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  • A deselegância do Cardeal Scherer

    A deselegância do Cardeal Scherer

    Conheci dom Angélico Bernardino Sândalo quando eu era repórter no Estadão e escrevia sobre religião. Ele me chamava de ‘irmão’. Não era uma exclusividade. Todo mundo é ‘irmão’ de d. Angélico. Até pessoas das quais não gosta. Nunca perguntei o motivo desse tratamento. Imagino que seja para lembrar que somos todos filhos de um mesmo pai. Também imagino que foi essa ideia de fraternidade que o levou, desde a ordenação sacerdotal, a se voltar mais para as pessoas carentes, os que perderam tudo, os migrantes, os sem-teto, os sem-terra, os excluídos.

    Na década de 1970, esse interesse do padre Angélico pelos pobres chamou a atenção do então arcebispo de São Paulo, o franciscano Paulo Evaristo Arns. E quando o papa Paulo VI disse a ele que devia dividir seu trabalho e nomear um bispo auxiliar para cada milhão de fiéis da arquidiocese, o primeiro nome que veio à cabeça de d. Paulo foi o daquele padre. Logo depois de sagrá-lo bispo, despachou-o para a periferia, o extremo da Zona Leste, bandas de Itaquera, na época uma das regiões mais carentes da cidade. Lá, o bispo se entrosou tão bem com o povo que até trocou de time: deixou o Palestra Itália pelo Corinthians.

    D. Angélico foi um dos principais conselheiros de dom Paulo nos anos da ditadura. Acompanhou-o, lado a lado, no episódio do assassinato do jornalista Vladmir Herzog, numa dependência do Exército. Editou o jornal católico O São Paulo. Enfrentou a censura à imprensa. Por onde passou estimulou movimentos populares por habitação, creches, transportes.

    Hoje, com 85 anos, aposentado, vive numa casa modestíssima na Zona Norte. Às vezes é chamado para alguma celebração especial. No ano passado ministrou o sacramento da extrema-unção à esposa do ex-presidente Lula, Marisa Letícia, de quem era amigo há quase quarenta anos.

    Agora o chamaram para o ato ecumênico que celebraria o aniversário de Marisa. Era para um ser ato no interior do sindicato. Mas, com a decretação da prisão de Lula e a multidão que se aglomerava do lado de fora, acabou transferido para a rua. E foi assim que o País viu o bispo ao lado do ex-presidente.

    Como era de se esperar, nesses tempos de polarização política e de ódios, a imagem dos dois em rede nacional provocou reações furiosas, quase fratricidas, entre católicos. D. Angélico foi xingado das piores coisas. Como nos velhos tempos da guerra fria, o chamaram de bispo da batina vermelha. Um colunista político disse que rezou uma missa negra, confundindo, como vários outros jornalistas, ato ecumênico com missa.

    D. Angélico desceu do caminhão assim que encerrou o ato e Lula começou a discursar. Ninguém prestou atenção nele quando seguiu por uma rua estreita e íngreme, à procura da condução que o levaria para casa. Trajava calça cinza, de cós muito alto, e camisa branca com mangas longas. Os passos eram lentos e amparados pelas mãos da irmã Carmem Julieta, que o acompanha sempre.

    No dia seguinte, a assessoria do arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Scherer, divulgou uma nota sobre o assunto. É um texto curto e objetivo. Começa preocupado em isentar o cardeal: diz que ele não tem nada a ver com o ato ocorrido em São Bernardo e explica que “aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo”. Depois desse ato de lavar as mãos, o texto faz a afirmação que logo em seguida se transforma em manchetes de sites, jornais, rádios e TVs: “O arcebispo lamenta a instrumentalização política do ato religioso”.

    Li e reli a nota. Parece feita às pressas, com o objetivo de dar satisfações aos católicos mais direitistas, e suscita uma pergunta óbvia: se o arcebispo metropolitano não tem nada a ver com aquilo, a quem cabe a responsabilidade? É assim que o cardeal joga a bomba no colo do bispo de Santo André, d. Pedro Cipolini.

    Para entender melhor é preciso explicar que a Igreja Católica tem uma divisão própria de territórios. De acordo com essa divisão eclesiástica, São Bernardo faz parte da diocese de Santo André. Indiretamente, portanto, o cardeal está perguntando o seguinte ao irmão e bispo vizinho: como é que você permite que um ato desses ocorra em sua jurisdição?

    O alvo mais óbvio da nota, no entanto, é d. Angélico. O cardeal divulgou a nota sem dar um telefonema para o bispo emérito que mora na mesma cidade e a poucos quilômetros de distância. Nem sequer para avisá-lo. Tratou-o, de acordo com os tempos de guerra, como inimigo.

    Faltou elegância, no mínimo, ao cardeal. Como arcebispo metropolitano, poderia ter conversado com o bispo de Santo André ou se dirigido à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por outro lado, em vez engrossar e estimular o conflito, poderia ter exercido o papel de pastor, acalmando os ânimos e pedindo orações para o Brasil.

    Como entender essa reação do cardeal? Existem algumas pistas. D. Scherer é um expoente do conservadorismo católico. Em 2013, no conclave que elegeu o sucessor do papa Bento XVI, o nome dele figurou na lista dos preferidos da ala conservadora. Mas não prosperou. Se é mesmo o Espírito Santo que orienta o conclave, ele deve ter soprado no ouvido dos cardeais, que, após dois papados conservadores, seria melhor optar por uma cabeça mais arejada e reformadora. E eles elegeram o jesuíta Bergoglio, hoje papa Francisco.

    Em 2014, o papa afastou o cardeal Scherer e outros três cardeais da cúpula do Banco do Vaticano, instituição financeira envolvida numa série de escândalos, inclusive com suspeitas de lavagem do dinheiro do crime organizado. Foi uma demonstração de que ele veio mesmo para mudar.

    No Brasil, o cardeal é um dos poucos integrantes da CNBB que defendem abertamente as propostas do governo Temer para a reforma da Previdência. Antes disso, ele já havia apoiado a proposta que congelou gastos públicos.

    Em São Paulo, Scherer procurou demonstrar proximidade com João Doria – tucano que lastreou sua campanha eleitoral para a prefeitura em ataques ao PT e a Lula. Chegou a falar de maneira positiva, em duas ocasiões e publicamente, a respeito da ‘farinata’ que Doria pretendia distribuir nas escolas públicas.

    O cardeal até posou ao lado do prefeito tucano quando ele divulgava o tal composto alimentar. No final da história, porém, ficou falando sozinho. O valor nutritivo do composto era tão duvidoso e polêmico que foi posto de lado. Pelo próprio Doria, que já se afastou da prefeitura para se candidatar ao governo do Estado, após ter prometido aos seus eleitores que jamais deixaria o cargo antes de terminar o mandato.

  • Com todo amor, para os filhos de dona Marisa

    Com todo amor, para os filhos de dona Marisa

    Por Flávia Martinelli, dos Jornalistas Livres

    Maio aponta no calendário e eu viro fugitiva. Pulo os anúncios das revistas. Por nada no mundo entro em loja feminina. Tento passar longe da TV ou enfrento a programação com o controle remoto na mão. Tenho que ser rápida no gatilho para mudar de canal antes de as propagandas começarem. Os comerciais de Dia das Mães são matadores para quem já perdeu a sua. E a minha teve a ousadia de morrer exatamente no Dia das Mães (por toda a vida ela foi irônica). Faz 11 anos e todo dia ainda é ontem, sim.

    Me esforço para não alimentar as dores do luto mas me sinto impotente diante dos apelos emocionais da publicidade e do jornalismo na data comercial mais rentável do ano. Por tudo isso, a propaganda da Lojas Marisa e a capa da revista Veja foram um soco no meu peito.

    Sei que publicitários não pensam nos mortos. Defuntos não são consumidores e a grande campanha do ano, de orçamento farto, tem a função de bater recordes de faturamento. Dia das Mães dá mais lucro do que o dos pais, das crianças, das avós, das secretárias, Natal ou de qualquer outra efeméride criada para vincular sentimentos ao consumo. Também sei que em redações de revista é obrigatória uma reportagem sobre as dores e as delícias da maternidade.

    Dia das Mães é o desafio dos “criativos”, a insônia dos redatores, o orgasmo dos marketeiros. O que são 12 prestações sem juros diante de todo nosso amor, não é verdade? O surpreendente desse 2017 é a mídia valer-se do ódio para atingir suas metas de vendas.

    Como num pesadelo, imagino os brilhantes publicitários da Lojas Marisa ou os jornalistas da Veja na reunião de pauta ou de brainstorm dizendo: “Sensacional, vamos usar a morte da Dona Marisa nesse Dia das Mães! Todo mundo odeia o PT e vamos atingir um imenso público consumidor!”

    Imagino a saliva escorrendo de suas bocas, os dentes clareados sorridentes, o olhar brilhante que nem o botox de suas testas aniquila. Na cabeceira da mesa longa e gigante, um pálido Michel Temer estica aqueles dedos compridos e aponta para o presidente da Fiesp acomodado do lado oposto. “Conseguimos.”

    Nesse ano não tive fuga. Até mãe morta virou produto do grotesco. Deixo registrada a minha solidariedade aos filhos de Lula e a todas as mães falecidas que, sim, serão sempre dignamente honradas em seu dia sem presente.

  • A morte, os moraes e os moros

    A morte, os moraes e os moros

    Quando alguns se colocam no papel de justiceiros

    contra inimigos escolhidos a dedo

    e insistem em permanecer nesse pedestal de barro é evidente que, enquanto o fazem, consideram que suas ações são incólumes e que não serão julgadas pela história. Os nazistas pensavam assim, os generais latino americanos pensam e pensavam assim, os Botha pró apartheid da África do Sul pensavam assim, os colonizadores escravocratas nas américas e etc. Estavam todos fazendo o bem para as pessoas que escolhiam defender, proteger, adular e fazendo o bem ao matar, torturar e explorar os inimigos desde suas posições de prestígio e poder institucional que grupos determinados e/ou uma parcela significativa da população lhes conferia. Não estavam sozinhos. Gozavam do apoio ou da omissão de muitos.

    Difícil afirmar qual o papel que o massacre à Lula e sua família tiveram na debilitação e morte de Dona Marisa. Ataques contínuos, odiosos, violentos e arbitrários contra a história, filhos e honra matam pessoas, mas é difícil aferi-los porque se misturam a muitos outros fatores que também determinam uma morte prematura ou um sofrimento que, pouco a pouco, conduz à debilidade psíquica e física que desencadeia o fim de uma vida.

    O ódio mata, sempre matará e continuará matando,

    mas ele o faz de modo invisível,

    sorrateiro e poucas vezes pode ser flagrado para ser julgado.

    Por isso é capaz de ceifar muitas vidas na obscuridade e na covardia.

    É claro que muitos odiosos, além do promotor público Rômulo Paiva Filho, ou do médico Richam Faissal Ellakis e tantos outros bem formados, bem alimentados e vestidos, nesse exato momento devem estar celebrando a morte da esposa de Lula. E desejando a morte do próprio Lula, se possível, com requintes de crueldade.

    Mas o ódio gera uma alegria imbecil para o odioso e destrutiva para o conjunto da comunidade e a sociedade onde vivem os odiosos, porque não se sacia com a morte de um. Ele migra para outros, nos quais os odiosos vestem uma carapuça de ferro por eles mesmos inventada, e neles atiram até aniquilá-los, e mais outro, gerando o círculo de violência que quando iniciado é muito difícil estancar. Tal prática não é episódica e eventual. Alguém imagina o que deve sentir o médico Raicham Faissal Ellakis por pacientes que o importunam no meio de um jantar ou o que pensa o promotor Rômulo Paiva Filho por colegas de profissão que lhe são adversários? O ódio é um hábito para alguns.

    Por vezes uma morte é a resultante de

    uma impossibilidade de resistir e um desejo de partir.

    Outras vezes é efeito da arrebentação de uma onda de injurias

    que destrói o sentido da vida

    e corrói as esperanças no futuro.

    Mas assim como surgem algozes, surgem também os que resistem aos algozes. Não são heróis, mas revoltados, injuriados, indignados e podem se tornar violentos diante da falta de alternativas. Isso acontece diante de um sentido de urgência, uma ininteligibilidade radical que orienta a reagir sempre que a sobrevivência está ameaçada. Se pessoas forem reduzidas a bichos, reagirão como bichos.

    Por mais desacreditado que esteja o sistema judiciário e de saúde no Brasil, fato é que quando flagramos os operadores do direito defendendo a injustiça e os médicos propugnando o ódio e a morte é sempre incitador de profunda revolta e medo no conjunto dos cidadãos. Os membros da sociedade letrada e rica têm defendido impropérios, violências e instigado a truculência mas não sabem com o que estão mexendo.

    Eles que chamam de bandidos os que lutam por um pedaço de terra;

    de vagabundos os que lutam por teto e abrigo e

    de vândalos os que lutam por educação digna,

    pecam por ignorância profunda e

    medo rasteiro de perder privilégios de classe.

    Cindem os movimentos sociais do sentido de suas lutas porque é exatamente o que tem de fazer para odiar. Inventar categorias que não existem; cindir causa e efeito; apartar os sujeitos de suas histórias; os homens de suas responsabilidades e dinamitar o pensamento e a reflexão sem ter o que por no lugar.

    Crianças de 3 anos podem fazer isso. Empurram o irmão da escada para destruir o que acham que seria um obstáculo à sua alegria e felicidade. Tornam-se, por essa via, cúmplices e artífices de violências e reações contra elas mesmas. Passarão logo a serem vítimas de crueldades que estão incitando, proclamando e defendendo, mas não serão capazes de cessá-las.

    Querem causar o desastre,

    mas jamais se responsabilizarão pelas consequências

    e jamais saberão como evitá-las.

    Não é possível acusar ninguém por uma morte cuja causa se esgota nas explicações sobre o corpo, mas é preciso ficar atento para rastro que o ódio deixa e que promete deixar mais óbitos atrás de si. A morte, efeito de ódios, é o caldo que faz recrudescer desejos de vingança e por aí os círculos da revolta se fecham, porque quando iniciados imantam a violência infinita que reduz toda disputa à contenda física paralisando por muito tempo o pensamento. Todo argumento perde valor e sentido e tudo se resume ao gosto ou desgosto do momento. Amo ou odeio e ponto final.

    A paz só reina duradouramente quando há

    senso de justiça, igualdade e futuro,

    ela precisa de nossa capacidade de imaginar, pensar e inventar. Sem isso somos bichos, predadores e presas, que podemos conduzir a um mar de dores insuperáveis, que só quem as viveu em outros momentos de crise pode testemunhar.

    Quando isso acontece o ódio veste sua armadura, autoriza-se e reage rompendo barreiras de decência e eliminando limites antes construídos com lutas e dificuldades em nome de um convívio possível e duradouro entre diferentes e divergentes. Estamos no Brasil muito longe da paz e muito próximos da guerra. Sempre estivemos, mas agora tudo assume ares de iminência.

    Há muitas maneiras de interpretar a morte de alguém. Pode ser mera casualidade, pode ser o destino, pode ser uma fatalidade, mas há outras interpretações que veem na morte a resultante de um processo de crueldades que não puderam ser cessadas pelas instituições e pessoas investidas de representação e legitimidade para fazê-lo e que deviam, por obrigação moral e ética, tentar evitar o pior e não insuflá-lo. O efeito colateral de interesses que dependem de mortes para se manterem ativos será a revolta e as ações sem previsão que elas engendram.

    Não temos mais como nos enganar,

    morreu Dona Marisa,

    o alvo agora é Lula,

    a despeito dos abraços comovidos e dos cumprimentos cínicos que povoaram o hospital Sírio-Libanês. Outros, milhares de alvos são exterminados nesse momento em muitas cidades brasileiras. Depois outros virão.

    A escória das elites brasileiras não pretende apenas atacar pessoas. Seu plano é muito mais ambicioso. Conduzir o Brasil ao que era: um imenso latifúndio de escravos e miseráveis com açoites em poucas mãos. Todavia muitos que se aproveitam desse momento não estão interessados nisso exatamente. Eles aproveitam a oportunidade para demonizar, matar, cruelizar e praticar, sem condenação, inefáveis maldades a céu aberto. O promotor Rômulo Paiva Filho e o médico Raicham Faissal Ellakis foram porta vozes de muitos. Um deveria zelar pela justiça o outro pela vida. Se formaram para isso. Porém num segundo tornaram-se boçais que instigam outros a beberem vísceras e sangue. Hienas roendo carcaças. Estamos no fundo do poço e o caminho só pode ser para cima.

    A morte cruel não encerra nada,

    mas dá início a um processo de dor e ressentimento

    que dificilmente poderá ser cessado

    com abraços protocolares à beira do caixão.

    A morte poderá nos instruir a nos levantarmos antes que outras mortes ocorram. E diante da premência de uma onda de maldades que não encontra termo, teremos de estancá-las de um jeito ou de outro.

    Teori morto, Moraes já vestia a toga para substituí-lo. Mal termina o sepultamento de Marisa e as armas já estão engatilhadas para Lula. Enquanto isso corpos são empilhados em todas as cidades brasileiras e aqueles que reclamarão seus mortos se multiplicam.

    Estaremos próximos de ter de decidir entre matar ou morrer?

     

    Nota

    Esse texto foi publicado, em 08/02/2017, no site dos Psicanalistas pela Democracia: http://psicanalisedemocracia.com.br/2017/02/a-morte-os-moraes-e-os-moros/

  • ÓDIO, INSENSIBILIDADE E FALTA DE ÉTICA

    ÓDIO, INSENSIBILIDADE E FALTA DE ÉTICA

    Muitos são-roquenses ficaram indignados e preocupados com a notícia sobre a falta de ética do médico neurocirurgião Richam Faissal El Hossain Ellakkis. Este, que atua na cidade, fez um comentário sobre o estado de saúde de dona Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017) que horroriza qualquer pessoa. “Esses fdp vão embolizar ainda por cima”, escreveu em um grupo de WhatsApp, em referência ao procedimento que provoca o fechamento de um vaso sanguíneo para diminuir o fluxo de sangue em determinado local. “Tem que romper no procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, arremata o neurocirurgião.

    Ellakkis, que prestava serviços no hospital da Unimed São Roque, no interior de São Paulo, e em outras unidades de saúde da capital paulista, teve, corretamente, o seu contrato rescindido por essa instituição. O hospital Sírio Libanês, local no qual dona Marisa encontrava-se internada, também exonerou a médica Gabriela Araújo Munhoz, responsável por difundir detalhes de exames da paciente e emitir palavras torpes pelas redes sociais.

    Esqueçam por um segundo que a vítima desses comentários assustadores foi dona Marisa, companheira do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por 43 anos, e façam as seguintes perguntas: Como um profissional que deveria defender a vida pode desejar a morte de alguém? Como um médico pôde expressar tal pensamento em uma rede social?

    A atitude desses profissionais é inaceitável. No entanto, para ser melhor compreendida faz-se necessário estendermos nosso olhar. Desde 2014 o país atravessa um momento de radicalismo singular. Por conseguinte, ninguém ouve ninguém e os adversários políticos foram transformados em inimigos mortais. Rótulos como petralha, coxinha, mortadela, feminazi, esquerdopata, fascista, etc. se sobressaem diante da razão e diálogo. O ódio tornou-se combustível gerando ações baseadas no preconceito, discriminação e segregação. Ao outro é retirado o direito de ser humano, e com ele princípios fundamentais como a compaixão.

    Essa cultura do ódio origina cenas lamentáveis e, infelizmente, frequentes. Hostilização ao ex-ministro da fazenda Guido Mantega quando este acompanhava sua esposa no hospital Albert Einstein, discriminação racial contra a atriz Taís Araújo e a jornalista Maria Júlia, desrespeito às opções políticas de nordestinos, machismos, LGBTfobia, etc. Essas desastrosas ações transmitem, entre outras coisas, a mensagem de que os princípios de humanidade, profissionalismo, cientificismo, racionalismo foram deixados de lado, especialmente perante o diferente. Estamos à beira da barbárie!

    Ressalta-se que não se trata de defender necessariamente dona Marisa, mas advogar as conquistas históricas de respeito e compreensão ao ser humano, especialmente em casos de doenças e morte. Além disso, as falas dos médicos desrespeitaram o juramento de Hipócrates: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”.

    Em 2015, a pacata São Roque assistiu a outro caso de repercussão nacional envolvendo profissionais da saúde, “os falsos médicos”. Agora registra-se a desumanidade e falta de ética de outro médico que atua no município. Contudo, a divulgação do fato na imprensa, a reação de indignação nas redes sociais e a imediata rescisão de contrato de prestador de serviço desses médicos revelam uma gota de esperança em um oceano de incerteza em que se encontra o Brasil.

  • Me perdoe, Dona Marisa, mas eu não consigo conter a raiva em certas horas

    Me perdoe, Dona Marisa, mas eu não consigo conter a raiva em certas horas

    Dona Marisa, não conheci a senhora. E olha que até poderia, se eu fosse um pouquinho mais insistente. Várias vezes a senhora passou bem perto, mas não arranhei o protocolo e não a cumprimentei. Teve uma vez que a senhora ficou sozinha sentada num sofá a poucos metros de mim, por alguns segundos intermináveis, mas eu envergonhado, titubeei. E perdi.

    Com seu marido foi mais fácil. Apesar de toda a lenda, foi fácil me entrepor em seu caminho e ele mesmo veio me cumprimentar, apertou a minha mão com força, olhou nos meus olhos e sorriu. Mas com a senhora, não consegui perder a timidez, que, sim, a tenho por perto em alguns momentos consideráveis.

    E hoje, chorei. Chorei de raiva. Me perdoe, dona Marisa, mas eu não consigo conter a raiva em certas horas. É um defeito meu. Eu perco a razão constantemente. Provavelmente a senhora ralharia comigo se a gente se conhecesse. Mas não tenho como controlar essa minha natureza.

    Eu socaria quem viesse me abraçar solenemente, depois de ajudar na tortura diária de destruição de uma história inteira. Lembro dos pedalinhos que a senhora deve ter se divertido com seus netos, lembro do tal triplex que sumiu no anonimato, de tudo que não tinham como provar, mas tinham convicção.

    Fiquei sabendo do seu estado de saúde, em Fortaleza, durante a 10ª. Bienal da UNE. Nossa, como meus olhos se encheram de água quase instantaneamente. Olhei para os lados para procurar algo ou alguém que me confortasse. E vou dizer o que vi, dona Marisa: uma Bienal negra, completamente negra, dona Marisa. Estudantes negros e negras de todo canto do país. E muitas mulheres, muitas mesmo. A força das lideranças tinham vozes femininas, em sua maioria. E isso tem nome: ProUni, FIES, Pronatec, Política de Cotas, Políticas de Inclusão. E muita potência e muito amor. Isso tem muito a ver com a senhora, com seu marido. Sinta-se acarinhada com essa imagem, por favor, dona Marisa!

    Imagino a dor e preocupação da senhora, vendo a possibilidade de ter seu marido e seus filhos presos sem nada que os incriminasse legalmente, explorada até a última gota por essa grande pequena mídia que se esforçou minuto a minuto em transformá-los nos inimigos número 1 da nação brasileira. Falaram até da senhora, como último ato para atacar o Presidente Lula.

    Essa cultura do ódio que a mídia golpista, os juízes apadrinhados e os burocratas do poder semearam sem nenhum pudor, devem tê-la deixado muito nervosa, né, dona Marisa? Quem aguentaria tanta ira? Eu não aguentaria.

    Fico pensando se isso acontecesse com minha mãe, como eu agiria? Com certeza a calma não seria minha companheira e o meu instinto seria expulsar cada traidor que viesse se avizinhar de nossa dor. Ah, dona Marisa, se eu visse aqueles bandoleiros chegando em bando perto da senhora, com aquela baba no canto da boca e pousassem a mão sobre a senhora, eu gritaria com todos os meus pulmões: Tirem suas mãos sujas daí, seus porcos safados! Assassinos de gabinete, caiam fora antes que o vinho escorra de suas caras de pau!

    E o que deixa mais puto com esses pilhadores da vida alheia, é que não me deram o tempo necessário para combater minhas fraquezas e finalmente chegar na sua frente e dizer com a voz baixa e respeitosa: Oi, Dona Marisa, meu nome é Sato. Posso fazer uma foto da senhora?

  • De Mulher pra Mulher

    De Mulher pra Mulher

    O Brasil era todo novo em 2003. Lula havia sido eleito com dois a cada três votos válidos no segundo turno e Dona Marisa chegava de vermelho para colorir o Alvorada. Era tudo novidade. A imprensa, acostumada a lidar com os salamaleques, cerimônias, formalidades e rapapés presidenciais, tinha prazer em fazer piada do jeito despachado do casal. Uma notinha maldozinha sobre o churrasco no jardim, um aposto no texto da reportagem que mencionava o frango com polenta que o casal adorava comer. Dona Marisa não era madame. A cozinha do palácio passou a ter buchada, arroz e feijão com bife e bacon na couve. Foi fotografada mais de uma vez vestindo legging, tênis e sem maquiagem.
    Toda a imprensa queria entrevistá-la. Ela negava sem meias-palavras a todos os pedidos. Principalmente aos das revistas femininas, ávidas em perfilá-la e levá-la para estúdios fotográficos de profissionais acostumados a retratar modelos famosas. Prometia-se roupa de grife, foto de grife, maquiagem de grife e até jornalista de grife para convencê-la a dar entrevista. Eu era repórter sem nome famoso, só mais uma na lista dos queriam conversar pela primeira vez com Dona Marisa no papel de primeira-dama. Trabalhava na revista popular Criativa, da Editora Globo, nada bem vista pelo Partido dos Trabalhadores (PT). De “grife” a publicação também não tinha nada. Naquela época, a revista era voltada para jovens mulheres que, como eu, se dividiam entre o trabalho e a vida doméstica. Por pesquisas, sabíamos que a maioria fazia isso tudo sem marido.

    De Dona Marisa colecionei negativas de entrevista desde a posse. Até que decidi fazer o que toda mulher faz quando precisa saber mais de alguém: falar com as amigas. Fui para São Bernardo, e lá comecei pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Escolhi a parte mais convidativa de qualquer lugar: a cantina. Logo descobri como Luiza de Farias tinha virado a “Tia da Cantina” por causa de Dona Marisa, por exemplo.

    A Tia, como era carinhosamente chamada, era líder comunitária de uma favela e conheceu Lula em 1980, pouco antes de ele ser preso. “Fui cozinhar pra peãozada que ia protestar para soltarem o Lula. Fazia linguiça, vendia Guaraná e pinguinha. Apinhava de gente”, contou. Foram Marisa e Lula que a convidaram para trabalhar no sindicato. Eles sabiam que Tia morava num cômodo com os seis filhos e combinaram que ela só ia pagar o aluguel depois que o negócio decolasse. “Vendia muito Domecq, pinga, Jurubeba, cerveja e comida de homem: arroz e feijão, caldo de mocotó, costela assada, sarapatel, maionese…”. Em 2003, a Tia já estava há 22 anos no sindicato e, nesse meio tempo, comprou terreno, construiu sua casa. Quando dona Marisa fez visita ao sindicato como primeira-dama, comeu mais uma vez o bolo de fubá da Tia.

    Marisa e a “Tia” da cantina

    No bar da esquina, fui jogar conversa fora sobre Dona Marisa com Rosa Kido, que atendia no balcão. “Ela sempre vinha me ver quando ia ao sindicato. Dei para ela um amuleto japonês para dar sorte no amor. Dez anos depois, fui na casa dela levar um vinho no Natal e ela ainda tinha o amuleto no quarto dela!”, contou. E, naquele longínquo Brasil de esperança, perguntou: “Será que ela vai levar pra Brasília?”

    Expedito Soares Batista, então advogado do sindicato havia 12 anos, também tinha história para contar. “A casa da Marisa ficava uma bagunça por causa do pessoal do PT. A Marisa tinha que botar todo mundo pra correr, senão o papo não acabava.” Contou também que ela ia a todas as passeatas com o pessoal. Vida, trabalho no partido e no sindicato sempre foram uma coisa só.

    Os padrinhos de casamento de Lula e Marisa confirmaram. “Na época das greves, tanto eu quanto a Marisa víamos nossos maridos saindo de casa às 4 horas da manhã para ir para porta de fábrica fazer mobilização, distribuir folheto. Era perigoso. Mulher de sindicalista sofria”, lembrou a comadre Emília de Oliveira. “Nossos maridos faziam greve: e o medo que perdessem os empregos? E se fossem presos? Torturados?”

    Os quatro filhos de Emília brincavam com os quatro filhos de Marisa. “Ficamos comadres organizando festas para arrecadar dinheiro para o fundo de greve”, diz a madrinha de Sandro. Quando a filha de Emília se casou, Lula era deputado federal e foi no casamento direto de Brasília. O casal também compareceu no aniversário de 25 anos do casamento da amiga com o Janjão, João de Oliveira, o compadre de Lula.

    As histórias de Dona Marisa logo me levaram ao restaurante São Judas Tadeu, onde Lula e a mulher iam comer o famoso frango com polenta que a primeira-dama levou para a cozinha do Alvorada. No imenso galpão do restaurante perto da fábrica da Volks – que chegava a servir mais de 300 famílias de metalúrgicos nos fins de semana, cerca de 1300 pessoas -, encontrei Cidinha e Laerte Demarchi. Eles conheciam Marisa e Lula desde 1978, eram companheiros de pescaria e mesa farta. Mas não falavam de política quando se encontravam.

    Cidinha contou que Marisa era leoa, gostava de proteger e cuidar. Dos amigos, da casa, da família e do marido. Ia ao mercado, na escola das crianças, ouvia os desabafos das amigas, apoiava o marido e sabia o que tinha de mistura no prato do almoço e no jantar. “Ela é quietinha, tímida, mas muito viva. Sabe tudo da carreira do Lula, acompanha, é inteirada. Quando o Lula está falando, ela está ligada, sempre de olho no que ele diz”, lembrou a comadre. Famoso por adorar ser o centro das atenções, o ex-presidente adorava fazer piadinhas mas a amiga do casal disse que Marisa era engraçada também. “Numa pescaria no Mato Grosso, só deu piranha. Então a gente foi comprar os peixes dos pescadores da região para fazer a foto.”

    Foi Cidinha quem conversou com Marisa em meu nome e levou à primeira-dama, mais uma vez, o meu pedido de entrevista. Fiz questão de avisar que não era de política a nossa conversa. Era papo de mulher. E assim foi. Depois de cinco meses de tentativas frustradas, Dona Marisa finalmente conversou comigo como primeira-dama. “Para as pessoas gostarem de mim, se sentirem bem ao meu lado, eu não preciso ser diferente do que sou”, falou sem cerimônia.

    Dona Marisa contou que estranhava morar no Alvorada. “É muito grande, tem muitos funcionários. Estou acostumada e gosto de lugares pequenos, aconchegantes. E tinha apenas uma pessoa para me ajudar”, disse. Era maio, fazia só cinco meses que estava na casa nova. “Hoje está tudo bem. Conheço todo o pessoal, horários de trabalho, dias de folga. Eles também me conhecem.” Fez questão de citar os peixes que levou para o lago do Palácio, a recuperação dos móveis que estavam nos depósitos e os copos-de-leite coloridos que pediu para plantar no jardim. “Eu tenho consciência de que o Palácio do Alvorada não é minha casa. Mas cuido dele como se fosse.”

    Na entrevista também falamos de vida a dois: “amar é muito importante mas sonhar juntos é fundamental. É isso que alimenta nosso casamento até hoje. Estamos também preocupados com os detalhes. Às vezes um gesto, um olhar muda tudo.” Lula falou do olhar forte e marcante de sua mulher em dezenas de ocasiões. Sabia também que se fosse preciso ela botava a boca no trombone.

    “Na posse é praxe que o presidente desfile em carro aberto ao lado do vice-presidente. Quando eu soube disso, perguntei: ‘E eu?’ Responderam: ‘A senhora será conduzida ao Palácio do Planalto e aguardará a chegada do presidente lá dentro’. Eu disse: ‘Ah, mas não mesmo, eu quero estar ao lado do presidente, durante o desfile. Também quero ver o povo, quero sentir essa energia’. ‘Mas, dona Marisa, sempre foi assim’, eles me responderam. Então, eu disse ‘meus filhos, esse governo será diferente, será de mudanças. E a mudança já vai começar na posse’. E foi o que aconteceu: eu desfilei ao lado do presidente e participei da foto junto com ministros e ministras. Nesse momento, eu me senti uma representante de todas as mulheres que lutaram e lutam ao lado de seus maridos”, ela contou. E foi mesmo, Dona Marisa. Foi mesmo.

    Em tempo: Dona Marisa posou para foto de capa da Revista Criativa usando suas próprias roupas, com seu fotógrafo e maquiador de confiança. Não quis produção em estúdio, não exigiu cardápio afrescalhado na sessão de fotos, prática comum entre atrizes e modelos famosas nesses ensaios. Perguntada sobre a rotina de maquiagem, cabelo, manicure, respondeu: “Esses cuidados eu sempre tive, independente de ser primeira-dama. As minhas unhas faço toda semana, como todo mundo. Com maquiagem também me viro bem, pelo menos não tive reclamações. O meu cabelo eu mesma arrumo e, de vez em quando, o Lula faz uma escova pra mim.”

    Sobre a história de amor entre Lula e Marisa, leia mais aqui.