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  • O que escrevem aqueles que, reclusos, oram?

    O que escrevem aqueles que, reclusos, oram?

    “A Terra é um presente para descobrir que somos amados. É preciso pedir perdão à Terra”, escreve o Papa Francisco

    Avenida dos Baobás, em Madagascar (Foto: Dennis van de Water)

     

    Justamente porque tudo está conectado (cf. Laudato si ’42; 56) no bem, no amor, justamente por essa razão, toda falta de amor repercute em tudo. A crise ecológica que estamos vivenciando é, acima de tudo, um dos efeitos desse olhar doente sobre nós, sobre os outros, sobre o mundo, sobre o tempo que passa; um olhar doente que não nos faz perceber tudo como um presente oferecido para descobrir que somos amados. É esse amor autêntico, que às vezes nos alcança de maneira inimaginável e inesperada, que nos pede para rever nossos estilos de vida, nossos critérios de julgamento, os valores nos quais baseamos nossas escolhas. De fato, agora se sabe que poluiçãomudanças climáticasdesertificaçãomigrações ambientaisconsumo insustentável dos recursos do planetaacidificação dos oceanosredução da biodiversidade são aspectos inseparáveis da desigualdade social: da crescente concentração de poder e riqueza nas mãos de muito poucas e das chamadas sociedades do bem-estar, dos insanos gastos militares, da cultura do descarte e de uma falta de consideração do mundo do ponto de vista das periferias, da falta de proteção de crianças e menores, de idosos vulneráveis e crianças ainda não nascidas.

    Um dos grandes riscos de nosso tempo, então, diante da grave ameaça à vida no planeta causada pela crise ecológica, é a de não ler esse fenômeno como o aspecto de uma crise global, mas de nos limitarmos a procurar – embora necessárias e indispensáveis – soluções puramente ambientais. Ora, uma crise global requer uma visão e abordagem globais, que passam primeiro por um renascimento espiritual no sentido mais nobre do termo. Paradoxalmente, as mudanças climáticas poderiam se tornar uma oportunidade para nos questionarmos sobre o mistério de ser criado e sobre o quê vale a pena viver. Isso levaria a uma profunda revisão de nossos modelos culturais e econômicos, para um crescimento na justiça e no compartilhamento, na redescoberta do valor de cada pessoa, no empenho para que aqueles que hoje estão à margem possam ser incluídos e aqueles que vierem amanhã ainda possam desfrutar do beleza do nosso mundo, que é e continuará sendo um presente oferecido à nossa liberdade e à nossa responsabilidade.

    cultura dominante – aquela que respiramos através das leituras, dos encontros, das diversões, nas mídia etc. – baseia-se na posse: de coisas, de sucesso, de visibilidade, de poder. Quem tem muito vale muito, é admirado, considerado e exerce alguma forma de poder; enquanto aquele que tem pouco ou nada, corre o risco perder até mesmo seu próprio rosto, porque desaparece, torna-se uma daquelas pessoas invisíveis que povoam nossas cidades, uma daquelas pessoas que não notamos ou com quem tentamos não entrar em contato. Certamente, cada um de nós é, acima de tudo, vítima dessa mentalidade, porque de muitas maneiras somos bombardeados por ela. Desde crianças, crescemos em um mundo em que uma ideologia mercantil generalizada, que é a verdadeira ideologia e prática da globalização, estimula em nós um individualismo que se torna narcisismo, ganância, ambições elementares, negação do outro …

     

    Portanto, nessa nossa situação atual, uma atitude justa e sábia, ao invés da acusação ou do julgamento, é acima de tudo a tomada de consciência. Somos envolvidos, de fato, em estruturas de pecado (como São João Paulo II as chamava) que produzem o mal, poluem o meio ambiente, ferem e humilham os pobres, favorecem a lógica da posse e do poder, exploram os recursos naturais, obrigam populações inteiras a deixar suas terras, alimentam o ódio, a violência e a guerra. É uma tendência cultural e espiritual que opera uma distorção em nosso senso espiritual que vice-versa – em virtude de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus – nos orienta naturalmente ao bem, ao amor e ao serviço dos outros. Por essas razões, a virada não pode vir simplesmente do nosso empenho ou de uma revolução tecnológica: sem negligenciar tudo isso, precisamos nos redescobrir pessoas, ou seja, homens e mulheres que reconhecem que são incapazes de saber quem são sem os outros e que se sentem chamados a considerar o mundo à sua volta não como um objetivo em si, mas como um sacramento da comunhão. Dessa maneira, os problemas de hoje podem se tornar oportunidades autênticas, para que possamos nos descobrir verdadeiramente como uma única família, a família humana. Enquanto tomamos consciência de que estamos perdendo a meta, de que estamos dando prioridade ao que não é essencial ou mesmo ao que não é bom e causa mal, o arrependimento e o pedido de perdão podem nascer em nós.

    Eu sinceramente sonho com um crescimento da consciência e do sincero arrependimento de todos nós, homens e mulheres do século XXI, crentes e não crentes, de parte de nossas sociedades, por nos deixarmos levar por lógicas que dividem, provocam fome, isolam e condenam. Seria bom se pudéssemos pedir perdão aos pobres, aos excluídos; então poderíamos nos arrepender sinceramente também do mal feito à terra, ao mar, ao ar, aos animais … Pedir e conceder perdão são ações que são possíveis apenas no Espírito Santo, porque Ele é o artífice da comunhão que abre os fechamentos dos indivíduos; e é preciso muito amor para deixar de lado o orgulho, perceber que se cometeu um erro e ter esperança de que novos caminhos sejam realmente possíveis. Portanto, o arrependimento para todos nós, para a nossa era, é uma graça a ser humildemente implorada ao Senhor Jesus Cristo, para que em nossa história essa nossa geração possa ser lembrada não por seus erros, mas pela humildade e sabedoria de ter sabido inverter a rota.

    O que estou dizendo talvez pareça idealista e pouco concreto, enquanto parecem mais viáveis as estradas que visam o desenvolvimento de inovações tecnológicas, a redução no uso de embalagens, o desenvolvimento de energia a partir de fontes renováveis etc.. Tudo isso, sem dúvida, não é apenas um dever, mas necessário. No entanto, não é suficiente. A ecologia é a ecologia do homem e de toda a criação, não apenas de uma parte. Como em uma doença grave, a medicina sozinha não é suficiente, mas é preciso olhar para o doente e entender as causas que levaram ao aparecimento do mal; assim, da mesma forma, a crise de nosso tempo deve ser enfrentada em suas raízes. O caminho proposto consiste, então, em repensar nosso futuro a partir das relações: os homens e as mulheres de nosso tempo têm tanta sede de autenticidade, de rever sinceramente os critérios da vida, de reorientar-se para o que vale, reestruturando a existência e a cultura.

     

    *publicado no livro Nostra Madre Terra. O extrato é publicado por Corriere della Sera, 16-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

     

     

     

     

    DEZ DICAS PARA ENFRENTAR A RECLUSÃO

    por Frei Betto

    Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.
    Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forcada pela pandemia:

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.

    2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.

    3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.

    4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.

    5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.

    6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.

    7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico.

    8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua.

    9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.

    10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.

     

  • Da Quaresma que chega

    Da Quaresma que chega

    Frei Betto

     

     

     

    24 de fev. de 2020 às 10:11, escreveu:

    São Paulo, Quaresma de 2020

    Queridos amigos e amigas,

        Como todos os anos, volto à Campanha de Quaresma – tempo de solidariedade e justiça. Talvez seja a primeira vez que você recebe esta minha carta, remetida todos os anos há mais de duas décadas. Trata-se de uma iniciativa para favorecer um projeto social no qual confio.

        Devido ao modo como o atual governo brasileiro trata a Amazônia, e a importância do Sínodo de Bispos sobre a região convocado pelo papa Francisco, creio que esta é uma oportunidade de manifestar nossa solidariedade aos povos amazônicos.

        Neste ano de 2020, a instituição beneficiária será um projeto da Amazônia – a Comunidade Fazenda São Sebastião, localizada à margem esquerda do igarapé Mapiá, município de Pauini (AM). O acesso é apenas por via fluvial. A cidade mais próxima, Boca do Acre, dista 70 km. A sede municipal, Pauini, a aproximadamente 200 km da comunidade por via fluvial. Sua população é de 19.426 habitantes (IBGE, 2019). Possui um dos IDHs mais baixos do país: 0,49.

        Cerca de 80 famílias vivem na Fazenda São Sebastião. A comunidade foi fundada em 1983 com a chegada de 60 famílias provenientes de Rio Branco (AC), assentadas pelo Incra. Hoje, sobrevivem do extrativismo e da agricultura de subsistência. A base da alimentação é peixe, caça, farinha de mandioca e culturas anuais, como arroz e feijão, cultivados em áreas férteis às margens do rio Purus e nos roçados de terra firme. A renda das famílias é proveniente de aposentadorias, programas assistenciais do governo, como Bolsa Família, e do extrativismo de produtos florestais, com destaque para o cacau nativo e a castanha.

     

        A comunidade vive em área isolada, desprovida de serviços básicos como energia elétrica e saneamento. Também não possui serviços de saúde nem recebe visita regular de médico ou agente de saúde. O posto de saúde mais próximo está localizado em Boca do Acre.

        A comunidade possui uma sala de aula multi seriada, com aproximadamente 20 alunos, de 1º ao 9º ano. No entanto, hoje, a escola é desprovida de professor regular. Funciona em espaço de aproximadamente 25m2, com problemas estruturais que não favorecem o aprendizado (goteiras, calor excessivo, falta de mobiliário adequado etc.). Parte da merenda e material escolar são fornecidos pela escola sede Cruzeiro de Céu.

        Tudo depende do serviço voluntário de duas mães, que se revezam no acompanhamento dos alunos e na preparação da merenda. A escola recebe, esporadicamente, a visita de professores da escola sede. As mães que dão suporte possuem escolaridade até o 5º ano, o que praticamente inviabiliza a aprendizagem dos alunos das séries posteriores.

        No entorno da comunidade residem aproximadamente 20 famílias com crianças e jovens em idade escolar, que não frequentam a escola por não haver disponibilidade de transporte até a sala de aula.

        A campanha deste ano está focada na estruturação da escola da comunidade, o que envolve: 1) construção de novo espaço para funcionamento (sala de aula, cozinha, refeitório e banheiros), incluindo toda a estruturação física; 2) contratação de dois professores e uma merendeira; 3) compra de material escolar; 4) compra de alimentos para complementação da merenda escolar; 4) viabilização do transporte escolar.

       

    http://www.isavicosa.org/pt/

     

  • Eleição democrática do terror

    Eleição democrática do terror

    Ele nada entendia da situação real do país.

    Nem demonstrava interesse por ela, embora atuasse ativamente na política. Por isso não gostava de ser questionado, irritava-se diante das perguntas como se fossem armas apontadas em sua direção. Não queria que a sua ignorância se tornasse explícita.
    Ser estranho, ele tinha olhos alucinados afundados nas órbitas, lábios espremidos, gestos cortantes. Todo o seu corpo era rígido, como se moldado em armadura. Ao ficar na defensiva, parecia uma fera acuada. Ao passar à ofensiva, a fera exibia garras afiadas e de suas mandíbulas pingava sangue.

    Sua fala exalava ódio, rancor, preconceito.

    Aliás, não falava, gritava. Não sabia sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um gesto de cortesia ou humildade. Evitava ao máximo os repórteres. Julgava suas perguntas invasivas. E temia que a sua verdadeira face antidemocrática transparecesse em suas respostas.
    Educado em fileiras militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens, enquadrar quem o cercava e ultrajar quem se opunha às suas opiniões. Jamais aceitava o contraditório ou praticava um mínimo de tolerância. Considerava-se o senhor da razão.

    A nação estava em frangalhos, mergulhada em crise ética, política e econômica, e o horizonte da esperança espelhado em trevas.

    Pelo país afora havia milhares de desempregados, criminalidade generalizada, corrupção em todas as instâncias de poder. O câmbio disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento era geral. O governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais fragilizado. O povo clamava por um salvador da pátria.

    Jovens desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de ouro.

    Era ele o cara, surfando na descrença generalizada na política e nos políticos. O Executivo se debilitara por corrupção e incompetência, o Legislativo mais parecia um ninho de ratos, o Judiciário se partidarizara submisso a interesses escusos.

    Ele se dizia cristão, e se considerava ungido por Deus para livrar o país de todos os males.

    Advogava soluções militares para problemas políticos. Movido pela ambição desmedida, se apresentou como candidato à eleição democrática para ocupar o mais alto posto da República, embora ostentasse a patente de simples oficial de baixo escalão do Exército.

    De sua oratória raivosa ressoava o discurso agressivo, bélico, insano. Haveria de modificar todas as leis para implantar uma ordem marcial que poria fim a todas as mazelas do país. Eleito, seria ele o comandante-em-chefe, e todos os cidadãos passariam a ser tratados como meros recrutas obrigados a cumprir estritamente as suas ordens.

    Prometia fortalecer o aparato policial e as Forças Armadas. Sua noção de justiça se resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil. Eleito, excluiria da vida social um enorme contingente de pessoas consideradas por ele sub-humanos e indesejáveis, mulheres, homossexuais, trabalhadores em luta por seus direitos e comunistas. Todos que se opunham às suas opiniões eram por ele apontados como bodes expiatórios da desgraça nacional.

    Seu mandato presidencial haveria de trazer a era de fartura e prosperidade.

    Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de trabalho a todos. Exaltaria os privilégios do capital sobre os direitos dos trabalhadores. Aqueles que o seguissem seriam felizes, e livres para sobrepor a lógica das armas ao espírito das leis. Os demais, excluídos sumariamente do convívio social.

    Enfim, após uma série de manobras políticas e forte repressão às forças adversárias, ele foi eleito chefe de Estado. A nação entrou um júbilo.

    O salvador havia descido dos céus! Ou melhor, brotado das urnas.

    Tudo isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na Alemanha alquebrada pela derrota na Primeira Grande Guerra. O nome dele era Adolfo Hitler.

    • Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

    **  Texto publicado originalmente em https://www.gentedeopiniao.com.br/colunista/frei-betto/eleicao-democratica-do-terror-por-frei-betto

  • De esperança em esperança!

    De esperança em esperança!

    Reunimos aqui alguns trechos de artigos que compõem o livro Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns: Pastor das periferias, dos pobres e da justiça.

    O Cardeal que salvou minha vida – Adriano Diogo

    Eu conheci D. Paulo quando estava preso no presídio do Hipódromo. Dom Paulo foi nos visitar dentro da cela, ele estava acompanhado de Hélio Bicudo, e nós entregamos a eles documentos sobre a tortura. Eu me lembro deles os esconderem por debaixo da roupa. Estávamos cercadíssimos, mas conseguimos passar as preciosas informações.

    Munido desses papéis, e de outros documentos que retirou no presídio Tiradentes, Dom Paulo fez uma denúncia a entidades internacionais e divulgou a tortura que era realizada no Brasil para o mundo inteiro.

    Isso foi em agosto de 1973. Eu não sabia, mas D. Paulo já havia salvado a minha vida.

    Um Cardeal amigo da inteligência e dos pobres – Leonardo Boff

    A sociedade brasileira lhe deve [a D. Paulo] uma contribuição inestimável com o livro “Brasil nunca mais”, relato de torturas a partir de fontes oficiais dos tribunais militares. Corroborou assim a desmantelar o regime e acelerar a volta à democracia.

    Uma bomba em casa – Ana Flora Anderson

    Ainda durante a ditadura militar Leonel Brizola pediu uma entrevista e foi atendido por Dom Paulo […] Enquanto eles conversavam uma das irmãs chamou Dom Paulo ao telefone. Era um militar que queria entrar na propriedade em vista de uma ameaça recebida sobre uma bomba. Dom Paulo respondeu que só tinha uma bomba na casa – Brizola!

    O Franciscano que antecedeu Francisco – Padre Ticão e Professor Waldir

    “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” [palavras proferidas pelo Papa Francisco]

    Paradoxalmente podemos dizer: “Dom Paulo entendeu e atendeu o chamado do bispo de Roma”. Dizemos paradoxalmente porque falamos de períodos opostos. Francisco inicia seu Pontificado 15 anos depois que Dom Paulo tornara-se Arcebispo Emérito. Como pode, então, ao que veio antes, atender o chamado do que veio depois?

    A Vizinha da Cúria Arquidiocesana – Ana Flora Anderson

    A Cúria, situada na Avenida Higienópolis, tinha como vizinha na época a Secretária Estadual de Segurança que se interessava muito pelas atividades da Igreja. Numa dessas reuniões, Maria Ângela BBorsoi, secretária de Dom Paulo, estranhou a presença de um senhor desconhecido, sentado perto da porta com um gravador. Ela disse a Dom Paulo que achava que era um espião do DOPS e que queria avisar frei Gorgulho e Ana Flora a tomarem cuidado na apresentação dos textos litúrgicos.

    Dom Paulo reagiu prontamente dizendo que Ana Flora e frei Gorgulho deviam falar tudo o que tinham no coração. Afinal, os agentes do DOPS tinham poucas chances para ouvir o Evangelho.

    Dois Gritos – Dom Pedro Casaldáliga

    Têm dois gritos da rebelião profética de D. Paulo que sintetizam toda a sua vida:

    “De Esperança em Esperança” e “Nunca mais”.

    Insubstituível – Henri Sobel

    Nesses tempos de incerteza, de crescimento da intolerância e do fundamentalismo em todas as religiões, eu me lamento pela falta que D. Paulo faz. Mas, por outro lado, aproveito para transformar esse lamento em uma nova injeção de ânimo. É preciso formar não um, mas dez, cem, mil Paulos Evaristos, homens comprometidos com o destino do seu rebanho e de todos os rebanhos do Deus que é um só.

    Dom Paulo e a construção da cidadania na periferia de São Paulo – Luíza Erundina de Sousa

    Em 1973, três anos após tornar-se Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo resolveu trocar a residência oficial das Arquidiocese, transferindo-a do Palácio Episcopal Pio XII, imponente imóvel no Bairro Paraíso, para uma casa simples no Sumaré.

    Com os cinco milhões de dólares resultantes da venda do imóvel, ele determinou a construção de 1.200 imóveis, na periferia da cidade, para sediar centros comunitários, onde a população passou a se reunir para discutir só problemas dos seus bairros e organizar a luta por creches, escolas, postos de saúde, moradia, asfalto, transporte, enfim, por direitos sociais e políticas públicas.

    Dom Paulo Evaristo Arns – Recordações – Frei Betto

    A história é implacável e jamais esquece. Ela cobra da igreja católica seu silêncio perante o genocídio indígena no Brasil (com honrosas exceções, como Anchieta e Vieira), a servidão escrava dos negros (sem exceções) e o holocausto dos judeus. Mas não há como deixar de ressaltar o papel de considerável parcela da Igreja ao regime militar.

    (…)

    Para alguns, a ditadura acabou, a democracia voltou, a luta terminou. Dom Paulo, “a luta continua”, pois seu ideal evangélico ainda não foi alcançado: o direito dos pobres e o fim da desigualdade social.

    O Franciscano que antecedeu Francisco – Padre Ticão e Professor Waldir

    A “irrestrita solidariedade” assumida por Dom Paulo, se manifesta abertamente tempos depois. Em 17 de março de 1973. O estudante de Geologia da USP, Alexandre Vannucchi Leme, com 22 anos de idade, é assassinado sob torturamos cárceres da ditadura.

    (…)

    Diante das declarações mentirosas apresentadas [de que Alexandre teria se suicidado], numa clara manifestação de total desrespeito a qualquer direito da pessoa, estudantes da USP decidem procurar o Arcebispo de São Paulo e pedir-lhe a celebração de uma missa em memória do colega assassinado. A missa é marcada para 30 de março de 1973.

    Diante de mais de cinco mil pessoas e mesmo sob pressão dos órgãos de repressão para que o ato não acontecesse, Dom Paulo realiza a celebração. A partir daquele evento, entidades civis que até então permaneciam caladas, começaram a se manifestar contra a ditadura. O ato realizado após a missa transformou-se na primeira grande manifestação pública de oposição ao regime.

    Até que enfim entenderam! – Ana Flora Anderson

    O pai de Frei Betto era Juiz Militar e o responsável pela prisão [de Frei Betto] o chamou para conversar. Mostrou-lhe a Bíblia de Frei Betto com muitos textos sublinhados. O pai entendeu que era assim que Betto mandava mensagens aos outros presos. Mas, o militar bateu a Bíblia na mesa e exclamou: Todo esse livro é subversivo!

    Dom Paulo escutou toda a história e respondeu: “Até que enfim eles entenderam!”

    Nota

    Os trechos acima foram extraídos do livro Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns: Pastor das periferias, dos pobres e da justiça. Organizadores: Professor Waldir Augusti e Padre Ticão. São Paulo, Casa da Terceira Idade Tereza Bugolim, 2015. 479 p.

  • Frei Betto: “O impeachment a Dilma é um golpe branco, à semelhança dos que ocorreram recentemente em Honduras e no Paraguai.”

    Frei Betto: “O impeachment a Dilma é um golpe branco, à semelhança dos que ocorreram recentemente em Honduras e no Paraguai.”

    Debate sobre redemocratização, em 1986. Compõem a mesa, entre outros, o sociólogo Florestan Fernandes e o professor Octavio Ianni. Frei Betto é o terceiro da direita para a esquerda. Foto: Helio Carlos Mello
    Debate sobre redemocratização, em 1986. Compõem a mesa, entre outros, o sociólogo Florestan Fernandes e o professor Octavio Ianni. Frei Betto é o terceiro da direita para a esquerda. Foto: Helio Carlos Mello

    Carlos Alberto Libânio Christo, o teólogo Frei Betto, 72, tem uma longa trajetória de luta pela democracia. Atuou em movimentos estudantis, pastorais e sociais. Foi preso político por duas vezes durante a ditadura militar: em 1964, por 15 dias, e entre 1969 e 1973. Do cárcere nasceram os livros “Cartas da Prisão” (Agir), “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco) e “Batismo de Sangue” (Rocco), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti.

    Foi torturado. Testemunhou as inúmeras torturas sofridas por Frei Tito ao nunca revelar aos militares o que sabia.

    Esteve ao lado de Carlos Marighella na guerrilha armada. Enfrentou os carrascos do regime militar e ajudou centenas de brasileiros a fugirem da morte anunciada. Estudou jornalismo, filosofia, antropologia e teologia.

    É ferrenho defensor dos direitos sociais e humanos e por esses trabalhos recebeu inúmeros prêmios.

    Diz que o contrário do medo é a fé, e não a coragem. E assim resistiu à repressão.

    Foi coordenador da ANAMPOS (Articulação Nacional de Movimentos Populares e Sindicais), participou da fundação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da CMP (Central de Movimentos Populares).

    Conheceu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1977, na greve dos operários no ABC paulista, quando Lula era líder sindical.

    Em 2003 e 2004 atuou como assessor especial do presidente Lula e como coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero.

    Autor de 60 livros, Frei Betto sabe exatamente o que é um golpe.

    frei-2Leia, a seguir, a entrevista:

    Jornalistas Livres – O senhor criticou a opção dos governos de Lula e de Dilma em “assegurar a governabilidade pelo mercado e pelo Congresso”. A crise que o governo está vivendo hoje nasce dessa mudança de posicionamento a partir de 2002?

    Frei Betto – Não só, mas também, pois o governo do PT não se empenhou em criar bases de sustentabilidade do projeto de desenvolvimento do Brasil. Adotou-se uma política econômica artificial, ancorada no consumo e na especulação, e não da produção e na valorização do mercado interno. Agora chegou a fatura…

    JL – O PT está pagando o preço por ter se distanciado dos movimento sociais? De que maneira isso se reflete no atual momento?

    frei-1

    FB – O PT preferiu ficar de braços dados com o empresariado e não com os movimentos sociais, que sequer conseguiram suportar a participação no Conselhão. E em 13 anos de governo nenhuma reforma de estrutura, nem a política, nem a agrária, nem a tributária, para citar as mais urgentes. Hoje, os movimentos sociais já não têm suficiente capacidade de mobilização para, nas ruas, superar a da direita que se manifesta pelo impeachment. E a esquerda não aprende: insiste em convocar manifestações em dia de semana, enquanto a direita, mais hábil, o faz no domingo.

    JL – No final do ano passado o senhor previu que a pressão pelo impeachment iria paralisar o país, opor as pessoas e comprometer a economia. Estamos vivendo exatamente esse ciclo. Na sua opinião, há uma ameaça real à democracia?

    FB – Evidente. O impeachment a Dilma é um golpe branco, à semelhança dos que ocorreram recentemente em Honduras e no Paraguai. As instituições brasileiras parecem entrar em colapso. A Câmara e o Senado presididos por dois acusados de corrupção, o Judiciário dependurado em um juiz de 1a. instância (Sérgio Moro), a Polícia Federal reclamando porque o ministro da Justiça ameaça puni-la caso prossigam os vazamentos seletivos.

    JL – Por que o impeachment seria um golpe?

    FB – Primeiro, porque a direita não dorme. E não se conforma de não estar comodamente instalada no Palácio do Planalto. Segundo, porque o PT não cuidou de politizar a nação em 13 anos de governo. Daí o debate político ter decaído do racional para o emocional. Haja ódio…

    JL – Como o senhor vê a abordagem da Justiça ao ex-presidente Lula no âmbito da Lava Jato?

    “Ninguém está acima da lei, mas um homem que presidiu o Brasil por dois mandatos, tirou 45 milhões de pessoas da miséria e saiu do governo com mais de 80% de aprovação merecia mais respeito. A medida coercitiva que o prendeu em casa e o levou ao aeroporto de Congonhas (onde havia um jatinho da FAB pronto para transportá-lo a Curitiba…) foi típica da ditadura. Lula não era um foragido da Justiça.” Frei Betto

    JL – O que o senhor pensa sobre Lula ser ministro?

    FB – Acho um equívoco. Não é Lula ou qualquer pessoa que salvará o governo, é o próprio governo que enfia o pescoço na corda ao promover esse ajuste fiscal que penaliza sobretudo os mais pobres, não fazer a auditoria da dívida pública nem realizar reformas estruturais. Lula é uma “reserva” eleitoral do PT para 2018. Agora, se Dilma afundar ele afunda junto… E nada indica que ela esteja disposta a dar um cavalo de pau na economia.

    JL – O senhor conhece o Lula há muitos anos. O que o senhor acha da conduta ética e moral do ex-presidente?

    FB – Lula é uma pessoa íntegra.

    JL – Que parcela da população brasileira mais perde com o processo de impeachment e de criminalização do presidente Lula?

    FB – Os mais pobres, pois apesar das contradições e dos equívocos, nenhum governo de nossa história republicana investiu tanto no social como os de Lula.

    JL – Como o senhor vê a atuação da mídia tradicional no momento atual?

    FB – Ela está onde sempre esteve: confirmando o que disse o velho Marx no século XIX, de que o modo de pensar de uma sociedade é o modo de pensar da classe que domina essa sociedade. Não há imprensa neutra, há imprensa que se julga neutra, imparcial, livre. Mas como também disse Marx, ninguém é juiz de si mesmo.