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  • Prefeito Ney Santos tenta barrar festa beneficente em Embu das Artes

    Prefeito Ney Santos tenta barrar festa beneficente em Embu das Artes

    Na sexta-feira (05/07), a prefeitura de Embu das Artes tentou impedir uma festa julina popular que tinha como objetivo arrecadar recursos para uma doação. Já esperando que a prefeitura poderia cercear o evento, os organizadores preparam um ofício antecipadamente para realizar a festa numa escola estadual, como uma forma de “plano B”. A quadra da escola acabou recebendo o evento, que contou com centenas de pessoas.

    A Guarda Civil Municipal (GCM) compareceu às 18h, antes do início da festa e impediu que iniciasse, exigindo que as barracas fossem desmontadas. A vereadora Rosângela Santos (PT), uma das apoiadoras do evento, interveio e pediu que a prefeitura aguardasse até às 12h de sábado. Durante esse meio tempo, a equipe da vereadora entrou com pedido de liminar para realizar o evento, mas o pedido foi indeferido.

    Para os moradores o impedimento ocorreu por motivações políticas, uma vez que a vereadora que apoiou o evento é uma das principais opositoras de Ney Santos (PRB). “A GCM e a prefeitura nunca barram os baile funks, mas querem barrar nossa festa?” questionou um dos moradores.

    O intuito da festa era arrecadar recursos para a família de Gilson, um morador que por motivos de saúde agora necessita de cuidados especiais. Os moradores já haviam se reunido para realizar reformas na casa de Gilson e arrecadaram dinheiro para a compra de uma maca. Os vendedores das barracas iriam contribuir com a doação de cestas básicas com parte do dinheiro arrecadado.

    É o caso do morador Marcos, atualmente desempregado, e estava organizando a barraca de bebidas e desabafou na manhã do sábado (quando a festa ainda estava com a situação indefinida): “Não tá acontecendo [a festa] porque Ney Santos só pensa nele. Se fosse uma festa no nome dele, estaria acontecendo, mas como não é no nome dele resolveu barrar”. 

    Marcos também comentou do prejuízo que ele e os outros vendedores iriam tomar com a paralisação da festa: “O prejuízo é total, porque a mercadoria está comprada… Se não vender é prejuízo”.

    Felizmente para os moradores, a festa foi transferida para uma escola estadual no bairro, graças a um ofício que foi preparado antecipadamente e recebido pelo conselho escolar, tal ofício foi pensado para o caso de possível represália da prefeitura. No entanto, alguns abusos ainda ocorreram, como o fato da GCM ter ido pedir esclarecimentos à escola, prática incomum, uma vez que a segurança das escolas estaduais é realizado pela PM. Outra irregularidade ocorreu quando dois funcionários a serviço da prefeitura se penduraram no muro da escola estadual para arrancar o cartaz informativo do evento.

    Apesar das dificuldades, a festa foi um sucesso e mais de mil pessoas prestigiaram o evento no sábado e domingo. Contudo, durante o evento os responsáveis não deixaram barato para o prefeito, disparando críticas e indiretas “tentaram nos barrar, mas não conseguiram” e os vendedores ainda estavam um pouco frustrados com o prejuízo da sexta-feira.

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    Durante a festa o público curte com o “Robôtron”, uma das atrações do evento.

    • David Felipe da Silva. Graduando de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). É Coordenador Geral da União Estudantil de Embu das Artes e também coordena o Cursinho Popular João Batista de Freitas.
  • Um dia o engenho das ‘Donatas’ pega fogo

    Um dia o engenho das ‘Donatas’ pega fogo

     

    Por Marcos Rezende*

    Foram muitas as justificativas da “Casa Grande” para manter as suas posturas de mitológicos(as) democratas raciais. Ouvimos dizer que Donata, a diretora da Vogue é “boa e carinhosa” (Ivete Sangalo), que o sentimento dos críticos e das críticas era algo de rancor ou desrespeito, algo de quem os olhos “espreitavam por detrás do buraco da fechadura das redes sociais, muitos indignados, […] porque privados de participação no convescote […]” (Raul Monteiro, jornalista baiano).

    Achando pouco concordar com o projeto punitivo de Moro que amplia o excludente de ilicitude para policiais e reforça o extermínio do povo negro, Rui Costa, o governador do Estado mais negro do Brasil, participa da festa faz dancinha e posta nas redes sociais.

    Bom senso mesmo quem teve foi o Terreiro do Gantois, que cancelou a continuação da festa (sim, a última etapa do aniversário seria no espaço religioso) em respeito à ancestralidade do nosso povo.

    Enquanto isso, nessas últimas duas semanas, nos Estados Unidos, vários fatores demonstram como personalidades negras tem se comportado ou deveriam se comportar. A exemplo da cantora Rihanna, que não aceitou cantar no maior evento esportivo do País, a final do Superbowl, em respeito e homenagem ao jogador Kaepernick, que durante a execução do hino nacional se ajoelhava em sinal de protesto contra o racismo existente nos Estados Unidos e acabou sendo criticado por Trump e hoje está sem contrato.

    Também o rapper Drake protestou, ontem à noite, ao ganhar o Grammy e, ao aparecer de surpresa na premiação, estabeleceu forte crítica à indústria da música e valorizou as pessoas que reconhecem os artistas. O mesmo fez o ator e cantor Childish Gambino, que ganhou 2 Grammys e não foi buscar. Kendrick Lamar também não compareceu em protesto.

    Inclusive os três foram convidados para se apresentar na cerimônia e não aceitaram acusando a instituição Grammy de racista.

    Com certeza os brancos no Brasil fazem questão em não tratar disso. Como se essa realidade não existisse.

    Estamos cansados deste racismo que prega uma bondade que nunca inclui negros e negras, salvo quando na condição de serviçais, aqueles que sempre são dignos dos subcontratos, ou ainda quando na condição de quem conseguiu se adequar às regras da “Casa Grande” (por uma questão de sobrevivência, eu prefiro pensar). Não adianta pregar (falso) altruísmo, quando não se abre mão de seus próprios privilégios para que haja reparação.

    As críticas não se dão pela pobreza da Bahia, Raul Monteiro, pois ela não é pobre. Muito pelo contrário! A Bahia é de uma riqueza incomparável, seja pela grandeza de sua população, composta majoritariamente por mulheres negras, seja pelas suas riquezas naturais. As desigualdades que existem na Bahia, no Brasil e em grande parte do mundo se dão pelo racismo e pela concentração das riquezas nas mãos de uma minoria branca, ainda resquício do patriarcado de um Brasil colonial e escravocrata.

    Afeto, amor ao próximo ou qualquer altruísmo não são compatíveis com um país que foi o último a abolir o trabalho escravo. Ou melhor, a abolir o trabalho escravo do ponto de vista formal, já que a escravização dos corpos e da força de trabalho da população negra ainda se mantém como uma constante no Brasil. Negros e negras não são alvo da afetividade da elite branca brasileira, pois uma relação afetiva não permite a concentração de tantos privilégios para uns (umas) em detrimentos de outros (as). O nome que se dá a isso é subjugação, como estratégia do racismo de manter negras e negros no lugar do ostracismo serviçal.

    A perversidade é tão grande que as profissionais, baianas negras, sentem-se obrigadas a sair em defesa dos seus algozes, assim como negras e negros eram “obrigados” a serem “pretos (as) da “Casa Grande”. Assim, o racismo se retroalimenta, com um altruísmo deletério e seletivo, onde negras e negros são queridos quando se encontram nas “senzalas” contemporâneas, preferencialmente com vestes e poses que fazem alusão à condição de mucamas. O racismo que estrutura o nosso País não pode se naturalizar nem muito menos ser atenuado por um pedido de perdão e sob a justificativa de (falso) afeto.

    Já que não abrem mão das heranças e privilégios do processo de escravização, se assumam racistas e entendam que um dia o engenho pega fogo!

    *Marcos Rezende, Ogan, Historiador, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela UFBA e Coordenador de Relações Internacionais do Coletivo de Entidades Negras (CEN)

  • QUEM FETICHIZA A ESCRAVIDÃO TEM QUE SER PRESO POR RACISMO

    QUEM FETICHIZA A ESCRAVIDÃO TEM QUE SER PRESO POR RACISMO

    O ato racista da socialite, diretora da Vogue Brasil e esposa do publicitário baiano Nizan Guanaes, Donata Meirelles, que comemorou seu aniversário de 50 anos sentada em uma cadeira de sinhá e cercada de mulheres negras ‘fantasiadas’ de mucamas, dá uma noção a nós de até que ponto o fetiche da elite branca brasileira pela escravidão pode chegar.
     
    A festa, que aconteceu no Palácio da Aclamação, em Salvador, foi frequentada por personalidades, artistas, famosos e subcelebridades que, a troco das boas relações com o centro do poder comercial brasileiro, passaram pano para o racismo e fingiram que nada relevante acontecia ali. De Caetano Veloso a produtores culturais, empresa´rios e jornalistas do metiê, ninguém sequer questionou o simbolismo da ‘temática’ da festa: o Brasil Colônia.
     
    Nada de novo sob o sol, diria o próprio Caetano (que inclusive cantou durante a festança) em uma de suas canções. O que vimos foi mais um episódio do racismo brasileiro, subjetivo, engenhoso e disfarçado de ‘homenagem’. E aplaudido por gente como o governador do Estado e o prefeito da capital, que se fizeram presentes.
     
    Sob o pretexto de saudar a Bahia, Donata Meirelles evocou os fetiches, mas principalmente as saudades dos brancos ricos do País. Com sua festa de aniversário, a socialite terminou por festejar, de verdade, o maior desejo da mesma elite que construiu a candidatura vencedora da última eleição presidencial: o retorno da subjugação do nosso povo por eles.
     
    Como a emenda é pior que o soneto, ao tentar se justificar por uma rede social, Donata afirmou que a comemoração não era temática e que a cadeira na qual ela e suas convidadas brancas sentavam para serem fotografadas não era de sinhá, mas sim um assento religioso do candomblé. Disse ainda que as mulheres negras não estavam vestidas de mucamas, mas sim de baianas, ofício que, lembrou ela, é considerado Patrimônio Imaterial.
     
    Ora, sendo assim, nada muda. Continua evidente o tesão branco sobre as nossas tradições, que, na cabeça adubada por racismo deles, devem servir como cenário e fantasia para suas festas regadas a champanhe e nas quais, sabemos bem, nosso povo tem local e funções reservados: a cozinha, a portaria e o papel de garçons e garçonetes.
     
    Não adianta Nizan Guanaes tentar trazer o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama para a Bahia, se o episódio envolvendo sua mulher, do qual tratamos aqui, trata-se do velho e violento racismo estrutural, como bem pontuou em uma rede social a escritora Lilian Schwarcz: racismo tão enraizado e banalizado socialmente que parece não existir, que parece invisível. Mas existe, é visível, machuca, desrespeita e mata todo um povo.
     
    O genocídio da população negra na diáspora africana no Brasil se dá de várias formas. Duas delas, o encarceramento e o extermínio físico, são mais concretas. Mas as outras, a exemplo da destruição subjetiva da nossa história e a zombaria comumente feita com a nossa dor, não são menos graves. São racismo. São práticas criminosas. E devem levar à cadeia.
     
    Não sendo assim, brancos continuarão festejando a escravidão.
     
    Yuri Silva, jornalista e coordenador-geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN)
  • Mamba Negra e o protagonismo político da música eletrônica em São Paulo

    Por Monica Ferreira, Maíra Vargas e Paula Pretel, especial para os Jornalistas Livres.

    Mamba negra, uma das cobras mais venenosas do continente africano, também é o nome do coletivo de música eletrônica mais popular da emergente cena underground paulistana. Capaz de reunir em um único espaço o que há de mais moderno e inclusivo na cidade, já firmou seu nome na noite, dando voz à luta dos marginalizados, e é protagonizado por mulheres, transexuais, negros e identidades diversas que foram historicamente excluídas dos ambientes conservadores e heteronormativos.

    Se representatividade importa, o coletivo é liderado por duas mulheres. Carol Schutzer, dj internacionalmente conhecida como Cashu, e a cantora, atriz e militante Laura Diaz, que também dá voz ao Teto Preto, grupo conhecido pelo single GASOLINA. Precursoras do movimento de ocupação dos espaços públicos como forma de lazer e sociabilidade no centro, a Mamba Negra começou em 2013, “em uma conjuntura de bastante efervescência política, urbana e cultural em São Paulo. Todo esse circuito mais independente e de festas menores começou a se reaquecer, muito além dos clubes”, completa Laura.

     

    DJ Cashu

    Ela também destaca que as ocupações de moradia influenciaram essa movimentação cultural, pois “sempre foram pontos muito importantes do centro de São Paulo, de resistência, e de atividade para crianças e pessoas carentes de programação cultural”, diz. O palco da Mamba Negra quase sempre é a rua, e os eventos fechados costumam ocorrer em prédios degradados ou locais ignorados pelo poder público. A Mamba Negra já esteve presente na ocupação das escolas secundaristas, em 2016, no Cine Marrocos, prédio tombado nos arredores do Teatro Municipal de São Paulo, e na Cracolândia.

    Embalada pela sonoridade techno, o coletivo já atraiu atenção de festas consagradas no exterior, a exemplo da Dekmantel, na Holanda. O que tornou possível até mesmo a participação de Mirik Milan, prefeito da noite de Amsterdam, em evento realizado em São Paulo no último mês, quando foi debatida a dificuldade encontrada pelos coletivos de cultura independente em estabelecer um debate frutífero com a Prefeitura Municipal. Debate este que inclui discussões acerca da regulamentação das festas e formalização por alvarás.

    A Prefeitura precisa democratizar a informação básica para legalização dos eventos de coletivos como a Mamba Negra, que esbarram na burocracia e na necessidade de emissão de muitos laudos técnicos – de órgãos distintos – para a formalização de um único ato. Isso sem falar nos ditos imóveis “inalvaráveis”. Acerca disso, Laura Diaz propõe a criação de uma espécie de aluguel social que permita a utilização de imóveis abandonados, direcionando o valor arrecadado ao abatimento das dívidas fiscais e tributárias dos seus proprietários. De quebra, tornaria possível fugir dos preços exorbitantes das locações firmadas nos últimos três anos.

     

     

     

     

    Cantora, atriz e militante, Laura Diaz

    O processo de desestatização do Governo Dória trouxe ainda mais dificuldades para coletivos como a Mamba Negra, visto que ampliou a atuação das parcerias público privadas e ainda criou a ANEP – Associação da Noite e Entretenimento Paulistano, que representa o alto empresariado de casas noturnas, dificultando ainda mais o diálogo entre a cultura independente e a Prefeitura.

    Os atentados à existência e à legitimidade do movimento provocaram uma onda de resistência da contracultura, uma vez que o público vê ameaçado esse ambiente de acolhimento e liberdade. Dani Ishikawa, 38, diz que frequenta as festas desde que elas começaram a ocorrer fora do circuito de clubes. “Acho que isso representa mais o underground. Me sinto melhor, sim, como mulher”, fala a respeito, ressaltando que todas as festas possuem recomendações e regras contra machismo, abuso e homofobia. Guilhermina Biazzon, 24, que se identifica como travesti, acredita que a Mamba é indispensável à continuidade do protagonismo de minorias. “É nessa cena que me sinto livre para ser quem eu sou”, garante Gui.

    Pela porta que eu escancarei passarão todas as minhas irmãs

    Euvira começou a carreira fazendo Artes Visuais na UFBA, com o coletivo artístico Baphão Queer. Depois de viajar pelo Brasil e América do Sul, retornou a Salvador, onde a cultura drag é muito influente. A personagem foi criada completamente avessa aos padrões comuns daquela localidade, que até o momento exacerbavam o feminino e limitavam-se a reconhecer como drag apenas quem se montasse dentro do estereótipo de beleza imposto à mulher. Foi no Âncora do Marujo, bar soteropolitano, que encontrou espaço para mostrar sua personagem de novo conceito ao público. Após um ano performando, Euvira decidiu vir a São Paulo.

    Não demorou muito para captar a atenção das curadorias artísticas das festas do circuito de música eletrônica. Começou a atuar como performer nas festas ODD, Mamba Negra e Capslock. Num processo de tornar crítica a sua atuação e de enriquecer a diversidade nos meios em que estava, Euvira notou que a cena tinha muito a caminhar quando o assunto era representatividade.  “Só o fato de eu ser negro, bicha, pobre, nordestino, da periferia e ocupar um lugar de destaque em uma festa onde majoritariamente as pessoas são brancas, de classe média, sulistas, héteras, já é um grande diálogo, já tô falando muita coisa. Porque não era pro meu corpo estar ali, era pra eu estar ou num presídio, ou num caixão, ou limpando vidro de carro, ou vendendo bala. Enfim, este foi o lugar escolhido pra mim e este é o lugar que habitam a maior parte das pessoas que eu vivi próximo… vizinhos, amigos, primos…“.

    Sob a percepção de que o negro ocupava somente demandas braçais e que não habitava um lugar de protagonismo na cena, nasceu a Coletividade Namíbia.

    Formada por artistas visuais, djs, produtores e performers, a Coletividade tem como símbolo um raio, sinônimo de propagação, e procura inserir esses profissionais nas cenas que antes não manifestavam preocupação em, de acordo com Euvira, “desembranquecer” o seu pessoal. Com isso, uma gama de artistas que não viam seus trabalhos contemplados puderam desfrutar de visibilidade no underground.

    Sobre o assunto, Euvira ainda destaca que “A música eletrônica é tão negra quanto atabaque”, e traz à tona o fato da house e do techno terem por base artistas negros, como os pioneiros Frankie Knuckles, Juan Atkins e Kevin Saunderson. Após a difusão desses estilos musicais pela mídia e a popularização das festas eletrônicas em clubes, a periferia se distanciou dessa cultura. Agora, quem não desfrutou desse protagonismo reescreve sua própria história. “Pela porta que eu escancarei passarão todas as minhas irmãs”, finaliza.

    Euvira é a idealizadora da Coletividade Namíbia

    Já, Ana Giselle começou sua carreira discotecando em Recife no ano de 2014. A convite de Euvira veio para São Paulo, lugar onde encontrou uma forma remunerada de expressar-se artisticamente, como dj e performer.  Para Gisa, que se identifica como travesti e “transalien”, quando está performando no palco leva consigo a luta diária de todas as travestis, pretas e periféricas que almejam serem reconhecidas civil e profissionalmente. Estar em lugar de destaque nestas festas e exercer uma função artística é mostrar a toda uma comunidade que é possível galgar um caminho diferente daquele que a sociedade historicamente induz. “Na minha época eu não tinha nenhum exemplo e foi bem mais difícil aceitar quem eu sou, porque o medo de sofrer o tanto que uma travesti sofria, e ainda sofre, sempre vinha em primeiro lugar. Mas viver uma vida numa pele que não é a sua é, na realidade, a maior violência que podemos cometer conosco. Enfrentar o mundo sendo quem se é de verdade é incrivelmente mais poderoso”, acrescenta.

    Ana Giselle é performer

    A “lista trans”, que concede acesso gratuito aos transexuais em festas, surgiu nesta efervescência de protagonismos, fruto de um diálogo aberto sobre inclusão. Da mesma forma que Euvira se incomodava com negros exercendo papéis condicionados, as pessoas trans cansaram de ser vítimas da transfobia estrutural, responsável por marginalizar a comunidade no mercado de trabalho. Segundo Gisa, a lista trans não é mais que um processo de regularização do acesso ao lazer e cultura. E mais, a oportunidade de trabalhar em festas garante às pessoas trans a sua própria subsistência.

    Este momento de representatividade trans na noite tem trazido muitos artistas pra contribuir com a cena. Porém, segundo Ana Gisa, é preciso disseminar este exemplo e exigir que mais espaços sejam abertos, não apenas de maneira paliativa. “Representatividade trans é muito sobre o processo de humanização dessa população na sociedade. É sobre ver uma pessoa trans ou travesti, enquanto um ser humano que pode transitar em todo e qualquer espaço como qualquer outro. Fora da margem, fora das ruas, fora da prostituição, lugares estes para onde sempre fomos empurradas, onde acostumaram a nos ver e acreditaram que estávamos por opção. Quando eu estou performando, às vezes passa pela minha cabeça quantas Ana Giselles não poderiam estar lá brilhando tanto quanto eu, mas não tiveram a chance porque a sociedade as tirou todas as expectativas de uma vida melhor e as mataram antes, mataram seus sonhos”, completa Ana Gisa.

    Tantos feitos devem ser comemorados, mas a Mamba Negra constata que a sobrevivência da cena está diretamente ligada ao reconhecimento da música eletrônica como cultura. Além disto, a não abrir mão dos espaços que já conquistou, mas expandí-los.

    Frente às dificuldades criadas pela especulação imobiliária e a ausência de interesse do Estado em dialogar com o movimento, o futuro da festa pode parecer incerto. Diferente disso, acabou despertando um sentimento de urgência e resistência. Verbalizando a postura que a Mamba Negra tomará ante esse painel, Laura Diaz é incisiva em sua última mensagem para os Jornalistas Livres: “Bate mais!”.

    Fotografias: Núbia Fernandes Moraes / @nubiafernandesmoraes

  • HABEMUS CLITORIS!

    HABEMUS CLITORIS!

    No mês da mulher, queremos homenagear todas elas com muito gozo e prazer.

    Na segunda parte da nossa série sobre o prazer feminino, vamos explicar um pouco da história do clitóris. Algumas pessoas mal sabem o que é, outras acham ele se resume àquela pequena bolinha rosa acima da vulva. Nada disso! O clitóris mede cerca de 10 centímetros e é o único órgão humano exclusivamente dedicado ao prazer. O mais assustador é que nós levamos anos para descobrir a sua real forma, popularizada em 2016 quando o primeiro projeto de impressão 3D do clitóris foi criado em arquivo aberto para que todxs possam ter o seu, mas o clitóris é conhecido desde o século XVI. Depois de 500 anos de negação e mentiras a respeito do prazer feminino, é hora de falar sobre a nova revolução sexual que essa descoberta pode propiciar a nós, mulheres.

    Ei, eu sou o Clitóris 🙂

     

     

     

    Foto: Maxwell Vilela / Jornalistas Livres

    A primeira pessoa a descobrir o clitóris, em 1559, foi um homem, Matteo Realdo Colombo, professor de anatomia italiano. Nessa época, ele já tinha identificado que o clitóris era o despertador do prazer feminino, e o bichinho também já era bem conhecido e os desenhos científicos e médicos da época o mostravam quase por completo.

    Cinco séculos depois, em 1998, foi a vez de uma equipe de pesquisadores australianos coordenada pela doutora Helen O’Connell, da Universidade de Melbourne, revelar a anatomia exata do clitóris com seus bulbos e  propriedades.  Além da glande, que debaixo do prepúcio é a parte mais visível e sensível (a tal de bolinha), ele também é composto por um corpo, dois pilares e dois bulbos, que formam um duplo arco na entrada da vagina, na altura dos dois lábios externos. Totalmente formado de corpo cavernoso, o mesmo tecido erétil do pênis, ele se enche de sangue quando excitado para produzir a ereção. O clitóris também é um órgão móvel que acompanha os movimentos do pênis durante a penetração. De todos os órgãos, ele é o mais sensível e, como diz a diz a jornalista do New York Times Natalie Angier “há mais terminações nervosas na sua extremidade de que em todos os outros órgãos, inclusive a língua ou o pênis”.

    Para ela, enquanto o pênis é uma simples espingarda, o clitóris é uma verdadeira metralhadora!

    Anatomia do Clitoris

    Fazem mais de vinte anos que o tema voltou a tona, com o protagonismo militante dessas pesquisadoras. Mas como podemos constatar, ainda está longe de ser amplamente conhecido na opinião pública. Hoje qualquer adolescente sabe desenhar um pênis com seus testículos, mas sequer as mulheres sabem como seu próprio clitóris é feito. Entre dogmas e superstições a historia do clitóris é uma verdadeira epopeia. “1998 é exatamente a data de comercialização do Viagra. Ou seja, quando sequer se sabia como era feito um clitóris, os homens já tinham um remédio pronto para tratar seus distúrbios de ereção”, nota Odile Buisson, ginecologista membro da equipe francesa que fez o primeiro ultrassom in vivo do clitóris em 2007. A palestra completa feita na na Universidade Paris-Diderot em 2011 você pode conferir aqui.

    Era uma vez, o clitóris…

    “Mas então como podemos ter passado de uma época na qual sabia-se tanto sobre o botãozinho rosa para um tal nível zero de informação? O papel da ciência não é de progredir sempre? Não senhora! Quando falamos de prazer feminino tudo se complica sempre”. Esses são os comentários da jornalista Clarence Edgard-Rosa, da revista francesa Causette que publicou em janeiro desse ano um especial integralmente dedicado ao clitóris e da qual tiramos grande parte das nossas fontes.

    O ponto central que captou a atenção dos cientistas nos séculos XVI e XVII era a crença de que o clitóris tinha um papel central na procriação. O sexólogo Jean-Claude Piquard (autor do livro ainda não traduzido em português, a Fabulosa historia do clitóris) explica que na época “a estimulação do clitóris é considerada como uma prática importante na cama do casal. Até a Igreja o recomenda aos maridos. Alguns médicos vão até dizer que o orgasmo simultâneo é condição necessária para reprodução”.
    Mudança total de cenário no século XVIII. A masturbação feminina passa a ser chamada de “conspiração natalista” ainda segundo Piquard. O prazer feminino, quando ocorre sem penetração vem sendo considerado com forma de contracepção. Casos de excisão terapêutica começam a ser praticados pelos médicos na França e na Alemanha, com a ilusão de conter o que pensava-se podia causar o fim da humanidade.

    Na mesma época, o clitóris encontra-se no centro dos tratamentos psicanalistas para curar as pacientes consideradas histéricas. Após ter queimado milhares de bruxas nos séculos anteriores, a histeria se tornou a doença do século para controlar mulheres inconformadas e com supostos comportamentos desviantes. Enquanto alguns psicanalistas preconizavam a ablação do clitóris, outros indicavam cessões de … masturbação!  A chegada do orgasmo contribuía a parar as crises e acalmar as pulsões. Piquard conta que essa atividade constituía cerca de 30% do lucro dos psicanalistas, extremamente rentável. A comédia romântica Hysteria da britânica Tanya Wexler (2011) descreve esse contexto histórico que contribuiu para invenção do vibrador por … um médico cansado de masturbar suas pacientes!

    Imagem do filme Hysteria de Tanya Wexler (2011)

    Por fim, o que devia acontecer aconteceu: os psicanalistas entenderam que o clitóris não tinha nada a ver com procriação, e o querido clitóris caiu no esquecimento. Segundo a historiadora Aude Fauvel, especialista em sexualidade feminina no instituto universitário de Lausanne, “surgem na época teorias darwinistas especulando que o clitóris era um órgão em desaparecimento na evolução da espécie. Algumas até chegaram a dizer que tratava-se de um vestígio da pré-história”. Tais especulações deram assim embasamento para teorias racistas estipulando que as mulheres negras teriam o clitóris mais desenvolvido porque mais primitivas.

    Confira o videoclip de Dorian Electra, “Our music Ode to the clitóris” que relata a historia da opressão masculina sobre o prazer feminino.

    Imagem do videoclipe Dorian Electra, “Our music Ode to the clitóris” .

    Orgasmo clitoridiano versus orgasmo vaginal

    No século XX, o clitóris cai em desuso e a única fonte considerada normal de prazer feminino se torna a penetração graça ao célebre psicanalista Sygmund Freud. O pai da psicanalise dizia desde 1905 que o prazer clitoridiano era infantil e que a penetração vaginal era a única forma de se praticar a sexualidade adulta. “Para ele as meninas tinha inveja dos meninos por não ter pênis”, diz a doutora O’Connell. Ele escrevia que “a eliminação da sexualidade clitoridiana é a única condição para desenvolvimento da feminidade adulta”, reporta a revista Causette.

    Sendo assim, as mulheres que se masturbam não seriam verdadeiras mulheres, afirmação muito diferente da visão de outras culturas, como a de Ruanda, da África. Tais teorias espalharam universalmente e são à base da frustração de milhões de mulheres que até hoje sentem vergonha ao não “conseguir” chegar ao tão desejado orgasmo vaginal. A ideia que o orgasmo clitoridiano seja algo secundário, menos gostoso ainda prevalece nas mentes femininas e vem sendo veiculado em muitas revistas contemporâneas.

    Tais injustiças continuaram vigentes enquanto só os homens tinham legitimidade para falar e teorizar sobre o corpo da mulher. Com a entrada na profissão das primeiras mulheres começa um novo discurso sobre a sexualidade não reprodutiva. Entrada que como se sabe, acompanha-se de muitos preconceitos.

    A virada de protagonismo do nosso sininho 

    Uma das primeiras vozes femininas a ressoar contra a moral masculina foi a da princesa Maria Bonaparte, descendente de Napoleon, que em 1924, após uma pesquisa empírica junto a 200 mulheres contesta o dogma teórico imposto por Freud e recoloca o clitóris no centro do debate em torno do prazer da mulher. Segundo ela a frigidez seria a consequência do extenso afastamento entre o clitóris e vagina (ver o livro ainda não traduzido em português deAlix Lemel, “es 200 clitoris de Marie Bonaparte”(2010)).

    A grande revolução chega em 1976 com a cientista social norte americana, Shere Hite que pública seu famoso “relatório Hite: um profundo estudo sobre sexualidade feminina”, que causou grande polêmica na sociedade da época ao ponto de obrigar a pesquisadora a se exilar fora do país. De fato Hite ousou fazer o mais evidente: perguntar às mulheres o que elas sentem durante a penetração. E foi assim que ao mandar questionários para uma amostra de 3000 americanas, através de associações, anúncios em revistas e até paroquias, ela demostra que só 30% das mulheres afirmam ter orgasmos frequentes durante a penetração. Portanto, a maioria delas conhecem o orgasmo clitoridiano. Um cataclismo que revela que falo não seria mais o principal objeto do prazer feminino.

    Outra peça chave dessa revolução dos paradigmas, o casal norte americano Virginia Johnson e William Masters, ambos sexólogos que desde os anos 50 deram maior divulgação na sociedade sobre a importância do clitóris na sexualidade feminina. A série “Master of Sex” relata essa historia.

    Imagem do vídeo realizado por Marie Docher sobre a impressão 3D do clitóris. Vídeo legendado aqui pela TV Folha.

    Muita luta está ainda por vir até que o clitóris chegue ao mesmo patamar que o pênis. Mas grandes ações já foram realizadas. A última foi o trabalho da pesquisadora francesa Odile Fillod que divulga desde 2016 uma modelização 3D do clitóris podendo ser baixada e impressa por qualquer pessoa. O link com arquivo e modus operandi (em francês) está aqui. Com isso ela espera alcançar escolas e projetos educativos e assim, sair do mundo acadêmico.

    Segundo a historiadora francesa Stéphanie Wyler , a etimologia do clitóris vem do grego “kleitor”, literalmente “o fechador/lacrador”, nome de um rei de Tessalia, pelo fato dele precisar conter fatos, segredos e poderes.   Nada de mais claro: está na hora de rebentar de vez essas correntes!  Porém no meio dessa confusão outro pesquisador alemão em 1848, o Dr Georg Ludwig Kobelt, ao pesquisar sobre prazer masculino e feminino, faz um paralelo entre as glandes do clitóris e do pênis e chega à conclusão que o prazer feminino seria mais intenso.

    Depois de tanta informação, que tal entrar no clima do nosso prazer? Indicamos o filme  “Clitoris, prazer proibido” de Michèle Dominici (2003). Disfrute-se!

     

     

     

     

    Agradecimentos Especiais:

    Edwaldo Queiroz, do coletivo Mola, pela gentileza e a dedicação para impressão 3D;
    Carlos Cox Costa, pela tradução do vídeoclipe “Ode ao Clitoris”;
    Thaina Nogueira e Verilucy Cristine pela contribuição no vídeo “Prazer, Clito!”.