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  • SUS pode ser privatizado com publicação de novo decreto de Bolsonaro

    SUS pode ser privatizado com publicação de novo decreto de Bolsonaro

    Em plena pandemia, ou talvez por isso mesmo, o presidente Jair Bolsonaro lançou o Decreto 10.530, publicado nesta terça-feira, 27, que pretende dar os primeiros passos para a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS), para quem as operadoras de planos de saúde norte-americanas têm os olhos voltados. A iniciativa foi rechaçada desde já pelo presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, que chama de “arbitrariedade” a intenção do governo federal de privatizar as Unidades Básicas de Saúde (UBS) de todo o país.

    “Vamos tomar as medidas cabíveis. Precisamos fortalecer o SUS contra qualquer tipo de privatização e retirada de direitos”, disse Pigatto.

    Assinado ontem, 26, o decreto presidencial já está em vigor e institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil para o período de 2020 a 2031 e baseado na visão neoliberal e privatista do governo Bolsonaro.

    O decreto de Bolsonaro traz diretrizes econômicas, institucionais, de infraestrutura, ambiental e sociais – na qual estão eixos específicos sobre a saúde. Entre eles, “aprimorar a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), avançando na articulação entre os setores público e privado (complementar e suplementar)”. Conforme o documento, o avanço na articulação com o sistema privado de saúde vai aperfeiçoar o setor, “aumentando a eficiência e a equidade do gasto com adequação do financiamento às necessidades da população.”

    Após tomar conhecimento do teor do decreto, Fernando Pigatto distribuiu a seguinte nota:

    “Nós, do Conselho Nacional de Saúde, não aceitaremos a arbitrariedade do presidente da República, que no dia 26 editou um decreto publicado no dia 27, com a intenção de privatizar as unidades básicas de saúde em todo o Brasil. Nossa Câmara Técnica de Atenção Básica vai fazer uma avaliação mais aprofundada e tomar as medidas cabíveis em um momento em que precisamos fortalecer o SUS, que tem salvado vidas. Estamos nos posicionando perante toda a sociedade brasileira como sempre nos posicionamos contra qualquer tipo de privatização, de retirada de direitos e de fragilização do SUS. Continuaremos defendendo a vida, defendendo o SUS, defendendo a democracia.”

    Notícia escondida

    Em Porto Alegre, o jornalista Moisés Mendes tratou a questão em seu blog, observando que “os jornais esconderam a notícia sobre o decreto de Bolsonaro que abre a porteira para a privatização das Unidades Básicas de Saúde. Arranjaram um jeito de entregar um serviço essencial do SUS aos amigos de Paulo Guedes”, observou.

    “A grande imprensa decidiu esconder a informação. O governo vai arranjar um jeito de transferir recursos públicos para quem atua como ‘operador’ privado na área da saúde. Vão depreciar ainda mais o serviço público e os quadros de servidores para contratar a parceirada da direita. O dinheiro que não existe hoje vai aparecer para construir unidades e remunerar parceiros. Que farão o quê?”, pergunta Moisés.

    Segundo ele, o governo poderá até dizer que o sistema continuará público e universal, como manda a Constituição. “Mas a que custo? Quem pagará por essas parcerias é o setor público. Os parceiros vão entrar no negócio da saúde pública por desprendimento, para não ganhar nada?”, indaga o jornalista. “É preciso ver o que está camuflado nesse decreto que abre os estudos para a privatização do SUS, apenas começando pelas unidades básicas”, alertou.

  • Rachadinha na versão de Itapecerica SP

    Rachadinha na versão de Itapecerica SP

    Na “nova política” nos deparamos com situações como o escândalo da rachadinha que envolveu o filho de Jair Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro, do Rio de Janeiro, e que até hoje segue impune. Para além do “conceito pizza” (que já é uma máxima da nossa história), sabemos quanto que a impunidade influência na perpetuação dessas práticas. Pois é, o número 3 do Seu Jair anticorrupção #SQN, está fazendo escola, agora em Itapecerica da Serra.

    Quando Ivone (nome fictício) combinou o valor do seus salário, para trabalhar como Assessora da Diretoria da Câmara de Vereadores Itapecerica da Serra, ela ia receber cerca de R$ 3.500, 00 reais, com benefícios. Quem a indicou foi o Vereador Markinhos da Padaria, que avisou que o valor que passa-se disso do valor total ela iria devolver para ele. Estava então acertada a rachadinha.

    Ao receber o primeiro mês de salário, ela foi abordada pelo vereador que pediu que ela entregar em dinheiro a quantia de R$ 2.500,00, num envelope pardo para sua esposa. Esse valor correspondia mais de 50% do valor total do salário do cargo que ela estava ocupando, e o valor líquido com descontos, mais a parte que ela estava sendo forçada a “rachar” e a entregar, não davam a soma combinada inicialmente. Indignada a servidora resolveu reclamar por diversas vezes e decidiu que não iria mais aderir ao esquema. A partir daí começou a sofrer diversas perseguições até que fez denúncia à polícia, que foi encaminhada ao Ministério Público de São Paulo.

    No inquérito do MP-SP estão envolvidos no caso Marcos de Souza (Markinhos da Padaria), Márcio Roberto Pinto da Silva (Presidênte da Câmara de Vereadores) e Andreia Moreira Martins.

    No Boletim de Ocorrência a vítima registra que os envelopes com o valor eram para ser entregues a mulher de Markinhos da Padaria Sra. Marta, mas na matéria feita pelo TUBENET, canal de notícias (em redes sociais) e entretenimento evangélico local, é possível ouvir áudio onde o Vereador Markinhos no trecho que vai do minuto 2:22 ao 3:19, explica para vítima como deve ser feita a entrega do dinheiro à Presidência da Câmara. O vereador ainda dá mais detalhes sobre a negociação e diz que não quer encheção de saco, que não quer mais saber da história, e que não se suja por bobagem. A vítima se nega a participar mas começa a ser pressionada a entregar a quantia todo mês.

    O depoimento da servidora para o repórter Diego Lima também revela o medo e as pressões que a servidora sofreu, por não concordar com o esquema. Além da perseguição que vem sofrendo, mesmo depois de exonerada.

    Ivone, nos contou que está sendo denunciada em boletim de ocorrência pela pessoa que era seu chefe direto por calúnia e difamação. Essa denúncia foi feita logo depois de a servidora prestar queixa por assédio moral. 

    Enviamos email pelo portal da Câmara para pedir mais esclarecimentos, mas até o momento do fechamento desta edição não tivemos resposta.

    A escola da Rachadinha do Carlucho

    Segundo matéria do Correio Braziliense, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu dois procedimentos contra Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), um pelo esquema da rachadinha outro por funcionários fantasmas. Os dois esquemas movimentaram em torno de R$ 7 milhões (valor atualizado em Setembro pela matéria) ao longo de 10 anos, recebidos por 11 pessoas suspeitas de agir como funcionários fantasmas no gabinete do vereador.

    As primeira denúncias foram feitas pela revista Época em junho de 2019, Carlucho empregou cerca sete parentes de Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro segundo a reportagem. Apesar das denúncias, Carlos Bolsonaro é candidato a vereador no Rio de Janeiro.

    Mas o Seô Jair já disse que acabou com a corrupção no Brasil, então podemos ficar tranquilos.


  • Os negócios da fé e o militarismo nas eleições municipais: o futuro-presente das esquerdas

    Os negócios da fé e o militarismo nas eleições municipais: o futuro-presente das esquerdas

    Em nossa contribução ao livro Do Fake ao Fato (des)atualizando Bolsonaro procuramos usar as palavras “atualizados” e “obsoletos”, entrecruzando-as com as definições clássicas de direita e esquerda, para compreender a base bolsonarista. Esse cruzamento pareceu-nos útil para entender a relação desses eleitores com o tempo, como atualizados de direita e de esquerda; e obsoletos de direita e de esquerda. É partindo dessa compreensão teórica que aqui nos perguntamos: Como reagir ao crescimento vertiginoso de candidaturas evangélicas e militares em nossas últimas eleições?

    Mayra Marques, Mateus Pereira, Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

    Frente a um tempo agitado e marcado pela chamada destruição criativa, somos levados a nos compreender como atualizados ou obsoletos em um ambiente hostil que parece nos cobrar um preço sempre mais alto pelo simples direito de existir. Essa sensação é parte do que temos chamado de atualismo, uma ideologia hegemônica que avalia e divide as pessoas por seu grau de atualização. O sujeito atualizado pode ser no máximo um surfista que tenta se equilibrar nas ondas de atualização e teme a todo momento se afogar em um oceano de coisas, comportamentos, linguagens e tecnologias consideradas obsoletas. Nessa metáfora, a história é um profundo oceano de esquecimento no qual estamos ameaçados de afundar.

    O sujeito rotulado de obsoleto existe com a contínua sensação de sua incapacidade de sobreviver à próxima onda de atualização. Não por acaso, o vocabulário da extinção é continuamente invocado para caracterizá-lo: ele é o peixe fora d’água ou o dinossauro que se recusa a desaparecer. Atualizado e obsoleto são as duas condições que a ideologia atualista reserva aos humanos, atribuindo valor exclusivo ao estar atualizado. O atualismo pretende nos convencer que apenas o que é atual merece existir. Essa ameaça existencial do atualismo produz ansiedades e ressentimentos que são amplamente explorados pela direita. Curiosamente, a mesma direita que patrocina a visão de um mundo em que apenas os mais fortes (atualizados) merecem viver, tem sido exitosa em capitalizar com o medo de extinção de setores dos grupos sociais que se enxergam como  maiorias. Neste grupo, os militares e religiosos conservadores se destacam.

     Comecemos por relembrar um fato ocorrido na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2020, que em decorrência da pandemia de Covid-19, aconteceu de forma remota. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso no qual, dentre várias informações distorcidas, fazia “um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”[1] e encerrou a sua fala afirmando que “o Brasil é um país cristão e conservador e tem na família sua base”. Nota-se que o esforço em manter os laços com a comunidade cristã, em especial a evangélica, não foi algo que se restringiu aos palanques eleitorais; assegurar este importante apoio é uma constante de Bolsonaro, mesmo estando há quase dois anos na presidência: após vetar o projeto de lei que pretendia perdoar as dívidas das igrejas, Bolsonaro declarou, no Twitter, que ele mesmo derrubaria seu próprio veto, caso fosse um senador ou deputado[2]. Desta forma, mesmo quando parece não agir em favor das igrejas, o presidente reforça a sua imagem como um defensor e propagador da religião cristã.

    Alguns meses antes da Assembleia da ONU, a Deutsche Welle noticiou que muitos pastores apoiavam o discurso de Bolsonaro, que diminuía a gravidade da Covid-19 e defendia a reabertura do comércio, e mantinham suas igrejas abertas, embora a maioria dos fiéis preferisse ficar em casa[3]. Para Edir Macedo, quem nada teme não precisa se preocupar com o vírus; já, para Valdemiro Santiago, a doença seria uma vingança divina. O primeiro é um bispo evangélico fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário de uma das maiores emissoras de televisão do Brasil, a Rede Record, enquanto o segundo é fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus e possui um programa na Rede Bandeirantes. Além do fato de ambos possuírem fortunas dignas de serem relatadas na Revista Forbes e de possuírem programas religiosos na TV aberta, outro fato os une: os dois têm o apoio a Bolsonaro.[4]

    O atual presidente foi eleito com grande adesão do eleitorado evangélico. Cerca de um terço da população brasileira é de alguma denominação evangélica, dentre os quais 42% ajudaram a eleger Bolsonaro[5]. Embora seja católico, o atual presidente, que até então era apenas um capitão “excêntrico” que defendia o lobby corporativo dos militares, foi batizado pelas mãos do pastor e deputado Everaldo Dias, em 2016, no rio Jordão, e costuma frequentar cultos com sua esposa na Igreja Batista. Seu lema de campanha “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, assim como o combate a pautas progressistas, como a legalização do aborto e o casamento homo-afetivo, fizeram com que muitos pastores o apoiassem e aconselhassem seus fiéis a votarem nesse candidato.

    É bom destacar que o discurso de Bolsonaro nem sempre manteve essa ênfase na religião: entre 2004 e 2012, por exemplo, os seus temas principais eram o anticomunismo e o favoritismo ao militarismo, mas, a partir de 2013, ao se aproximar do então presidente da Comissão de Direitos Humanos, o pastor Marcos Feliciano, ele passou a ter mais contato com a “Bancada Evangélica”, incluindo aspectos religiosos às suas falas. Marcos Feliciano, pastor da igreja neo-pentecostal Catedral do Avivamento e vice-líder do governo no Congresso, e Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, foram incluídos entre seus principais conselheiros.

    A Frente Parlamentar Evangélica, popularmente conhecida como Bancada da Bíblia, compõe parte considerável do Parlamento: dos 594 parlamentares, 203 pertencem ao grupo, sendo 195 deputados e oito senadores, o que significa mais de 30%. Os partidos que têm maior adesão a esta frente são: o Partido Social Liberal (PSL), Partido Social Democrático (PSD), Republicanos, Partido Liberal (PL), Progressistas (PP) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB), embora haja representantes de diversos outros partidos, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT) . Em 2019, a Frente Parlamentar Evangélica foi considerada, pelo “Estadão”, a bancada mais governista dos últimos cinco mandatos presidenciais, pois 90% dos seus votos foram a favor do governo . Após a saída de Bolsonaro e seus filhos do PSL, houve a tentativa de criar o partido Aliança pelo Brasil, que fracassou. Assim, a ex-mulher do presidente, e seus filhos, Carlos e Flávio Bolsonaro, se filiaram aos Republicanos, partido que contém 24 parlamentares na Frente Parlamentar Evangélica. Jair Bolsonaro segue sem partido, mas não seria de se espantar que ele também se filiasse ao Republicanos, pois além deste partido ser um dos mais presentes na Bancada Evangélica, também é o partido do atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.

    Santinho da campanha de Crivella

    Crivella busca a reeleição no pleito deste ano e, para isso, tentou uma aliança com a ala bolsonarista do antigo partido do presidente, o PSL. No entanto, o partido preferiu não se associar ao atual prefeito do Rio devido ao seu suposto envolvimento em um esquema de corrupção. Mesmo assim, Crivella optou por uma candidata a vice-prefeita bastante simbólica, pois tem duas características que podem ser bastante atrativas para os apoiadores do presidente: ela é militar e católica. Enquanto o catolicismo da tenente-coronel Andrea Firmo pode arrebanhar votos de mais cristãos, englobando os católicos, ela ainda tem uma carreira militar digna de nota: ela foi a primeira mulher a comandar uma base da ONU na África. Assim, essa candidatura tem tudo para agradar as duas principais alas do bolsonarismo.

    Segundo um levantamento feito pelo Observatório das Eleições, o número de candidatos a prefeito, com títulos militares, aumentou em mais de 300% desde 2016, enquanto o aumento no número de vereadores que seguiram a mesma “estratégia” foi de 56%. Embora o crescimento da porcentagem de candidatos com títulos religiosos tenha sido menor, ele ainda existe: mais de 10% dos candidatos a prefeitos e mais de 40% dos candidatos a vereador[6].Os partidos que lideram este crescimento são os mais próximos a Bolsonaro: o PSL é o partido com mais candidatos militares, enquanto o Republicanos é o partido com mais candidatos religiosos. Os gráficos abaixo mostram que os eleitores conservadores terão muitas possibilidades de escolha em 2020:

    Fonte: Observatório das Eleições

    O antropólogo Juliano Spyer identifica uma transição religiosa no país: caso o número de evangélicos continue crescendo no ritmo que estamos assistindo, até 2032 eles serão maioria. Para o antropólogo, uma das razões fundamentais para este crescimento é o papel que muitas igrejas desempenham como uma espécie de “bem-estar social informal”, promovendo uma melhora na qualidade de vida de muitas pessoas pobres que o Estado não consegue promover de forma satisfatória[7]. Ainda que seja uma explicação insuficiente, ela ajuda a explicar o crescimento que assistimos, já que seria preciso, inclusive, construir distinções entre igrejas propriamente ditas de corporações disfarçadas de igrejas.

     E é preciso lembrar que há personalidades políticas que também são evangélicas, mas com tendências progressistas, como Benedita da Silva e Marina Silva, mas com posicionamentos bastante diferentes dos de Bolsonaro e seus seguidores. Já, em relação aos militares, é possível trazer políticos relacionados à segurança pública para o campo progressista, como mostram as candidaturas, bastante contestadas, por militantes e filiados, de Denice Santiago, ex-major da PM, como candidata à prefeitura em Salvador pelo PT; e do ex-coronel da PM e católico praticante, Ibis Pereira, como candidato a vice-prefeito no Rio de Janeiro pelo PSOL. Oportunidade para dizermos que a esquerda também pensa em segurança pública? Talvez.

    De todo modo, o nosso ponto é que no interior da nossa tipologia, entre atualizados e obsoletos, a hierarquia superior, entre militares e evangélicos, tende a ser mais atualizada, ao passo que a “base” tende a ser classificada e algumas vezes se considerar obsoleta frente aos valores que se apresentam como atualizados. Assim, um dos desafios do campo progressista passa, obviamente, por criar pontes e conquistar parte dos setores atualizados e obsoletos desses segmentos, em especial, os últimos, pois como vimos acima os pastores-políticos atualizados são hábeis em mudar de lado, caso o vento mude. Considerar estas pessoas como líderes religiosos é não entender o principal de suas atuações, justamente a dissolução das fronteiras entre política, religião, entretenimento e negócios.

    No entanto, parece que só o campo progressista pode atuar em vantagem em um aspecto. Essas duas possibilidades existenciais, atualizados e obsoletos, parecem cegas para os verdadeiros operadores do atualismo, as grandes empresas e corporações que monopolizam o novo mercado de dados, o que Shoshana Zuboff, em The Age of Surveillance Capitalism, chamou de “capitalistas da vigilância”: “A combinação entre conhecimento e liberdade funciona para acelerar a assimetria de poder entre os capitalistas da vigilância [Google, Facebook, Amazon etc] e as sociedades nas quais eles operam. Este ciclo será quebrado apenas quando reconhecermos como cidadãos, sociedades, e mesmo como civilização, que os capitalistas da vigilância sabem demais para se qualificarem para a liberdade”.

    Em outras palavras, queremos dizer que no Brasil o capitalismo de vigilância adquire uma “cor local” quando percebemos que há uma aliança tática entre as grandes corporações do capitalismo de vigilância com outras duas corporações e seus líderes atualizados: a militar e a evangélica, não excluindo aqui certo conservadorismo católico. E essa aliança constrói guerras culturais de atualização bastante específicas e estranhas a uma parte considerável do campo progressista, pois está assentado em discursos, práticas e tradições que pensávamos superadas. 

    Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e aos grupo Proprietas pelo apoio e interlocução neste projeto.


    [1] https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2020/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-na-abertura-da-75a-assembleia-geral-da-organizacao-das-nacoes-unidas-onu

    [2] https://www.camara.leg.br/noticias/692461-deputados-criticam-tweet-de-bolsonaro-sobre-veto-a-isencao-de-tributo-a-igrejas

    [3] https://www.dw.com/pt-br/evang%C3%A9licos-fazem-coro-com-bolsonaro-e-negam-riscos-do-coronav%C3%ADrus/a-53000050

    [4] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/pastores-se-destacam-entre-lideres-que-orbitam-governo-de-bolsonaro.shtml

    [5] https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2018/10/07/interna_internacional,994989/quem-sao-os-eleitores-de-bolsonaro.shtml

    [6] https://noticias.uol.com.br/colunas/observatorio-das-eleicoes/2020/09/30/aumentam-as-mencoes-a-titulos-militares-e-religiosos-nas-urnas-em-2020.htm

    [7] https://www.dw.com/pt-br/igrejas-evang%C3%A9licas-s%C3%A3o-estado-de-bem-estar-social-informal/a-55208669

  • Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Por Dilma Rousseff

    Praticamente não há uma sentença no discurso de Bolsonaro na ONU que não cometa pelo menos uma falsificação, uma manipulação, uma adulteração dos fatos. O Brasil que Bolsonaro descreve não existe, e não existe por causa dele.

    As maiores florestas brasileiras ardem em chamas, com recordes de incêndios, e ele culpa os índígenas, que são as primeiras vítimas desses crimes ambientais.

    Os maiores biomas do país são consumidos pelo desmatamento ilegal, e ele diz que exerce controle rigoroso sobre a ação dos destruidores das florestas, o que é falso.

    O Brasil voltou a registrar a mazela da fome, que maltrata mais de 10 milhões de pessoas, e ele se jacta de estar alimentando o mundo.

    Quase 140 mil brasileiros já morreram de Covid-19, e ele diz que agiu com rigor para combater a doença. ao mesmo tempo em que culpa os governadores pelas mortes.

    Bolsonaro dissimula de maneira contumaz e o faz por cálculo, não por ignorância. Mesmo quando fala na ONU, não é ao mundo que está se dirigindo, mas ao seus seguidores mais radicalizados, que ele mantém mobilizados à base de fake news e deturpações da verdade. Seu objetivo é manter a iniciativa política e a polarização. Foi assim que, na Itália dos anos 1910 e 1920 e na Alemanha dos anos 1930, o fascismo e o nazismo cresceram até chegar ao poder: mobilizando permanentemente uma minoria de seguidores agressivos, capazes de intimidar o campo democrático da sociedade.

    O mundo já não acredita em Bolsonaro. Parte dos brasileiros já não acredita nele. Mas não há sinal de que ele pretenda parar. Terá de ser parado.

    No texto a seguir, é possível verificar pelo menos 12 falsificações que Bolsonaro apresentou ao mundo, ontem, no seu discurso.

    Por Nei Lima

    1

    A fala – “Desde o princípio, alertei, em meu país, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade.”

    A verdade – Bolsonaro negou a gravidade da doença. Tratou-a com desdém, afirmando que era uma gripezinha. Não tomou medidas efetivas para garantir o emprego, propôs R$ 200 de auxílio emergencial e foi apenas diante da pressão da sociedade e da iniciativa da oposição no Congresso que acabou sendo aprovado o valor de R$ 600. Por culpa do governo, o Brasil foi o país que menos aplicou testes. Bolsonaro foi contrário ao isolamento e distanciamento social, ele próprio promovendo e participando de aglomerações e desprezando o uso de máscaras. Defendeu e expandiu a produção de cloroquina, enquanto deixava de adquirir analgésicos para a implantação de tubos respiratórios nos doentes graves.

    2

    A fala “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao Presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País.”

    A verdade – Bolsonaro vem se escondendo por trás de uma decisão do STF que, supostamente, transferia o poder de enfrentar a Covid-19 para estados e municípios. Trata-se de uma versão inverídica e absurda, pois há uma clara obrigação constitucional da Presidência da República de coordenar ações diante da gravidade da crise sanitária, que já matou 138 mil pessoas; também somos uma Federação e, assim, há o dever intransferível de a União articular a ação dos 26 estados, o Distrito Federal e os 5.570 municípios. O Supremo nunca eximiu o governo federal do dever de agir, nem transferiu seu poder. Apenas deu a estados e municípios o direito de também tomar decisões sobre medidas sanitárias, de isolamento e de distanciamento social, segundo suas circunstâncias específicas.

    3

    A fala – “Nosso governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior: concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1000 dólares…”

    A verdade – Não houve arrojo, mas mesquinharia. Bolsonaro tentou impor um auxílio emergencial de apenas R$ 200 por mês. O auxílio só foi de R$ 600 por decisão do Congresso, proposta pelo PT e demais partidos de oposição, impondo uma derrota ao governo. Bolsonaro insinua, na fala, que pagou mil dólares por mês. Mas mesmo somadas, as parcelas do auxílio emergencial estarão longe de totalizar mil dólares. Se cumprir o que anunciou, o governo terá pago, até o fim de dezembro, 5 parcelas de R$ 600 e no máximo 4 parcelas de R$ 300. Isto totalizará, na melhor hipótese, R$ 4.200, muito abaixo de mil dólares, que são R$ 5.470. A iniquidade do governo também se fez sentir no tratamento dado aos que têm direito ao auxilio emergencial, na forma de milhões de exclusões injustificadas, atrasos, filas e aglomerações nas agências da Caixa, aplicativos que não funcionam — um labirinto burocrático que transformou a busca por ajuda num grande sofrimento.

    4

    A fala – “[Nosso governo] assistiu a mais de 200 mil famílias indígenas com produtos alimentícios e prevenção à Covid.”

    A verdade – Do projeto aprovado no Senado de apoio às comunidades indigenas, Bolsonaro vetou artigos que obrigavam o governo federal a fornecer água potável, material de higiene e limpeza e cestas básicas às aldeias. Em outro momento, proibiu a entrada de equipes da organização Médicos sem Fronteiras nas comunidades indigenas.

    5

    A fala – “Não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de covid.”

    A verdade – O governo federal falhou fragorosamente no planejamento e na distribuição de máscaras, EPIs e respiradores aos hospitais de todo o país. A testagem é uma das mais baixas do mundo. A falta de testes suficientes é uma das causas de o Brasil ter se tornado um dos epicentros da doença no mundo. A maior parte dos recursos federais destinados ao combate à pandemia nos estados não foi liberada de fato, segundo várias reportagens. A maioria das máscaras e equipamentos prometidos não chegou aos hospitais e os estados e prefeituras foram obrigados a agir por conta própria. Faltaram equipamentos e medicamentos nos hospitais, sobrou cloroquina nas prateleiras do ministério da Saúde, comandando por um militar especializado em logística.

    6

    A fala – “O caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas. Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação.”

    A verdade – Praticamente todos os casos de incêndios na Amazônia e no Pantanal identificados ou suspeitos de ação criminosa foram cometidos por fazendeiros, grileiros e invasores de terras públicas e reservas florestais e terras indigenas. Sentiram-se autorizados para tal diante do desmonte das políticas de contenção do desmatamento e da fiscalização. Os caboclos e os indígenas são, sabidamente, vitimas dos incêndios e do desmatamento criminosos, não seus autores. Dados obtidos pelo sistema de monitoramento da NASA mostram que 54% dos focos de incêndios na Amazônia estão relacionados ao desmatamento. No Pantanal, organizações de proteção ambiental informam que incêndios iniciado em 9 fazendas particulares destruiram 141 mil hectares, quase a área da capital de São Paulo. Cinco destas fazendas estariam sendo investigadas pela PF.

    7

    A fala “Lembro que a Região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental. Daí a dificuldade em combater, não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria. Por isso, estamos ampliando e aperfeiçoando o emprego de tecnologias e aprimorando as operações interagências, contando, inclusive, com a participação das Forças Armadas.”

    A verdade – A extração ilegal de madeira e os incêndios criminosos não são combatidos devidamente por causa da leniência deliberada do governo Bolsonaro, que desde ao assumir desautorizou, fragilizou e desmontou a fiscalização, assim como cometeu ataques contra o INPE, tendo, inclusive, demitido seu diretor, um dos cientistas mais respeitados do Brasil. O ministério do Meio Ambiente não apenas suspendeu o trabalho de fiscalização, e cancelou operações, como tem protegido os verdadeiros criminosos ambientais. Chegou a trazer a Brasília, em aviões da FAB, para reunião com o ministro, um grupo de garimpeiros ilegais que atuava em reserva indígena. Em famosa reunião ministerial, filmada e divulgada, o ministro defendeu que o governo aproveitasse a distração criada pela pandemia para, como disse, “passar a boiada” de decretos e portarias que facilitem os crimes ambientais.  

    8

    A fala “Somente o insumo da produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia.”

    A verdade – No Brasil e no mundo, a comunidade científica séria e conceituada alertou o tempo todo, desde o início da pandemia, para o fato de que a cloroquina e a hidroxocloroquina não têm eficácia contra a Covid-19, em nenhum estágio da doença, e podem, ao contrário, acarretar efeitos colaterais que levam à morte. Até mesmo Trump, a quem Bolsonaro imitou agindo como garoto-propaganda de um remédio perigoso, abandonou a defesa da cloroquina e, para livrar-se do medicamento que parou de indicar, despachou o estoque para o Brasil.

    9

    A fala “No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional.”

    A verdade – Só se for referência negativa. Desde a posse de Bolsonaro, a situação dos Direitos Humanos no Brasil vem se deteriorando, a ponto de provocar advertências da Alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, que denunciou a miliarização de instituições civis, a violência policial, e ataques a ativistas, líderes comunitários e jornalistas.

    10

    A fala “Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle.”

    A verdade – Não há nenhuma conclusão ou prova de que a Venezuela tenha contribuído para o derramamento de óleo no Atlântico, trazido pelas correntes marítimas à costa brasileira. O que ficou demonstrado, sobejamente, foi a demora e a inação do governo brasileiro, que levou quase três meses para tomar as primeiras providências em relação ao desastre que atingiu o litoral de 10 estados.

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    A fala “No primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso comprova a confiança do mundo em nosso governo.”

    A verdade – A imprensa informa hoje que do ano passado para cá houve, na verdade, uma queda de 30% nos Investimentos Estrangeiros Diretos no Brasil. E nos primeiros oito meses deste ano o Brasil sofreu uma fuga recorde de capitais, que chegou a US$ 15,2 bilhões. Outra notícia dá conta de que, por causa do estado de paralisia do MEC desde a posse de Bolsonaro, o país deixou de receber os repasses de um empréstimo de US$ 250 milhões do Banco Mundial para dar suporte à reforma do ensino médio.

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    A fala “O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado.”

    A verdade – O Brasil de fato continua sendo um grande produtor e exportador agropecuário, mas dilapidou a agricultura familiar, que até 2014 era responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelo povo brasileiro. Por esta e outras escolhas de índole neoliberal, o Brasil voltou a registrar a calamidade da fome, que aumentou em 43,7% em cinco anos, atingindo mais de 10 milhões de brasileiros.

  • Golpe pra quê?

    Golpe pra quê?

    Um dos principais gestos analíticos para a devida compreensão do atual momento da crise democrática brasileira é a distinção entre a figura pessoal do presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarisimo, entendido como projeto político disruptivo.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Sim, por mais estranho que possa parecer, fica cada vez mais claro que uma coisa não está, necessariamente, vinculada à outra.

    Explico.

    Há Jair Bolsonaro na política brasileira desde a década de 1990. Já bolsonarismo começou a nascer em 2014, quando o até então parlamentar de baixo-clero, inexpressivo, animador de auditório, aumentou seu capital eleitoral em quase 400%, tornando-se o deputado federal mais votado pelo Estado do Rio de Janeiro.

    O bolsonarismo é o resultado de um conjuntura específica de crise, alimentado por uma sociedade que se vê colapsada e impulsionada por outro projeto político disruptivo: o lava-jatismo.

    Durante algum tempo, bolsonarismo e lava-jatismo estiveram na mesma trincheira, mas nunca foram a mesma coisa. Juntos, mas não misturados!

    Bolsonaro soube se aproveitar do clima. Havia concorrentes. Marina Silva era a principal. Jair acabou vencendo a corrida. Venceu, também, porque foi mais esperto.

    Parece que agora, no exato momento em que escrevo este texto, o presidente Jair Bolsonaro começa a fazer o movimento de descolamento do bolsonarismo, abandonando a agenda da ruptura disruptiva e adotando a estratégia do aparelhamento institucional.

    Novamente, vem agindo com astúcia política, e se mostrando ainda mais perigoso para o contrato social inaugurado na redemocratização e instituído pela Carta de 1988.

    Olhando daqui, com certo distanciamento, creio que seja possível localizar na crônica os dois momentos que marcaram a inflexão do Bolsonaro disruptivo, que acreditava estar liderando uma revolução saneadora, para o Bolsonaro sistêmico, manipulador das instituições.

    Foram dois momentos que mostraram ao presidente que se continuasse marchando com os insanos, provavelmente não terminaria o mandato.

    O primeiro foi o dia 22 de maio, quando o presidente Bolsonaro, diante da possibilidade de ter seu aparelho de celular apreendido para perícia por ordem do ministro Celso de Melo, decidiu que, sim, interviria no Supremo Tribunal Federal. Em seus devaneios golpistas, Bolsonaro acreditou mesmo que bastava enviar um destacamento militar ao STF para fechar a corte superior da Justiça brasileira. O mais assustador é que ele não estava sozinho no projeto. Entre os generais palacianos houve quem apoiasse a ideia.

    Ao perceber que generais da ativa, com comando efetivo de tropas, não o acompanhariam na quartelada, o presidente recuou. Os bastidores da conspiração foram revelados na edição de agosto da Revista Piauí, em matéria assinada por Mônica Gugliano.

    O segundo momento foi o dia 18 de junho, quando Fabrício Queiroz, depois de mais de um ano desaparecido, foi preso.

    Queiroz é o fio solto do esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro. O presidente sabia perfeitamente que estava ali o seu ponto fraco e, acuado, se convenceu de que não tinha vara longa o suficiente para bancar o conflito com as outros poderes da República.

    A partir de então, vimos outro Bolsonaro, mais habilidoso no jogo político institucional. Aproximação com o centrão, piscadelas para medidas de transferência de renda, afastamento do núcleo ideológico mais radicalizado e liderado por Olavo de Carvalho, constantes pitos públicos em Paulo Guedes. Tudo isso indica que Bolsonaro está tentando se afastar do bolsonarismo.

    Os pilares do bolsonarismo são o neoliberalismo ortodoxo de Guedes e a guerra ideológica olavista. Ao que parece, Bolsonaro está dando de ombros para ambos. A ver se sustenta.

    Precisamos mencionar ainda o dedo certeiro na escolha do comando do Ministério Público. A dupla Augusto Aras e Lindoura Araújo não está apenas esvaziando a Operação Lava Jato. Está ocupando o território.

    Quando começou o governo, Sérgio Moro parecia muito maior e mais perigoso para as garantias democráticas que o próprio Bolsonaro.

    Moro era o herói laureado pela grande imprensa, o lorde gentil e educado, premiado, capa de revista, maxilar quadrado, terno preto alinhado, com caimento perfeito nos ombros. Já Bolsonaro era o aloprado desajeitado, feioso, o “burro chucro” que prometia tropeçar nas próprias pernas na primeira esquina.

    Nas crises, o tempo corre especialmente rápido.

    Hoje, Moro, sem nenhum poder efetivo de decisão, tenta se manter no jogo, contando com a lealdade de seus aliados na grande mídia e no poder Judiciário. Não é algo irrelevante, mas parece pouco para o homem que, em algum momento, foi o mais poderoso player em atuação no tabuleiro da política nacional.

    Já Bolsonaro demonstra ter aprendido a operar, e manipular, as instituições da República.

    Um dos mais importantes e inesperados acontecimentos nesta “temporada 2020” da crise democrática brasileira é o apequenamento de Moro e o amadurecimento político de Bolsonaro. Como os dados estão rolando, nada garante que até 2022 a situação continuará assim. A fotografia do momento é essa.

    Os dias 28 de agosto e 1º de setembro são outros dois momentos cruciais na recente crônica da crise.

    Em 28 de agosto, Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, foi afastado do mandato por decisão monocrática de Benedito Gonçalves, ministro do Superior Tribunal de Justiça, em episódio inédito na história da moderna democracia brasileira. Witzel foi afasto à revelia da Assembleia Legislativa, sem que seus advogados tenham sequer recebido denúncia formal do Ministério Público. O processo foi manipulado pelo Palácio do Planalto, diretamente pelo gabinete do presidente da República.

    Parte da esquerda comemorou a derrocada de Witzel, como se fosse a redenção da memória de Marielle Franco. A derrocada de Witzel é vitória de Bolsonaro, mais uma. Nada além disso.

    Ao abater Witzel, Bolsonaro matou dois coelhos com única paulada: eliminou um desafeto político e controlou o processo de escolha do próximo procurador Geral do Estado do Rio de Janeiro, a quem caberá decidir o futuro de Flávio, o 01.

    Em 1º de setembro, dando desculpa esfarrapada, Deltan Dallagnol se desligou da operação Lava Jato. Dallagnol enfrenta dificuldades no STF e no Conselho Nacional do Ministério Público, onde Gilmar Mendes e Augusto Aras afiam a lâmina da guilhotina. Dallagnol não seria o primeiro a perder o pescoço na mesma guilhotina que ajudou a montar.

    Caiu, assim, o último grande símbolo da Lava Jato, deixando o terreno livre para que Bolsonaro se aproprie da força-tarefa, direcionando a artilharia lava-jatista aos seus adversários, à esquerda e à direita.

    Vamos combinar, né? É muito melhor do que, simplesmente, extinguir a operação, que ainda conta com sólido capital político. Mas vale usar a marca e manter a narrativa do combate à corrupção, fazendo do Ministério Público uma política “soft”, sem armas de fogo.

    Nem precisa de arma de fogo não. O monopólio do processo penal é mais mortal que fuzil. Além do mais, essa coisa de canhão na rua e milico fechando tribunal é tão demodê.

    Claro que tudo pode mudar, que Dallagnol e Moro podem se recuperar, que os quadros lava-jatistas ainda leais à República de Curitiba podem virar o jogo, novamente. Mas a fotografia do momento, repito, é essa.

    Fato fato mesmo é que nos últimos dias Jair Bolsonaro está dormindo mais tranquilo, assistindo a recuperação de sua popularidade e se sentindo cada vez mais confortável nos corredores do poder. A cadeira já não queima tanto.

    Talvez esteja perguntando a si mesmo: onde eu estava com a cabeça? Golpe pra quê?

  • Querem uma boa notícia? O bolsonarismo está sendo derrotado!

    Querem uma boa notícia? O bolsonarismo está sendo derrotado!

    É muito difícil para qualquer ser humano de boa vontade conseguir ver algo positivo neste Brasil dos nossos dias. Religiosos fazendo protesto em hospital para impedir que uma menina de 10 anos, violentada pelo tio, exerça o direito ao aborto legal. Médicos se recusando a cumprir ordem judicial e realizar o aborto legal na criança, ideologizando seu ofício.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    O presidente da República disparando dia sim e dia também cascatas de selvageria que se capilarizam pela sociedade civil, chegando até às pessoas comuns, nossos irmãos, tios, pais e mães.

    No Brasil de Bolsonaro, as pessoas comuns se sentem autorizadas a descumprir os ritos civilizados tão importantes para o nosso convívio comum.

    Mas algo de bom vem acontecendo, pouco a pouco, desde o dia 18 de junho, quando Fabrício Queiroz foi preso pela primeira vez.

    O presidente sabe que Queiroz é uma bomba relógio, que é o fio solto de um esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro.

    Bolsonaro percebeu também que no século XXI, na era do “soft power”, golpe de Estado do tipo clássico, com canhões nas ruas, não é algo tão simples, ainda mais em país tão grande e tão internacionalmente conhecido como é o Brasil.

    Não é que as ameaças de golpe fossem bravatas. Realmente, o núcleo do governo achou que seria possível uma intervenção militar no STF, como mostrou a reportagem publicada na edição de agosto da Revista Piauí, assinada por Monica Gugliano.

    O golpe não aconteceu. Bolsonaro ficou acuado com a prisão de Queiroz. Moderou o discurso e passou a se comportar como algo próximo a um presidente normal. Fez mais por necessidade do que por convicção.

    Investiu na formação de uma base legislativa, se aproximando do centrão. Ampliou sua base de apoio social para além do bolsonarismo orgânico, com o auxílio emergencial.

    O país vive a maior crise sanitária de sua história. As pessoas estão assustadas, esgotadas com o colapso institucional que se arrasta desde meados de 2013. Nenhuma sociedade consegue viver eternamente no caos. Chega uma hora em que as pessoas cansam, e passam a desejar alguma tranquilidade, alguma estabilidade.

    Independente de quem seja o governante, é como se a sociedade estivesse dizendo “chega, pelo amor de deus, deixa essa criatura governar”. É a paz dos cemitérios.

    Soma-se a isso o carisma pessoal de presidente e o sucesso inegável do auxílio emergencial. Era meio que óbvio que a aprovação do governo cresceria.

    Bolsonaro parece ter gostado dessa história de ser amado pela massa.

    Em 2019, primeiro ano de mandato, Bolsonaro governou como líder revolucionário, convencido de que estava predestinado por Deus a construir um “novo Brasil”. Ao que tudo indica, 2020 acabará de forma bastante diferente.

    Bolsonaro percebeu que a agitação fascista só serve pra fidelizar a malta já convertida, que, sim, é minoria. A maioria da população, especialmente os mais pobres, quer só uma vidinha tranquila, com orçamento folgado pra comer pizza no shopping e comprar danone pros meninos.

    Os hábitos de consumo estimulados pelo reformismo petista ainda estão vivos no imaginário popular.

    É, justamente, esse imaginário que está derrotando o bolsonarismo. Não é a esquerda, não é o Lula. É o imaginário forjado pelo reformismo petista. É uma boa notícia. Não deixa de ser.

    Mas Bolsonaro está se fortalecendo! Sim, está! É que Bolsonaro não é, necessariamente, bolsonarista.

    Jair Bolsonaro foi deputado federal por quase 30 anos. Tiozão, colocou a família toda pra mamar nas tetas da política institucional, nunca teve maiores ambições.

    Já o bolsonarismo é afeto político-revolucionário recente. Ganhou corpo na conjuntura da crise democrática, alimentado pelo lava-jatismo.

    Pra governar com alguma tranquilidade e se reeleger em 2022, Bolsonaro entendeu, intuitivamente, que precisará romper com o bolsonarismo e ir ao encontro do imaginário popular, fazendo concessões conceituais ao reformismo petista.

    São 210 milhões de habitantes, quase 6 mil municípios, território continental, bolsões de miséria convivendo com oásis de prosperidade. Nos poucos momentos de nossa história em que arranhamos a ampliação de algum bem-estar social para os mais pobres, foram momentos, justamente, de protagonismo do Estado.

    Nunca antes na história desse país tantos brasileiros viveram em situação de bem-estar social como nos anos do reformismo petista.

    O bolsonarismo é ideologicamente ultra-neoliberal, como ficou claro na fatídica reunião de 22 de abril, cujo vídeo assistimos pela primeira vez em 22 de maio. Esse vídeo é o manifesto doutrinário do bolsonarismo. É o tratado que Olavo de Carvalho não escreveu.

    O vídeo deixa claro que Paulo Guedes está longe de ser a “reserva técnica” do governo, como até hoje a grande imprensa tenta nos convencer, todos os dias. Guedes é ideológico, é religioso, é militante.

    O presidente quer ampliar o Bolsa Família, no valor do benefício e no número de famílias contempladas. Quer retomar o Minha Casa Minha Vida, com linha de crédito especial para o Norte, Nordeste.

    Pra isso, vai ter que romper com a religião de Paulo Guedes, vai ter que romper com o bolsonarismo também. E já está fazendo isso. Guedes já está sendo fritado.

    A realidade desse país periférico, de modernização incompleta, exige que o Estado atue como potência provedora de direitos sociais. O reformismo petista ampliou, de forma inédita, essa demanda por direitos.

    Quem passou a consumir, quem passou a comer três vezes por dia, não aceita retrocessos. Pode até não ir pra rua protestar, fazendo barricadas, como fetichiza parte da esquerda, colonizada até o último fio de cabelo. Mas sabe se vingar na urna. Sozinho, com a urna, o eleitor sabe se vingar. Sabe agradecer também. Não é bobo não.

    É fácil, fácil acostumar a comer peito e coxa. Voltar a comer arroz e feijão puro, sem mistura, é difícil demais.

    Sim, leitor e leitora, o imaginário popular alimentado pelo reformismo petista está derrotando o bolsonarismo, ainda que esteja fortalecendo Bolsonaro.

    Não dá pra ter tudo na vida, né?