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  • Enfiando o pé na jaca

    Enfiando o pé na jaca

    Monstros marinhos.

     

    Agora entendo bem, tudo se encaixa. Primeiro foi a vontade de fundir o Ministério do Meio Ambiente, depois um ferro em brasa nas ONGs, ICMBio, Conama, Acordo de Paris, Fundo Amazônia,  Terras Indígenas, ESEC Tamoios,  Fundação Oswaldo Cruz; tudo numa mira de metralhadora.

     

    O eleito enfia o pé na jaca, faz o que prometeu em campanha.

     

    Correndo por fora, o cacique Raoni faz seu périplo, busca o apoio em países mais sóbrios, líderes mais lúcidos.

     

    A grande disparidade entre a atitude do chefe da nação, que desmantela, e o chefe indígena, que fortifica, salta aos olhos.

     

     

    Ropni Metuktire, conhecido mundialmente como cacique Raoni.

     

     

     

     

    A nação busca sua terra, corpo e espírito. Muitos trazem miopia de destino, horizonte, vontades.

     

    A lógica do sistema pede renda, produção, recompensa. Outras legiões querem moradia, escola, pesquisa, florestas cheias de macacos e abelhas. Há uma grande batalha entre livros e armas nas ruas, passeatas imensas, pernas e mais pernas a caminhar e pedir, querendo barrar o ralo que nos metemos.

     

     

    Tudo padece. Antigos quinhões se dispersam em nova ordem, milícias afoitas querem sua porcentagem e a parte que renegam ao povo.

     

    Entre presidente e cacique, sigo o homem mais sábio, a boca larga das palavras obvias. De fato, sabedoria pode ser que seja estar uma árvore, já dizia o poeta Manoel de Barros.

     

     

    Cabeceiras do Rio Xingu, na Terra Indígena do Xingu, contígua à Terra Kayapó, último legado intacto ao agronegócio, que desmatou o Estado de Mato Grosso.

     

     

     

     

  • .ponto de cura

    .ponto de cura

    Manchete em revista científica anuncia:

     

    fusão antiga de estrelas de nêutrons pode ter banhado nosso sistema solar com ouro.

     

     

     

    Corrigindo hora e data a todo instante, vamos ajustando os fatos no fluxo de dados, esse universo que envolve a todos e constitui.

     

    O computador antigo dos índios, nem tão velho assim, caça uma internet possível, como tucano astuto nos galhos. Não esperam mais o branco chegar para dizerem o que querem. Protestam.

     

    Tucano, ave curiosa, tem sangue azul, fica preto quando cozido, saboroso caldo. É um admirável mundo, tudo invade e bica, comunica.

     

     

     

    A mesma mão que rema, sacode ou fuma, entre reza e festa na aldeia, também filma. Coloca na rede a cara do índio e sua ideia do mundo. Prescinde homem que somos, livram-se de interesses alheios. 

     

     

     

    Ser índio com uma cara na tela, livro raro ou revista de banca, não é mais questão de paixão ou nosso interesse. Defende-se, reage, reivindica ele mesmo o mundo que quer, jovem de seu jeito.

    Arma linda de índio é um celular na mão, contra a árvore que tomba e mato que queima.

     

     

     

    Lembro-me daqueles dois irmãos Piripkura, últimos homens de um povo, atravessando a rua em São Paulo, com seus corpos frágeis, tão fortes diante dos carros que param, a irem para o hospital fazer uma ressonância magnética.

     

    Cabeça de índio, tão vasta como tudo que move.

     

    Ficamos nesse estica e puxa da FUNAI, entre ministério da Agricultura e Justiça, que nem Espanha e Holanda pelos direitos do mar, naquele poema de Leila Diniz:

     

     

     

     

     

  • Meu amigo Ariano

    Meu amigo Ariano

    Meu amigo Ariano eu conheci ainda menino, mas fui conhecendo mais conforme fui crescendo.
    Acho que tinha uns 11, 12 anos quando o acaso nos apresentou.
    Foi na biblioteca da escola que a gente se conheceu.

    Corria o ano de 1985.
    No recreio do grupo escolar era fácil identificar três tipos de crianças: as poucas às quais os pais davam dinheiro para o lanche, as muitas às quais os pais não davam dinheiro para o lanche e tinha eu, que não tinha nem o dinheiro do lanche dado pelos pais, nem os pais.

    Restavam duas alternativas possíveis, a fila da merenda oferecida pelo governo Montoro, que não era nenhum Lula lá, mas quebrou o galho naqueles tempos bicudos de redemocratização, e a biblioteca da escola, meu reino encantado particular.

    Salvo quando tinha alguma sorte — coisa rara, e faturava um trocado de maneira honesta ou nem tanto, pontualmente as 16:00h a fila da merenda e a biblioteca da escola eram meus destinos certos de segunda a sexta-feira.

    Foi numa dessas incursões ao meu reino encantado particular, mais conhecido como biblioteca pública, que conheci o meu amigo Ariano.
    E o meu amigo Ariano me apresentou os seus amigos.

    • João Grilo, um rapaz pobre que vivia tentando se dar bem através de expedientes. Trabalhava para o Padeiro, e era o melhor amigo de Chicó.

    • Chicó era um rapaz bem covarde, que gosta de contar mentiras. Entre uma mentira e outra, deixava escapar a grande verdade, que na verdade tinha um bom coração. Também trabalhava para o Padeiro, que remédio? e era o melhor amigo de João.

    • O Padeiro era um homem avarento, dono da padaria onde trabalhavam Chicó e João Grilo. Padeiro era casado com Dora.

    • Dora era uma mulher muito infeliz. Adúltera, mas que se dizia santa. Tentava agradar seu marido, o Padeiro mas o enganava, e a si mesma também se enganava.

    • Padre João era o padre que chefiava a paróquia de Taperoá, cidade onde vivia quase todo mundo dessa crônica. Muito racista e avarento, Padre João só queria saber de dinheiro, e não era pouco dinheiro não.

    • O Bispo, que assim como o padre, era muito avarento, e difamava seu colega de batina, o Frade.

    • O Frade era um homem religioso, honesto e de bom coração. Nem sabia que era difamado pelo seu colega de batina, o Bispo.

    • Antônio Morais era um major ignorante e autoritário, que usava seu poder para amedrontar os mais pobres. Uma espécie de Jair Bolsonaro do século passado.

    • Severino era um cangaceiro que encontrou no crime uma forma de sobrevivência. Seus pais foram mortos pela polícia, e desde então Severino desacreditou da Justiça, e fez do Cangaço a sua própria Justiça.

    • Cangaceiro era um dos capangas de Severino que fazia de tudo para agradar seu chefe, Severino. Não era muito inteligente Cangaceiro, mas era leal ao seu chefe, Severino, e era só isso que importava aos dois.

    • A Compadecida era a própria Nossa Senhora, mãe de todos e toda bondosa. Delicada. Confesso que foi um choque conhecê-la, eu que não estava nem um pouco acostumado com essa coisa de mãe, menos ainda de bondosa e delicada então nem se fala.

    • Manuel era um juiz do povo, julgando sempre com sabedoria e imparcialidade, e que tinha o dom da misericórdia. Diferente dos juízes de hoje, principalmente um certo Sérgio Fernando. Aliás era diferente também na cor da pele, preta, o que causava espanto em alguns, mas em mim não. Simpatizei como ele na hora. Era pobre, como eu. Era dos meus.

    • Encourado era a encarnação do diabo. Desprovido de qualquer tipo de sensibilidade ou misericórdia, era uma versão mais diabólica do Bolsonaro.
      Pois é, o mal tem várias versões e faz tempo, há muitas gerações.

    Pois bem, foi na biblioteca de um grupo escolar na Zona Sul de São Paulo, numa tarde em 1985, que o acaso me apresentou ao amigo Ariano Suassuna através de sua obra prima, “O Auto da Compadecida”.

    Desde então Ariano passou a ser meu amigo, um dos melhores amigos que já tive.

    Nunca cheguei a conhecer o amigo Ariano Suassuna pessoalmente, mas nos tornamos amigos inseparáveis desde aquela tarde, em 1985.

    Ariano Suassuna nos deixou no dia 23 de julho de 2014, mas nossa amizade dura até hoje.

    Um dia eu contarei para meu filho Fidel as histórias que Ariano Suassuna me contou através de suas obras.

    Contarei para ele as vezes em que me sentia deprimido, absolutamente sozinho, e abria um vídeo do amigo Ariano no Youtube, e sua maneira simples de enxergar a vida e contar seus causos me enchiam o coração de alegria, espantando a tristeza e a depressão que insistiam em nele fazer morada.

    Contarei todas essas histórias para Fidel, e muitas outras mais, e terminarei todas essas histórias como meu amigo Chicó terminava as suas, assim:
    “só sei que foi assim.”

    “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”
    Trecho de “O Auto da Compadecida”

    Ariano Suassuna, presente!

    ★Parahyba, Paraíba — 16 de junho de 1927
    ★Recife, Pernambuco — 23 de julho de 2014

  • PEIXE FRESCO COM FARINHA FINA.

    PEIXE FRESCO COM FARINHA FINA.

    Há uma flor, fruto aprimorado pelas etnias xinguanas, o pequi, que prenuncia a fartura da vida em equilíbrio. Coisas lindas se anunciam nesta época. Crianças correm atrás de flores como se fossem borboletas, brinquedos e brincadeiras inventam-se na época da flor de pequi. O olhar às vezes fala de coisas que não se quer acreditar.

    Brincar deve ser uma forma de ensaiar a vida, arriscar atitudes. Tantas crianças correm na aldeia, uma trilha sonora de pequenos gritos eufóricos, risadas breves e um batuque oco de chinelos havaianas correndo no terreiro. Pressinto, nessa hora, que Pindorama deveria ser uma alegria quando os patrícios aqui desembarcaram. Devem ter visto tantos prazeres que pensaram estar no éden. De fato, o humano impressiona quando o ambiente e a cura coincidem. 

    Anuncia-se o fim do inverno e as saudosas chuvas ainda estão longe, recolhem-se os rios denunciando os tracajás, jacarés e capivaras nas margens. Como uma língua longa, o rio Xingu começa a anunciar suas rasuras e praias de areia fina, desertas com ventos de aprazia, como dentes em uma boca ampla que abriga muitos sabores e apetites. Os peixes, nas águas em abundância, saciam pescadores indígenas de todas as idades. É peixe moqueado, mutap de peixe, é caldo de peixes e a boa farinha branca de mandiocas, de sutil sabor acre, selecionadas em primitivas roças. A mandioca,  romantizo aqui a sacralidade de sua providência, é alimento fundamental entre os povos indígenas e todos excluídos que na humanidade persistem.

     

    O que de fato pulsa quando o coração bombeia ao brincar ainda é cedo para se afirmar. Ousa o coração pulsar sangue, as trocas gasosas, condução de elementos que do alimento advêm. Como uma floresta virgem e seus rios, o corpo da gente vive bem e em sossego quando, lúcido, alimenta-se e  se movimenta, sem tanto e tudo que o mercado coloca dia a dia em nosso prato.

    Grande troca de saberes ocorre em ação desenvolvida para exames, diálogos, análises e diagnósticos da população local, pesquisa ação em dislipidemia executada  pela Universidade Federal de São Paulo, o Projeto Xingu, integrando médicos, enfermeiros, nutricionistas, alunos e profissionais da saúde. As mulheres indígenas Kawaiwete mostram seu refinado conhecimento da culinária tradicional, que em grande parte corrobora para os bons índices de saúde na comunidade e os  sorrisos largos na população.

    Assim como a comunidade expõe seus hábitos de preparo dos alimentos tradicionais, também a equipe multidisciplinar prepara alimentos de nossa tradição ocidental e orienta a comunidade sobre o uso do sal, açúcar e óleo, alertando para o grave risco do uso exagerado desses produtos.

    São tantos os sabores e saberes que separam saúde e doença, fronteiras muitas vezes mascaradas nas prateleiras de supermercados e vendas Brasil afora. São tantos também os alimentos da terra, de entranhas seculares de antigos preparos e poderes.

    Em breves belos dias vi um país possível pairando no ar seco, tão feliz, tão só, reluzente de um lugar que há graça entre sertão e bem querer, amenos cuidados, determinação em uma nação que somos. O bom prato constitui-se num ato de resistência ao desenfreado capitalismo da industrialização dos alimentos, ao avanço do diabetes, ao fim das brincadeiras nas aldeias.

     

    *imagens por Helio Carlos Mello© – acervo Projeto Xingu/UNIFESP.

  • FINA ESTAMPA DA BOA MESA.

    FINA ESTAMPA DA BOA MESA.

    Davi morreu, não venceu a batalha, morreu pelos hábitos da boca. Davi fazia pastéis tradicionais da Serra do Roncador, sua massa de farinha crua e caldos, recheios de carnes e a fritura fina em óleo quente. Em 16 anos de frequentes presenças no Mato Grosso e sua Canarana do agronegócio, tão jovem cidade, tão antigos hábitos forasteiros, sempre vi Davi com o cigarro entre os beiços, como se o filamento fosse um apêndice natural de sua cara atrás do balcão a atender sisudo ou firme a todos.

     

    Cheibom era o nome de seu estabelecimento, dizia ele que cheio que era bom e rimou para o luminoso da esquina. Colecionou cachaças intocáveis por 20 anos, como flor no jardim entre espinhos, preenchendo todas as paredes do bar. Davi acreditou na rosa, descuidou-se das armadilhas. Descobri em pura observação pela década, que colecionar também é um ato de resistência. Subterfúgio, artifício? Creio que sim, pois os tragos constantes à boca de Davi subtraía-se às garrafas já abertas para a venda aos clientes; e o fumo e os fritos. A bomba explodiu, enfim. Na cama ficou a dormir para sempre, sem drama, belo infarto.

     

    Ah, o desafio dos índices. A vida plena e o prazer de uma longa existência talvez resuma-se em saber comer; e beber também. Andar, respirar e amar são adendos. Equilibrar-se na verdade é o danado do samba dessa vida, vejo bem agora.

    Para a Terra Indígena do Xingu segui mais uma vez, a documentar o valente trabalho de equipe da Unisfesp, o programa de extensão universitária da Medicina Preventiva, Projeto Xingu. Como um estica e puxa de arco a arremessar uma flecha, daquelas que acometem peixes, pássaros ou bichos de chão e galhos, a pesquisa ação de dislipidemia dos povos é a bola de cristal, a espada de Hércules para o bem viver. Apesar de muitas baixas diante de Golias, muito há a se construir e descobrir na disputa entre hábitos alimentares tradicionais e a invasão dos açucares, sais e óleos comestíveis que abraçam e iludem originárias populações.

    Tudo é uma questão de saber cozer e esfriar o caldo, socar bem o milho, amendoim ou mandioca. Viver bem implica em produzir o prato, distante das armadilhas das prateleiras ou publicidades satânicas.

    Como bater timbó na água doce, alimentar-se é usar o veneno a favor do alimento, negar o que intoxica a vida preciosa, levar a semente onde pisam os pés, colher, cozer.

    *imagens por Helio Carlos Mello©/Acervo Projeto Xingu-UNIFESP.