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    Violência contra as mulheres indígenas

     

    Recebi mensagem aflita, acompanhando imagem de senhora com hematomas, denunciando agressões entre mulheres indígenas, violência essa potencializada pelo avanço de religiões e cultos evangélicos entre as aldeias de Mato Grosso do Sul. Notícias de violência contra todas as mulheres aflora nos cantos do país, em todos os lugares. Entre as indígenas me aflige imensamente, mulheres tão atentas.

    Quanto maior a miséria, maior a truculência, vejo bem hoje entre os povos que perderam sua terra indígena, território tradicional. Coisa da Idade Média, suas inquisições. Um voltar atrás que parece não ter fim, meu país que renega seu futuro.

    A Assembléia das Mulheres Guarani e Kaiowá, Kuñangue Aty Guassu, na região de fortes conflitos entre povos indígenas e fazendeiros potentes entre o agronegócio, veio a público, nas redes sociais, denunciar a violência contra as mulheres de seus povos.

    Diz o manifesto:

    Venho aqui em publico DENUNCIAR homens “lideres” INDÍGENAS DO MEU POVO torturando Mulheres INDÍGENAS GUARANI e KAIOWA, isso acontece na aldeia Taquaperi, mas cotidianamente se repete em outras áreas indígenas aqui no Cone Sul de MS. 

     

    A intolerância religiosa passou dos limites, homens vestidos de “CRENTES” e outros também líderes ligados a capitania, dominados pela doutrina pentecostal e discurso de décadas da igreja, que avançam fortemente nas Reservas Indígenas, usam facas e chicotes para condenar o chamado “feitiço”.

     

    Virou uma batalha espiritual, escravos da doutrina da igreja que os veste fisicamente e espiritualmente demonizando o nosso modo tradicional de ser Guarani e kaiowá, se negam a entender a nossa crença, o processo histórico do nosso povo, nossos conhecimentos ambientais, cronológicos.Quantas mulheres Nhandesys e Nhanderus foram criminalizados até os dias atuais, tidas como bruxas, feiticeiras, macumbeiras, mas a tal igreja é o certo para eles rumo ao “CÉU” e salvação da vida. 

     

    Nunca nós os condenamos por ser da pentecostal, mas eles sim condenam nossos anciãos rezadores, uma guerra religiosa que atravessa nossos corpos e está nos violentando fortemente. Historicamente são mulheres, viúvas do nosso povo TORTURADAS por homens líderes ligados à capitania e a igreja pentecostal! Precisamos ouvir os dois lados, porém sem torturar, ameaçar, assassinar o outro. São mulheres, idosas, indígenas, pouco se comunicam em português, só ficam no território indígena e estão sofrendo crime de ódio, intolerância religiosa, sendo condenadas por homens indígenas ligados a igreja praticando a violência, tortura física e psicológica contra elas sem o direito de ambas se defender.

    Como representantes da KUNANGUE ATY GUASU – Grande Assembléia das Mulheres Guarani e Kaiowá, condenamos todas as violências praticadas contra as Mulheres indígenas em nosso documento final da assembléia realizada em Setembro de 2019.

     

     

    Encontrei bom artigo na Revista Carta Capital, que esclarece bem a questão:

     

     

     

    *Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca

    A KUÑANGUE ATY GUASU É ORGANIZADA TODOS OS ANOS PELAS PRÓPRIAS MULHERES GUARANI E KAIOWÁ (FOTO: EVERSON TAVARES/AGÊNCIA PÚBLICA)

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    “Eu vou parar a plenária”, diz a voz ao microfone. “Do que adianta nós, mulheres, falarmos da violência sendo que os homens estão circulando?” O recado é dado pela jovem Aradunhá Kaiowá aos homens que foram aos poucos se dispersando. Ela conduz o segundo dia de discussões da sétima Kuñangue Aty Guasu, a grande assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá, realizada a cada ano em uma terra indígena habitada por esses povos no Mato Grosso do Sul. Em 2019, o encontro ocorreu em setembro na aldeia Yvy Katu Potrerito, município de Japorã, na fronteira com o Paraguai. O protagonismo é totalmente feminino, mas os homens são convidados a estar ali e ouvir os relatos sobre problemas que os envolvem diretamente.

    “É importante falar sobre violência e também é importante ouvir”, acrescenta a nhandesy Helena Gonçalves, vinda da aldeia Limão Verde, no oeste do estado – nhandesy é como os Guarani e Kaiowá se referem às rezadoras e curandeiras tradicionais. A senhora de cabelos ajeitados num cocar florido fala rapidamente em guarani, língua compartilhada com algumas variações pelos dois povos. A Kuñangue Aty Guasu é um ambiente seguro para que essas mulheres tenham suas vozes e histórias respeitadas. “A maioria delas afirma que esse é o único espaço no qual conseguem falar para discutir o que atinge elas, os filhos, a família”, conta à reportagem Aradunhá, uma das organizadoras da assembleia.

    O encontro dedicou um de seus três dias de discussões à violência contra a mulher nas aldeias. Não só os homens indígenas, mas também as autoridades karai – como são chamados os não indígenas – ouviram por horas as falas de rezadoras, lideranças e estudantes, mulheres das mais variadas idades. Uma delas, Otília Hilário, de 86 anos, nhandesy da Terra Indígena (TI) de Amambai, disse algo que seria repetido por muitas outras vozes até o fim da reunião: “Nossos maridos batem na gente, nos chamam de ‘saco de pancadas’. Não gostamos, mas muitas não falam sobre isso”.

    Vida em confinamento

    Segundo o Ministério da Saúde, Amambai, onde vive dona Otília, registrou 79 casos de violência doméstica contra mulheres indígenas em 2017, último ano sobre o qual há estatísticas consolidadas – é o número mais alto do Brasil. Dourados, a segunda maior cidade sul-mato-grossense, tem dados ainda mais alarmantes: além de figurar como o segundo município brasileiro com os maiores registros de todos os tipos de violência contra as mulheres indígenas, lidera o ranking do abuso sexual contra elas no país, com 31 casos em 2017. Eles são cerca de metade de todas as ocorrências registradas no estado naquele ano.

    Os indicadores de Dourados levam o Mato Grosso do Sul a ser o estado com maior número absoluto de violência sexual contra mulheres indígenas, com quase o dobro dos registros de qualquer um dos estados da Amazônia brasileira. Desde 2012, é a cidade onde mais mulheres indígenas são vítimas de violência sexual no Brasil. Quem vive e estuda essa realidade considera que o cenário pode ser ainda pior devido à subnotificação.

    OS NÚMEROS CONTRA A MULHER INDÍGENA

    Por alguns dias, estivemos na Reserva Indígena de Dourados, a TI mais populosa do Mato Grosso do Sul, cravada entre lavouras de monocultura que ajudam o estado a ocupar o posto de quinto maior produtor de grãos do país. Seu território se estende parte por Dourados e parte pelo município vizinho, Itaporã. Andando pelas ruas de terra das duas aldeias que a compõem, Bororó e Jaguapiru, nota-se que o Estado falha em fornecer condições de atenção básica às pessoas que vivem ali.

    Com aproximadamente 15 mil moradores, de acordo com os dados mais recentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o território supera mais de 40 municípios do estado em termos de população, mas, entre suas escolas, apenas uma é de ensino médio, há somente quatro postos de saúde, uma linha de ônibus circular (que transita em poucos horários – de manhã, no meio do dia e ao fim da tarde – e por uma pequena parcela do território) e, na assistência social, conta apenas com um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que, responsável por atender a todos os habitantes, funciona com dificuldades – os funcionários relatam que faltam materiais básicos, como folhas de papel sulfite, e não há gasolina suficiente para fazer visitas de acompanhamento.

    Três povos diferentes, Guarani, Kaiowá e Terena (estes, em menor número e com aspectos culturais distintos dos dois primeiros), se misturam em 3,5 mil hectares. O número em si não diz muita coisa, porém com uma simples comparação é possível ter uma ideia da superlotação: enquanto, na reserva, cerca de 432 pessoas ocupam 1 quilômetro quadrado, considerando toda a área do município de Dourados, essa média é de 51,4 pessoas num pedaço de terra da mesma extensão – densidade demográfica nove vezes menor. As casas são bastante próximas umas das outras, e se vê poucas hortas e plantações familiares. “Confinamento” é uma palavra que a reportagem ouviu de muitos dos moradores para descrever a vida no local.

    A falta de espaço físico é determinante para a atual dinâmica da vida na reserva porque, tradicionalmente, os Guarani e Kaiowá se dividiam em grandes casas coletivas, distantes em quilômetros umas das outras, onde vivam famílias extensas, constituídas por pequenos grupos familiares. Ainda hoje a organização das aldeias se dá pelas famílias, cujos núcleos vivem próximos, mas se dividem em casas separadas, menores e muito mais próximas do que antigamente. Famílias extensas que não necessariamente possuem afinidades entre si são obrigadas a conviver em uma área de tamanho limitado. “A reserva é um espaço de recolhimento de uma população que estava muito mais dispersa. Tanto é que há, na reserva, três etnias distintas. Cada uma tinha seu território”, destaca o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da Faculdade Intercultural Indígena (Faind), vinculada à Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

    Nesse contexto, os índices de violência contra a mulher não foram os únicos a explodir. Basta entrar na casa de alguém e conversar por alguns minutos para aparecerem os relatos sobre casos de assaltos ou mesmo de assassinatos. Levantamento do Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul (MPF-MS) com números do Ministério da Saúde reflete essa percepção: entre 2012 e 2014, a taxa de homicídios entre os indígenas da região de Dourados foi de 101 vítimas a cada 100 mil habitantes – quase o dobro da taxa de homicídios de indígenas no Mato Grosso do Sul, que é de 55,9. Para ter uma ideia, os homicídios entre a população geral no estado são cerca de um quarto da taxa na reserva, 26,1 a cada 100 mil. A média brasileira é de 29,2. A Agência Pública tentou obter dados mais atualizados, mas a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) do Mato Grosso do Sul não respondeu às nossas solicitações.

    “É o branco que traz”

    Se, por um lado, existe a sensação de que a criminalidade tem feito parte da vida na reserva, ela vem acompanhada pela noção de que a violência não integra os modos de vida tradicionais dos Guarani e Kaiowá. A nhandesy Alda Silva, de 70 anos, nos recebeu numa tarde de sábado, do lado de fora de sua casa, na aldeia Jaguapiru. Usando os cabelos lisos parcialmente presos e trajando um vestido colorido, estava sentada diante do terreno antes ocupado pela casa de reza que por anos manteve com seu marido, o nhanderu – ou rezador – Getúlio Juca, e que em julho foi consumida por um incêndio cujas circunstâncias ainda são investigadas.

    As nhandesy e os nhanderu são referências em suas comunidades pelo papel espiritual que desempenham – no guarani, esses termos significam “nossa mãe” e “nosso pai”. Com dona Alda, não é diferente. Ela conta que mulheres da aldeia a procuram para relatar episódios de violência dos quais são vítimas. “Chega estupro, violência [doméstica], chega também marido que mata a mulher”, afirma. “Elas vêm pedir socorro, sou eu que atendo aqui. Levanto à noite, a qualquer hora atendo. Não tenho celular, quem tem são minha filha e meu marido. Aí já vou avisar eles para ligar, peço para eles me emprestarem o celular e ligo para a polícia ou para a Sesai virem ver o que está acontecendo.”

    Quando ouve a pergunta sobre as raízes dessas violências, dona Alda diz que “é o branco que traz pra dentro da aldeia”. “Nós não tínhamos isso aí, não, a gente vivia bem. Podia sair à noite e ir na Missão [Evangélica Caiuá, que tem sede dentro da reserva], ir até a Bororó tomar chicha”, narra, referindo-se à bebida alcoólica produzida pela fermentação do milho e outros cereais, tradicionalmente consumida por diversos povos nativos das terras baixas da América do Sul, incluindo os Guarani e Kaiowá. Ao longo do tempo, a chicha perdeu espaço para o álcool destilado, que chegou pelas interações com a cidade. Por sinal, muitos dos casos que nos foram relatados sobre mulheres espancadas ou alvo de ataques psicológicos nas aldeias envolvem o uso excessivo da bebida e outras drogas pelos homens agressores.

    Para o assistente social Kenedy Morais, indígena Guarani que mora na reserva e trabalha no único Cras da região, na aldeia Bororó, a utilização abusiva dessas substâncias é reflexo da precariedade de condições básicas de vida, como o trabalho, e da falta de perspectivas que isso causa. Ele diz que os indígenas contam com poucas possibilidades de geração de renda dentro do próprio território, como projetos de agricultura familiar, e os homens se veem obrigados a buscar serviços na cidade. Acabam trabalhando, por exemplo, como garis – são a maioria dos funcionários de uma das empresas responsáveis pela limpeza urbana de Dourados, segundo reportagem publicada pela revista piauí em julho.

    “Estamos às margens mesmo, e há uma população alijada de direitos. Toda essa situação incide em altos índices de alcoolismo”, avalia.

    O uso de drogas e álcool virou um problema tão relevante na Reserva Indígena de Dourados que, em 2017, o MPF e as defensorias públicas do Mato Grosso do Sul e da União ajuizaram uma ação civil pública pedindo que os governos federal, estadual e municipal sejam obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao consumo dessas substâncias. Os autores da ação alegaram que as diferentes esferas do poder público têm sido omissas “quanto aos deveres constitucionais e legais de tutela à vida e à saúde da população indígena de Dourados”. O MPF-MS informou que houve um acordo extrajudicial, prestes a ser homologado, no qual a União, o estado e o município se comprometeram a desenvolver políticas públicas para promover a saúde mental dos moradores da reserva.

    O périplo até as autoridades

    Emilena Arce, de 22 anos, e Roziane Ramires, de 24, são duas das mulheres para quem álcool é sinônimo de violência. Sentadas em frente à cozinha do Cras, onde tomam tereré – a tradicional bebida de erva-mate e água gelada – num início de tarde em que o sol brilha forte, contam à reportagem os momentos de violência que sofreram pelas mãos dos ex-maridos, indígenas como elas, que se tornavam bem mais agressivos depois de beber.

    Roziane mostra um dos braços, marcado por uma extensa e grossa cicatriz, resultado de uma cirurgia que precisou fazer no ano passado para reparar um dos ossos. A fratura foi causada pelo ex-companheiro, que bateu nela com um pedaço de pau. “Ele queria bater na minha cabeça, mas eu ergui o braço”, relembra. O casal viveu junto por oito anos na reserva, onde morava com os dois filhos – um menino de 9 anos e uma menina de 5. Roze – como é chamada pelas pessoas próximas – acha que o problema do ex-companheiro era a bebida, componente presente na maioria das ocasiões em que apanhou durante o casamento. Apesar disso, demorou a denunciar: “Eu tinha medo”. Durante a conversa, ela não permitiu ser fotografada.

    Emilena havia ido ao Cras naquele dia para participar de um curso profissionalizante de pizzaiolo. Intercalava frases a olhares para a mãe, Rosemara, 39, que também se separou do ex-marido, pai de Emilena e outras duas meninas, após sucessivos episódios de agressão. Anos mais tarde, a filha mais velha se viu na mesma situação: de tanto apanhar do então marido, tomou a decisão de terminar uma relação de quatro anos, mesmo tendo que cuidar de uma bebê recém-nascida.

    Ele ficou violento, diz a jovem, depois de começar a trabalhar na coleta de lixo da cidade. “Uma vez, quando chegou em casa, jogou minha menina contra a parede e me bateu”, relata. “Quando eu corri para a casa da minha mãe, ele pegou minhas roupas e cortou tudo, quebrou todas as minhas coisas e foi embora. Antes ele fosse e não voltasse, mas ia e vinha mais tarde de novo, com a mesma agressão.” Por causa das ameaças, tinha medo de denunciar, mas acabou indo à delegacia. “Se eu não largasse ele, ia morrer.”

    Inúmeras são as dificuldades no caminho das mulheres Guarani e Kaiowá vítimas de violência em direção à denúncia. “São poucas as mulheres que falam ‘hoje chega’. Por medo de ameaças, de tirar seus filhos de casa, de não ter onde morar. A coisa mais difícil que tem é a violência contra a mulher aqui dentro da aldeia”, ressalta a agente de saúde Maria de Fátima Cavalheiro, de 41 anos. Ela mesma, indígena Guarani e moradora da aldeia Bororó, já precisou romper com o ciclo, após anos sendo alvo de agressões do ex-marido. Como seu trabalho envolve visitar as pessoas, hoje tenta orientar mulheres que estão na mesma situação. Em muitas famílias, ela relata, os homens ocupam o papel de provedor financeiro, o que distancia ainda mais as vítimas do fim da violência.

    Quando as mulheres decidem procurar as autoridades, novos obstáculos aparecem. Um deles é a dificuldade de chegar à única Delegacia de Atendimento à Mulher (DAM) da cidade, localizada a mais de 8 quilômetros da reserva. Os ônibus circulam em poucos horários e por rotas limitadas, então as pessoas dependem basicamente de seus próprios veículos, motos, carroças e bicicletas para chegar até lá. Senão, a alternativa é ir a pé por um trajeto que leva no mínimo uma hora e quarenta minutos para ser percorrido e inclui estradas de terra e rodovias. “Para a mulher sair daqui e ir à delegacia, muitas vezes ela não tem o transporte”, aponta a assistente social indígena Tatiane Martins, funcionária do Cras. Para ela, quando uma vítima consegue chegar à delegacia, “é porque fez um esforço danado, teve uma força de vontade enorme para ir lá, fazer uma denúncia”.

    Se um caso de agressão física ou abuso sexual acontece em alguma das aldeias, as vítimas e seus familiares também têm dificuldades para pedir ajuda, já que o sinal de celular e internet móvel é inconstante, como a Pública observou. Ligar para a polícia pode ser uma atitude pouco efetiva: a Polícia Militar demora para atender aos chamados e só o faz depois que os capitães, lideranças presentes nas duas aldeias, autorizam sua entrada. Questionada sobre essa situação, a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul não respondeu até a publicação da reportagem.

    Segundo Paula Ribeiro, delegada titular da DAM de Dourados, essa é a realidade da sua equipe, que normalmente vai à reserva para realizar oitivas, intimações ou mesmo prisões. “A gente só entra com autorização. Se a gente chegar lá com intimações para fazer e falar ‘não entra’, nós não entramos. Fazemos o relatório dizendo ‘hoje não foi autorizada a entrada’”, afirma. “Em qualquer bairro da cidade, a gente agiria diferente, não tem essa de ‘a polícia não entra’”, admite a delegada. “Nas aldeias, a gente tem que respeitar a questão cultural. Eles são os donos da terra. Estamos tentando encontrar um meio-termo.”

    Mas a ideia de que acatar a autoridade do capitão equivale a respeitar a cultura dos Guarani e Kaiowá não é consenso. Criada pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a figura do capitão tinha como função auxiliar os chefes de posto do órgão a fazer valer suas ordens nas reservas indígenas instituídas no início do século 20. O cargo é tradicionalmente ocupado por indígenas, que antes eram designados pelo SPI e hoje, na Reserva Indígena de Dourados, são eleitos.

    Segundo pesquisadores, esse personagem sempre representou um foco de tensão, pois a lógica pela qual foi instituído – a de concentração de poder – e sua atuação desrespeitam o sistema de organização dos Guarani e Kaiowá. “O capitão nunca será unanimidade porque representa um grupo, e ninguém conseguirá representar todos, porque eles são organizados em famílias extensas”, destaca a antropóloga Lauriene Seraguza, que faz pesquisa junto às mulheres Guarani nas áreas de retomadas territoriais em Mato Grosso do Sul, na fronteira entre Brasil e Paraguai. “O Estado precisa levar em consideração que cada parentela tem sua liderança, seu rezador, seu modo de se relacionar.” Por isso, explica, não faz sentido o Estado nomear apenas duas lideranças como porta-vozes da comunidade e utilizá-las como mediadores de sua relação com a reserva.

    Se a vítima de violência superar todas essas dificuldades e conseguir chegar à delegacia para denunciar, deve se deparar com mais um problema. Nas aldeias, o guarani é o idioma mais falado. As pessoas sabem o português, mas não o consideram sua primeira língua, o que faz com que muitas mulheres não sejam plenamente compreendidas em suas denúncias. A necessidade de uma intérprete é apontada por muitas delas, mas a demanda até agora não foi atendida pelos órgãos de segurança pública.

    A delegada Paula Ribeiro garante que isso está nos planos, já que ela mesma acredita que a falta de uma intérprete acaba desencorajando a denúncia. “Tem muita mulher que ainda enfrenta a barreira da língua”, diz. “E, quando isso acontece, ela vai procurar uma pessoa na aldeia que não necessariamente está engajada na luta, que não vai repassar a notícia para ninguém.”

    Sem escuta

    A denúncia não é o capítulo final da busca por acolhimento. O que acontece depois que os casos de violência doméstica são levados ao poder público também não atende às suas necessidades, afirmam as Guarani e Kaiowá. “Não existe uma maneira que proteja as mulheres indígenas de acordo com as suas especificidades”, aponta Aradunhá Kaiowá, numa brecha de programação da Kuñangue Aty Guasu. Enquanto o resto das pessoas, espalhadas pela aldeia, se servia do almoço coletivo preparado pelas cozinheiras indígenas, ela se dividia entre a refeição, a entrevista e a produção, em seu notebook, do relatório final do encontro, que reuniria os pontos altos das discussões e as demandas mais urgentes às autoridades.

    Aradunhá cresceu na Reserva Indígena de Dourados e hoje vive na cidade, onde se graduou em ciências sociais pela universidade federal. Para organizar a grande assembleia, teve ao seu lado outras lideranças, todas mulheres. Uma delas é Flávia Nunes, estudante universitária que, com 22 anos, é uma das poucas integrantes femininas do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Mato Grosso do Sul. Era a última noite de reunião quando ela falou com a Pública, depois que o ritmo dos afazeres já havia se acalmado. “A Lei Maria da Penha ajudou a punir os homens que cometem essa violência grave, mas nós estamos lutando para que tenha uma lei adequada que garanta o direito das mulheres indígenas”, ponderou.

    No dia anterior, uma roda de mulheres havia debatido as limitações da Maria da Penha e da rede de proteção às vítimas. No centro do círculo desenhado pelas cadeiras, uma tira de papel pardo era preenchida com as falas consideradas mais importantes. Uma das frases escritas com tinta guache era, na verdade, um questionamento: “Lei Maria para quem?”. De um dos pontos da roda, uma jovem de 20 e poucos anos destacou a necessidade de as mulheres Guarani e Kaiowá serem acolhidas por suas pares nas delegacias – “Às vezes, elas [as vítimas] não falam para os brancos por medo, e, se tiver uma mulher indígena lá atendendo, ela vai chegar contando na língua o que aconteceu realmente.” Noutro canto, uma moça mais ou menos da mesma idade completou dizendo que “só nós, indígenas, entendemos a dor do próprio índio, que é uma dor infinita”. Outras mulheres assentiram com a cabeça.

    Em algum momento da conversa, surgiu a discussão de que as medidas protetivas não têm muita validade nas aldeias. Dias antes, em Dourados, a delegada Paula Ribeiro havia reconhecido essa falha: “O cumprimento de medidas dentro da aldeia não adianta falar que existe, porque não existe”. Entre os fatores que dificultam sua efetividade, está o fato de as famílias serem a base da organização espacial das aldeias. Para que se cumpra a medida protetiva, a vítima ou o agressor precisaria se afastar do espaço onde vivem todos os seus familiares e, por consequência, onde está estabelecida a maioria das suas relações afetivas. “Eles não têm para onde ir. As perspectivas para eles são bem limitadas”, avalia a delegada.

    Como a lei propõe a criação de casas-abrigo para acolhimento das mulheres em situação de violência, elas acabam duplamente vitimizadas: além de lidar com a agressão sofrida, normalmente são elas que precisam sair de casa. No caso das mulheres indígenas, a situação é mais grave, justamente porque isso significa a separação da maioria dos parentes, que têm uma importância central em suas vidas. “Às vezes, pensamos muito na proteção da mulher, mas acho que está faltando um pouco o olhar da dignidade. Como essa mulher se sentiria mais dignamente atendida? Mandando ela para uma casa-abrigo lá em Campo Grande? É difícil, temos que nos colocar no lugar dessas pessoas”, avalia a titular da DAM.

    As discussões da Kuñangue Aty Guasu revelam que as Guarani e Kaoiwá sabem pontuar com precisão o que não funciona para elas. O problema, dizem, é que o Estado dificilmente as leva em conta na formulação de políticas públicas. “Hoje, as políticas são pensadas de cima para baixo, nunca são construídas. Grande parte das políticas implantadas não serve por conta disso: não tem continuidade e não dialoga com as interessadas, as mulheres que estão sofrendo violência”, argumenta Indianara Ramires Machado, presidente da Ação dos Jovens Indígenas (AJI), organização que trabalha para empoderar a juventude da Reserva Indígena de Dourados por meio da educação.

    No fim das contas, eventos como a assembleia, organizados pelas próprias mulheres indígenas, são alguns dos poucos ambientes na contramão da ausência de escuta. O documento final do encontro é uma tentativa de que as demandas dessas mulheres cheguem a autoridades de variadas esferas. Os encaminhamentos incluem a reformulação na Lei Maria da Penha para que contemple as “especificidades das mulheres indígenas”; a criação de delegacias na Reserva Indígena de Dourados e em Amambai, onde haja mulheres trabalhando, incluindo intérpretes Guarani e Kaiowá; e a construção de novas alternativas de atendimento para mulheres e crianças em situação de violência, com o apelo para que haja Cras e Centro de Referência em Assistência Social (Creas) em todas as comunidades.

    No único Cras da Reserva Indígena de Dourados, a equipe tem a intenção de promover grupos com homens envolvidos em casos de violência, mas faltam recursos, pessoal, tempo. “É difícil porque não conseguimos atender nem a nossa própria demanda. A gente tem ideias, tem vontade, mas [nossa atuação] é limitada”, afirma psicóloga Bárbara Marques, indígena e moradora de uma das aldeias, a Jaguapiru. Apesar da situação de falta de recursos, Bárbara não perde as esperanças. “Eu acredito no trabalho da prevenção: orientação para os homens, qualificação, atividades de lazer, para que eles tenham perspectiva de vida, tanto os homens como as mulheres.”

    De onde vem a violência

    Andando pela Reserva Indígena de Dourados ou circulando pela aldeia Yvy Katu Potrerito, as conversas com os Guarani e Kaoiwá nos revelaram um pano de fundo para a violência que acomete suas comunidades, sobretudo a que vitima as mulheres: a perda da terra. Essa história, que foi sendo construída em capítulos, remonta ao século retrasado.

    ROSE E EMILENA ARCE, MÃE E FILHA, SOFRERAM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (FOTO: EVERSON TAVARES/AGÊNCIA PÚBLICA)

    Parte do território dos Guarani e Kaiowá foi ocupado na década de 1880, quando o comerciante gaúcho Thomaz Larangeira recebeu do Império brasileiro, em troca de sua participação na Guerra do Paraguai, arrendamentos na parte sul da área hoje ocupada pelo Mato Grosso do Sul, território repleto de ervais nativos. Criou a Companhia Matte Larangeira e, com o tempo, adquiriu o monopólio da exploração regional da erva-mate, ainda que fosse muito utilizada também pelos povos nativos que ali viviam.

    “A mão de obra de fora que trabalhava na Matte Larangeira era constituída basicamente de homens paraguaios, sem suas famílias. Eles buscavam ter acesso às mulheres indígenas e, chegando nas casas-grandes, as desrespeitavam”, diz o professor Levi Marques Pereira. “Isso levou os indígenas, para serem respeitados, a duas coisas: adotarem o modelo de residência individualizado, considerado civilizado [pelos paraguaios]; e os homens Kaiowá e Guarani passaram, muitos deles, a desenvolver uma atitude de ‘dono da casa’, para manter uma barreira contra os paraguaios – usar o mesmo jeito de se apresentar. Além disso, muitos paraguaios acabaram casando com mulheres indígenas. Há uma migração da masculinidade paraguaia para dentro das comunidades.”

    De acordo com o antropólogo, o convívio em casa coletiva, comum antes da Matte Larangeira, produzia um mecanismo de controle social da violência contra a mulher, já que os familiares formavam “um núcleo de proteção”. “Numa briga de casal, esses parentes iam se envolver”, declara. “A residência separada do casal favorece a violência.”

    As perdas de terra fizeram com que o SPI – que depois seria substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – criasse, na primeira metade do século 20, reservas no sul do Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul (a separação entre os dois estados se deu em 1977), para que os indígenas fossem abrigados em áreas delimitadas pelo governo, liberando assim a região para o avanço da atividade agropecuária e colonização. A de Dourados foi instituída em 1917. “O deslocamento [dos indígenas] para a reserva foi compulsório, muitas vezes sob o uso da violência, perpetrada por agentes do Estado ou por particulares que requereram e titularam terras na região”, explicam Pereira e Graciela Chamorro, também professora da UFGD, em artigo.

    Segundo os pesquisadores, a ideia do Estado, ao criar a reserva, era fazer com que os Guarani e Kaiowá fossem, aos poucos, perdendo sua condição de indígenas e se incorporassem à sociedade nacional. “A expulsão do território, a violação dos direitos e o confinamento dentro das reservas – causado também pelo preconceito da cidade no entorno – foram fazendo com que as pessoas tivessem que viver outros modos de vida que não os que elas conheciam”, aponta a antropóloga Lauriene Seraguza.

    O processo de perda territorial e confinamento na reserva culminou, de acordo com Pereira e Lauriene, num movimento de reconquista dessas áreas, o que gerou um intrincado conflito fundiário na região: de um lado, os indígenas, criando as retomadas – acampamentos que visam à recuperação dos tekoha (“lugar onde se é”, em Guarani); do outro, fazendeiros que alegam ser donos das terras e reagem às ocupações.

    Para Lauriene, só a partir dessa recuperação histórica é possível entender os casos de violência contra mulheres indígenas em Dourados. “A violência presente na Reserva Indígena de Dourados é uma consequência da ação do Estado contra os índios, e não dá para o Estado culpabilizá-los por ela. É fruto de um processo histórico de violências contra as suas vidas”, analisa. “Quem são os índios nas imprensas locais? São tachados de violadores, vagabundos, preguiçosos, mentirosos; os que batem, estupram e matam. Isso não é verdade, é uma tentativa de culturalização da violência.”

    A luta das Guarani e Kaiowá na região mais perigosa para mulheres indígenas no Brasil

     

  • Tô fora

    Tô fora

     

    Dizem as más línguas

     

    que ocorreu a interjeição

     

    arrego.

     

    Se assustou com a proposta, questionou.

     

    Como posso eu, presidente, arriscar o pescoço a botoque,

     

    boca tão grande?

     

    Em águas, dessas bem claras,

     

    não devem mesmo se arriscar incautos,

     

    para tal proa vão jovens ou homens bem astutos, valentes.

     

    Por que Bolsonaro não quer encontrar Raoni?

     

    Será que Raoni quer encontrar Bolsonaro?

     

    Tantos querem encontrar Raoni e o cacique já encontrou milhares,

     

    talvez milhões;

     

    sempre querem lhe dar a mão, um toque qualquer

     

    sei bem.

     

     

    O presidente não quer ver o cacique, 

     

    pensa que ele não representa.

     

    Triste presidente, não pensa.

     

    Peito são coisas para mulheres.

     

     

     

     

    Talvez não pouse também, tal borboleta da noite,

     

    perdida entre lampiões, tonta, afoita.

     

     

    Cacicagem é coisa séria, não desvanece,

     

    canto que se sonhara, tal corpo nu

     

    vestido, protegido em tinta preta,

     

    para lá de dramático efeito.

     

    Direito, a gente vai levando, reza de pajé,

     

    canhota gema, natureza pura.

  • Em assembléia, povo Terena diz “não devemos temer os puxarará!”

    Em assembléia, povo Terena diz “não devemos temer os puxarará!”

    Entre os dias 08 e 11 de maio, lideranças indígenas se reuniram na Aldeia Ipegue, no Mato Grosso do Sul. A XIII Assembleia Terena reuniu cerca de 800 lideranças indígenas como caciques, líderes de retomadas, mulheres, anciões e juventude, de diferentes povos; além dos Terena, participaram os Guarani Kaiowá, Kinikinau, Kadiwéu, Guató, Guajajara, Kaigang, Xukuru e Xakriabá.

    Foi um encontro de reafirmação da resistência dos povos indígenas contra os ataques promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro.

    Na língua Terena, “puxarará” é sinônimo de homem branco colonizador e opressor, personificado, nos dias de hoje, na figura de Bolsonaro e seus apoiadores. Para o povo Terena, é hora de enfrentamento, de ocupação de todos os espaçõs de poder pelos povos indígenas, seja nas universidades, no Congresso Nacional, ministérios, secretarias estaduais ou municipais.

    Os Jornalistas Livres acompanharam a Assembleia Terena, que também contou com a participação de grandes lideranças, como Joênia Wapichana (primeira mulher indígena eleita deputada federal) e Sônia Guajajara, primeira mulher indígena a concorrer à presidência da república, além de personalidades apoiadoras da causa indígena, como a cantora Maria Gadu.

    Confira, a seguir, a galeria de imagens do encontro, e a carta produzida durante a assembleia.

     

    Fotos: Leonardo Milano

    Carta de Ipegue: documento final da 13º Assembleia Terena

    “ […] antigamente, quando puxarará falava, tínhamos que ficar quietinhos, pois quem retruca o trovão? Mas hoje não! Puxarará falou, nós respondemos a altura, seja no Congresso Nacional, no Judiciário e na instância do Executivo”.

    O Conselho do Povo Terena, organização tradicional base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), reunido na aldeia Ipegue, por ocasião da 13º Hanaiti Hó`únevo Têrenoe, entre os dias 08 a 11 de maio de 2019, juntamente com representantes dos povos Guarani Kaiowá, Kadiwéu, Kinikinau, Guató, Guajajara, Xukuru, Kaigang e Xakriabá, vem expressar o compromisso de luta pelo bem viver da humanidade e oferecer a sociedade envolvente a oportunidade de construirmos juntos, um mundo baseado no respeito aos modos de vida de cada um e à Mãe Terra. Nos últimos anos, nós lideranças indígenas temos feito o enfrentamento necessário para defender as nossas vidas e o direito de viver em nossos territórios tradicionais, de acordo com nossas cosmovisões e modo próprio de ver e entender o mundo.
    Chegamos a nossa 13º Assembleia Terena, até aqui foi um caminho difícil, trilhado em torno da luta pela terra. Muitas lideranças que estavam na largada inicial não estão mais, muitos foram perseguidos pelo processo de criminalização instrumentalizado pelas vias estatais, outros, tombaram na luta, derramando seu sangue na terra sagrada e outros tantos, foram cooptados pelo governo. Passamos pelo governo dito de esquerda, que se entregou ao capital; resistimos ao governo golpista, que rifou nossos direitos ao agronegócio; e agora estamos prontos, para fazer a resistência qualificada, ante ao governo de extrema direita de Bolsonaro, anti-indígena, racista e autoritário.
    Desde o primeiro dia deste ano, nós povos indígenas temos sofrido intensos retrocessos no que tange aos nossos direitos, mas também, desde o primeiro momento estamos resistindo, no campo ou na cidade, portanto, a retomada dos nossos direitos usurpados é medida que se impõe. Os povos indígenas têm muito a ensinar à sociedade envolvente, pois diariamente estamos dando exemplo de participação política e exercício ativo da cidadania cultural.
    A Constituição Federal de 1988 consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro. No entanto, vivemos o cenário mais grave de ataques aos nossos direitos desde a redemocratização do país. O governo Bolsonaro decidiu pela falência da política indigenista, mediante o desmonte deliberado e a instrumentalização política das instituições e das ações que o Poder Público tem o dever de garantir. Além dos ataques às nossas vidas, culturas e territórios, repudiamos os ataques orquestrados pela Frente Parlamentar Agropecuária contra a Mãe Natureza.
    Diante disso, nós, cerca de 800 lideranças indígenas, exigimos das instâncias de poder do Estado o atendimento das seguintes reivindicações:
    • A conclusão das demarcações de todas as terras Terena, Guarani Kaiowá e Kinikinau, conforme determina a Constituição brasileira e estabelece o Decreto 1775/96, bem como a expulsão de todos os posseiros invasores da terra indígena Kadiwéu. A demarcação dos nossos territórios é fundamental para garantir a reprodução física e cultural dos nossos povos, ao mesmo tempo que é estratégica para a conservação do meio ambiente, da biodiversidade e para a superação da crise climática. Exigimos a adoção de ações emergenciais e estruturantes, por parte dos órgãos públicos responsáveis, com o propósito de conter e eliminar a onda crescente de invasões, loteamentos, desmatamentos, arrendamentos e violências, práticas ilegais e criminosas que configuram uma nova fase de esbulho das nossas terras, que atentam contra o nosso direito de usufruto exclusivo.
    • Revogação do Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, da Advocacia Geral da União.

    • Manutenção do Subsistema de Saúde Indígena do SUS, que é de responsabilidade federal, com o fortalecimento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a garantia da participação e do controle social efetivo e autônomo dos nossos povos e as condições necessárias para realização da VI Conferência Nacional de Saúde Indígena. Reiteramos a nossa posição contrária a quaisquer tentativas de municipalizar ou estadualizar o atendimento à saúde dos nossos povos.
    • Efetivação da política de educação escolar indígena diferenciada e com qualidade, assegurando a implementação das 25 propostas da segunda Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena e dos territórios etnoeducacionais. Recompor as condições e espaços institucionais, a exemplo da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, na estrutura administrativa do Ministério da Educação para assegurar a nossa incidência na formulação da política de educação escolar indígena e no atendimento das nossas demandas que envolvem, por exemplo, a melhoria da infraestrutura das escolas indígenas, a formação e contratação dos professores indígenas, a elaboração de material didático diferenciado.
    • Fim da violência, da criminalização e discriminação contra os nossos povos e lideranças, praticadas inclusive por agentes públicos, assegurando a punição dos responsáveis, a reparação dos danos causados e comprometimento das instâncias de governo na proteção das nossas vidas.
    • Ao Congresso Nacional, exigimos o arquivamento de todas as iniciativas legislativas anti-indígenas, tais como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00 e os Projetos de Lei (PL) 1610/96, PL 6818/13 e PL 490/17, voltadas a suprimir os nossos direitos fundamentais: o nosso direito à diferença, aos nossos usos, costumes, línguas, crenças e tradições, o direito originário e o usufruto exclusivo às terras que tradicionalmente ocupamos.
    • Ao Supremo Tribunal Federal (STF), reivindicamos não permitir nem legitimar nenhuma reinterpretação retrógrada e restritiva do direito originário às nossas terras tradicionais. Esperamos que, no julgamento do Mandado de Segurança (MS) n. 34. 201, relacionado a Terra Indígena Taunay-Ipegue; no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n. 1137139, relacionado a Terra Indígena Buriti e no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n. 803.462, relacionado a Terra Indígena Limão Verde, o STF reafirme a interpretação da Constituição brasileira de acordo com a tese do Indigenato (Direito Originário) e que exclua, em definitivo, qualquer possibilidade de acolhida da tese do Fato Indígena (Marco Temporal).
    Reafirmamos nosso compromisso de continuar lutando pela terra, pois a luta pela mãe terra é a mãe de todas as lutas.
    Reafirmamos nosso compromisso de continuar integrando a Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib), constituindo assim, organização tradicional indígena base da Apib.

    Deliberações do Conselho Terena:

    • Fica decidido que a próxima Assembleia Terena será realizada na Retomada Nova Esperança, Terra Indígena Pilad Rebuá, município de Miranda, no ano de 2020;
    • Fica encaminhada a participação da Comissão de Mulheres Terena na Marcha das Margaridas, em agosto de 2019;
    • Fica encaminhado a realização do Encontro da Juventude Terena, na Aldeia Limão Verde, no segundo semestre de 2019;
    • Fica encaminhado a constituição de Comissão Terena para discutir a participação indígena na política;
    • Fica autorizado o ingresso do Conselho Terena como Amicus Curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6062 (ADI 6062), em trâmite no Supremo Tribunal Federal;
    • Fica autorizada, a expedição de ofícios à Funai, ao MPF e a DPU solicitando a adoção de medidas no que tange a demarcação das terras Pilad Rebuá, Nioaque e Lalima;
    • Fica encaminhado, a realização de oficinas de formação jurídica e política, a ser executado pelo Núcleo de Defesa e Assessoria Jurídica Popular;
    • Fica encaminhado, a expedição de ofícios ao MPF e DPU solicitando a adoção de providência referente ao transporte de acadêmicos indígenas do município de Miranda e a manutenção de bolsas permanência dos acadêmicos indígenas da Terra Indígena Taunay-Ipegue;
    • Fica encaminhado, a expedição de ofícios ao MPF solicitando a adoção de providências referente ao assento destinado ao Conselho Terena no Condisi-MS;
    10. Fica encaminhado a realização do Fórum Estadual de Educação Escolar Indígena, que será realizada no mês de agosto, na Cachoerinha T.I Cachoerinha, Miranda;
    11. Fica encaminhado, a designação de um (a) Terena para exercer o cargo de coordenador (a) na educação escolar indígena no Município de Aquidauana pasta da Semed.

    Povo Terena,
    Povo que se levanta!!

    Aldeia Ipegue, 11 de maio de 2019.

    Conselho do Povo Terena

    Articulação dos Povos Indígenas do Brasil –APIB

  • Documento final do XV Acampamento  Terra Livre

    Documento final do XV Acampamento Terra Livre

    RESISTIMOS HÁ 519 ANOS E CONTINUAREMOS RESISTINDO

     

    Nós, mais de 4 mil lideranças de povos e organizações indígenas de todas as regiões do Brasil, representantes de 305 povos, reunidos em Brasília (DF), no período de 24 a 26 de abril de 2019, durante o XV Acampamento Terra Livre (ATL), indignados pela política de terra arrasada do governo Bolsonaro e de outros órgãos do Estado contra os nossos direitos, viemos de público manifestar:

    O nosso veemente repúdio aos propósitos governamentais de nos exterminar, como fizeram com os nossos ancestrais no período da invasão colonial, durante a ditadura militar e até em tempos mais recentes, tudo para renunciarmos ao nosso direito mais sagrado: o direito originário às terras, aos territórios e bens naturais que preservamos há milhares de anos e que constituem o alicerce da nossa existência, da nossa identidade e dos nossos modos de vida.

    A Constituição Federal de 1988 consagrou a natureza pluriétnica do Estado brasileiro. No entanto, vivemos o cenário mais grave de ataques aos nossos direitos desde a redemocratização do país. O governo Bolsonaro decidiu pela falência da política indigenista, mediante o desmonte deliberado e a instrumentalização política das instituições e das ações que o Poder Público tem o dever de garantir.

    Além dos ataques às nossas vidas, culturas e territórios, repudiamos os ataques orquestrados pela Frente Parlamentar Agropecuária contra a Mãe Natureza. A bancada ruralista está acelerando a discussão da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, em conluio com os ministérios do Meio Ambiente, Infraestrutura e Agricultura. O projeto busca isentar atividades impactantes de licenciamento e estabelece em uma única etapa as três fases de licenciamento, alterando profundamente o processo de emissão dessas autorizações em todo o país, o que impactará fortemente as Terras Indígenas e seus entornos.

    O projeto econômico do governo Bolsonaro responde a poderosos interesses financeiros, de corporações empresariais, muitas delas internacionais, do agronegócio e da mineração, dentre outras. Por isso, é um governo fortemente entreguista, antinacional, predador, etnocida, genocida e ecocida.

    Reivindicações do XV Acampamento Terra Livre

    Diante do cenário sombrio, de morte, que enfrentamos, nós, participantes do XV Acampamento Terra Livre, exigimos, das diferentes instâncias dos Três Poderes do Estado brasileiro, o atendimento às seguintes reivindicações:

    Demarcação de todas as terras indígenas, bens da União, conforme determina a Constituição brasileira e estabelece o Decreto 1775/96. A demarcação dos nossos territórios é fundamental para garantir a reprodução física e cultural dos nossos povos, ao mesmo tempo que é estratégica para a conservação do meio ambiente e da biodiversidade e a superação da crise climática. Ações emergenciais e estruturantes, por parte dos órgãos públicos responsáveis, com o propósito de conter e eliminar a onda crescente de invasões, loteamentos, desmatamentos, arrendamentos e violências, práticas ilegais e criminosas que configuram uma nova fase de esbulho das nossas terras, que atentam contra o nosso direito de usufruto exclusivo.

    Exigimos e esperamos que o Congresso Nacional faça mudanças na MP 870/19 para retirar as competências de demarcação das terras indígenas e de licenciamento ambiental do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e que essas competências sejam devolvidas ao Ministério da Justiça (MJ) e à Fundação Nacional do Índio (Funai). Que a Funai e todas as suas atribuições sejam vinculadas ao Ministério da Justiça, com a dotação orçamentária e corpo de servidores necessários para o cumprimento de sua missão institucional de demarcar e proteger as terras indígenas e assegurar a promoção dos nossos direitos.

    Que o direito de decisão dos povos isolados de se manterem nessa condição seja respeitado. Que as condições para tanto sejam garantidas pelo Estado brasileiro com o reforço das condições operacionais e ações de proteção aos territórios ocupados por povos isolados e de recente contato.

    Revogação do Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU).

    Manutenção do Subsistema de Saúde Indígena do SUS, que é de responsabilidade federal, com o fortalecimento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a garantia da participação e do controle social efetivo e autônomo dos nossos povos e as condições necessárias para realização da VI Conferência Nacional de Saúde Indígena. Reiteramos a nossa posição contrária a quaisquer tentativas de municipalizar ou estadualizar o atendimento à saúde dos nossos povos.

    Efetivação da política de educação escolar indígena diferenciada e com qualidade, assegurando a implementação das 25 propostas da segunda Conferência Nacional e dos territórios etnoeducacionais. Recompor as condições e espaços institucionais, a exemplo da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, na estrutura administrativa do Ministério da Educação para assegurar a nossa incidência na formulação da política de educação escolar indígena e no atendimento das nossas demandas que envolvem, por exemplo, a melhoria da infraestrutura das escolas indígenas, a formação e contratação dos professores indígenas, a elaboração de material didático diferenciado.

    Implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) e outros programas sociais voltados a garantir a nossa soberania alimentar, os nossos múltiplos modos de produção e o nosso Bem Viver.

    Restituição e funcionamento regular do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e demais espaços de participação indígena, extintos juntamente com outras instâncias de participação popular e controle social, pelo Decreto 9.759/19. O CNPI é uma conquista nossa como espaço democrático de interlocução, articulação, formulação e monitoramento das políticas públicas específicas e diferenciadas, destinadas a atender os direitos e aspirações dos nossos povos.

    Fim da violência, da criminalização e discriminação contra os nossos povos e lideranças, praticadas inclusive por agentes públicos, assegurando a punição dos responsáveis, a reparação dos danos causados e comprometimento das instâncias de governo na proteção das nossas vidas.

    Arquivamento de todas as iniciativas legislativas anti-indígenas, tais como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00 e os Projetos de Lei (PL) 1610/96, PL 6818/13 e PL 490/17, voltadas a suprimir os nossos direitos fundamentais: o nosso direito à diferença, aos nossos usos, costumes, línguas, crenças e tradições, o direito originário e o usufruto exclusivo às terras que tradicionalmente ocupamos.

    Aplicabilidade dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, que inclui, entre outros, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as Convenções da Diversidade Cultural, Biológica e do Clima, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas. Tratados esses que reafirmam os nossos direitos à terra, aos territórios e aos bens naturais e a obrigação do Estado de nos consultar a respeito de medidas administrativas e legislativas que possam nos afetar, tal como a implantação de empreendimentos que impactam as nossas vidas.

    Cumprimento, pelo Estado brasileiro, das recomendações da Relatoria Especial da ONU para os povos indígenas e das recomendações da ONU enviadas ao Brasil por ocasião da Revisão Periódica Universal (RPU), todas voltadas a evitar retrocessos e para garantir a defesa e promoção dos direitos dos povos indígenas do Brasil.

    Ao Supremo Tribunal Federal (STF), reivindicamos não permitir e legitimar nenhuma reinterpretação retrógrada e restritiva do direito originário às nossas terras tradicionais. Esperamos que, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, relacionado ao caso da Terra Indígena Ibirama Laklanõ, do povo Xokleng, considerado de Repercussão Geral, o STF reafirme a interpretação da Constituição brasileira de acordo com a tese do Indigenato (Direito Originário) e que exclua, em definitivo, qualquer possibilidade de acolhida da tese do Fato Indígena (Marco Temporal).

    Realizamos este XV Acampamento Terra Livre para dizer ao Brasil e ao mundo que estamos vivos e que continuaremos em luta em âmbito local, regional, nacional e internacional. Nesse sentido, destacamos a realização da Marcha das Mulheres Indígenas, em agosto, com o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”.

    Reafirmamos o nosso compromisso de fortalecer as alianças com todos os setores da sociedade, do campo e da cidade, que também têm sido atacados em seus direitos e formas de existência no Brasil e no mundo.

     

    Seguiremos dando a nossa contribuição na construção de uma sociedade realmente democrática, plural, justa e solidária, por um Estado pluricultural e multiétnico de fato e de direito, por um ambiente equilibrado para nós e para toda a sociedade brasileira, pelo Bem Viver das nossas atuais e futuras gerações, da Mãe Natureza e da Humanidade. Resistiremos, custe o que custar!

    Brasília (DF), 26 de abril de 2019.

    XV ACAMPAMENTO TERRA LIVRE
    ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB)
    MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA (MNI)

    imagens por Helio Carlos Mello©, Felipe Beltrame©, Clara Comadolli© – Jornalistas Livres

  • 519 Anos de Resistência Inundaram as Ruas de Brasília

    519 Anos de Resistência Inundaram as Ruas de Brasília

    Entre os dias 24 e 26 de abril de 2019, Brasília recebeu o maior encontro indígena do país. Em tempos de obscurantismo e de ataque aos direitos dos povos originários, milhares de indígenas ocuparam a capital do país, mostrando para Bolsonaro e todas as forças de extrema direita, que os indígenas não estão dispostos a desistir de seus direitos!

    Os Jornalistas Livres acompanharam os três dias de eventos. Confira aqui as galerias de imagens da cobertura:

     

    Fotos: Leonardo Milano

     

     

    Fotos: Hélio Carlos Mello (confira a crónica de Hélio no nosso site).

     

    Fotos: Felipe Beltrame

     

    Fotos: Clara Comadolli

     

     

  • A ameaça atual nega – pura e simplesmente – o direito originário indígena

    A ameaça atual nega – pura e simplesmente – o direito originário indígena

    Ilustração do carioca Matheus Ribs.

    No início de 2018 a Associação Brasileira de Saúde Coletiva entrevistou a professora Maria Luiza Garnelo Pereira, integrante do Grupo Temático Saúde Indígena, médica, antropóloga e pesquisadora do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane da Fiocruz em Manaus, sobre o assombroso aumento de suicídio entre os indígenas. Dados de 2015 mostraram que enquanto a taxa brasileira foi de 9,6 suicídios por 100 mil habitantes, a taxa para indígenas foi de 89,92 – a maioria entre 15 e 29 anos. Na época Garnelo problematizou: “o que sabemos nós sobre a psicologia indígena?”, pontuando que era necessário tentar entender os modos de sofrimento – a “saúde mental” do ponto de vista não etnocêntrico. Entretanto, pontuava que as pressões externas – a cruel colonização, a imposição do modelo de vida ocidental, os conflitos fundiários – também eram motivos de aflição para além da integridade física desta população.

    Um ano depois a Medida Provisória 870/2019 transferiu a Fundação Nacional do Índio – Funai, que até então encontrava-se no Ministério da Justiça, para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Concomitante a isso, retirou da Funai as suas principais atribuições, de proceder aos estudos de identificação e delimitação de terras, promover a fiscalização e proteção das áreas demarcadas, bem como aquelas onde habitam povos que ainda não estabeleceram contato com a sociedade nacional. Os povos indígenas não estão dispostos a aceitar as limitações que o governo federal pretende impor e exigem os direitos que a Constituição Federal de 1988 garante. O grito de guerra tem sido “Resistir para existir: sangue indígena, nenhuma gota a mais”.

    Professora Maria Luiza Garnelo Pereira.

    Abrasco –  Quais são suas previsões para esta Medida Provisória? Acha que, em âmbito pragmático, alterará muito os processos?

    Luiza Garnelo – Entendo eu que, mais do que previsões, o que já temos é um posicionamento de governo sobre esse assunto. Essa entrega demarca um entendimento de que as terras indígenas devem ser disponibilizadas para exploração pelo agronegócio o que, na prática tende a inviabilizar as demarcações em curso e as de outras terras que estão identificadas, mas cujo processo demarcatório ainda não se iniciou de fato. A demarcação das terras indígenas expressa o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, do direito originário de populações que aqui viviam antes de iniciado o processo colonizatório. Ou seja, o direito indígena à terra, garantido na Constituição, é de ordem ética e política e não de ordem econômica. Essa Medida Provisória reduz uma questão muito ampla à esfera da exploração econômica pelo agronegócio, cuja atuação no Brasil é, via de regra, agressiva ao ambiente e não sustentável. Além de dificultar novas demarcações tais iniciativas coexistem com a ameaça de revisão do que já está demarcado e/ou com o uso dessas terras para finalidades externas ao mundo indígena, que visam exclusivamente o lucro de certas corporações, sem que resultem em benefícios concretos aos povos detentores de direitos originários.

    Na prática isso implica também em retirar dos indígenas o direito a definir como lidar com suas terras, havendo um risco de grave violação de lugares sagrados em terras indígenas alocadas para exploração comercial; da retirada de famílias de onde ancestralmente residem e que conhecem o ecossistema local e dele retirando meios para subsistência. São elementos não econômicos da relação com a terra que não podem ser desprezados, pois a existência humana contempla muitos aspectos essenciais para a saúde e o bem estar, que ultrapassam a busca pelo lucro. Para além dessas dimensões, não se pode esquecer a história das relações interétnicas em nosso país, sempre marcada pela violência e pela exploração da mão de obra indígena por pessoas e empresas não indígenas. Medidas como essa são porta aberta para promover o afastamento forçado de famílias indígenas para “desocupar” suas terras e ampliar a exploração comercial de seus territórios, até o esgotamento dos recursos ali disponíveis.

    Abrasco –  Apesar desta recente medida, como a senhora avalia a política de demarcação de terras indígenas desde que foi instituída – na Constituição de 1988 – até aqui?

    Luiza Garnelo – A política de demarcação de terras indígenas avançou, sem dúvida, no período pós constitucional. Entretanto, avançou de modo lento, com muitos tropeços que expressam a dificuldade dos diversos governos em cumprir compromissos constitucionais, além daqueles assumidos através da adesão a tratados, em âmbito nacional e internacional. Entretanto, o saldo geral do período é positivo, tendo havido avanço não apenas no processo demarcatório em si, mas também no reconhecimento do direito à participação indígena na efetivação da demarcação, escutando lideranças indígenas por ocasião da definição de limites territoriais e aceitando-se a ideia de que certos nichos territoriais devem ser preservados por representarem lugares importantes para as culturas nativas. Essa dimensão é importante e deveria ser auto evidente, mas só recentemente passou a ser reconhecida no processo demarcatório. Estou certa de que haveria uma indignação geral se um grupo ou empresa quisesse derrubar o Maracanã, o Palácio do Catete, ou a Candelária para implantar um comércio. Porém, parece haver dificuldade em reconhecer que uma serra, uma gruta ou uma mata possam ter valor simbólico e cultural equivalente para outros povos e culturas. Então, o reconhecimento dessa demanda em processos demarcatórios mais recentes representa um avanço no modo de efetuar o delineamento dos territórios demarcados.

    Porém, tal avanço pode retroceder radicalmente frente a ameaça atual, que nega – pura e simplesmente – o direito originário indígena, concedendo aos empresários do setor agrícola o direito de decidir sobre o destino e uso das terras indígenas. Seguramente é a pior ameaça já enfrentada após a Constituição de 1988, remetendo as relações interétnicas ao contexto do início do século XX e anteriores em que se preconizava a extinção pura e simples das populações indígenas. O atual discurso de que os indígenas “merecem” ter acesso ao desenvolvimento econômico e participar das iniciativas da iniciativa de mercado é falacioso, porque nessa economia o único lugar disponíbilizado para os índios é o de trabalhador desprovido de direitos trabalhistas. O ingresso dos indígenas no modelo atual de economia agro-extrativa voltada para produção de commodities terá como efeito prático sair da condição de produtor autônomo, sujeito de direitos originários para o de trabalhador avulso, sem terras. Não é o papel de empreendedor, proprietário ou exportador que espera os indígenas que ingressarem nessa “abertura” de terras indígenas à exploração econômica; o que o espera é – no máximo – o trabalho de boia-fria ou a expulsão pura e simples dos locais em ele e seus antepassados sempre viveram.

    Abrasco – Quais os riscos para a saúde física e mental destes povos, com um possível retrocesso nos poucos direitos garantidos, e por que é importante mantê-los em seus territórios tradicionais?

    Luiza Garnelo – Nossa sociedade evoluiu para um padrão urbano, no qual parecemos ter esquecido que a existência humana é garantida pelos ambientes e territórios de onde retiramos os recursos que garantem o sustento individual, bem como aqueles que movem a economia mundial. Se os serviços ambientais falharem a vida humana – e dos outros seres vivos – não poderá ser preservada. Esta é em essência, a equação que a insustentabilidade ambiental do nosso modelo econômico precisa resolver e que não vem resolvendo. O mesmo raciocínio deve ser aplicado a uma escala menor, que é a das sociedades indígenas, que em nosso país se organizam em grupos de parentesco cuja composição demográfica varia de algumas dezenas até alguns milhares de famílias. Tais sociedades são heterogêneas em termos do tipo de relação que mantém com o ambiente, em função das características do processo colonizatório brasileiro: as sociedades indígenas que têm contato mais antigo com o colonizador sofreram uma espoliação mais ampla de suas terras e detêm hoje territórios minúsculos que não lhes permitem viver deles. Em regiões como a Amazônia onde o processo colonizatório foi mais tardio, as terras indígenas tendem a ser maiores, porque a ocupação colonial é mais recente, ou foi intermitente, devido ao predomínio do regime extrativista nos primeiros séculos de exploração econômica em que não houve ocupação permanente pelos não indígenas, de lugares remotos – que do ponto de vista do colonizador são remotos, porque a ocupação do país se deu a partir do litoral, progredindo a cada século rumo ao sudoeste e noroeste brasileiro até os séculos mais recentes. Tal ‘brecha” no processo de ocupação territorial é que permitiu que diversos grupos indígenas pudessem ocupar uma extensão mais ampla de terras do que os que viviam no litoral brasileiro.

    Fiz essa digressão longa é para explicar que há uma grande diversidade territorial indígena no Brasil, havendo povos com territórios tão pequenos que não lhes permitem subsistir deles, ao lado de outros cuja existência é garantida pelos recursos puncionados de suas terras, mediante um minucioso conhecimento das características ambientais de seus territórios. Para todos os casos, porém, a vinculação ao território é essencial para garantir a preservação dos laços familiares, éticos. religiosos, rituais, linguísticos que que unem as famílias indígenas entre si e com o ambiente em que vivem. Mesmo para os povos que não conseguem mais tirar o sustento de suas terras, o vínculo com o território é peça importantíssima para a preservação dessas sociedades, pois representa um elo material e simbólico que une tais pessoas e as caracteriza como uma sociedade específica. Creio que é algo que qualquer cidadão pode compreender através dos laços que temos com nosso país, materializado no vínculo a um território que reconhecemos como brasileiro. Podemos sair do país, morar em outra nação, ou apenas viajar para outros lugares. Nada disso porém, tirará a ideia de que nosso país, nossa terra permanece lá e a ela poderemos retornar ou ali permanecer se assim o desejarmos. Agora imagine o que seria acabar o Brasil, ter o território brasileiro tomado por outra nação, perdermos nosso lugar de nascimento! É isso o que significa a perda dos territórios tradicionais para os indígenas. Trata-se da perda do sentimento de pertencimento a determinada raiz cultural, do senso de continuidade, de inclusão a determinado grupo social. Para além de perder o passado trata-se também de perder o futuro, pois seus filhos não terão um lugar de vínculo e pertencimento. Creio que as consequências de tais perdas para a saúde mental é facilmente perceptível. Do ponto de vista da saúde física, pode-se imaginar para onde iriam os indígenas expulsos de suas terras: se transformarão em sem-tetos, párias sem teto e sem meios de vida. Mal vistos nas cidades, esmolando nas esquinas, indigentes e indesejados em todos os lugares, já que não são detentores de propriedades. Os que hoje dispõem de empregos nas terras indígenas os perderiam, porque já não haveria trabalho para professores, agentes de saúde, pescadores, agricultores e outros labores nas terras indígenas.

    No caso específico da Amazônia esses povos têm importante vinculação com a preservação da natureza – algo prontamente reconhecido pelos ambientalistas – da qual vivem através de uma exploração sustentável. Sua presença nesses territórios se assenta na produção de um acervo ancestral de conhecimento dos ritmos e recursos da natureza, vital para a manutenção de sua existência, mas também para a nossa, já que o conhecimento atual dos cientistas do clima mostra que a produção agrícola brasileira se tornará inviável se a floresta for derrubada e os chamados “rios voadores” cessarem de transportar água na atmosfera, o que garante chuvas e a manutenção das fontes de água que sustentam a produção agrícola no Sul e Centro Oeste do Brasil. Nesse caso os prejuízos decorrentes da devastação das terras não será apenas dos indígenas, mas atingirá também uma boa fatia dos lucros do agronegócio.

    Abrasco – Fazendo um gancho com a saída dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos – e com a diminuição de profissionais nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – qual é o quadro geral da saúde da população indígena no Brasil neste momento?

    Luiza Garnelo – Infelizmente não temos dados atualizados que expressem o quadro geral da saúde da população indígena no Brasil. Os dados a que tivemos acesso em anos anteriores mostram indicadores de saúde muito ruins e condições de saúde muito piores que as da população não indígena brasileira. Certamente que a presença de médicos cubanos do Programa Mais Médicos não seria – por si só – capaz de reverter indicadores desfavoráveis de saúde. Porém, a oferta de uma atenção qualificada à saúde exige a atuação de médicos. Estes só tiveram alocação garantida dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas a partir do Programa Mais Médicos. A saída intempestiva dos cubanos aprofundou o vazio assistencial às populações indígenas. As notícias diárias na imprensa sobre o assunto mostram que nos postos não ocupados pelos sucessivos editais lançados pelo Ministério da Saúde predominam as vagas destinadas aos Distritos Sanitários Indígenas. Ou seja, mais uma vez a população indígena foi gravemente prejudicada pela iniciativa governamental, perdendo a maioria dos médicos que vinha ofertando atenção à saúde nas terras indígenas, em postos de trabalho que não são desejados pelos médicos brasileiros. Até onde tenho conhecimento não foi tomada qualquer medida adicional para buscar suprir tais vagas.

    Abrasco – Quais estratégias os pesquisadores, instituições (políticas, científicas…) e demais cidadãos ligados à questão da saúde indígena devem seguir, neste momento, para a resistência e sobrevivência desta população ?

    Luiza Garnelo – Sobre isso não há soluções mágicas e nem milagrosas. Permanecemos fazendo o que sempre fizemos: mantemos as análises de saúde – e lutamos bastante para obter dados que nos permitam fazê-lo – e damos divulgação a elas, não apenas em fóruns e espaços científico-acadêmicos, mas também junto a autoridades sanitárias e junto aos indígenas que são muito interessados em dispor de tais dados e informações para subsidiar suas lutas e manifestações de protesto. Também permanecemos em diálogo permanente com as organizações indígenas, subsidiando suas discussões com o olhar do sanitarista, participando de seus eventos, reuniões e reflexões indígenas sobre o melhor caminho a tomar para resistir a esse momento de particular dificuldade na preservação de seus direitos. Também continuamos formando sanitaristas comprometidos com a causa indígena e com a redução das desigualdades sociais. Temos especial apreço às iniciativas de formação de profissionais indígenas de saúde, as quais apoiamos de modo continuado, para que futuramente esses profissionais possam continuar apoiando seus povos na luta pela melhoria da saúde.

     

    Imagens por Helio Carlos Mello©