Jornalistas Livres

Tag: Funk

  • Funk-se quem puder

    Funk-se quem puder

    Engana-se quem imagina que a diferença de tratamento da PM paulista em relação aos Pancadões no centro e nas periferias é coisa coisa recente. Sempre foi assim e a coisa só piora. Como foi noticiado essa semana, além dos nove jovens mortos no massacre que a PM realizou na comunidade de Paraisópolis na madrugada do último domingo, houve pelo menos mais um rapaz assassinado em Heliópolis, onde a PM também encurralou e agrediu dezenas de pessoas. Nas regiões nobres da cidade, no entanto, a ação da polícia é distinta. Conforme mostra reportagem de ontem da Rede Brasil Atual, Pinheiros é o bairro que gera mais reclamações de barulho nas ruas ao Programa Psiu. O baile da DZ7, em Paraisópolis está em 76º no ranking.

    Em 2012, antes da fundação dos Jornalistas Livres, eu, Maria Eugênia Sá, Moriti Neto e Gabriela Allegrini visitamos bailes funk em Moema, Vila Olímpia e nos arredores de universidades no centro da cidade para mostrar que sexo, drogas, venda de bebidas para menores, incentivo à prostituição eram práticas que contavam com a vista grossa das autoridades, enquanto em Heliópolis, até a “Balada sem Álcool” da associação dos moradores sofria reprimendas e era ameaçada pela PM. A reportagem, publicada inicialmente pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo, teve ampla repercussão na época e forçou o fim de um esquema de incentivo à prostituição de meninas. O site Outras Palavras republicou a matéria e a Ideias em Revista publicou uma outra versão. Confira abaixo o texto original:

    Funk-se quem puder
    Bailes na periferia de São Paulo são encerrados sob violenta repressão policial, enquanto meninas são levadas de ônibus das comunidades onde moram para “animar a festa” nas baladas chiques

    Sexta-feira à noite, 20 de julho, periferia da zona sul de São Paulo. Na praça do Jardim Botucatu, aproximadamente 60 garotas entre 15 e 23 anos esperam para embarcar no ônibus que vai levá-las para a balada funk da NEXXT, famosa casa noturna na Vila Olímpia, na parte rica e mais central da zona sul. O “toque de recolher” (a saída), está previsto para meia-noite, segundo o convite enviado às garotas via Facebook e torpedo telefônico.

    No ônibus para a balada chique, bebida à vontade para as meninas foto www.mediaquatro.com

    O programa é grátis, só não inclui o consumo de bebida na casa noturna. Mas os dois rapazes que promovem o evento se encarregam do aquecimento das moças. Carregando garrafas, a dupla transita pelo corredor do velho ônibus de turismo alugado e trata de manter os copos plásticos com vodka e soda sempre cheios. Ninguém recusa. A partida é dada com uma hora de atraso, à uma da madrugada.

    O ônibus é bem diferente daquele dourado estampado na página da NEXXT, no Facebook. Também não tem o logo da casa nem a imagem com garrafas de champagne que acompanham as frases direcionadas às garotas: “Leva para a NEXXT e, no final da noite, leva embora. De graça. Só para mulheres”.

    Animadas pelos drinks, as meninas não parecem se incomodar com a diferença. O tal modelito “periguete” predomina. Vestidos justos e curtos, apesar de um dia de frio intenso do inverno paulistano. Sandálias com grandes saltos. Maquiagens fortes, principalmente nos olhos.

    Quando descem, 40 minutos depois, causam alvoroço no trânsito da rua estreita que abriga outras casas noturnas, como a History, para um público “mais maduro”. Embora o convite prometesse dispensá-las da fila, as meninas ficam meia hora para entrar na área VIP, atraindo os olhares masculinos. Os rapazes que as trouxeram conversam com uma funcionária da casa sobre outra balada, na boate Cabaret, no Brooklin, e garantem levar mais ônibus lotados de meninas.

    Na entrada da boate NEXXT, as meninas de roupa curta atraem os clientes endinheirados – foto www.mediaquatro.com

    Aos poucos, as garotas são liberadas para subir aos camarotes, no piso superior, onde se juntam a duas dezenas de meninas que vieram de outros pontos da cidade. Agora, são cerca de 80 as que entram de graça para “animar” a área VIP. No ambiente pouco iluminado, com sofás e mesas de sinuca, a proporção é de três mulheres para cada homem. Eles pagam R$ 60 de entrada ou R$ 120 com consumação e mais a bebida das moças.

    O funk toca alto nas caixas de som. A sensualidade rola solta no salão. Perto das 2h da manhã, algumas meninas já estão semidespidas nos cantos mais escuros da área VIP. Cigarros de maconha e comprimidos de ecstasy circulam nas mãos das jovens até 5h30 da manhã, quando o público começa a sair.

    Para as meninas, é hora de pegar o ônibus de volta ao ponto de partida e arrumar por conta própria outra condução que as leve para as comunidades onde moram em Heliópolis, Vila Brasilina, Vila Moraes, Parque Bristol, Água Funda, Jardim Maristela e Jardim Celeste. Nesses bairros, onde elas costumavam dançar funk, os bailes acabaram por causa da repressão policial. Além do barulho, que incomodava os vizinhos, a polícia alegava a presença de drogas e álcool para justificar a violência como que entrava para encerrar as festas.

    Ironicamente, ao menos três crimes podem ser identificados na cena descrita nos parágrafos acima, como explica o advogado Fernando de Oliveira e Silva, de São Paulo, especialista em crimes de gênero:  “Além do óbvio, ou seja, oferecer bebidas alcóolicas para menores, fazem promoção da prostituição, mesmo que sem a percepção das meninas. Também existe incitação ao crime, o incentivo à prática da própria prostituição. É dever do Estado assegurar que isso não ocorra”, esclarece.

    Na periferia, funk e droga dão cadeia

    Em 2011, a Polícia Militar montou a Operação Pancadão, batizada em referência à batida do funk, digna de uma operação de guerra, que acabou com bailes no Campo Limpo, Heliópolis, M’Boi Mirim, Jardim Ângela, Jardim Capelinha, Jardim Cupecê, Tremembé e ABC Paulista. Assim, os eventos ligados ao ritmo passaram a ser realizados de surpresa, combinados de última hora e sem local fixo, mesmo nos bairros por onde a operação não havia passado. As notícias sobre a truculência policial que entrava nas ruas jogando bombas de efeito moral, deixando pessoas feridas por balas de borracha ou sprays de pimenta, correram entre os jovens da periferia.

    Nos bailes desmantelados e depois proibidos, comerciantes das comunidades foram – e ainda são – autuados por venda de bebidas alcóolicas a menores e de festas sem alvará. Invariavelmente, os aparelhos de som dos carros acabam apreendidos. “A polícia age com uma violência incrível. Criminalizam todos os que estão no baile ou ao redor dele e batem indiscriminadamente. É uma correria só. Claro que tem reclamação da vizinhança, mas a molecada faz na rua porque não tem opção de lazer na comunidade”, diz Sandro Soares Silva, o MC Sandrinho, morador de Heliópolis.

    “Revestida pela autoridade moral de lei e ordem, a polícia é acionada para repreender a manifestação cultural da periferia valendo-se, inclusive, de força desproporcional. É muito mais do que uma ação para garantir silêncio e respeito na comunidade. É uma forma carregada de preconceito e de imposição ideológica”, comenta o historiador pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Quilombo Raça e Classe, Wilson Honório da Silva.

    A violência contra a molecada funciona. No Jardim Jaqueline, na zona oeste, havia dois pancadões: às sextas-feiras, o Baile da Princesinha, e aos sábados, o Baile da Parada Final. Nenhum deles foi alvo da polícia, mas os organizadores preferiram adotar padrão itinerante para evitar confrontos. “Quando soubemos que outras comunidades, mesmo distantes, tinham sido invadidas, escolhemos avisar local, data e hora do baile pouco tempo antes dele acontecer. Muitas vezes, nem conseguimos fazer”, explica Fabiano de Souza, que mora no bairro e promove eventos.

    Os empresários dos artistas dos bailes também buscam se distanciar depois da operação policial. Na Máximo Produtora, que administra as carreiras dos MCs Guimê, Rodolfinho e Danado, todos com milhões de acessos no Youtube, é possível sentir a apreensão que acompanha a declaração da assessora, ao cancelar uma entrevista marcada há dias: “Aviso que os meninos não vão falar nada sobre a invasão da polícia”.

    Repressão frequente

    Noite de 30 de junho de 2012. Cinco viaturas transportando 20 policiais militares chegam à comunidade de Heliópolis, na zona sul paulistana. Parte do contingente sai dos carros e caminha pelas ruas estreitas de armas nas mãos. A linha de frente, formada por homens com fuzis, metralhadoras e escopetas, é ainda mais intimidadora.

    A tensão toma conta dos moradores do bairro. O pernambucano José Cláudio da Silva, que reside há 20 anos em Heliópolis, se diz acostumado às batidas da polícia, mas conta que o cerco apertou nos últimos tempos: “Começaram a vir mais vezes com a história de acabar com os bailes funk, sempre fazendo pressão, intimidando. É ano de eleição e querem mostrar serviço. Os meninos faziam muito barulho, atrapalhavam o sono, só que não precisava ser assim, na base da porrada, do medo”, opina. O filho de 15 anos o chama pelo celular. “Ele está na casa de um amigo aqui perto e ficou com pânico de voltar sozinho pra casa quando viu a PM”, detalha, antes de sair correndo para buscar o garoto.

    A ronda policial segue. As pessoas saem das casas para ver o que está acontecendo. Maria do Carmo Faria, há 12 anos na comunidade, conta que costuma acompanhar as quatro filhas nas festas. “Já fizeram até reportagem comigo. Sou a mãe que vai pras baladas com as filhas. Gosto de ver o que fazem, com quem falam, mas não vou pra proibir nada, apenas não gosto que se excedam”, esclarece. Sobre os bailes na rua, ela diz: “Os carros estacionavam e, com o som, o pessoal ia chegando. Era muito natural. A meninada dançava e batia papo. Claro que a maioria bebia, mas iam fazer o quê? Não tem nada pra fazer aqui”.

    “Entendo quem reclama. Muitos precisam dormir pra trabalhar no dia seguinte. O problema é que ninguém negociou outra saída, não ofereceram espaços pra fazer os eventos e partiram logo pra violência. Tem quem diga que havia gente pisoteada nos bailes. Só vi pessoas pisoteadas quando a polícia chegou batendo, jogando bomba, e pôs todo mundo pra correr”, conta o MC Sandrinho.

    Rola samba, rap e funk, mas nada de álcool

    Para tentar suprir a carência de lazer, desde 2005 acontece em Heliópolis a Balada Black – Festa sem Álcool, realizada todo último sábado do mês, ao som de rap, samba e funk, e entrada franca. Com apoio de uma multinacional do setor de bebidas, o baile ocupa a sede da União dos Núcleos Associações e Sociedade dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (Unas). Só são comercializados refrigerantes e água, cuja venda gera recursos para o fundo fixo do evento.

    “Começamos em 2005, querendo mostrar pra juventude que é possível se divertir sem beber. A balada dá certo, pois a comunidade abraçou a ideia. É um espaço de lazer e educacional, mas só conseguimos fazer uma vez por mês. Temos que admitir que não é suficiente para o jovem, que precisa de mais opções”, fala Reginaldo José Gonçalves, o DJ Reginaldo, um dos idealizadores do evento.

    Balada Sem Álcool em Heliópolis – foto www.mediaquatro.com

    Adolescentes e até crianças formam o público da Festa sem Álcool, que começa às 20h e vai até a meia noite e meia. As músicas escolhidas pelos DJs, inclusive o funk, são tocadas em versão “light”, com letras menos picantes. Os mais velhos costumam ir para outras baladas no fim da festa. “Pensamos em trazer os jovens aqui pra conscientizar, mas não pedimos pra não se divertirem em lugares onde tenha álcool e músicas mais pesadas. O que dizemos ao pessoal mais velho é que beba sem se matar e, aos mais novos, que evitem bebidas antes do tempo”, reforça Reginaldo.

    Para continuar se divertindo na madrugada, a única saída é ir para as áreas nobres da cidade ou outros municípios da Grande São Paulo. Roberta Faria, de 17 anos, moradora de Heliópolis, adota essa alternativa. “Na Balada Black, fui até os 12, 13 anos. Não é mais a minha. Hoje, eu e meu namorado buscamos diversão fora. Normalmente, vamos pra São Caetano, no ABC, que é mais próximo”, ressalta.

    Da periferia o funk migra para os Jardins

    Aproveitando a migração da periferia, casas como Black Bom Bom, na Vila Madalena, e Fantasy Club, nos Jardins, promovem bailes especificamente para atrair jovens das comunidades. Na mesma linha, a Mansão do Funk, em Moema, é frequentada todas as sextas por muitos moradores da periferia que lotam os carros para chegar até a casa, na avenida Ibirapuera. Como a balada começa às 23h, mas lota só depois das 2h, é difícil chegar de ônibus. Muitas moças têm convites VIP e são dispensadas de pagar entrada. Elas são acompanhadas de promotores do evento, normalmente rapazes da periferia que cumprem o papel de convidar garotas em quantidade.

    A reportagem da Pública foi às casas NEXXT, na Vila Olímpia, e Mansão do Funk, em Moema, e encontrou tudo o que é proibido na periferia. O público consome álcool fartamente e sente-se o cheiro da maconha na pista de dança, enfumaçada pelo gelo seco. Comprimidos de ecstasy e frascos de lança-perfume passam de mão em mão. No banheiro, pinos de cocaína são abertos sobre carteiras ou qualquer outra superfície lisa para serem cheirados. Os mesmos jovens proibidos de dançar funk na periferia em bailes de rua que as autoridades qualificam como apologia ao uso de drogas, podem usá-las livremente no bairro nobre. Nem a presença de uma policial fardada do Corpo de Bombeiros inibe os frequentadores.

    Cinara Menezes é a DJ da noite. Nasceu na cidade de Belém do Pará, mas foi criada em São Paulo, “na quebrada da zona sul”, como faz questão de frisar. “Cresci no Jardim Germânia, na zona sul. Vivia em condomínio, mas tinha contato com a comunidade. Hoje, toco nas baladas e vem muita gente da periferia. O pessoal quer funk. Curto mais outros sons, mas eles preferem”, comenta.

    Moradora da Cidade Ademar, na zona sul, Letícia Ribeiro, 18 anos, adora os bailes na zona nobre: “Não tem comparação. Aqui, as opções são maiores. A comunidade é só pra morar. Se quiser diversão ou trabalho melhor, a pessoa tem que sair”. A menina que está ao lado de Letícia sorri, mas avisa: “Não posso sair em foto. Tenho 16 anos e meu pai não sabe que estou aqui, acha que fui dormir na casa de uma amiga”. Ela é da Comunidade da Paz, na zona leste, e quer viver outra realidade. “A gente vê TV e internet. No centro, as coisas são mais bonitas, tem mais oportunidades. Faço amigos e posso até arrumar namorado”, diz.

    Promotores dos eventos, como Luciano Roberto Pereira, o Lu, também moram nas comunidades. Ele divide o tempo entre o trabalho como motoboy e o de promoção de festas na zona sul. “Trabalho informando sobre as baladas e convidando a moçada. Passo a semana toda fazendo isso pra conseguir levar gente bonita e interessante das comunidades, homens e mulheres, pras festas”, explica.

    Proibidão? Só na periferia

    Historicamente, ritmos como samba e rap enfrentaram discriminação pela origem ligada a comunidades pobres e com presença abundante de negros. O funk é a bola da vez, criticado pelos temas sexistas e por fazer a apologia das drogas e do crime, segundo os seus detratores. Pura hipocrisia, diz o historiador Wilson Honório da Silva. “O argumento moralista pesa muito de um lado, o da periferia. Nas áreas ricas, a coisa é encarada com naturalidade. A cultura do pobre é criminalizada quando não reproduz aquilo e do jeito que o sistema quer”, avalia.

    O historiador lembra que o funk carioca chegou a São Paulo em 2001, com o sucesso da personagem Mel, de Débora Falabella, na novela o Clone, da Rede Globo. Mel era uma dependente química que frequentava bailes nos morros do Rio de Janeiro. “Esse funk ultra sexualizado veio via Rede Globo. Várias casas se especializaram em funk carioca e passaram a tocar algo que não tem nada a ver com o movimento funk dos negros estadunidenses. É algo degenerado, mas que é fruto do sistema em que vivemos”, analisa Wilson Honório.

    Em São Paulo, o som entrou primeiro nos bairros ricos; os bailes de rua da periferia surgiram em 2005. “Aqui em Heliópolis, os bailes de rock, música lenta e depois rap, foram perdendo força no final dos anos 90. Vieram as baladas, eventos maiores. Os DJs começaram a segmentar o som e alguns optaram pelo funk”, relembra o DJ Reginaldo.

    Com a profissionalização, DJs começaram a sair das comunidades para tocar nos lugares que pagassem mais. Para os moradores da periferia, sem dinheiro para ingressar em baladas fechadas, os bailes de rua eram a forma de conseguir diversão.  “Entre 2005 e 2006, a Equipe Máquina, um grupo de DJs, alugava equipamentos e, quando tocava, reunia uma multidão aqui. Disso, saiu o Bonde da Três, que tocava funk pra milhares de pessoas pelo menos uma vez por mês aqui em Heliópolis. Quem quisesse chegar, chegava. Sei que acontecia assim em outras comunidades também”, conta Reginaldo.

    Mais recentemente, sons automotivos de alta potência transformaram carros de passeio em trios elétricos sem a participação de DJs. Os tunings, veículos personalizados e preparados para reproduzir música num volume ensurdecedor, tornaram-se uma saída econômica para a juventude que frequentava os funks de rua. “A meninada se junta pra comprar um som de carro, pra ficar na comunidade e impressionar. Se tiram isso deles, vão pros bairros chiques, descobrem esse mundo, se sentem o máximo. Têm história pra contar no dia seguinte. Quando a gente sente na pele a diferença de tratamento que a policia dá de um lado e de outro, quer ficar no bairro rico”, comenta o promotor de eventos Luciano Roberto Pereira.

    Nas ruas do centro, o funk rola solto

    Nem mesmo a alegação de que a polícia tem que agir porque os bailes na rua incomodam os vizinhos resiste a um passeio no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, por exemplo. Ali, na rua Taguá, atrás das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), acontecem bailes quase todos os dias da semana. Em plena rua. O público é formado pela classe média, principalmente universitários da própria instituição.

    Com pedido de sigilo da identidade, um dos seguranças da FMU conta que as festas são realizadas há anos em qualquer horário e chegam a reunir duas mil pessoas. Apesar disso, ele jamais presenciou repressão policial, prisões ou autuações nas imediações. “Trabalho há anos aqui. Às vezes, é até pior de dia. Os carros param nos bares e abrem os porta-malas com som no último volume. Tem menores de idade, muita bebida e drogas”, destaca.

    Na Rua Taguá, bem atrás da Faculdade de Direito da FMU, a polícia não incomoda os baladeiros foto www.mediaquatro.com

    Poucas viaturas de polícia rondam o local; rotineiramente, uma ou duas. Em geral, estacionam na esquina da rua e não intervêm na aglomeração. “Veio um programa de TV aqui e, no primeiro semestre deste ano, a PM vinha mais. No segundo semestre, a coisa piorou de novo. O pessoal começa de manhã e vai até à tarde. À noite, vão das 21h às 23h30, quando fecham os bares por causa da Lei do Psiu”, observa o segurança.

    O som do funk não embala somente os alunos da FMU. Às sextas-feiras, é comum vizinhos reclamarem do pancadão saído dos alto-falantes dos carros de estudantes da Uninove, na Barra Funda, Universidade São Judas, na Mooca, e Mackenzie, no centro. Chamada por moradores, a PM vai aos locais e o som é desligado. Quando a viatura vai embora, o barulho retorna.

    Na Uninove, o início dos bailes é por volta de 20h. Carros ficam em fila dupla na avenida Dr. Adolpho Pinto e ligam os equipamentos de som. Em pouco tempo, a música toma conta da rua e dos alunos. Bares e calçadas lotam. Apenas uma faixa da pista é deixada livre para os veículos. A festa segue até a madrugada.

    Já os universitários da São Judas se concentram na Praça Maria Cândida, na zona leste. Moradores dos arredores chegaram a fazer um abaixo-assinado contra o pancadão. A PM ronda a área, mas permanece por poucos minutos. Aos incomodados, a Prefeitura diz que só fiscaliza ruídos em lugares fechados.

    Na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o público é de elite e o funk atrai milhares de pessoas às sextas-feiras, fechando ruas tradicionais entre as regiões da Consolação e de Higienópolis, um dos metros quadrados mais caros de São Paulo. Como os jovens das periferias, também buscam diversão. O sexo rola dentro de carros com vidros escuros, mas as drogas são consumidas nas ruas. Além de não sofrer nenhuma sanção policial, a festa algumas vezes conta com o apoio da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET) que fecha os acessos dos carros às ruas para garantir a segurança.

    *Colaboraram Gabriela Allegrini e Maria Eugênia Sá
    Fotos de Maria Eugênia Sá e Vinicius Souza – www.mediaquatro.com

  • Território de gigantes na arte e cultura, a Zona Sul entrega Marabu, a mais nova cria negra artística da quebrada

    Território de gigantes na arte e cultura, a Zona Sul entrega Marabu, a mais nova cria negra artística da quebrada

    Lucas Martins, dos Jornalistas Livres / Edição: Katia Passos, Jornalistas Livres

    Desde que lançou seu primeiro trabalho em 2018, o single Negócios, Marabu busca uma trilha específica para sua criação. Sem deixar de buscar no passado o que é importante para construir o novo.

    O músico e estudante de história, Matheus Santos, 23 anos, nasceu na Zona Sul de São Paulo, e adotou o nome Marabu para construir, não apenas novas canções brasileiras, mas toda uma musicalidade efervescente.

    Depois de duas faixas lançadas, o músico está preparando um álbum para tomar o mercado até o final do ano. Feito de forma colaborativa, com trabalhos de diversos artistas independentes e por meio de financiamento coletivo, o projeto exigiu uma intensa volta ao passado. Exigência feita pelo próprio artista, que deseja “usar o passado para entender o presente, pensando no futuro”. O clipe de Boa Sorte, segundo trabalho já lançado, também sairá em breve.

    O álbum é um projeto que busca, “criar um universo se utilizando de linguagens musicais brasileiras”, como descreve o jovem músico.

    Território de gigantes

    Além de ser berço do maior grupo de rap nacional, os Racionais Mc’s, a zona sul conta com diversos grupos de Slam e Saraus, formas poéticas pelas quais Matheus começou sua trilha artística. Não por coincidência é lá que surgiu a Cooperifa, um dos mais importantes eventos culturais da cidade. Criolo é outra cria da região.

    Em uma conversa com o repórter Lucas Martins, dos Jornalistas Livres, numa praça de SP, Marabu falou sobre o álbum, influências históricas, políticas e musicais que o trouxeram até aqui.

    Curta esse papo agora…..

    JL: Porque Marabu?

    Marabu: Marabu é como se chama quem conta história no ocidente africano entre o que hoje é o Mali, na etnia Fula. Vi esse nome há bastante tempo e sempre achei da hora a sonoridade e o significado. Independentemente do que a gente trata e não é só história triste, dos problemas, quando pegamos o microfone, estamos contando uma história, uma narrativa. E faz um ano que assumi esse nome artístico. Faço o corre do Slam da poesia, faz uma cota e sempre tive vontade de fazer música, mas era inacessível, havia falta de conhecimento, nunca estudei música e em um determinado momento decidi “me jogar”. Conheci o Levi Keniata [produtor musical], que já era próximo do Wellison Freire [produtor executivo] e do Cauê Carvalho [produtor executivo]. A Amanda Figueiredo é a assessora de comunicação e trampamos com essa estrutura. É meio que uma rede, mas eles também fazem seus corres. Realmente forma uma rede,

    Trampar com arte é muito difícil, principalmente a remuneração, a gente sempre tenta reverter alguma coisa, fazer o orçamento certo e pagar corretamente. Mas não é em valor de mercado e isso sempre trava e não é o modelo ideal. Mas temos conseguido caminhar com o que dá.

    JL: Qual é a proposta do disco?

    Marabu: A proposta é não buscar uma estética musical na brisa estadunidense como o Rap de lá, que por mais que ele tenha criado outra vertente no Brasil, tem uma cara muito gringa. Tudo que a gente cria agora para o disco também tentou colocar ao máximo na faixa Boa Sorte e um pouco na Negócios. A ideia é criar uma nova estica para o Funk porque o disco é disco é de funk, com uma outra proposta narrativa, poética, melódica, mas não sei nem se é nova, porque a gente busca muito fundamentos nas antigas. E para trampar eu procuro ouvir sempre Neguinho do Kaxeta, PP da Vs, Felipe Boladão. Conhecemos o que a indústria do Funk propõe, uma indústria cada vez mais está vinculada às grandes gravadoras e não estou fazendo um juízo de valor dessa brisa, mas sim chamando atenção para o que pode surgir disso, que é uma brisa de preto, de terreiro, que veio do Rio e passou pela baixada até chegar em São Paulo. Então eu não acredito que para artistas de quebrada o Rap e o Trap sejam as únicas linguagens para contar narrativas fora do comum. A gente pode fazer isso no Samba, no Funk porque uma linguagem não pertence a uma única narrativa e na Negócios, demos um passo, a Boa Sorte enverga mais e no disco todo vamos trazer isso mais do que nunca. As duas faixas foram criadas para Sarau e Slam, mas elas se transformam em música. E elas carregam um pouco da brisa do Rap, por ser falado. Mas minha musicalidade busca ter outro destino. No Slam e no Sarau eu já sentia uma brisa muito diferente do que eu propunha. Eu buscava uma melodia, uma outra estética.

    JL: Existe uma narrativa no disco?

    Marabu: O que dá para adiantar é que o disco fala do presente. Não sei bem como os artistas chapam com isso, mas acho que muitos fazem e fiquei muito feliz quando percebi. A ideia é tratar o presente e o futuro como não muitos distantes porque o futuro acontece amanhã, daqui cinco minutos. Pensa o futuro sempre tentando compreender o presente. O disco tenta materializar o presente para entender o futuro em todos os aspectos, políticos, artístico e cultural.

    JL: Como historiador essa relação entre tempos fica mais fácil…

    Marabu: Com certeza. As pessoas acreditam que a história é sobre o passado e não é. A história é fundamental para compreender o presente e para imaginar, mas não conseguimos nem chegar perto do que vai ser o futuro. Por exemplo, enquanto a gente está aqui trocando ideia, estamos ouvindo mandelão [que toca ao fundo, em uma barraquinha no meio da praça] e por mais que pareça extremamente digital o que marca o ritmo nessa música é um agogô que está numa clave de congô. Congô que é clave de terreiro, de tambor de terreiro. Ninguém no passado imagina que futuro seria assim, que teríamos um agogô distorcido nesse grau e sincronizado no ritmo das músicas. Mas foi o que aconteceu. A musicalidade no Brasil e das quebradas daqui se vincula aos tambores. Não dá para pensar nossa música sem percussão, sem ritmo. Mas não é aquela brisa romântica de globeleza, escola de samba. O funk e o pagode estão nisso, nada foge disso. Negar seria ignorar nossa identidade. Sempre falo sobre isso. Qual é a nossa identidade e das pessoas criadas aqui? Nossa identidade é roubada o tempo todo. Principalmente as pessoas pretas e de quebrada. É como se arrancassem nosso braço e a gente tivesse que ficar se convencendo que existe um outro braço que vai encaixar no nosso corpo. É isso que a gente tenta contar, como o samba e o pagode, junto com o Funk. Por quê tocaram tanto no ouvido das quebradas, por que as pessoas são tão apegadas? Não tem como negar isso. Mas não sei se minha graduação se encontra com minha arte em algum lugar. A história é uma coisa bem da hora, mas a graduação é outra coisa. Não tem história da Ásia na grade, tem história do brasil, mas pela referência colonial. Seis meses de história da África, só para falar que tem. E eles sabem disso, professor da USP sabe disso. Por que ninguém se mobiliza para mudar? Não é interessante para ninguém. Eles querem estudar os ancestrais deles, os ancestrais italianos. Pela graduação não me deram instrumento para pesquisar, mas a gente vai atrás. Trabalhei três anos no núcleo de consciência negra, e lá eles têm esses instrumentos. Foi o que me trouxe muitas dessas ideias.

    JL: Como está sendo o processo de produção do disco?

    Marabu: Dentro do estúdio, nos dois projetos anteriores, ficava a maior parte do tempo só eu e o Levi. E em Boa Sorte, o Matheus Miranda [engenheiro de gravação] que também trampou com a gente. Mas sempre fazendo essas mesmas perguntas. Dentro do estúdio, pensando, perguntando e ouvindo. Esse foi o primeiro processo, se perguntar e buscar essas estéticas. Mas o que eu tenho hoje e o que eu faço hoje, para o disco, tem muito desses processos, mas eles não dizem do que quero falar agora. Então fico muito na emergência de precisar lançar outras coisas e continuar fazendo novas coisas. Para ser um artista cada vez mais contundente.

    Para pensar a estica visual e conceito teve muito do fotografo Felipe Cardoso, na Negócios, e a Mariane Nunes, uma cineasta foda de São Paulo, junto com o designer Beatriz Carvalho. Em Boa Sorte a obra de arte é da Linoca de Souza, uma aliada de muito tempo do Campo Limpo e uma artista visual, A montagem do clip é do Vitor Sepinho. Tudo nesse esquema de rede “tenho esse tanto pra pagar para você, vamos fazer? Demorou!” e tem sido à duras penas. No disco a gente está trampando com a Nazura que vai fazer toda a parte visual do disco e o Levi produzindo, junto com o Matheus.

    JL: Você vive em tripla jornada. Estuda, trabalha e produz o disco…

    Marabu: Viver de arte em São Paulo, é quase impossível. A maior parte dos artistas independentes trabalham assim. Conciliando duas, três jornadas. Tem artista que é mãe, graduanda musicista e ainda tem outro trabalho. E a gente tenta encontrar o ponto de intersecção de tudo isso.

    JL: E o cotidiano do processo?

    Marabu: Eu trabalho no disco todos os dias, ouvindo sempre o material e passo dois dias imerso no estúdio com o Matheus e o Levi. Criamos o conceito e a composição fina, algumas com voz e violão outras com percussão. Depois a gente vai fazer o arranjo instrumentação final e gravação das vozes. Essa é a brisa, na lógica comercial se faz música toda semana. As músicas ficam prontas em um ou dois dias e até funciona. Eu chapo em várias coisas que são produzidas dessa forma, mas penso detalhe por detalhe para encaixar tudo no conceito. Eu tenho a brisa de fazer um álbum, que tem um conceito e esse conceito segura as faixas.

    JL: Isso vai além das letras?

    Marabu: Completamente. Nesse universo que a gente quer para o álbum, nos perguntamos: como as pessoas são? Como se transportam de um lugar para outro? Como são os pichadores? Como são as músicas? E o álbum pretender criar as músicas para esse universo. Minha brisa é criar um universo não qual a gente possa continuar trabalhando daqui para frente e deixar um bagulho aberto para outros artistas, uma árvore com a semente de uma outra. Se outros quiserem entrar nesse universo e criar outras brisas lá dentro, vai que vai! Acho que cada música do disco é tão bem pensada que acaba criando a possibilidade a possibilidade de criar um outro universo a partir dela. Esse é o caminho, pensar estética, conceito, arte e linguagem.

    JL: Existe um lado romântico no disco?

    Marabu: Essa coisa de amor paixão, amor romântico, está presente. Mas como funciona o amor romântico nesse universo? Como é universo dos pretos, das quebradas? O que é o amor romântico? É essa brisa pensada pelos europeus, criadas pelos europeus. Quando a gente pensa em amor romântico a gente pensa em Romeu e Julieta. E agora estão pensando em relacionamento aberto, não monogâmico, mas ainda quem está pensado são os europeus. A estética vai ser deles. E como isso funciona para nós? Tem que tomar muito cuidado, eu não estou falando só de mim. Estou falando de outras pessoas também. Acaba tocando em outros ambientes de quebrada, sobre os pretos, que não é só meu.

    Se eu falo de um ancestral esse ancestral não é só meu. Então tem que tomar um cuidado e um respeito porque fala de outras pessoas.

    A gente tem perdido muito o respeito por nós mesmos. Pense que em São Paulo uma boa parte das quebradas elegeu políticos que estão aí. Isso é perder o respeito por você mesmo. No Rio de Janeiro os filhos do presidente quebram a placa com o nome da vereadora [Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018] que trampava nas quebradas. E várias pessoas de quebrada acham que isso é normal. Isso é perder o auto respeito.

    JL: O disco tem uma pegada política ou alguma passagem sobre o cenário atual?

    Marabu: Tem um espaço de poder criado, que surgiu quando o Brasil virou uma república através de um golpe, e esse espaço está sendo disputado até hoje. Eu não acredito nesse espaço como um território de transformação e mobilização real das pessoas para que elas exerçam a vida política.

    A concepção política, repúblicana e democrática que temos, é antiga e não foi pensada por nós. O Brasil é um Frankenstein social. A gente criou uma sociedade, que envolve muitas diásporas, genocídio, movimentos migratórios. Esse espaço tem que ser totalmente repensado e não será por essa realidade que está aí no poder: hoje vivemos o resultado dos atos da centro esquerda brasileira.

    Alternância de poder, dentro dessa lógica, é uma palhaçada. Alterna o poder e a gente se fode um pouco menos aqui, para se foder um pouco mais depois. No Estado de São Paulo nunca deixamos de ter um governo de direita e convivemos pacificamente com isso, ouvindo há duzentos anos os mesmos políticos falarem. E mesmo quem quer falar diferente, como o PT, tem que negociar. E com essas negociações a gente vai atrasando o futuro e o presente futuro das quebradas. Essa realidade foi pensada para agilizar o lado da branquitude e da elite brasileira.

    JL: Mas de qual forma você aborda isso no álbum?

    Marabu: Isso não é abordado diretamente, porque se a gente quer pensar o novo, temos que começar com novas perguntas. O álbum não pretende ser um panfleto político. São abordadas questões subjetivas, políticas sim. Eu te trombar para falar para esse veículo de comunicação, nesse lugar da cidade, tudo isso representa muita coisa. Se eu não tivesse a condição, se não tivesse uma política pública para me oferecer, como universitário, condução de graça eu não estaria aqui. Você teria que ir ate minha quebrada para falar comigo. Já mudaria muito a lógica. Então, o disco é político, mas ele é artístico em primeiro lugar. E pretende ser tão artístico que não tem como fugir da política. Diz tanto sobre nós que acaba sendo político. Quem faz arte? Como é viver de arte? Quem pensa arte? Quais as políticas públicas que pensa na arte, se é que elas existem? Quando a iniciativa privada entra na arte e quando entra, por que ela entra?

    JL: A forma de produzir é uma forma política em rede e independente? E como você falou, não alcançado o valor de mercado para a produção, isso não é o ideal já que não é possível viver só da produção….

    Marabu: Dizer que a gente não quer dinheiro, não dá. A gente tem que viver. Mas tem muita gente que vive de arte e música sem perder a contundência artística e a relevância como os Racionais e o Emicida que não perderam a brisa artística. Mas a maioria das pessoas que circulam no meio são da elite. Eu pretendo ser o artista, e eu acho que o Criolo é esse artista, que cria uma brisa nova. Que cria uma linguagem nova. E quando todo mundo compreender essa linguagem, eu crio outra. O Criolo é esse mano, que está caminhando e quando você acha que entendeu a caminhada dele, ele mesmo se dá uma rasteira e volta, de outro jeito. E hoje é assim, quando você compreende que a coisa é presente, é porque já virou passado. Quando chega no Facebook e na Globo, já é passado. O futuro e o passado estão muito perto.

    JL: O Emicida lançou há pouco tempo uma música que recuperou Belchior…

    Marabu: Tem a questão de buscar fundamento musical nos artistas, como o Belchior. Mas o que ele busca no Belchior é muita brisa poética. E nesse disco, Alucinação [do Belchior], ele compreende muito bem o tempo dele. Tao bem e com perguntas tão fodas sobre o futuro a ponto de um artista como o Emicida conseguir ir lá revistar e achar algo que precisa ser dito hoje. É o uso do passado para entender o presente, pensado no futuro. Isso parece ser novo. Mas é algo que os pretos já fazem faz tempo. As quebradas já vivem faz tempo. E a gente pensar no que se tem feito com o Funk hoje, se tem feito algo que mira o pop estadunidense. Não ritmicamente, que é mais nosso, mas na linguagem. E em São Paulo, as pessoas pretas de daqui, tem que aprender com as pessoas pretas do resto do Brasil. A gente fica sempre mirando o de fora. É muita arrogância. Tem gente produzindo arte no Amazonas, no Pará, em Recife. E São Paulo é uma esquizofrenia, as pessoas realmente acreditam que são o outro. Os pretos têm um grande problema de identidade, os índios e os brancos também. Está todo mundo querendo ser o outro. Legal que eles se preocupam com a sua ancestralidade e o Estado corrobora.

    JL: Já que você busca falar daqui e parece pelo que que fala, São Paulo é uma das personagens do álbum?

    Marabu: São Paulo e principalmente minha quebrada, o Capão Redondo. O disco tenta pensar, nesse universo que o Marabu está pensando, como é esse Capão Redondo? É uma ótica de Capão redondo e tenho certeza que ela vai tocar outras pessoas. É por isso que Racionais ainda funciona, falaram “nós tá localizado nesse lugar aqui”. A gente fala de todas as quebradas, mas no limite é sobre essa aqui. Só quem mora no Capão, sabe como é o Capão pela lógica de funcionamento. Se você para conversar com meu pai, minha mãe e meus avós, as histórias batem. O que é o cemitério de São Luís? O cemitério que mais recebeu em São Paulo, pessoas mortas em homicídios e esse fenômeno é uma coisa de lá. O disco vai falar dos fenômenos do Capão.

    JL: Como você mencionou, que é do Capão, o disco tem influência de Racionais ?

    Marabu: O disco tem muita referência a isso. Racionais nos criou. Meu pai nunca ouviu muito RAP, mas eu ouvia Racionais com ele. O sentimento de quem mora no Capão é muito único. Todo dia, quando pegamos o metrô vemos o grafite lá na porta. Dentro dessa régua que mede o tempo das quebradas, no Capão, os Racionais estão lá. Em um dos fenômenos desse tempo que não foi pensado. E a esquerda branca brasileira se utilizou muito de movimentos, como os Racionais, para entrar na quebrada. Se não fossem eles o PT não teria tido a mesma abrangência nos anos 80 e 90, no Capão Redondo. Por isso o Brown tem a moral que tem, pra chegar e falar “o PT tem que voltar para a base. Eu levei vocês para minha quebrada, olha o que vocês viraram. Pegue vocês pela mão e levei na minha quebrada”. E assim como o RZO é da Zona Oeste, o Daleste da Zona Leste, como o sempre Neguinho do Kaxeta e o PP da Vs são da fenômenos da baixada. É muito bonito isso. O disco vai ter 8 faixas, todas inéditas.

    JL: Planos para depois de finalizado o ábum?

    Marabu: Cantar em todos os lugares que der para cantar. Eu quero me fazer muito presente no meu Estado, na idade e no país.

  • GENOCÍDIO NO FUNK: MC SAPÃO E RENNAN DA PENHA

    GENOCÍDIO NO FUNK: MC SAPÃO E RENNAN DA PENHA

    “ Favela é só o papo reto, não somos fã de canalha!”.  Ecoa o bordão de uma das canções mais conhecidas no processo de popularização do funk nas últimas décadas no país. Como ironia do destino,  o refrão na voz de MC Sapão surge como um grito dos favelados para a hipocrisia da elite que rebola até o chão com o pancadão nas suas festas de luxo, mas, na  primeira oportunidade, aperta o gatilho para os profissionais do gênero musical. Desta maneira, a branquitude se apropria dos códigos da cultura negra em seu universo privilegiado, produzindo ao mesmo tempo, o apagamento das narrativas reais destes jovens negros oriundos de favelas e periferias.

    Os casos recentes da morte de MC Sapão vítima de peneumonia num hospital público de Campo Grande e criminalização  do DJ Rennan da Penha por associação ao tráfico desvelam o processo de genocídio artístico dos profissionais do Funk.

    Como entender o processo do genocídio artístico  dos negros brasileiros?

    A naturalização dos corpos negros associados a mecanismos de criminalização da pobreza à páginas policiais  constroem um estranhamento no imaginário social quando estes sujeitos são produtores de cultura e protagonistas das suas próprias narrativas.  O domínio do conhecimento e a perspectiva de prestígio social sempre foram associados a “espaços brancos” de poder na sociedade brasileira. Ao serem reconhecidas em espaços de produção de cultura, economia ou formulação do pensamento intelectual da sociedade, pessoas negras são frequentemente colocadas à prova de questionamentos ou reprovação social .Quando as mesmas subvertem  as estatísticas da sociedade estrutural racial e excludente, por meio de estratégias sociais , acabam por sua vez sendo criminalizadas e deslegitimadas socialmente por seu talento ou inteligência.

    O genocídio do povo preto no Brasil é um processo sistêmico, construído historicamente que não se limita apenas ao extermínio da população negra ou encarceramento em massa. O simbólico também produz a morte ao ocultarmos referências e produções culturais e acadêmicas da população negra ou silenciarmos suas vozes em diferentes espaços.

     

    No caso do falecimento de MC Sapão na semana passada, o que  chamou a atenção de muitas pessoas que lembram do artista como um dos ícones da cena do funk foi o triste desfecho de sua trajetória de vida. Sapão atingiu o auge nos anos 2000 e seus shows nos anos de 2005 e 2006 chegou  a ter cachês altíssimos pelo Brasil. Foi atração de grandes festas de Reveillon em hotéis de luxo do Rio de Janeiro. Começou então a dominar o nicho de shows em casamentos de pessoas famosas, sendo a principal atração do casamento Bruno Gagliasso e Giovana Ewak em 2010, hoje um dos famosos mais influentes no cenário do show business. Como a maioria esmagadora de funkeiros, começou pobre e com muitas dificuldades de se firmar no cenário fonográfico. Aos 18 anos, foi preso por associação e apologia ao tráfico e no cárcere compôs a música “ Eu sei cantar”, em que intitulava ser o memorial da sua vida, clamando por liberdade e direito de voltar a ser MC nos bailes. Sapão sempre apresentou problemas de saúde como obesidade e diabete, chegando a pesar 170 quilos. Emagreceu 50 quilos mas ainda apresentava saúde debilitada e frágil.Morreu aos 40 anos vítima de pneumonia num hospital público em Campo Grande, zona Oeste do Rio de Janeiro .  Não possuia plano de saúde e acumulava pendências financeiras da vida particular. Existiram redes de afeto e acolhimento que amparassem este artista durante este processo de complicações de saúde? Não! Mais uma vez um corpo negro é colocado a condição de “força”, influenciando relações interpessoais de cunho afetivo.Condiciona-se o homem negro a funções de trabalho e resistência física , anulando suas subjetividades. Assim Sapão mesmo debilitado, não diminuiu a rotina de shows, falecendo sem o reconhecimento midiático ou social à altura de seu feito na cena do funk.

     

    Outro fato bastante discutido nas redes foi a prisão do DJ Rennan da Penha, idealizador do consagrado evento “Baile da Gaiola” por associação e apologia ao tráfico de drogas no território . Ao se entregar a polícia esta semana, gravou um vídeo em lágrimas declarando sua inocência e agradecendo a mobilização dos movimentos sociais na defesa da sua causa. A fragilidade de provas judiciais consistentes que o apontam como “olheiro” do tráfico e a comoção das redes sociais não foram elementos suficientes para interromper o processo de criminalização do funk. Sendo responsável por organizar um evento com 30 mil pessoas no Rio de Janeiro, Rennan com apenas 25 anos driblou as estatísticas sociais de um jovem negro periférico. Persegue- se assim, narrativas de negros e negras que ousaram escrever sua própria história. Como castigo por burlar os mecanismos do genocídio em curso, finda-se o espaço de sociabilidade cultural mais famoso do Brasil, apagando a memória e identidade cultural das favelas cariocas.

     

    Por fim,  é sintomático constatar que um artista tão  relevante como MC Sapão teve o mesmo destino da maioria dos artistas, produtores e empreendedores negros do Brasil: morreu esquecido . E desolador perceber   os mecanismos de violência simbólica e real de um Estado que persiste em desacreditar e marginalizar o brilhantismo de jovens “ fora da curva” como o DJ Rennan da Penha. Carolina Maria de Jesus, escritora de relevância imensurável na literatura brasileira, foi explorada por empresários durante seu ascenço e execrada por alguns moradores de favelas que pensavam que ela estava rica. Morreu pobre e voltou a catar papéis na vida para sobreviver.Em uma das suas frases retratando a dura vida disse: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando.” . Que os artistas negros brasileiros possam  como Carolina criar estratégias para se combater o genocídio artístico, concretizando sonhos positivos em que possam ser agentes transformadores de suas carreiras.

    Mariana dos Reis é professora do Instituto Benjamin Constant, doutoranda em educação e militante no campo anti racista, de educação e feminista interseccional

  • NO RIO, UM SHOW DE FUNK FAZ A ZONA SUL SURTAR

    NO RIO, UM SHOW DE FUNK FAZ A ZONA SUL SURTAR

    Quem mora (ou não) na cidade do Rio sabe que o Arpoador, na ponta da praia de Ipanema, é um local frequente para shows de música de vários tipos. Ali se apresentaram nos últimos meses cantores como Nando Reis, Pitty, Paralamas do Sucesso, Ivete Sangalo, entre outros.

    Esta quinta (17) foi a vez de Mc Juninho do FSF, filho do funkeiro Mr. Catra. E a reação em nada lembra a de apresentações anteriores, sendo difícil distinguir a cobertura artistica do evento (que na prática não houve) das páginas policiais dos principais jornais da cidade.

    Em vez das tradicionais notas de Nelson Motta sobre o repertório dos artistas, para festa de funk – organizada desde a periferia, e não por empresários da zona sul – o tratamento foi todo com foco em roubos e confusões. O jornal Extra, por exemplo, trouxe vídeos dos crimes cometidos no entorno, ouviu banhistas que reclamaram que o lixo boiando seria de responsabilidade do evento e até um representante da Associação Arpoador Surf Club, que se disse indignado e relatou que “deixou de ir à praia” devido à festa que atraiu milhares de pessoas, a maioria negras.

    Não se trata de tratamento atípico. A verdade é que a receptividade para um show de música na cidade do Rio depende muito do ritmo de que se trata. Se é um evento de música ao gosto da classe média, com direito a letras que falam da delícia de ser adolescente até os 30, não há problema e os colunistas de imprensa são escalados para falar da qualidade do repertório. Se é show de funk, soa um alerta na vizinhança, e os jornais transferem o assunto da parte de cultura para as páginas policiais ou a discussão sobre ordem pública.

    Que há furtos e brigas em eventos que reúnem milhares de pessoas ninguém tem dúvida. Uma experiência no Rock’n Rio bastaria para comprovar. Ou uma simples virada de ano nas areias de Copacabana. Mas a persistente marginalidade do funk, ainda associado a bandidos, gera um tipo de reação particular que faz especialmente os moradores da zona da cidade surtarem.

    O evento de MC Juninho obteve sucesso e fez a alegria de mais de 5 mil pessoas no verão da cidade. E o poder público, ao invés de banheiros químicos e transporte, como é da sua obrigação providenciar, enviou a intervenção da Policia Militar em ação conjunta com a Guarda Municipal, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) e a Superintendência da Zona Sul.

    A pergunta óbvia para ser respondida é: seria este o mesmo tratamento das autoridades se o evento não fosse de cantores e público majoritariamente negros?

    Rodrigo Veloso especial para os Jornalistas Livres

  • Dia do Funk – Festa, homenagens e resistência

    Dia do Funk – Festa, homenagens e resistência

    Na última sexta-feira (07/07/2017) aconteceu a primeira comemoração do Dia do Funk em São Paulo. Com ares de ato sócio-político em defesa do gênero musical e homenagem ao MC Daleste, morto na mesma data em 2013, a festa aconteceu na Morada da Liga, casa da organização social Liga do Funk, reunindo MC´s, produtores e fãs do estilo para fortalecer o Funk como movimento cultural.

    O estilo musical que vem cada vez mais tomando conta das festas da classe média brasileira tem sua origem nas comunidades periféricas a partir de adaptações do Funk norte americano e mesclas com o ritmo Miami Bass. A batida dançante foi o que conquistou os brasileiros e parte da população viu nesse estilo a possibilidade de cantar suas vivências, as letras de funk brasileiras são marcadas pelas referências à vida na periferia, muitas falam sobre a criminalidade vista do lado de dentro, uso de drogas e sexualidade de forma explicita.

    Esse tipo de letra incomoda pessoas que entendem o funk como um incentivador da criminalidade e da prática sexual irresponsável, que enxergam os bailes como um recrutamento de pessoas dispostas a cometer e participar de atos criminosos, como especifica o empresário Marcelo Alonso em sua proposta de criminalização do funk, publicada no site de participação política popular, o e-cidadania e encaminhada ao senado em maio deste ano, após ter recebido mais de 20 mil assinaturas.

    O movimento cultural do Funk reagiu a esse projeto e vem se empenhando em mostrar que o ritmo musical é muito mais do que isso, é impossível negar o apelo sexual e a relação das letras com situações ilegais, mas existem muitas coisas positivas no funk que se sobressaem e colocam sua proibição como censura e mais um avanço do conservadorismo e do ódio às classes populares. O Funk atualmente emprega centenas de pessoas e mudou a vivência da periferia, é no funk que muitos que desejam deixar a criminalidade se encontram, além do simples direito à diversão, que por décadas foi negado a essas pessoas que não tinham acesso a nenhum aparelho cultural. Com a chegada dos bailes funk essa construção acontece de dentro para fora, criada na periferia, para a periferia e chamando a atenção de quem não vive ali e dos poderes políticos.

    Quanto a problematização das letras, os próprios funkeiros entendem a necessidade de debater sobre isso e vem se articulando para tal, sempre entendendo que as letras são diretamente relacionadas à vivência de cada um e aquilo que é cantado caminha junto com a qualidade de vida em que essas pessoas se encontram. Fala-se do tráfico pois é isso que é vivenciado, fala-se da pratica sexual de forma irresponsável porque a educação sexual ainda não chegou de forma responsável na vida dessas pessoas. A questão colocada é se vale a pena proibir ou educar? O movimento cultural do funk aposta em educar, organizações como a Liga do Funk se preocupam em orientar os tantos jovens que sonham ser MC e dar a eles oportunidades de aprendizado que abrangem os estudos musicais, mas também os sociais.

    Um grande avanço na luta contra o preconceito vivido por esse movimento é a instauração do Dia Estadual do Funk, que já é comemorado nos estados do Rio de Janeiro e do Espirito Santo e teve sua primeira comemoração no Estado de São Paulo em 2017, após sua aprovação em novembro de 2016. O projeto de lei foi apresentado pela Deputada Estadual Leci Brandão após a morte do MC Daleste e tantas reações que consideraram o assassinato positivo. O texto apresentado pela deputada na Câmara ressalta a inclusão da data como uma forma de lutar contra a discriminação sofrida por esse público e seus artistas.

     

    A escolha do dia 7 de julho está diretamente ligada a morte de Daleste, que foi baleado em 2013 enquanto se apresentava na cidade de Campinas, no palco, com mais de mil espectadores. O caso foi arquivado sem resolução. Para tornar esse dia um misto de homenagem, resistência e festa, a Liga do Funk promoveu em sua sede a comemoração da data que contou com apresentações de MC´s, poetas, discursos saudosos, participação da família de Daleste e a inauguração do projeto “Morada da Liga” que dará formação intensa para pessoas que desejem se envolver profissionalmente com o mundo do funk.

     

    Taís Di Crisci, é socióloga e cofundadora da GICA TV

     

    Veja entrevista com Bruno  Ramos da Liga do Funk e a Deputada Estadual Clélia Gomes sobre a “Lei do Funk”