiados reassentados.

    Alaôr Caffé Alves

    O Professor Alaôr Caffé Alves, presente na mesa, defendeu que a emissão da documentação vai além das questões meramente legais: “está vinculado com a identidade e a reafirmação da identidade pessoal do imigrante/refugiado”. Para ele, outro atributo importante para a reafirmação do individuo e sua ressocialização é o trabalho. O professor também defende a importância da mobilização social: “é fundamental a organização. Pedir solidariedade é pouco. Só com a força social é possível pressionar o legislativo, para que ele adeque a legislação aos refugiados, imigrantes e sem-teto”.

    Andrés Ramirez, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR, também esteve presente. Ele pontuou que a cidade de São Paulo é a que mais recebe refugiados na América Latina, para ele, é preciso trabalhar também com a formação da população local “É preciso fazer um trabalho de conscientização, pois se a opinião pública ficar contra os imigrantes e refugiados, não existirão políticas públicas que sejam suficientes”.

     
    Larissa Leite, representante da Cáritas Brasileira, organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apresentou o aumento expressivo do número de imigrantes e refugiados no país, a as dificuldades que as organizações vêm enfrentando para dar atendimento aos refugiados, como a falta de advogados. “mas tivemos algumas melhorias, como, por exemplo, a emissão imediata do Protocolo (documento provisório que os refugiados recebem ao chegar ao país)”.

    Também foram convidados para o evento membros do CONARE e da Polícia Federal, mas os responsáveis não puderam comparecer.

    No período da tarde, os participantes do Fórum se dividiram em três grupos que debateram: legislação, comunicação e infraestrutura. As propostas foram apresentadas ao final do encontro e um documento elaborado em conjunto. O Manifesto Morar no Refúgio propõe, entre outras coisas, a criação de um Observatório Municipal de Políticas para Solicitantes de Refúgio. Outros encaminhamentos como um festival de Música dos Refugiados e um grupo de estudos sobre legislação também foram aprovados. O documento será entregue aos órgãos competentes e uma comissão acompanhará seus desdobramentos e cobrará as instâncias responsáveis.

    Leia o manifesto:

    Manifesto Morar no Refúgio

    O Brasil vive hoje um grande desafio para a consolidação da sua democracia e Estado de Direito: o aumento do fluxo migratório ao país escancarou as lacunas existentes na estrutura estatal e legislativa para a garantia dos direitos da população solicitante de refúgio, refugiada emigrante em condição de igualdade com os nacionais. Os processos de regularização e de acesso à documentação são essenciais para que a garantia de tais direitos sejam efetivadas, e que os direitos a solicitar refúgio e migrar estejam de fato garantidos. É necessária a redução do tempo de tramitação da regularização, exigidos no processo decisório, a fim de reduzir a discricionariedade das autoridades estatais. Quanto maior o tempo para a obtenção de documentos, maior será a necessidade de acolhimento por parte do Estado. A documentação rápida permite ao solicitante de refúgio, refugiado e migrante o exercício de sua autonomia enquanto sujeito de direito. É sobre essa base que trazemos nossas demandas ao conhecimento das autoridades competentes.

    Desafios institucionais e legislativos

    Problema: As competências migratórias estão dispersas em diversos atores governamentais e administrativos que não dialogam entre si. Existe um viés de segurança trazido pela centralidade da atuação da Polícia Federal nos processos de refúgio e migração, o que prejudica o olhar dos direitos. Ainda, é necessário mais iniciativas em políticas públicas específicas para solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes nos âmbitos municipais e estaduais.

    Proposta: Nova institucionalidade civil para lidar com os fenômenos das migrações no país, que respeite e explore os benefícios e responsabilidades do pacto federativo e afaste a Polícia Federal enquanto autoridade migratória.

    Problema: A legislação migratória brasileira, da época da ditadura militar, restringe e burocratiza as possibilidades de regularização migratória, o que traz impacto direto no mecanismo de solicitação de refugio, que hoje é a via mais acessível e atrativa de regularização. Ainda, a legislação migratória é inconstitucional, ao diferenciar o acesso a direitos de acordo com a situação migratória. O Estatuto do Estrangeiro restringe o direito de associação e a liberdade de expressão da população migrante.

    Propostas:

    1. Criação de uma nova legislação migratória que incorpore a regularização e o acesso à documentação como um dever do Estado para a garantia de direitos, conferindo critérios claros e transparentes e flexibilidade aos procedimentos, reconhecendo a universalidade dos direitos humanos independente da situação migratória e de regularização;

    2. Com relação ao PLS 288/2013, é necessário uma audiência pública para dialogar com o legislativo.

    Problema: Dependência do protocolo de solicitação de refúgio por parte do solicitante para ter acesso a serviços devido à morosidade do processo decisório, que não possui critérios claros de processamento. Destes desafios, destacam‐se: dificuldades de renovação do protocolo, ausência de acesso à reunião familiar, restrição de acesso aos serviços públicos e moradia adequada. Tais problemas estão relacionados, ainda, com o desconhecimento geral de que o protocolo possui valor jurídico.

    Propostas:

    1. Campanha de sensibilização, nos âmbitos federal, Estadual e municipal, dos agentes públicos, privados e empregadores, com relação aos direitos dos solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes e com relação à validade jurídica do protocolo de solicitação de refúgio;

    2. Maior agilidade do procedimento de solicitação de refúgio e respeito aos prazos, a fim de sanar as limitações trazidas pela condição de solicitante entre elas a reunião familiar;

    3. Atenção às necessidades dos solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes que estão a mais tempo no país.

    Desafios de serviço social

    Problema: O setor público não possui profissionais capacitados (principalmente no tocante à língua) nem instrumentos para atendimento, compreensão das demandas dos solicitantes de refúgio, refugiados e imigrantes ou mecanismos que promovam uma integração efetiva.

    Propostas:

    1. Atendimento efetivo a solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes em diversos idiomas (incluindo, mas não apenas, Inglês, Espanhol, Francês, Árabe e Suaíli);

    2. Capacitação (principalmente quanto a idiomas) dos agentes responsáveis pelo atendimento à população solicitante de refúgio, refugiada e migrante;

    3. Recepção dos solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes por um interlocutor do poder público com proximidade linguística e cultural;

    4. Recrutamento de solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes para atuar no Posto Humanizado da Secretaria de Assistência Social de Guarulhos (localizado no aeroporto internacional de Guarulhos);

    5. Utilização de meios tecnológicos para tradução simultânea;

    6. Ampliação de vagas em cursos de português para solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes;

    7. Facilitação da validação de diplomas para solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes. É necessário que o Ministério da Educação (MEC) disponha de uma orientação única a todas as instituições de ensino, visando melhor eficácia de procedimentos. Também é necessária uma articulação entre os conselhos federais profissionais para que haja uma normativa específica quanto a estes procedimentos;

    8. Ampliação do acesso a cursos de formação profissional, com criação de vagas especiais para solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes. É necessária a criação de uma normativa clara do MEC para que o protocolo de solicitação de refúgio seja aceito nas instituições de ensino.

    9. Estabelecimento de políticas de estímulo à contratação de solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes, pelas instâncias relacionadas ao trabalho nos âmbitos federal, estadual e municipal.

    Problema: O solicitante de refúgio, refugiado e migrante é muito pouco instruído quanto aos equipamentos existentes para seu acolhimento. A superlotação dos abrigos destinados à população solicitante de refúgio, refugiada e migrante e o escasso tempo de acolhimento, faz com que, muitas vezes, sejam direcionados para abrigos destinados à população em situação de rua.

    Propostas:

    1. Para efetivação da legislação existente, ficariam responsáveis por fazer a gestão de moradia provisória, com paridade entre brasileiros, solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes, os movimentos organizados de moradia já habilitados no Ministério das Cidades (nível federal), CDHU ‐ Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (nível estadual) e COHAB ‐ Companhia Metropolitana de Habitação (nível municipal);

    2. Aumento de vagas em abrigos que atendem a população solicitante de refúgio, refugiada e migrante.

    Problema: Desconhecimento de mecanismos de denúncia acerca de tratamento degradante ao solicitante de refúgio refugiado e migrante.

    Proposta: Criação de um Observatório Municipal de Políticas para Solicitantes de Refúgio, Refugiados e Migrantes, com ampla composição e destaque para a participação da sociedade civil. Além de denúncia, o Observatório prestaria apoio ao agente de atendimento presencial e também daria orientações a respeito de processos e procedimentos relativos ao tema, e de trajetos e oportunidades. O Observatório integraria as instituições existentes que lidam com o tema e se vincularia ao Balcão de Atendimento da Secretaria Municipal de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo e demais ouvidorias especializadas ‐ a partir da definição de pontos focais sensibilizados para lidar com a temática.

    Desafios de comunicação

    Problema: Comunicação entre os representantes dos solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes para que possam difundir informações pertinentes;

    Propostas:

    1. Criação de meios integrados para comunicar instituições públicas e privadas (bancos, cartórios, hospitais, imobiliárias, dentre outros) sobre direitos e documentação de solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes;

    2. Criação de meios integrados para comunicar instituições que atuam com o tema, a fim de que se unam em esforço comum para resolução problemas, otimização das ações e efetivação de direitos;

    3. Otimização das plataformas online existentes como canal de comunicação em rede para ações específicas relacionadas à temática, em diversos idiomas (incluindo, mas não apenas, Inglês, Espanhol, Francês, Árabe e Suaíli); Com intuito em continuar o diálogo, tendo por objetivo a implementação e efetivação das propostas apresentadas, manifestamos aqui nossas demandas.


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  • Um tiro na Av. Rio Branco

    Um tiro na Av. Rio Branco

     

    Domingo, 3 de maio de 2015. Uma final de campeonato toma conta de boa parte da atenção dos paulistanos.

    Na avenida Rio Branco, precisamente no número 47, não foi diferente. Moradores de uma ocupação da Frente de Luta por Moradia, humanos que são, também tinham seu foco na televisão.

    Um churrasco acontecia em frente ao prédio.

    Por volta das 18h, campeonato encerrado, uma confusão, um tiro. Um morador alvejado pela PM, inúmeras informações desencontradas e uma certeza: já não somos tão humanos assim.

    A reportagem dos Jornalistas Livres chegou ao local por volta das 18h30, ainda em tempo de ver um morador sangrando ser levado de ambulância ao hospital. Não são imagens que precisam ser mostradas. A violência já se impõe de modo suficiente, não é necessário ilustrar.

    Quem conta, brevemente, o que ocorreu é Danilo, um dos coordenadores da ocupação que estava presente no momento dos fatos:

    Teve uma discussão por conta da final do campeonato. Uma viatura que estava passando parou. O PM saiu já com arma em punho, mandou o Sidney deitar no chão. O Sidney disse que não precisava de nada daquilo, que era todo mundo trabalhador. O PM deu um tiro na virilha dele.

    Nada é tão simples, quando se trata de humanos. Danilo, a testemunha cujo sobrenome será preservado, fala de Sidney Ferreira Silva, 32 anos, coordenador da Frente de Luta por Moradia (FLM) e filho de Cármen Silva, uma das dirigentes do mesmo movimento.

    Danilo entrou na FLM por iniciativa da própria Cármen. À época estava preso, prestes a ser liberado e não sabia para onde ir. A FLM, como já fez com tantos outros, o acolheu.

    Danilo conhece bem a violência. Perdeu boa parte da família ainda quando morava no Rio de Janeiro, vítimas de queima de arquivo. Nada é tão simples, quando se trata de humanos.

    Sidney, atingido na virilha por uma bala policial, foi encaminhado à Santa Casa de São Paulo, local próximo da ocupação e que pouco tempo atrás estava com a emergência fechada por conta da má gestão do governador de São Paulo. O mesmo governador que cuida da PM.

    Noite adentro, Cármen conta melhor o que ocorreu. Sidney, seu filho, estava alcoolizado no momento dos acontecimentos. Ela própria fora chamada ali para acalmar uma briga entre ele e outro morador.

    E enquanto Cármen tentava saber como estava seu filho — os médicos não falaram com a mãe da vítima até aquele momento — sou abordado por outro Danilo.

    Danilo Martinelle também estava na Av. Rio Branco quando o tiro foi dado. Ele é responsável pela triagem das famílias que ingressam (ou não) à FLM e estava preocupado se eu havia jantado.

    Danilo contou, enquanto fazia questão de pagar pela minha comida, que já não conseguia dormir tranquilamente de noite. Estava chocado com o massacre do Paraná. Inconformado que os PMs de lá não se recusaram a baixar as armas.


    É tanta coisa acontecendo todos os dias. A gente aqui faz tanto, mas tem hora que parece que não fazemos nada

    De volta ao hospital, Cármen Silva ainda não conseguia informações sobre o estado de saúde de seu filho. Os médicos nada falavam a ela, sequer permitiam a entrada da mãe na “sala” onde seu filho era atendido.

    A PM, ao contrário, não encontrava dificuldade nenhuma em entrar para falar com quem quer que fosse. Mas foi a própria PM quem, voluntariamente, fez questão de dar notícias àquela mãe angustiada. Nada, nada é tão simples quando se trata de humanos.

    Sidney estava com duas facas na mão no momento do tiro, revela a cabo Ferreira, responsável por colher o depoimento de Cármen sobre os ocorridos.

    Ele estava com a faca do churrasco. Eu cheguei e dei uns tapas nele. Não sou mãe de aceitar essas coisas. Mas o policial não precisava atirar. Ele estava com os braços levantados, longe do policial quando levou o tiro.

    Sidney estava com os braços levantados, mas com duas facas na mão. A PM alega que ele foi para cima do policial, ameaçando. Difícil de acreditar, se a própria mãe, ao lado dele, estava dando tapas no rapaz de 32 anos. Mas, se Sidney não é agressivo, por que segurava as duas facas? Se ele é agressivo, por que não tocou na mãe ou nos companheiros de ocupação quando estes tentavam o acalmar ? Não é simples. Não quando se trata de humanos.

    Os moradores que viram toda a cena ainda questionaram o PM “por que não atirou para cima?”, a resposta do Soldado Mota ? “Não existe tiro para cima. Existe tiro certeiro.

    Soldado Mota provavelmente tem mulher, filhos, família. Provavelmente teve medo.

    Mas atirar, com tanta gente por perto ? E as tais armas não letais ? E a calma para lidar com a situação ?

    A delegada que atendeu ao caso, Elizabeth da Silva C. Galvão — que no hospital se recusou a falar com a reportagem, com a Cármen e com o advogado Dito — ao chegar na delegacia e ver as câmeras da Record e do SBT presentes, de súbito tornou-se educada. O ego também é uma característica humana, afinal.

    Elizabeth, agora atenciosa, encaminhou o caso à corregedoria. O boletim de ocorrência consta a mesma versão que as periferias do país estão cansadas de ler: resistência.

    Segundo o Soldado Mota, Sidney teria ido para cima dele por diversas vezes, ele foi obrigado a dar o tiro para se defender. Segundo os moradores ouvidos pela reportagem Sidney foi na direção contrária à viatura. Levantou os braços e teria dito: “você vai me matar? Me mata então”.

    É possível que o preconceito — outra característica intrínseca aos humanos — tenha feito o Soldado Mota pensar que aquilo de fato ocorreria.

    O que não é possível é acostumar-se com tanta violência. Com tão pouca humanidade. Ou melhor, é possível, já disse alguém, certa vez: o insuportável é que tudo é suportável.

    Mas não devia.

    Em tempo: Cármen Silva entrou em contato com a reportagem para avisar que seu filho passa bem e teve alta.

     

     

     

     

  • Famílias denunciam ameaças durante as ocupações no Centro de SP

     

    O #AbrilVermelho da Frente de Luta por Moradia (FLM) teve seu início na madrugada do dia 13 de abril. Foram mais de dez ocupações somente naquela madrugada (confira a cobertura dos #JornalistasLivres).

    Na madrugada de 14 de abril algumas famílias que ocuparam um imóvel no Brás nos procuraram para denunciar o comportamento truculento de um segurança.

    Amparados pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 182, § 2º, que expressa: A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor; os coordenadores da ação no Brás fizeram um Boletim de Ocorrência logo nas primeiras horas do dia 14, para informar as autoridades dos fatos.

    Segundo o próprio segurança, a polícia foi chamada. Surpreendente (ou não?!)o depoimento do funcionário que contou:

    “A polícia disse que não poderia fazer nada, que se quiséssemos teria que ser por nossa conta. Então eu falei: ‘vamos agir’ ”

    As versões do segurança e das famílias divergem em parte. Ambos concordam que o segurança arrebentou a porta do imóvel com seu próprio veículo e que os ocupantes disseram que não iam sair.

    O segurança afirma que, a partir de sua entrada, não houve qualquer tumulto ou agressão. Os ocupantes afirmam que ele teria entrado armado e ameaçado as pessoas que lá estavam.

    A FLM confirma que no momento da chegada do segurança havia poucas pessoas no local. Boa parte das famílias que permaneceriam ali estavam trabalhando, as crianças em creches. No local estava apenas o “Grupo de Apoio”, formado por integrantes do FLM, que vão aos locais ocupados durante o dia para realizar uma limpeza e higienização do local, para que as famílias que trabalham possam encontrar o imóvel em melhores condições.

    No momento da entrevista um outro segurança de terno e gravata estava protegendo o imóvel. Ele não estava presente no dia 14.