Jornalistas Livres

Tag: HOMOFOBIA

  • O que é  ‘lugar de fala’ científico?

    O que é ‘lugar de fala’ científico?

    Talvez o termo ‘lugar de fala’ seja, hoje, o mais vulgarizado no debate público. Inicialmente pertencente ao campo da análise do discurso, o conceito, inadequadamente, foi transformado em régua moral usada para qualificar e interditar determinadas falas, tomando como o critério o corpo daquele que está falando.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    No seu significado original, “lugar de fala” é categoria cognitiva que parte de verdade óbvia: todo aquele que fala, fala a partir de um lugar na geografia da sociedade. Não existem falantes universais capazes de falar por todos. Toda fala tem pertencimento, é parcial.

    Portanto, ao evocarmos o lugar de fala nosso objetivo deveria ser posicionar, localizar discursos, jogar luz sobre o lugar de onde o falante está falando.

    “Peraí, eu tenho lugar de fala!”. Óbvio, cara pálida, todos temos!

    Ingenuamente, a militância identitária moralizou essa discussão, como faz com quase tudo. Diz o identitário que pretos e pretas seriam mais legítimos para tratar do racismo. LGBTS mais legítimos para tratar de homofobia. Mulheres mais legítimas para denunciar o machismo.

    Com essa leitura enviesada do conceito, identitários entraram numa roubada, numa situação de impasse da qual não conseguem sair, e nem conseguirão.

    As forças do atraso aprenderam rapidamente como explorar a fragilidade do discurso identitário. É fácil, fácil encontrar um preto para reivindicar o fim do sistema de cotas, um LGBT para dizer que não existe homofobia no Brasil, uma advogada mulher disposta a defender publicamente jogador de futebol condenado por estupro.

    Não à toa, o jogador Robinho contratou uma advogada mulher para fazer sua defesa política no tribunal moral das redes sociais. Os perversos não são burros.

    A condição de existência de pretos e pretas, LGBTs e mulheres não lhes garantem o monopólio da virtude. O valor moral da fala não está no corpo do falante. Está no conteúdo discurso.

    O mesmo podemos dizer para o médico que aparece na rede social denunciando a “vacina chinesa”, ou defendendo o uso da cloroquina como tratamento para a covid-19.

    Nesta semana, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL/RJ) entrou em aeroporto portando atestado médico assinado por um dermatologista autorizando-o a dispensar o uso de máscara. Silveira se vangloriou de o médico já ter distribuído “mais de 20 iguais a esse”.

    É fácil, fácil achar “doutor” disposto a endossar o negacionismo científico.

    O “lugar de fala científico”, diferente do “lugar de fala”, não é apenas categoria de posicionamento discursivo. É, também, delimitação de autoridade científica.

    Não basta portar diploma de médico para ter autoridade científica.

    A autoridade científica não é pessoal, não pertence ao sujeito, ou ao diploma. É sempre institucional.

    Quando a Fiocruz, o Butantan, a UFRJ, a UFBA, a USP falam, quem está falando é um colegiado de especialistas autorizados pela comunidade científica. Cientistas que têm seu trabalho fiscalizado por outros cientistas.

    Em ciência, a fala autorizada não pertence aos sujeitos, mas, sim, às instituições.

    Por isso, leitor e leitora, ao esbarrar com algum “doutor” falando na internet, sempre perguntem: qual instituição está autorizando essa fala?

    Se não houver nenhuma, fiquem atentos, pois há o risco de a criatura estar mal intencionada, igualzinho ao preto que nega a existência do racismo, ao LGBT que diz nunca ter sido vítima de homofobia ou a mulher que afirma não precisar do feminismo.

    Pessoas falam o tempo inteiro. Falam sobre tudo, falam qualquer coisa sobre tudo. Afinal, quem tem boca fala o que quer.

    Uma das vocações da boca é falar.

    Cabe a nós, que ouvimos, avaliar o que serve e o que não serve, e jamais nos deixar levar pela crença ingênua de que determinados falantes estão corretos simplesmente por serem o que são.

  • Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode

    Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode

    Por Daiane Noves

    _ Com licença senhor agressor, desculpa interromper essa surra que o senhor está aplicando nessa mulher que está caída no chão, é que eu sou do movimento feminista e preciso fazer umas perguntas antes de decidir ou não se eu vou defender esta mulher, tudo bem?
    _ Claro, mas eu posso continuar batendo nela enquanto respondo?
    _ Pode sim. Ainda não sabemos se ela mereceu ou não, vai que ela mereceu. Não queremos ser injustas.
    _ Tá.
    _ Essa mulher está sob efeito de substâncias psicoativas ilícitas?
    _ Sim. Na verdade, sóbrio, sóbrio, ninguém aqui tá.
    _ Entendo. Outra pergunta: ela é bolsonarista né?
    _ É sim. Mas nessa galera aqui todos somos né, gata. Mito, B17!
    _ Entendo. Soube também que ela estava com a arma da namorada anteriormente.
    _ Sim. Mas a namorada já havia guardado. Com ela armada eu não estaria batendo né, senão ela atiraria em mim. Mas vou usar o fato de ela ter estado armada antes para legitimar isso aqui como defesa, saca?
    _ Tem outras pessoas armadas aqui né?
    _ Sim.
    _ Mais uma pergunta: foi ela que começou?
    _ A de mão ou a de boca? Pq eu tava humilhando ela mó cota, ela tava toda com raivinha, mexi com a mina dela também. Aí ela veio pra cima de mim. Olha o tamanho da s4p4t4o. É óbvio que eu ia arrebentar ela.
    _ Mas sabendo disso, pq o senhor só não se defendeu ou segurou ela?
    _ Ah, ela quer ser homem né, tem que apanhar que nem homem, pô.
    _ Mas o senhor sabe que é uma mulher, com compleição física e força bem inferior que a sua. Vc sabia que ia sair ileso e ela arrebentada, não?
    _ Claro. Mas eu quero mostrar pra morena lá que eu sou alfa tá ligado?
    _ Mas se fosse um cara?
    _ Se fosse um cara nem tinha mexido com a mina dele, pô. Mas como é uma mina, que ainda é s4p4t4o, e ainda fez uso de drogas, e ainda revidou as minha provocações vindo pra cima de mim? Acha que vou só conter ela? Vou arrebentar mesmo.
    _ O senhor viu que ela já estava no chão?
    _ Vi, eu sou bem forte, né?
    _ Então pq o senhor continua batendo nela?
    _ Pq é facião bater em mulher, nocaute certeiro. Quero dizer, mulher não, s4p4t4o.
    _ Entendi. Mas a questão é que o senhor tá criando um problema ético para o feminismo, além desse monte de hematomas nela. Pq, veja bem: ela segue filosofia de direita e a gente já não gosta dela, ela não performa feminilidade e ainda fica agindo toda pá para performar masculinidade, já não nos parece como a vítima perfeita e cândida, fala mal do ativismo e tem um auto-ódio imenso, nenhum senso de classe. Dificil detectar misoginia e lesbofobia quando não é a vítima ideal, pô.
    _ Ah, moça, faz assim então, se ninguém me segurar, eu continuo chutando ela aqui caída e mato logo. Ninguém liga pra lesbocídio, essas estatísticas nem saem. Resolvo o meu problema e o de vcs. Pode ser?
    _ Pô, senhor agressor. Fechou. A gente muda o lema para ‘Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode.’
    _ Ah, genial. Qualquer coisa, cê manda um ‘ela que lute’ ou um ‘bem-feito’ ou ‘sem tempo pra mina reaça’, mas acho que não vai precisar não. Ela mereceu, ela tava pedindo.
    _ Verdade né. Desculpa atrapalhar o espancamento ae. Boa surra pro senhor.
    _ Valeu. Ow, cê é uma “morena muito bonita”.
    _ Que isso, não tá vendo meu namorado ali?
    _ Ow, que vacilo, perde perdão lá pra ele. Cê falou que é feminista e eu já pensei que vc tbm namorava s4p4t4o, eca. Aí a gente não respeita não. E se vir cobrar a gente arrebenta, não quer ser homem?
    _ Tá certo. Deixa só eu terminar a minha postagem aqui do “não sou obrigada a ter sororidade com reaça”, péra. Como é mesmo o novo lema que falei agora pouco?
    _ Sei lá, era tipo ‘nada justifica um cara jantar uma mina no soco’…
    _ Não, lembrei, era ‘Pelo fim da violência contra as mulheres, mas se quiser pode.’
    _ Isso.
    _ Desculpa incomodar a surra do senhor.
    _ Que isso, tamo junto. B17.


     

    Veja também: Não deve existir “eu avisei” pra vítima de lesbofobia

  • OPINIÃO: Não deve existir “eu avisei” pra vítima de lesbofobia

    OPINIÃO: Não deve existir “eu avisei” pra vítima de lesbofobia

    As redes sociais hoje estão numa disputa muito grande entre pessoas que riem, dizem “eu avisei” e se recusam a ter empatia com Karol Eller, youtuber conhecida por ser lésbica, apoiadora de bolsonaro e que teve o rosto desfigurado em um ataque de lesbofobia, e pessoas que classificam que crime de ódio contra mulheres lésbicas não deve ser motivo de risada em nenhuma situação.

    No último domingo, 15, Karol estava em um quiosque na Praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, com sua namorada quando foi vítima de lesbofobia e agredida a socos e pontapés. Ela chegou a desmaiar diante da gravidade das agressões.

    Karol fez fama durante as eleições por dizer que denunciar a homofobia, como ela chama, seria mimimi. Diversos vídeos em que ela, de forma descontrolada, grita que é frescura a luta contra a homofobia circulam pela internet e estão sendo usados agora por parte da população para justificar o injustificável. Karol não apanhou por ser bolsonarista – o que já não seria justificável, Karol apanhou por ser lésbica.

    Karol é vítima do discurso que defende. Karol é uma mulher lésbica numa sociedade lesbofóbica e o que aconteceu com ela não é aceitável só porque ela apoia pessoas com o discurso de seus agressores.

    O Brasil registra uma morte por homofobia a cada 23 horas. Da mesma forma que foi Karol, poderia ter sido eu, ou sua filha, ou a amiga do teu filho, ou a sobrinha da tua vizinha e assim por diante. Lésbicas existem e resistem diariamente. Não é difícil encontrar nas redes sociais relatos de mulheres que, dia após dia, enfrentam situações de violência simplesmente por amarem outras mulheres. A lesbofobia é uma preocupação que não tira folga, que não tem descanso.

    Não se deve relativizar uma agressão por discordância política, não se deve ignorar uma situação de violência porque a vítima não tem noção das barbaridades que diz. Sim, Karol tem um discurso nojento, mas não podemos esquecer que o meio em que ela vive é mantido por este discurso. Muitas vezes rir e invalidar as violências que sofre também é uma forma de sobreviver.

    Quando você ri de Karol, você está dizendo que tudo bem apanhar se você não tem consciência das violências que podem te atingir. Quando você ri de Karol, você ignora o fato de que a violência lesbofóbica pode chegar para todas. Quando você ri de Karol, você faz parte dos agressores.

    Karol terá minha empatia e solidariedade mesmo que não queira, porque eu não sou como os agressores dela.

  • Um arco-íris de gente à beira-mar em resposta aos ataques homofóbicos

    Um arco-íris de gente à beira-mar em resposta aos ataques homofóbicos

    Os ataques homofóbicos à liberdade de expressão e à diversidade de gênero pelo presidente, ministros e governador do Rio de Janeiro parecem ter despertado ainda mais a disposição de ir às ruas em defesa do direito de cada um ser o que é. A 13ª edição da Parada do Orgulho LGBTI+ de Florianópolis levou mais de 50 mil pessoas a ocuparem a Beira-mar Continental neste domingo (8) de sol e vento sul gelado. Das 11h às 21h, a avenida foi interditada para receber uma multidão colorida de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, homens, mulheres, crianças, famílias. Elas marcharam, dançaram, cantaram e gritaram palavras de ordem contra a intolerância e o estado teocrático que quer normatizar a identidade heterossexual e reprimir as múltiplas subjetividades.
    Pelo quarto ano consecutivo, a Parada LGBTI de Florianópolis ocorre na Beira Mar do Estreito, tendo à frente de sua coordenação o Movimento Social Organizado de Florianópolis. Na avaliação da suplente de vereadora Carla Ayres, do mandato popular do PT na Câmara de Vereados, o protesto e a consciência política marcaram o evento, que neste momento de luta contra o retrocesso ético, moral e político do país, definitivamente mostrou ser muito mais do que uma mera catarse ou entretenimento:

    Foto: Vagner Gomes Siqueira (GAPA/Floripa)

    “Este ano talvez tenha sido a edição mais política da história das paradas em Florianópolis, não só pelos discursos, mas especialmente pelo mar colorido de corpos afirmativos de nossa existência e resistência ao momento de graves ameaças aos direitos e à vida da população LGBT. Foi um ato extremamente politizado, em que organizações da sociedade civil e os próprios artistas que se apresentaram e se posicionaram recorrentemente contra as retiradas de direitos, contra os desmontes sociais do atual governo federal e em defesa dos nossos direitos.”

     

    Como grande aliada das minorias, a força feminista das mulheres também marcou presença. Um cordão delas aninhou-se embaixo da bandeira gigante da diversidade, com as cores do arco-íris. Tendo à frente Ana Bezerra, Elenira Vilela, Juliana Lima, Íris Gonçalves, Elaine Sallas entre outras integrantes do 8M Florianópolis, as feministas lançaram a Greve Internacional das Mulheres, convocando para a preparação do 8 de março de 2020. Também lembraram a grande mártir Marielle Franco, vítima das milícias governistas, com o estandarte que trazia o seu grito: “Quantas mais tem que morrer pra esta guerra acabar?”

    A concentração começou às 11 horas, na cabeceira da Ponte Hercílio Luz, onde a bateria da Consulado do Samba, escola campeã do Carnaval 2019, fez a abertura. O trio elétrico orquestrou a festa, puxado por Selma Light, uma drag queen de Floripa com fama nacional, ao lado de Suzy Brasil e do DJ Paulo Pringles, também referências nacionais no mundo LGBTQI. Foi uma surpresa o momento em que a subiu no carro do trio elétrico a ex-chacrete, cantora, atriz e dançarina Rita Cadillac, que continua carismática para o público. E uma emoção quando dois casais, as lésbicas Vitorí e Maria, e os homossexuais André e Adriano, celebraram sua cerimônia de casamento em cima do caminhão de som.

    Às 16h30, acompanhado a pé pelo cordão gigante do arco-íris humano, o trio se deslocou até o palco principal do evento, no final da Beira-Mar Continental, para levantar e alegrar a multidão com as atrações musicais de Aretuza Lovi e Dan Murata, ícones da performance da diversidade. Também se apresentaram os influencers Mandy Candy (@mandycandyreal), Júlia & Flávia (@fripolter) e Biga Kalahare (@bigakalahare),

     

    Foto do G1 de Paulo Mueller (NSCTV) por si só desmente o próprio veículo

    Embora a Polícia Militar tenha calculado o número de participantes em 10 mil pessoas, número que foi reproduzido nos jornais comerciais, as imagens da manifestação desmente essa estimativa. A própria foto publicada pelo G1, por exemplo, mostra que os números dos organizadores são muito mais próximos da realidade. Carla Ayres, que faz parte do Acontece – arte e política LGBTI (uma das entidades organizadoras da Parada) e a presidente da Comissão dos Direitos LGBTI+ da OAB-SC, Margareth Hernández, calculam a participação entre 50 e 70 mil pessoas.

    Por diversas vezes, artistas, públicos e coordenadores fizeram referência aos 50 anos da Revolta de Stonewall, confronto entre a polícia e homossexuais nos Estados Unidos, que é um marco na resistência e luta por igualdade e marca o lema das paradas deste ano em todo o país. Fica o depoimento de Toninho Fernandes:

    “Santa Catarina virou bunker de Nazifascistas… A intolerância levando à ignorância, mãe de tudo que é de pior na humanidade… O bom é que todos os (des)governos passam este passará muito rápido porque não chegará ao fim de mandato! Crivellas, Witzels, Bolsonaros irão embora do Brasil e espero que seus seguidores também…”

     

     

    Edição de Emílio Rodrigues / Jornalistas Livres, com vídeo de Vagner Gomes Siqueira (GAPA/Florianópolis) e fotos do 8M Florianópolis e organização do evento

    Guia Gay Floripa
    País é um dos que mais fazem marchas arco-íris no mundo! Aqui estão todas, grandes, pequenas, de norte a sul
  • Censura ao filme “Boy Erased” tem a ver com homofobia institucional

    Censura ao filme “Boy Erased” tem a ver com homofobia institucional

    Por Rodrigo Veloso

    Nas últimas semanas quem aguardava o lançamento no Brasil do filme indicado ao Globo de Ouro “Boy Erased: Uma verdade anulada“, teve uma ingrata notícia. O longa, que trata da história de vida de Gerrard Conley e sua juventude perturbada por terapias de reversão da sexualidade, teve o lançamento cancelado pela sua distribuidora, a Universal Pictures.

    A empresa alega que o desempenho projetado para bilheteria não compensaria os custos de sua distribuição nos cinemas, e por isso, “única e exclusivamente”, diz sua nota oficial, o lançamento inicialmente previsto para o dia 1 de fevereiro foi cancelado, com promessa de distribuição para pay per view.

    Pessoas que aguardavam pelo filme ou que já o assistiram no exterior usaram as redes sociais para reclamar.

    Um dos primeiros a questionar se o motivo real não seria outro, bem menos defensável, foi o ator Kevin McHale, conhecido pelo seu trabalho na série Glee. Em uma mensagem em inglês pelo Twitter, ele disse: “Começa assim. Boy Erased foi banido no Brasil. Bolsonaro é perigoso e uma ameaça para a comunidade gay no Brasil. Censurar um filme sobre os riscos da terapia de conversão é apenas o início.”

    E sua denúncia circulou muito pela imprensa americana e os círculos ativistas. Até o presidente Jair Bolsonaro se viu obrigado a respondê-lo [usando sua tradicional linguagem truculenta para assuntos que envolvem as minorias]. Ele disse simplesmente que teria mais o que fazer.

    A denúncia de McHale, contudo, não deve ser lida como se ele acreditasse que Bolsonaro tem diretamente o poder de censurar filmes. O que ele diz, e tem razão, é que o contexto político do “novo Brasil” influencia decisões como esta, baseadas em preconceitos.

    Em 2012, parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica decidiram impulsionar no Congresso um projeto de lei do deputado João Campos que regulamentaria as instituições que ganham dinheiro prometendo cura gay, e tiveram veemente apoio do hoje presidente Bolsonaro nas audiências públicas. Em uma delas, ele disse que os então deputados Jean Wyllys e Erika Kokay estavam contra porque também seriam gays.

    Em 2017, quando já se imaginava que a matéria estava definitivamente encerrada, um juiz da 14ª vara da justiça federal de Brasília deu autorização para que as “curas” fossem realizadas, e novamente não faltaram aqueles que vieram a público defender a sentença, enquanto o Conselho Federal de Psicologia dizia que o procedimento era errado, prejudicial aos que eram submetidos a ele e que ainda poderia agravar quadros de depressão.

    E a atual ministra dos direitos humanos, a quem caberia cuidar das minorias, não só acredita nesse charlatanismo como passou boa parte dos seus últimos anos viajando pelos estados brasileiros prometendo aos pais de crianças e adolescentes LGBTs que este poderia ser um caminho para melhorar suas vidas.

    O ator americano hoje vê Bolsonaro presidente do país e um filme aclamado retirado de uma programação que já estava pronta como quem só está acostumado a ver filmes de Hollywood banidos pelas cenas gays em país ditatoriais e extremamente conservadores. Não faltam razões para associar as duas coisas.

    No melhor dos mundos, o que é muito difícil de acreditar com tantos membros do governo divulgando fake news e difamações sobre pessoas gays, a política não teria tido qualquer peso e a empresa estaria pensando “apenas” em seus lucros, mas até aí haveria homofobia a ser questionada.

    Pois, quando um filme de tamanha repercussão é avaliado como de difícil aceitação, parte, pode-se creditar à homofobia que estruturalmente apaga os talentos de pessoas LGBT e enclausura-as em rótulos. É muito comum. Muitos filmes já enfrentaram no circuito nacional situações semelhantes. E vez ou outra algum diretor diz que teve dificuldade de captar recursos ou distribuir um novo filme por conta de cenas de amor entre seus personagens. Até o longa sobre Freddie Mercury, que está indicado ao Oscar e é um sucesso mundial de bilheteria, sofreu com reações violentas.

    Se alguém tem dúvida de que o afeto entre pessoas LGBT ainda motiva o ódio e que este público pouco tem o direito de se ver retratado nos cinemas, faça um teste rápido e consulte quantos romances em cartaz no cinema mais próximo têm esse perfil. E mais ainda, imagine-se pertencente a uma comunidade com milhões de pessoas, como parte de um público que sempre vai ao cinema, e que mesmo assim não é contabilizado nas projeções medíocres que as empresas fazem sobre o sucesso de um filme.

    É assim que nos sentimos sobre Boy Erased. Ofendidos por um governo que torce para nos varrer até dos filmes; apagados por uma empresa que não nos contabiliza; e negligenciados na dor por uma imprensa que nem sempre aborda a dimensão completa do problema.

  • Carol Quintana | 17 de Maio e a luta mundial contra a homofobia

    Carol Quintana | 17 de Maio e a luta mundial contra a homofobia

    17 DE MAIO: A REVOLUÇÃO QUE JÁ COMEÇOU

    Em 1991, depois de intensos debates, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a retirada da homossexualidade do rol de doenças que serve de balizamento para os países membros da ONU.

    Esse passo importante para cidadania das pessoas LGBT foi dado em 17 de maio, é claro, à revelia do anticientificismo e dos PHD’s de araque. Na época, o que se dizia sobre diversidade era que havia explicações hormonais ou até mesmo disfunções cerebrais que ocasionavam um desejo anti-natual.

    No Brasil, até a mudança de paradigma em 1992, a história de LGBT’s remete a sanatórios, onde foram tratadas como loucas, a tratamentos clínicos com psicólogos e psiquiatras charlatães, onde foram tratadas como pessoas confusas, ou até mesmo a seminários, onde faziam voto de castidade, e assim tranquilizavam a moralidade de famílias que preferiam qualquer coisa para seus filhos a vê-los se relacionando com as pessoas que realmente amavam. A patologização ou a demonização foram constantes.

    Uma das primeiras pesquisas realizadas no país sobre apoio ao casamento civil igualitário, no começo da década de 1990, durante o governo de Collor de Mello, que foi eleito como caçador de marajás mas também como cristão protetor dos valores da família tradicional, demonstrava que não havia mais do que 10% de apoio na população brasileira para mudança na legislação. Como o número é inferior a verdadeira representatividade de pessoas LGBT no total da população, é possível concluir que até uma parte do próprio segmento se dizia contrária – seja por mera reprodução da cultura homofóbica vigente ou medo de opinar publicamente neste sentido.

    Essa história começou a ser modificada quando, principalmente diante da epidemia de AIDS, LGBT’s anteriormente dispersas começaram a se organizar em movimentos. A emergência de uma reação contra os estigmas provocados pela associação dominante entre o vírus e a população sexo-diversa unificou pessoas que não se enxergavam, até aquele momento, como se tivessem uma identidade comum. Na reação à violência física e simbólica, emergiu o moderno movimento LGBT, e a partir dele trabalhos bem planejados, considerações teóricas, contestações científicas, audiências públicas, e finalmente um reconhecimento formal de que ser LGBT não é uma doença.

    Respeitosamente, 17 de Maio é, portanto, uma data para lembrar de duas coisas importantes. Uma é o passado, é o lugar de onde viemos. Assim saudamos as irmãs que tombaram no caminho diante do preconceito, lutando da maneira que podiam por um pouco mais de liberdade para todas nós – mesmo que não soubessem disto ou agissem deliberadamente para nos ajudar. E a segunda é a luta. A mobilização e ocupação de novos espaços e protagonismos por LGBT’s ao redor do mundo, sob as mais difíceis e distintas realidades.

    Essas duas coisas devem andar juntas para não cairmos no erro de acreditar que os direitos que temos agora, e nossos antepassados não tiveram, foram obtidos magicamente.

    Antes de mim mulheres lésbicas fizeram um grande salto dos manicômios às chefias de governos democraticamente eleitos. Justamente por isso é que posso afirmar orgulhosamente que, agora, nestes tempos de comunicações modernas e transportes ultra rápidos, há margem para irmos além de capítulos de opressão, cotas de diversidade e dos guetos que tentam nos conter.

    A história que 17 de Maio conta vai além da mudança específica que o originou como referência internacional. Remete a todo um amplo movimento.

    O que me parece colocado na ordem do dia é dar continuidade a esta espécie de Revolução que já começou.

    Carol Quintana é formada em Ciências Sociais, professora de Sociologia no ensino público, Lésbica e ativista do movimento LGBT