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  • JOÃO VICTOR NÃO FOI O ÚNICO MENINO MORTO NO HABIB’S

    JOÃO VICTOR NÃO FOI O ÚNICO MENINO MORTO NO HABIB’S

    Por Kelly Santos, especial para os Jornalistas Livres

    João Victor não foi o único menino morto em frente ao Habib’s da Vila Nova Cachoeirinha. Há exatamente 15 anos, no dia 17 de março de 2002, Cláudio Carvalho Tenório, 14, foi alvejado pelas costas e morreu em frente à loja. Cláudio e seus amigos Weliton Inácio da Silva, Rogério Soares Fonseca e Leandro Júlio da Silva passeavam na avenida Inajar de Souza, quando decidiram comprar umas esfirras no estabelecimento. Weliton e Leandro ficaram aguardando do lado de fora e presenciaram quando alguns garotos passaram, provocando os cachorros dos seguranças. Em seguida, Cláudio saiu da loja e foi confundido com um desses garotos. Por causa disso, o segurança Anderson Cristian Pereira de Andrade atirou contra o menino, que morreu horas depois.

     

     

    A Itaberaba Point Super Lanches LTDA, nome da unidade franqueada do Habib’s, no caso de Cláudio, também procurou desqualificar e criminalizar as vítimas. No decorrer do processo, alegaram que os garotos costumavam assistir competições de “rachas” de automóveis que ocorriam nas proximidades da loja, e que os amigos dos jovens envolvidos promoveram um quebra-quebra na lanchonete após os fatos. Também negaram que Anderson fosse funcionário do Habib’s e informaram que ele estava apenas substituindo um segurança e não tinha vínculo empregatício com a empresa.
    Anderson ficou foragido por um ano e foi preso no Rio de Janeiro. Ele confessou o crime e foi condenado à prisão além de confirmar que estava a serviço do Habib’s na ocasião.

     

    ATO EM LEMBRANÇA DE JOÃO VICTOR 

    Foto: Luciney Martins, especial para os Jornalistas Livres

     

    Nesta quinta-feira, 16/03, aproximadamente 100 pessoas participaram do ato em homenagem ao menino João Victor de Souza Carvalho morto no dia 26 de fevereiro em frente ao Habib’s da Vila Nova Cachoerinha, zona norte de São Paulo. Entre familiares e amigos, estavam também representantes de movimentos que atuam na periferia, moradores de rua, e a população indignada.
    O menino foi brutalmente assassinado por funcionários do Habib’s, segundo a única testemunha a se apresentar, a catadora de materiais recicláveis, Silvia Helena Troti, 59. Em depoimento à polícia, ela disse que “um homem forte, gordo, moreno, com uniforme do Habib’s” deu um soco na cabeça do garoto, fato que o levou ao desmaio (e provavelmente à morte). Essa versão ganha força com as imagens de vídeo que mostram João Victor sendo perseguido pelo supervisor Guilherme Francisco do Santos e o gerente Alexandro José da Silva, ambos funcionários da loja, que reaparecem no vídeo arrastando o garoto pelos braços, com a bermuda abaixada e sem nenhuma reação, aparentemente desmaiado.

    Em mais uma tentativa de fugir da responsabilidade pela morte do menino, o Habib’s divulgou comunicado nessa quarta-feira, 15, em que associa a morte de João Victor ao uso de drogas e à sua vulnerabilidade social. Eles divulgaram boletins de ocorrências policiais envolvendo o adolescente o que motivou o Ministério Público a abrir investigação para apurar a conduta da da rede de restaurantes, uma vez que a empresa infringiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quando expôs o garoto sem autorização da família e da Justiça.
    “Chegamos ao ponto de uma criança de 13 anos ser assassinada porque tinha fome, João Victor está longe de ser o único. É crime ser pobre, é crime pedir dinheiro para comer. O Habib’s, uma rede de lanchonete que já tem muito dinheiro, orienta os seguranças a ter essa política de bater em quem pede na frente das lojas.”, afirmou Rafaela Carvalho, do Movimento de Mulheres Olga Benário, entidade que organizou o ato.
    O Advogado Ariel Castro, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe-SP), também esteve presente e falou sobre outro ponto polêmico do caso: o laudo assinado pelo médico Danilo Vendrame Vivas que inocenta o Habib’s e descarta as agressões sofridas por João Victor, sentenciando que sua morte ocorreu pelo uso de drogas.
    “Na história recente do nosso país tivemos o caso do médico legista Harry Shibata, acusado de assinar laudos necroscópicos falsos de presos políticos assassinados pela ditadura. Não que estejamos afirmando que isso também ocorreu nesse caso. Mas para termos a garantia da verdade, é necessária a exumação do corpo de João Victor que já foi solicitada pela família”, afirma Ariel Castro.
    Foto: Luciney Martins, especial para os Jornalistas Livres

     

    O nome de Shibata aparece diversas vezes no “Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964”. Entre laudos assinados por ele estão o do suicídio forjado de Vladimir Herzog. e o tiroteio que matou de Carlos Marighella, que na verdade foi executado com vários tiros.
    Quanto ao médico legista Danilo Vendrame Vivas, o que se sabe dele é que, além de admirador do Bolsonaro, é a favor da redução da maioridade penal, fez postagens em sua página do Facebook agredindo beneficiários do Bolsa Família e tinha costume de fazer vários comentários homofóbicos. Ele desativou sua conta na rede social após a divulgação das postagens pela Revista Fórum.
    Na mesma linha do ultraje, Adriano Kirche Moneta, assessor de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que trabalha para a CDN Comunicação, chegou a zombar da morte de João Victor e do boicote feito ao Habib’s. Veja aqui uma de suas postagens logo que o laudo de Vendrame Vivas foi publicado “inocentando” o Habib’s e seu segurança.No final do ato, os manifestantes seguiram em caminhada pacífica até o Habib’s da Rua José Bonifácio. Eles exigiram o fechamento da loja e a polícia militar foi chamada mas isso apenas deu mais coragem: “Aqui não tem ladrão, prende logo o assassino do João”; “Esfirra de Sangue”. O protesto só terminou quando os funcionários baixaram a porta do estabelecimento.
    “A gente vive um golpe e aumenta a violência e a repressão aos movimentos sociais. Cada vez mais a juventude pobre e negra está sendo marginalizada e criminalizada por uma polícia racista que logo de cara fez um Boletim de Ocorrência com a versão do Habib’s, uma versão mentirosa, que quis culpar uma criança de apenas 13 anos pela sua própria morte”, afirma Wanderson Carvalho Pinheiro, da Comissão dos Familiares e Amigos do João Victor.

     

    Veja mais textos sobre o caso João Victor AQUI e AQUI .

  • Empatia: as guerreiras da história refletidas no olhar da juventude

    Empatia: as guerreiras da história refletidas no olhar da juventude

    Luz, contraste, maquiagem, talco e uma boa dose de paixão: estes são os ingredientes do ensaio que, em duas edições, contou com a participação de mais de 100 mulheres, representando lutadoras históricas brasileiras e internacionais, e irá ser editado para montar um livro sobre o projeto. Em breve, a campanha de financiamento estará disponível no Catarse.

    Foto: Alessandra Malachias/ Jornalistas Livres

    Cada personagem foi representada por uma militante, e dentre integrantes do Levante Popular da Juventude e parceiras da causa, cada rosto foi se tornando parte do mosaico de causas ocultadas na história.

    “Inicialmente nós pensamos em fazer um projeto fotográfico resgatando a história de mulheres que a população não conhece, nem nós feministas mesmo, porque na história houve uma hegemonia dos homens, e essas mulheres foram apagadas e a gente queria muito resgatar a historia de vida delas.”, explica Fernanda Maria Caldeira, do Levante Popular da Juventude.

    Nayra Ramira, responsável pela maquiagem a partir do segundo ensaio, diz que o conceito básico de seu trabalho é igual para esse e para outros trabalhos, porém o significado de representar mulheres historicamente negadas que foram tão grandiosas é o que traz um diferencial ao “Mulheres Cabulosas da História”. “É um projeto bacana que mostra o empoderamento das mulheres, e mostra que as mulheres, ao contrário do que a sociedade diz, são capazes de fazer muito mais e não precisam ficar na sombra dos homens”. Sobre o poder do seu trabalho, ela fala com alegria: “isso é uma paixão pra mim, a maquiagem é capaz de mudar a vida das pessoas, e esse trabalho mostra que nós temos o poder”.

    Na luta, elas se confundem. Lado a lado, a história das mulheres cabulosas vai ganhando força através do rosto e da luta das guerreiras belorizontinas do século XXI. E, para além da inspiração, representar grandes nomes femininos é uma grande responsabilidade. Fernanda Maria explica que “a ideia era se inspirar na mulher e na história de vida dela, e buscar características físicas em comum para representá-las.”

    Foto: Alessandra Malachias/ Jornalistas Livres

    Para Chantal Araújo, o ensaio tem um peso diferente para cada mulher. A cabeleireira conta que dar visibilidade para mulheres que foram apagadas faz com que muitas meninas se sintam mais bonitas e confiantes. “O efeito na autoestima das meninas, principalmente as negras que representam grandes mulheres na história, é incrível. É muito diferente de fazer qualquer outro tipo de cabelo, porque muitas vezes você não vai fazer um cabelo esteticamente bonito, mas sim moldá-lo para ficar parecido. São cabelos do cotidiano de épocas, sem tantos recursos”. Para ela, esses efeitos tem o potencial de transformar o conceito de beleza, que na visão dela é “a confiança que a menina tem”.

    Ana Paula Cândido,  militante do Levante Popular da Juventude, é um dos exemplos de empoderamento negro através do projeto. Ela conta que “interpretar Nina Simone no Mulheres Cabulosas da História foi a experiência mais emocionante, libertadora e ao mesmo tempo encorajadora, foi uma experiência que eu nunca tinha vivido antes e isso me engrandeceu de uma forma que fica difícil até de explicar.”

    Dando o tom do que o ensaio representa na vida das meninas que participaram, ela conta, emocionada: “Saber a importância da mulher, conhecer o potencial e descobrir que podemos ser muito mais do que imaginamos é emocionante e traz uma paz interior, uma calmaria. A aceitação é um processo doloroso e depois deste ensaio eu venci, eu me aceitei, eu me descobri e eu posso dizer com toda certeza que eu sou outra mulher, outra mulher cabulosa!”

    Foto: Alessandra Malachias/ Jornalistas Livres
  • Um valentão no STF

    Um valentão no STF

    Eike Batista, outrora um dos homens mais ricos do Brasil e do mundo, foi preso na segunda-feira (30) por conta da Operação Lava Jato, acusado de pagar propina para o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Neste momento, ainda está preso no complexo penitenciário de Gericinó, Bangu, RJ. A prisão causou alvoroço no país, em alguns noticiários mundo afora, nas principais redes de notícias e nas redes sociais. Mesmo com as impressionantes e hollywoodianas prisões da Operação, quem imaginaria ver Eike de cabeça raspada, vestido de presidiário junto de outros presos tão comuns? Justiça, afinal?

    Empresário Eike Batista deixa a sede da PF, na região portuária da cidade, após depoimento na Delegacia de Combate ao Crime Organizado e Desvio de Recursos. foto Fernando Frazão/Agência Brasil/fotospublicas.com

     

    O que se espera agora é que o ex-empresário e novo preso faça uma delação premiada, delate alguns de seus antigos aliados, muitos dos quais importantes figurões do cenário politico, para que assim sua desagradável estadia dentro dos muros de Bangu seja rápida ou para que passe logo para o regime semiaberto. Dependendo de quantos e de quem ele delatar, talvez ele possa até ter a pena mudada para prisão domiciliar…

    Nas palavras do próprio Eike, a Lava Jato está passando o país a limpo. Quem sabe o que Eike quis dizer? Só ele mesmo, em companhia de Deus. Para os meros mortais é bom lembrar que, com base nos dados que existem, a Lava-Jato é apenas uma ação política, que limpa o que interessa e arquiva o que não convém. Mas, deixemos as considerações jurídicas para os juristas. O que mais espanta na prisão de Eike não é a seletividade das instituições brasileiras, mas a confirmação de que não se odeia o crime, mas a cor e a condição social de quem o comete.

    O Brasil é o país do linchamento, do “bandido bom, é bandido morto” – mas só para negros e pobres. Virou clichê fazer essa análise, mais repetido que isso só mesmo o número de jovens, negros e pobres que são mortos, presos e injustiçados todos os dias e que não recebem apoio ou chance de se defender como Eike recebeu.

    Nada menos do que 42% dos presos (232.244 almas) estão atrás das grades sem condenação (sem julgamento), como aponta o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional). Muitos desses compartilham uma característica em com Eike: não têm ensino superior completo. Todos pudemos acompanhar a preocupação dos advogados de Eike com a qualidade do presídio para qual seria levado.

     

    fonte: (http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/relatorio-depen-versao-web.pdf)

     

    O novo preso está junto com o 1% que tem ensino superior incompleto, sendo assim não tem direito a ficar no regime especial, concedido para quem tem diploma universitário, membros das forças armadas, ministros, governadores e juízes.

    Agora vem a grande pergunta, qual a diferença entre o criminoso Eike de seus pares de cela? As características que o diferenciam da maioria dos presos brasileiros são duas em especiais: não é negro e não é pobre.

    A lei de Drogas, que passou a vigorar em 2006, em vez de ajudar, produziu um efeito reverso e aumentou a superlotação nos presídios, uma vez que deixa para o juiz a responsabilidade de decidir entre as penas alternativas (para aqueles considerados usuários) ou a prisão (para aqueles considerados traficantes), sem critérios claros (quantidade, redes de contato, organização). Isso acaba por tornar mais fácil para o sistema judicial criminalizar os estereótipos de criminoso: o pobre e negro.

    Mas a criminalização da pobreza não se restringe aos crimes ligados às drogas. Enquanto os casos relacionados a tráfico encarceram 25% dos Homens e 63% das mulheres, o segundo maior motivo de prisão para os homens é roubo (21%) e para mulheres furtos(8%) –crimes em grande parte decorrentes da pobreza. E a natureza racista do judiciário brasileiro fica em evidência quando se percebe que 67% dos presos são negros e 31%, brancos. Peguemos o caso de Thor Batista, filho de Eike, e Rafael Braga de exemplo.

     

    O primeiro foi acusado de matar um ciclista (Wanderson Pereira dos Santos) em 2012, em um caso de grande repercussão, cheio de idas e vindas, anulações de provas (houve um laudo rejeitado pelo TJ-RJ que atestava a velocidade acima da permitida) e afastamento, pelo TJ-RJ, do perito que produziu o laudo técnico que apontava como causa do acidente a velocidade alta em que estava Thor. Uma juíza da primeira instância pediu uma investigação sobre Eike e Thor, por suposto pagamento para o bombeiro que socorreu a vítima, mas a investigação não ocorreu. O fim do caso foi em 2015 com a absolvição de Thor.

    Já o segundo, Rafael Braga negro e morador de rua, foi acusado de portar material explosivo durante as manifestações de 2013, também no Rio de Janeiro. O laudo técnico apresentado para o juiz atestava que o material analisado tinha pouco potencial explosivo. Rafael explicou por que: tratava-se de duas garrafas de desinfetante (!!!). Mas, essa constatação não foi o suficiente para o juiz. O menino negro tinha, na ficha, um registro antecedente por roubo e acabou preso. O caso ganhando relevância nacional por conta da relação com as manifestações, e foi usado para expor a perseguição seletiva da polícia.

    Outros casos interessantes para comparação são os do ex-médico Roger Abdelmassih e de Amarildo. Enquanto um tem seu caso analisado pela suprema corte do país, o outro nem tem a chance de ser criminalmente apontado –é apenas assassinado por forças estatais.

    O médico branco e rico, famoso por ser especialista em inseminação artificial, foi condenado formalmente em 2010 por estupro contra 37 mulheres. A sua pena foi estipulada em 278 anos. Existe também outra investigação pelo estupro de mais 26 mulheres. As acusações são de pacientes, que relatam os abusos durante tratamentos –muitos, inclusive, ocorreram enquanto estavam sedadas.

    Mas, mesmo com a condenação, Gilmar Mendes, presidente do STF na época, lhe concedeu um habeas corpus por não considerá-lo perigoso. Foi o que bastou para ele fugir do país, sendo preso novamente somente em 2014.

    Já Amarildo, negro e pobre, não chegou a lidar com o sistema judicial. Foi apreendido por policiais enquanto estava em um bar em julho de 2013 e levado para a sede da UPP da região, na favela da Rocinha. Depois de torturado na sede da UPP, sumiu e até hoje seu corpo não foi encontrado. Amarildo tinha 47 anos, uma mulher e seis filhos e trabalhava como pedreiro.

    Assim é a Justiça no Brasil. Mas o país, com a quarta maior população carcerária do mundo (atrás apenas de EUA, Rússia e China), para muitos ainda é o país da impunidade. Diz-se que se pune pouco o bandido. Sendo assim, o presidente golpista, com uma dose de cinismo e uma boa pitada de populismo, aproveita a misteriosa morte de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) para indicar Alexandre de Moraes, antigo homem de ferro do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB). Moraes, o filiado ao PSDB que é inimigo declarado dos direitos humanos.

    Ou não?

    Como secretário de Segurança Pública de São Paulo, ele reprimiu com violência internacionalmente repudiada diversas manifestações políticas que estavam em desacordo com a agenda do governador, inclusive de estudantes secundaristas que se organizavam contra propostas do governo. Coincidentemente, durante sua chefia da polícia paulista, diversas chacinas ocorreram, muitas ligadas a grupos de extermínio da PM, como as chacinas de Itapevi, Carapicuíba e Osasco, na qual seis pessoas morreram e uma ficou ferida. Seguiu-se mais uma chacina na qual dezessete foram mortas e seis feridas, novamente em Osasco e Barueri. Vale lembrar que a PM-SP durante a gestão de Moraes manteve nas nuvens o índice de letalidade policial.

    Já como ministro da Justiça, Moraes tornou prioritária a guerra às drogas, e o controle fronteiriço, atuando em direção oposta à preconizada pelo mundo, que se dá conta da falência da criminalização das drogas, política de segurança pública que só serve para encarcerar parcelas vulneráveis da população. Como ficou claro em seu fantasioso e propagandístico  Plano Nacional de Segurança Pública lançado como resposta aos Massacres nos presididos.

    Foi durante a gestão de Alexandre de Moraes que explodiu o caos no sistema prisional, neste começo de 2017. Sua primeira providência foi negar o envolvimento de facções. Foi desmentido pelos fatos. O programa de segurança pública de Alexandre de Moraes não se preocupa com a discriminação por parte da Justiça. Não se preocupa com o encarceramento em massa. Quer até reforçá-lo. Ele é o homem certo para a linha preconceituosa e punitivista do governo.

    A Justiça deveria tratar todos como iguais, mas é impossível imaginar isso em um país no qual desejar a morte de Eike, rico e branco, causa (e deve mesmo) calafrios, mas as cenas de guerra nos presídios são acompanhadas de exortações do tipo “que venham mais”, faladas por pais na frente de crianças. Eike não é bom morto. Ele pode ser um bandido, mas para que matá-lo, além da torpe e desumana vingança? Então, ainda fica a dúvida. Qual a diferença entre um empresário que subornou um governador e um garoto qualquer, que, para muita gente, se não foi morto pela polícia, deveria ter sido?

     

  • VEJA A DEFESA DOS JORNALISTAS LIVRES CONTRA A TENTATIVA DE CENSURA DE CELSO RUSSOMANO!

    VEJA A DEFESA DOS JORNALISTAS LIVRES CONTRA A TENTATIVA DE CENSURA DE CELSO RUSSOMANO!

    Os competentíssimos advogados Tarsila Viana de Morais e Hugo Thomas de Araujo Albuquerque apresentaram a defesa dos Jornalistas Livres no caso da tentativa de censura movida pelo candidato Celso Russomano (PRB). Publicamos a peça jurídica aqui porque entendemos que essa defesa é um manifesto dos valores que nos movem desde nossa fundação, em março de 2015.

    Queremos produzir jornalismo de qualidade, com rigoroso apreço aos fatos, capaz de escutar todos os lados de uma história. Queremos dar voz a quem sempre foi oprimido e humilhado pela mídia corporativa.  Queremos contribuir com um projeto de país mais justo, democrático e inclusivo.

    Celso Russomano, com a tentativa de censurar nossa reportagem, mostrou o desapreço que tinha e tem pela voz da trabalhadora de um supermercado. Humilhada e ofendida pela arrogância de Russomano, essa trabalhadora mereceu dos Jornalistas Livres o respeito de uma entrevista honesta, em que ela pôde mostrar sua indignação pelo tratamento recebido.

    Quem quer censurar uma matéria absolutamente correta —apenas porque não consegue conviver com o contraditório mostrado no espelho— é um inimigo do diálogo e da convivência entre os diferentes. É esse Russomano quem quer ser o prefeito de São Paulo.

    Pense nisso.

     

     

    SEGUE A ÍNTEGRA DA DEFESA

     

    EXCELENTÍSSIMO SENHOR DR. JUIZ ELEITORAL DA 1ª ZONA ELEITORAL DE SÃO PAULO-SP

     

     

     

     

     

    Comarca de São Paulo– 1ª Zona Eleitoral

    Proc. Nº 1685-51.2016.6.26.0001

     

     

             Gustavo Panzone Aranda (…) e Vinícius Caetano Segalla (…), por seus procuradores signatários cuja procuração já está anexada os autos da representação ajuizada por Celso Ubirajara Russomanno, vêm na forma do art. 96, §5º da Lei das Eleições e com fundamento nos arts. 5º e 220 da Constituição Federal c.c. art. 79 e seguintes do Código de Processo Civil, apresentar DEFESA tendo em vista os fatos, fundamentos jurídicos, provas e pedidos que seguem:

     

     

    1. RESUMO DA REPRESENTAÇÃO

     

             A Representação movida por Celso Ubirajara Russomanno contra os REPRESENTADOS se deve a reportagem assinada por estes, ambos jornalistas no exercício de sua profissão, no sítio eletrônico “jornalistas livres”, a qual é datada de 20 de setembro de 2016 a respeito de episódio ocorrido no então programa de televisão pelo autor há alguns anos.

     

    Tal reportagem subsidia-se de (i) gravação televisiva que incontestavelmente existiu e que foi produzida pelo próprio programa de televisão do Autor; (ii) depoimento da caixa de supermercados Cleide Cruz, protagonista do episódio, que expressou de maneira direta e objetiva, em seu livre juízo de valor, sua inconformidade com o ocorrido.

     

    No mais honesto exercício do bom jornalismo, os ora representados limitam-se a narrar tais fatos, ambos verídicos, além de citar expressamente trechos da nota na qual Celso Russomanno manifesta sua interpretação dos fatos objeto da referida reportagem.

     

             Alega o autor que tal reportagem “visa criar estados mentais e emocionais nos leitores” bem como autoria de propaganda eleitoral negativa, além de citar anonimato inexistente in casu por razões por si evidentes, além de requerer liminarmente a suspensão do conteúdo informativo do sítio além de pedido de condenação dos representados em multa.

     

             Ocorre que de pronto o MM Juízo já indeferiu integralmente o referido pedido liminar, conforme se pode depreender:

     

    “Decido.

     

    Em verificação preliminar e provisória, de cognição restrita, própria desta fase processual, a análise da petição inicial, de seus documentos, da página na internet https://jornalistaslivres.org/2016/09/caixa-de-supermecado-diz-ele-celso-russomanno-me-humilhou/, da postagem no Facebook em https://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos?ref=page_internal e das mídias de áudio e vídeo juntadas aos autos, não permite o deferimento da medida liminar pleiteada.

     

    Com efeito, a abordagem feita por Celso Russomano à operadora de caixa Cleide Cruz anos atrás efetivamente ocorreu e foi gravada em áudio e vídeo, pela própria equipe de televisão do candidato, transformando-se em um fato noticioso que agora vem sendo divulgado por diversos veículos de comunicação, especialmente na internet, circunstância essa que, por si só, recomenda cautela e respeito ao contraditório para que se compreenda a real natureza dessa divulgação, ou seja, se caracteriza propaganda eleitoral ou mera notícia de fato, o que é importante diante da diversidade de tratamento e consequências legais.

     

    Reforça o raciocínio acima o fato de que o texto referido na inicial reflete declaração gravada em vídeo pela própria Cleide Cruz (juntada aos autos), em que narra as consequências que sofreu por causa do evento, dá sua versão dos fatos, menciona acontecimentos que não fazem parte do vídeo gravado pela equipe de Celso Russomano e diz que se sentiu humilhada pelo ora candidato.

     

    De outro lado, também não se pode falar em verossimilhança da alegação quanto à classificação da organização Jornalistas Livres como pessoa jurídica, o que, igualmente, influencia diretamente no tratamento legal da demanda.

     

    Além disso, diante da assinatura do texto divulgado, pelos representados Gustavo Aranda e Vinícius Segalla, maio reflexão merece a alegação de que há propaganda eleitoral anônima na internet.

     

    Por tais motivos, INDEFIRO A LIMINAR, não se justificando o sacrifício do contraditório”.

     

             Passemos, pois, ao exame do mérito.

     

    1. DO MÉRITO

     

     

             Ocorre que é absolutamente improcedente a alegação de que a referida reportagem visa criar “estados mentais e emocionais nos leitores” ou colocar o representante como “candidato arrogante e que humilha as pessoas pobres”, posto que a própria reportagem apresenta o ponto de vista do candidato em aspas a respeito de sua versão dos fatos, mostrando-se perfeitamente imparcial.

             Os leitores do referido sítio eletrônico, uma vez que tiveram acesso ao ponto de vista de todos os envolvidos no referido episódio, podem livremente formar sua opinião a respeito dos fatos, conforme estabelece expressamente a Constituição da República ao garantir as liberdades de imprensa e de expressão:

    Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

    (…)

    IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

    (…)

     

    VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

     

    IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

     

    X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

    (…)

    XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

     

    XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

    (…)

    Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

     

    • 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

     

    • 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

     

             A respeito da profundida da liberdade de imprensa no direito brasileiro, convém relembrar o magistral voto do Ministro Carlos Ayres Britto no julgamento da ADPF 130, que aboliu a famigerada Lei de Imprensa[1], passagem memorável da jurisdição constitucional pátria na qual se qualificou a imprensa como

     

    (…)ferramenta institucional que transita da informação em geral e análise da matéria informada para a investigação, a denúncia e a cobrança de medidas corretivas sobre toda conduta que lhe parecer (a ela, imprensa) fora do esquadro jurídico e dos padrões minimamente aceitáveis como próprios da experiência humana em determinada quadra histórica.

     

             E, ainda, que imprensa “ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica”.

     

    Por sinal, conforme atesta a própria decisão interlocutória a respeito da liminar, de fato “a abordagem feita por Celso Russomano à operadora de caixa Cleide Cruz anos atrás efetivamente ocorreu e foi gravada em áudio e vídeo, pela própria equipe de televisão do candidato” – de tal sorte, a reportagem apenas narra os fatos e dá o ponto de vista de todos os envolvidos, inclusive do próprio Representante.

             Importante salientar que à época dos fatos o Representante sequer era candidato e veiculou de livre e espontânea vontade tal abordagem, não podendo alegar a própria torpeza, o que contraria premissa básica do Direito – nem pode alegar que não foi ouvido, tanto que sequer pediu direito de resposta.

     

             Ainda, a acusação se baseia em ilações a respeito da ideologia do sítio no qual constam a referida reportagem, o que é (i) indevido à luz da Lei Maior, posto que proibições baseadas na opinião e na ideologia alheia não têm assento no ordenamento jurídico brasileiro; (ii) não tem pertinência, pois o que se discute aqui é a referida reportagem, a qual esta sim, deve ser tratada, pois é ela o real objeto da presente ação e não a generalidade do sítio eletrônico.

             Igualmente, é preciso salientar que a presente reportagem, além de ser equilibrada e imparcial, está devidamente assinada.

    Também é absurda, bem como ofende a dignidade da justiça, a afirmação constante à página 6 da petição inicial de que a referida reportagem visa “beneficiar diretamente o candidato do PT, Fernando Haddad” – afirmação a qual foi feita de forma absolutamente irresponsável e sem provas, uma vez que na referida reportagem, tal adversário do Representante sequer é citado.

    De tal sorte, o Representante transpõe para a arena da Justiça Eleitoral, que com tamanha dignidade e empenho serve a Democracia em momentos cruciais e delicados, sua rivalidade política com outro candidato, associando tal divergência a terceiros que nada têm a ver com isso, além de, ainda por cima, estarem no exercício de sua profissão.

    Nesse diapasão é inequívoco o Novo Código de Processo Civil quanto a tal conduta sua natureza de litigância de má-fé:

     

    Art. 79. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente.

     

    Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:

     

    I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

     

    II – alterar a verdade dos fatos [grifo nosso];

     

    III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

     

    IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

     

    V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

     

    VI – provocar incidente manifestamente infundado;

     

    VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

     

     

    1. DOS PEDIDOS

     

    1. Por todo exposto a defesa do réu requer que Vossa Excelência julgue a representação de Celso Russomanno improcedente em sua totalidade, condenando-o a arcar com os honorários advocatícios e sucumbenciais;

     

    1. Condene-se o Representante por litigância de má-fé, em razão de ofender a dignidade da Justiça ao alterar a verdade dos fatos, invertendo as multas indevidamente pleiteadas pelo Representante em favor dos Representados.

     

     

    Termos em que pede deferimento.

     

     

    São Paulo, 28 de Setembro de 2016

     

    Tarsila Viana de Morais                    Hugo Thomas de Araujo Albuquerque

    OAB/SP 369.236                            OAB/SP 335.233

     

    [1] O qual pode ser lido na íntegra em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adpf130.pdf no sítio do próprio Supremo Tribunal Federal.

  • Carol não verá seu irmão nascer

    Carol não verá seu irmão nascer

    Por Roberto Corcioli, especial para Jornalistas Livresadolas_sato
    Foto: Fernando Sato/Jornalistas Livres

    Naquele abril de 2014, Carol (nome fictício, claro) foi abordada por guardas municipais. Estava com seu namorado, mais velho, e foram ambos levados à delegacia sob a acusação de que praticavam tráfico de drogas: portavam uma dúzia de porção disso, meia-dúzia de porção daquilo. Carol tinha 12 anos de idade.

    Carol ficou 45 dias internada na Fundação Casa, tendo atingido o prazo máximo de permanência enquanto se aguarda a sentença. Esta veio semanas depois, e concluiu que a conduta da adolescente tinha sido absolutamente hedionda. Por isso, sua internação seria imprescindível e por prazo indeterminado.

    O advogado nomeado para a defesa de Carol recorreu. Passei a atuar no juízo em que tramitou o processo e, então, recebi o recurso de Carol determinando que ela aguardasse em liberdade até que houvesse uma condenação definitiva.

    É o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente. É o que está escrito na Constituição, que resguarda a presunção de inocência.

    Quem recorreu, dessa vez, foi o Ministério Público. E o tribunal deu razão. Carol deveria ser internada imediatamente.

    Recebi a ordem e determinei, então, seu cumprimento, anotando que Carol deveria ser trazida à minha presença assim que encontrada pela polícia – é o que manda o Pacto de São José da Costa Rica.

    Hoje trouxeram Carol ao fórum.

    Entrou na sala com ar despreocupado. Estava acompanhada de sua mãe – mulher já não muito jovem, rosto que não deixava dúvidas a respeito da vida sofrida que levava e barriga que evidenciava certamente mais de oito meses de gravidez.

    Vim a saber depois o motivo da tranquilidade de Carol ao vir ao meu encontro. O policial que a acompanhava não escondera suas impressões acumuladas (e hiperbolizadas) após estar presente em tantas audiências comigo: “fique sossegada, esse juiz solta todo mundo”.

    Audiência iniciada, expliquei para mãe e filha que ela fora procurada pela polícia porque havia uma determinação do tribunal para que Carol cumprisse imediatamente a condenação que sofrera há mais de ano, a respeito daqueles fatos ocorridos há dois.

    Naquele instante, a mãe de Carol já percebeu a gravidade da situação: “não acredito, doutor. Internada? Mas ela não fez mais nada! Eu tô grávida, doutor. Preciso da ajuda dela. Ela já ficou 45 dias na Fundação… Mais quanto tempo ela ficará lá?”

    “Não é possível saber, senhora, mas agora é para cumprir uma medida, e ela pode durar por volta de seis meses – algumas vezes menos, mas às vezes mais…”

    “Seis meses!”

    A mãe de Carol chorava copiosamente. E Carol? Ela, no alto de seus 14 anos, estava atônita.

    O desespero de ambas não parava de aumentar e eu, que costumo enfrenta situações como tais, em meu ofício, com aquela convicção firme de que o trabalho precisa ser feito, passei, neste caso, a não apenas temer que algo mais grave acontecesse com aquela mulher, grávida a ponto quase de ter seu bebê, mas também a sentir um nó na garganta.

    O que pude fazer foi explicar que passaríamos o endereço de onde mãe de Carol poderia obter o auxílio de um advogado custeado pelo Estado e que procuraria ajudar na situação.

    Foi então que ouvi uma última pergunta. Na verdade, quase que uma afirmação:

    “Mas, doutor, depende do senhor, não é?”

    A vontade que sentia era dizer o quanto considero estúpida e cruel a chamada guerra às drogas (que é guerra contra uma parcela bem específica da população, como se sabe), minha discordância com aquela condenação, com a ordem de cumprimento imediato da internação… Mas apenas expliquei que a ordem era do tribunal, e que, portanto, eu não poderia nada decidir a respeito.

    É provável que eu não tenha sido convincente – afinal, quem, diante de tal cena, teria a coragem de dizer, olhos nos olhos, que “sim, depende”?

    Carol, sentada, envolvia a barriga da mãe – que permanecia chorando em pé – num abraço desesperado. Era um abraço a três. Mas Carol não verá seu irmão nascer.

    Itapevi, 14 de abril de 2016.

    Roberto Luiz Corcioli Filho, juiz de direito.
    Para Alexandra Szafir.

  • Cadeia feminina — relatos de sobrevivências

    Cadeia feminina — relatos de sobrevivências

    Na semana em que o Ministério da Justiça divulga o censo que prova a explosão demográfica nas penitenciárias de mulheres, publicamos entrevista com a antropóloga Debora Diniz, que passou anos entrevistando e ouvindo os relatos das encarceradas

    O Brasil registra crescimento inquietante no encarceramento de mulheres, nos últimos 15 anos. Entre 2000 e 2014, a população feminina privada de liberdade saltou de 5.601 indivíduos para 37.380. Para dizer o mínimo, trata-se de uma verdadeira explosão demográfica, incrementando a população dos presídios de mulheres em 567%. Como comparação, no mesmo período, a população masculina encarcerada subiu 220%.

    E quem são essas mulheres tão perigosas que precisam ser retiradas do convívio social?

    Responde o relatório do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça, divulgado nesta semana:

    “Em geral, as mulheres em submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento. Em torno de 68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico.”

    Em uma só expressão: são pés-de-chinelo.

    Também são negras (duas a cada três mulheres presas, ou 67%, são negras). Um terço do total estava presa sem condenação (no estado de Sergipe, o índice das presas sem condenação atinge a vergonhosa taxa de 99%!!!).

    Para ir além da frieza dos números e começar a compreender o que é a devastadora experiência da prisão feminina, a antropóloga e militante feminista Debora Diniz passou anos na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, chamada de Colméia. Fez entrevistas e aplicou questionários (prancheta nas mãos e olhar inquisidor). Foi quando percebeu que usava uma abordagem intrinsecamente masculina, identificada com o método policial. Largou tudo isso e se pôs a apenas escutar os relatos de mulheres que frequentavam o Núcleo de Saúde da cadeia.

    No livro “Cadeia, relatos sobre Mulheres” (224 páginas, Civilização Brasileira, R$ 26), lançado recentemente, Debora coleciona 50 textos que explicam a experiência carcerária real, vivida no maior presídio feminino da Capital da República, habitado por quase 700 seres humanos. É sobre suas humanidades (tantas vezes negadas) que a autora fala neste livro doloroso e perturbador. Leia a seguir a entrevista concedida por Debora aos Jornalistas Livres.

    Jornalistas Livres — Você está lançando esse livro, “Cadeia”, com relatos das mulheres privadas de liberdade. E esta entrevista está sendo realizada dentro da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, território masculino por excelência, marcado por quadros, esculturas, afrescos, retratos de homens. Como as mulheres da sua pesquisa se relacionam com esse mundo do Direito, marcadamente masculino e patriarcal?

    Debora Diniz — As cadeias foram pensadas como instituições feitas por homens para homens. É muito recente nós agendarmos a questão das mulheres dentro de uma faculdade como esta. Isso não quer dizer que as mulheres em presídios não tenham história no Brasil. Mas até isso é uma história miúda, é uma história esquecida. Então as mulheres que vivem nesses espaços, elas enfrentam camadas de silenciamento e de resistência que lhes são muito particulares. “Cadeia” é um livro que tenta contar o mundo miúdo e cotidiano da sobrevivência no presídio na capital da República. As formas tradicionais com que nós nos aproximamos, e quando eu digo “nós”, refiro-me às pesquisadoras desses espaços, são formas também masculinas de contar histórias. Chegamos lá com uma prancheta, um questionário. Aqui está a pergunta que vou fazer a você. Qual é a sua cor? Quantos anos você tem? Que crime você cometeu? Para essas mulheres, nós estamos reproduzindo as maneiras policiais tradicionais. É a interpelação do poder punitivo sobre elas. Em um dos filmes que eu fiz lá, bastava eu chegar com a câmera e os indivíduos já chegavam dizendo: “Eu matei”, “eu roubei”. Neste livro, eu tentei fazer de um jeito diferente. Não fazia pergunta alguma. Sentava-me como num sonho do cinedocumentário, como a mosca na parede, só ouvindo o que acontecia.

    Jornalistas Livres — Mas será que aqueles que trabalham por ali: carcereiras, médicas, psicólogas, não acabavam encenando para você?

    Debora Diniz — É possível, mas é difícil. É difícil encenar todos os dias, durante seis meses, dez horas por dia. Há uma hora em que a desgraça vem. Quer um exemplo? Na hora em que chega aquela dizendo: “Eu vou matar, e vou matar agora.” E aí vem o sossega leão, a droga calmante. E se ouve a ordem: sossega, injeta, amarra! Isso é o que está no livro. Trata-se de um livro que retrata uma longa escuta daquilo que é dito para sobreviver num espaço de sobrevivência que é um núcleo de saúde.

    Jornalistas Livres  Uma das coisas de que o livro trata com bastante ênfase é a questão do abandono. Nas filas de visitas dos presídios masculinos, vê-se um monte de mulheres aguardando a hora de entrar para ver os seus maridos, filhos, noamorados. Mas, nas filas dos presídios femininos há poucos homens e, em geral, muito menos gente. Sugere-se com isso que as mulheres são de fato abandonadas muito mais frequentemente do que os homens. Como elas lidam com o abandono?

    Debora Diniz — Há duas formas de responder a essa pergunta sobre o abandono nas cadeias. A primeira é por aquilo que é palpável nas filas de visitas… As mulheres visitam os homens e a pergunta que sucede é: quem é que visita as mulheres? E a resposta que advém é: outras mulheres. Porque o cuidado é coisa de mulheres. Fora e dentro dos presídios. As principais visitadoras de mulheres presas são outras mulheres. As mulheres dos afetos… a vizinha, a amiga. Depois, a mãe, a filha, a irmã. Então, o mundo do cuidado se reproduz no mundo da cadeia. É por isso que os homens saem ganhando. Eles saem ganhando porque eles já são mais bem cuidados aqui fora por nós. Mas há um segundo nível do abandono e esse é o que mais me provoca. A cadeia é uma máquina de produzir abandono. No sentido existencial, a pessoa se transforma em um indivíduo só, porque os parentes, os aderentes começam a sumir. As pessoas se cansam. Elas têm vidas para viver. É muito difícil enfrentar a visita vexatória; o dia da visita é quinta-feira — e quem trabalha??? A cadeia é uma máquina cuja engrenagem produz uma mulher que se transforma em um indivíduo só. Então, sobreviver em cadeia é permanentemente manter vínculos. É por isso que os princípios da lealdade e da confiança são tão fortes no mundo do crime e da bandidagem da cadeia. Porque é por onde se resiste. É por onde se sobrevive. Quando o Estado falha, a família é uma instituição fundamental, não é? Por isso não é à toa que várias alegorias da família estão presentes dos regimes das organizações criminosas. É o “irmão”, o “pai”, o “primo”, o “tio”. Trata-se de produzir vínculos de solidariedade que de outra forma já se perderam.

    Jornalistas Livres — Estamos vendo o aumento dramático da população carcerária feminina. É possível esperar que as cadeias femininas comecem a apresentar aqueles espetáculos de violência explícita a que nos acostumamos nas rebeliões ocorridas em penitenciárias masculinas?

    Debora Diniz — A sua pergunta pressupõe uma resposta preditiva sobre quais serão os efeitos da feminização da prisão. Ou seja, já que vamos crescer em número de mulheres encarceradas, como elas vão resistir aos abusos de poder? Uma hipótese é que haverá formas de lidar com o encarceramento que reproduzirão as formas do feminino. Estudos internacionais mostram que os processos de adoecimento e de medicalização do sofrimento são mais intensos nas cadeias femininas. Medicalização psiquiátrica, contenção, depressões, sofrimentos intensos, suicídios. As estatísticas internacionais mostram que esse tipo de problema é muito mais intenso nas cadeias femininas do que nas masculinas. Isso faz com que a linha-dura do sistema penal se apresse em dizer: “É porque são as loucas que são criminosas.” Mas pode ser que seja esse sistema que produz o adoecimento nas mulheres.

    Jornalistas Livres — E as rebeliões sangrentas?

    Debora Diniz — Tenho a hipótese de que as formas de resistência femininas são muito mais difíceis do que a dos homens. Porque o homem, quando ele cai no crime e vai parar pela primeira vez em uma cadeia, ele passa por um teste que se chama de “carômetro”… Ele entra na cadeia e os carcereiros submetem a ele uma lista com os rostos de todo mundo que está na ala a ele destinada. Em geral, o novato aponta seus inimigos dizendo “guerra”, “guerra”, “guerra”, indicando as alas para as quais não pode de modo algum ir. De outro lado, ele indica as alas em que estão seus amigos e parceiros.

    Já uma mulher, quando chega, ela não vem desses grandes bandos criminosos. O teste do “carômetro” é a prova de que aquela será uma experiência solitária. Pela primeira vez, ela terá de formar redes de solidariedade no crime, lá dentro. Quando nós vemos que não há essa força tão bruta, essa resistência tão massificada, é porque elas são muito mais solitárias do que eles dentro do presídio. E, para formar o bando de resistência, precisa de muito mais tempo.

    Jornalistas Livres — “Orange is The New Black”, o nome da série produzida pelo Netflix, é uma experiência exclusivamente americana, ou as cadeias femininas brasileiras têm similitudes com aquela situação?

    Debora Diniz — Uma das coisas que ouvi, tão logo o livro foi lançado, foi o convite: “Vamos fazer uma série brasileira como ‘Orange is the New Black’?” Na verdade, tanto na série americana como no livro “Cadeia”, mostra-se a microvida cotidiana que existe em um presídio feminino. Nesse sentido, são muito parecidas as realidades retratadas. As personagens, a entrada do sexo, a personagem que ocupa o lugar do poder masculino, o bicudo de cadeia (um bicudo de cadeia não é uma simples contrafação do homem, mas é um personagem muito curioso. Não lava roupa, não melhora a comida e ela tem benefícios por isso)… E esse é um dos personagens de um dos episódios do seriado. As orgias sexuais que acontecem à noite… Eu jamais direi que a cadeia é um lugar feliz, mas como é um lugar em que se vive, os prazeres existem, as formas de encontro existem. Em algum sentido, o que existe em comum é a humanidade vivendo. E, nessas instituições, as formas de encontro e desencontro acabam sendo muito parecidas, porque as formas de gerenciamento são as mesmas.

    Jornalistas Livres — Não daria para encerrar essa entrevista sem lhe perguntar o que você acha da redução da maioridade penal.

    Debora Diniz — Uma das grandes descobertas que eu fiz em “Cadeia” é que uma em cada quatro mulheres que hoje estão presas em regime fechado passou pela cadeia na adolescência. Me permita chamar uma unidade sócio-educativa, destinada a adolescentes em conflito com a lei, de cadeia. Uma em cada quatro! Então, estamos falando de um itinerário punitivo que começou muito cedo na vida.

    Se compararmos a população do presídio feminino da capital (700 mulheres) com a da unidade sócio-educativa que tem uma média de 50 internações por mês, praticamente todas as adolescentes que passaram pelas unidades sócio-educativas acabaram presas quando adultas… Então reduzir a maioridade penal me parece apenas uma brutalidade e uma violência. Trata-se daquela realidade que nós não queremos ver e queremos o quanto antes esconder dentro dessas instituições. A minha decisão depois de “Cadeia” foi ir para esse momento anterior… Lá eu descobri que elas chamam o reformatório de “cadeia de papel”. É uma alegoria linda. Nem é uma cadeia de verdade, mas já é um projeto de cadeia. Desde janeiro deste ano eu puxo um plantão. A cada 72 horas, passo 24 na unidade, vivendo por ali. Não tenho mais idade para me passar por adolescente. E elas sabem que não sou uma carcereira. Está sendo uma imersão definitiva para contar essa história de que aquilo ali já é punição suficiente para o adolescente infrator no Brasil. Não precisamos de mais sofrimento e dor.