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  • Crianças da Maré fazem cartilha para orientar polícia a se comportar em operações

    Crianças da Maré fazem cartilha para orientar polícia a se comportar em operações

    por Mateus Maciel

     

    “Tenho apenas 14 anos de idade e moro no Complexo da Maré. Eu só quero pedir uma coisa a vocês, policiais e bandidos: por favor, parem de matar inocentes”. “Acham que a gente está acostumado com os tiroteios, mas todos os dias de confrontos são uma nova aventura de terror”. “De tiros eu não tenho medo, mas o helicóptero me deixa em pânico”. As frases, escritas por crianças e adolescentes entre 11 e 15 anos, da Maré, são uma resposta à iniciativa do governador Wilson Witzel de criar cartilha com instruções a moradores de favelas sobre como agir durante operações policiais. A ‘‘cartilha’’ dos jovens será entregue no Palácio Guanabara na próxima segunda-feira.

    Por volta das 11h30 desta quinta-feira, mais um tiroteio entre facções criminosas começava na Nova Holanda, onde jovens do Projeto Uerê, que idealizaram a cartilha, conversavam com a equipe do EXTRA. Uma das meninas, de 13 anos, pediu licença para ir embora. Ela precisava chegar em casa a salvo antes que o confronto se espalhasse pelo restante da comunidade.

    A iniciativa começou com Manoela (os nomes nesta reportagem são fictícios para preservar os estudantes). Aos 15 anos, ela disse que já teve a casa invadida por policiais durante uma incursão. Ao ler no jornal a ideia de Witzel, decidiu escrever uma cartilha com papéis invertidos: ‘‘O que os policiais não devem fazer quando entram nas comunidades?’’.

    — Lido com isso todos os dias. São situações que me deixam em pânico e me sinto impotente. Vivendo na favela a gente aprende — disse ela.

     

     

     

    Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel Foto: Agência O Globo

     

    A realidade incomum para boa parte da população do Rio é corriqueira para os moradores de favelas: tanto em confrontos entre traficantes como em operações policiais. A plataforma Fogo Cruzado mostra que houve 5.513 disparos na Região Metropolitana de janeiro a agosto deste ano.

    — Aqui a situação é muito complicada. Montamos uma metodologia especialmente para crianças e jovens de escolas públicas da comunidade que têm bloqueios cognitivos e emocionais devido à exposição constante a traumas e violência — explicou Yvonne Bezerra de Mello, criadora do Projeto Uerê.

    A sede da ONG tem no telhado uma placa amarela com o alerta ‘‘Escola. Não atire’’. O objetivo é evitar tiros de policiais em helicópteros. O projeto informa que já ajudou mais de 3 mil estudantes desde 1998 e hoje tem cerca de 300 nos turnos da manhã e da tarde.

    O termo ‘‘guerra’’ é utilizado repetidamente pelas crianças e adolescentes em sala de aula para se referir ao clima na Maré. A apreensão é tanta que todos estão em grupos de conversas em aplicativos de mensagens e se comunicam quando começam as operações.

     

     

    Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel Foto: Agência O Globo

     

    Matheus, de 14 anos, lembra a primeira vez em que ficou na linha de tiro entre criminosos e a polícia. Ele estava em uma van com a mãe, voltando da escola:

    — Não sabia como reagir e só conseguia pensar no meu pai que trabalha fazendo transporte escolar pela Maré. Tive muito medo de nunca mais vê-lo.

    No último mês, enquanto tomava banho para ir a escola, Vitória, de 14, ouviu o helicóptero sobrevoar sua casa. Não durou muito e as rajadas começaram. De repente, uma bala atravessou a janela do banheiro, a menos de 1m de onde ela estava.

    — Vou para a escola porque quero tentar melhorar de vida e sair daqui — disse Vitória

    Apesar de ainda estarem na época de estudar e brincar, a infância e adolescência desses jovens têm uma realidade muito diferente do ideal. Kauan mora com os pais e a irmã mais nova, de dois anos. Ele conta que no início do ano, durante uma operação policial, recebeu um telefonema do pai pedindo para ele correr para casa.

    — Ele me ligou desesperado, busquei minha irmã e corri por dez minutos até a minha casa. A operação estava acontecendo em uma outra parte da Maré e não podia deixar ela sozinha na creche — relata o menino, explicando que o pai ficou no meio do fogo cruzado.

    Traumas são algo corriqueiro e muitas das crianças sofrem de insônia, crises de ansiedade e tem acompanhamento psiquiátrico. Tudo decorrente dos incessantes tiroteios na disputa dos territórios entre criminosos e das operações policiais.

    Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel. cartilhas, cartas, carta - Reprodução
    Crianças do Projeto Urerê do Complexo da Maré escrevem cartilhas para o Governador Wilson Witzel. cartilhas, cartas, carta – Reprodução Foto: Agência O Globo

    A professora Joseanne Ferreira, de 56 anos, dá aula há 15 anos no Projeto Uerê. Segundo ela, os diálogos são o melhor remédio para acalmar os alunos.

    — Aqui ficamos na divisa entre facções rivais. Quando não são confrontos entre eles, temos as operações em horários escolares. Isso precisa mudar, as crianças ficam escondidas no corredor e as pessoas têm tratado isso como se fosse algo natural. Não é normal. Eles deveriam estar brincando e estudando sem preocupações — afirma a professora.

    Segundo o governo do estado, a cartilha citada por Witzel faz parte do Plano de Segurança e Defesa Social, elaborado pelas secretarias de Polícia Civil e Polícia Militar, Defesa Civil, Ministério Público e Judiciário, e será validada pelo Conselho de Segurança Pública do estado. Procurado pelo EXTRA, o gabinete do governador orientou que as secretarias das polícias comentassem. Até o fechamento desta reportagem, os órgãos não se pronunciaram sobre a cartilha dos jovens da Maré.

  • O Jornal Nacional ainda engana alguém?

    O Jornal Nacional ainda engana alguém?

    Fui tentar descobrir a razão da hashtag #JornalNacional estar entre as mais citadas no Brasil na noite de sexta-feira (25/05). Vejam o que encontrei:

    Pedro V.
    Nem a previsão do tempo do jornal nacional é verdadeira #JornalNacional

    RBS:
    Até ontem vivíamos no paraíso, mas hoje devido aos caminhoneiros vivemos no meio do caos, é isso que o Jornal Nacional mostrou hoje. Foi patético ver ônibus lotados, eu enfrento isso sempre e a culpa não é dos caminhoneiros. Levanto às 5 h para ir trabalhar e a culpa não é deles também

    Marco:
    Avisa p produção do Jornal Nacional q busão lotado e filas empurra-empurra pra entrar no busu acontece todo dia com greve ou sem greve

    Diana:
    Globo não entende que nós temos internet e que sabemos que a maioria está a favor da greve!

    Antônio:
    Dr. Enéas já dizia: “Desconfiem SEMPRE do que noticia a imprensa escrita e falada!
    A caneta de um mau jornalista pode fazer tanto mal quanto o bisturi de um mau médico!”

    Adonias:
    Foi ótimo a corneta tocando olê olê olá no ao vivo do JN.
    A cara da repórter, sem saber o que fazer.

    Billy:
    #JornalNacional jornal maldito!!! Joga o caos para ajudar governo corrupto.

    Neemias:
    #JornalNacional Como sempre, a Globo contra o povo brasileiro.

    David
    #JornalNacional vocês distorceram os fatos falta tudo no Brasil e os caminhoneiros tão sendo culpado vocês traem o povo brasileiro

    Princess:
    Os caminhoneiros não estavam impedindo os medicamentos, como carga viva e laticínios! PELO AMOR DE DEUS ! QUEM VOCÊS QUEREM ENGANAR?

    Júnior:
    Povo descobrindo o Lixo que a Rede Esgoto de televisão é. Como diz o velho deitado: Antes tarde do q nunca. 😉

    Iago:
    Jornal Nacional esse lado ruim que vocês mostraram acontece todos os dias, agora neguim tá nervoso que afetou os ricos.

    Lopes:
    Esse @jornalnacional tá inacreditável, difícil de engolir esse papinho, hein?

    Vanessa:
    #JornalNacional Rede Globo para, porque tá feio já. Todo mundo já percebeu a tentativa de jogar a população contra os caminhoneiro

    Adriano:
    Claramente o #JornalNacional é a favor do Governo.

    Viviane:
    Gente é o cúmulo o que o #jornalnacional está fazendo!!! O Brasil está há muito tempo sem tantos recursos e tudo o que foi mostrado na reportagem é exatamente a situação presente do país. Agora tentar manipular a população contra a manifestação, me poupe.

    Eddie:‏Só observo o sensacionalismo nos telejornais pra colocar o povo contra a greve. Estão dramatizando a falta de alimentos.

    Daniela:
    #jornalnacional Ué, tá faltando insumos nos hospitais por causa da greve??? Que eu saiba isso ocorre durante todo o ano!!!

    Xavier:
    Estão colocando situações corriqueiras no país como excepcionalidades. #JN  #JornalNacional

    Sueli:
    Engraçado que essa superlotação acontece TODOS OS DIAS nos trens e metrôs de São Paulo! Os trabalhadores são MASSACRADOS! É muita hipocrisia!

    Damie:
    Como um jornalista se orgulha de trabalhar nesse jornal? Indo contra todo seu juramento… Jornal de merda! #JornalNacional

    André:
    Alô @RedeGlobo , exames desmarcados e transporte público lotado não é culpa dos caminhoneiros não, acontece todos os dias!!! #jornalnacional

    Átila:
    Vergonha dessa matéria, colocando a sociedade contra os caminhoneiros
    Não se preocupem ESTAMOS COM VCS GUERREIROS #JornalNacional

    Cezar:
    Impressionante. Tem meia-hora de #jornalnacional da @RedeGlobo e até agora não falam do porquê da greve. Mas o sensacionalismo do caos impera.

    Sol:
    #JornalNacional vocês são uma vergonha.  Estão sempre do lado do governo. Estamos zerados, mas continuamos apoiando.

    Fabinho:
    Hoje eu entendo o desserviço de uma mídia comprada, manipuladora. Que vergonha! #JornalNacional. Nojo de vcs.

    Sara:
    Nojo, Nojo! Não sei de quem eu tenho mais nojo do embupeste do Temer o do Jornal Nacional 🤢🤢🤢

    Nati:
    A Globo tentando colocar a população contra a greve dos caminhoneiros, que emissora tendenciosa, nojo! #jornalnacional

    Thiago:
    Lá vem a rede globo @RedeGlobo querer culpar os caminhoneiros pela vergonha que se transformou este país #jornalnacional

    Pry
    #JornalNacional parem de divulgar mentiras!

    Andressa:
    @RedeGlobo não cansa de passar vergonha! O país aos poucos tá acordando! Pare de lançar nota falsa! N teve acordo nenhum com os caminhoneiros da GREVE! Não tente tapar o sol com a peneira. A luta VAI CONTINUAR. Cubra a matéria corretamente.

    Evaristo:
    Para quem gosta de simpatia, ouvi dizer que se você bater panela 10 vezes na hora do #JornalNacional  e der 5 voltas em torno de um pato amarelo usando a camisa da #CBF o seu tanque de gasolina passa a se encher sozinho, como em um passe de mágica!!!

    Clarissa:
    Gente, só PAREM de assistir ao jornal da Globo. Veneno puro! E eles vão te hipnotizar.. nojo…
    #JN #jornalnacional

  • Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

    Por Rosane Borges***, especial para os Jornalistas Livres

     

    Dos discursos e seus ecos

    Seja pela vocação que têm para suscitar outros/novos modos de existência, seja por instituírem novas configurações da política, seja por inventarem novas bússolas para a travessia de nossas vidas, alguns discursos se consagraram na História como prenúncio ou advento de um “novo tempo, apesar dos perigos”.

    Num amplo arco, recordemos, entre tantas, algumas falas de repercussão sísmica, como o audacioso discurso “E eu não sou uma mulher”?, da estadunidense Sojourner Truth, ex-escravizada que demoliu a Women’s Rights Convention, em Ohio. Na ocasião, 1851, Truth questionou porque as mulheres brancas eram privilegiadas e as mulheres negras vistas como inferiores, intelectual e fisicamente, úteis somente para o trabalho braçal.

    Menção obrigatória deve ser feita também ao discurso de posse de Nelson Mandela (“Nosso maior medo não é sermos inadequados. Nosso maior medo é que nós somos poderosos além do que podemos imaginar. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais incomoda…”). No mesmo diapasão, está o discurso memorável de Martin Luther King (“Eu tenho um sonho”).

    O celebrado “Saio da vida para entrar na História”, redigido na última linha da carta-testamento de Getúlio Varga endereçada ao povo brasileiro, é outro fragmento discursivo com desdobramentos importantes, especialmente para o próprio presidente, que escreveu o documento horas antes de se matar, em 24 de agosto de 1954.

    Com a missiva, Getúlio refunda a História, opera um movimento no sentido anti-horário em sua biografia, tonifica a memória sobre ele, convertendo significantes negativos em signos que favoreceram a reprojeção da imagem, então ameaçada, de estadista.

    Na atmosfera do golpe, compõe a galeria de exemplos a defesa da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, no Senado Federal. Embora Dilma não tenha proferido necessariamente um discurso, mas elaborado argumentos e contra-argumentos para sua defesa, pode-se destacar da sabatina a sua coragem em cair de pé, num jogo que já estava jogado. A presidenta não foi convencer as “Suas Excelências” de que era inocente, mas dizer a eles e ao povo brasileiro que tinha dignidade para olhar frontalmente em quem não tinha estatura, nem elementos, para efetuar sua condenação. Com a defesa, Dilma preparou uma memória futura para uma história que se encerraria de maneira infausta para ela.

     

    “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês”

     

    Eis que em mais uma volta do parafuso do golpe de 2016, Moro decreta, em velocidade inédita, a prisão do presidente Lula logo depois de o recurso do habeas corpus ter sido negado pelo STF, na última quinta-feira, 5.

    Reafirmando que é dono do seu destino, Lula definiu, com altivez e serenidade, o momento de sua apresentação, deixando frustrada a turma de Curitiba, a mídia hegemônica (a Globo teve que engolir a única possibilidade de transmitir os acontecimentos pelas imagens da TVT) e os paulistanos agressores de panelas, no crepúsculo desta sexta-feira, 6. Em suma, colocou todos eles no bolso. Coisa de gênio!

    Mas o ponto alto da mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, que recebeu um mar de gente nestes dois dias (foi tudo muito lindo, há que se dizer), foi o discurso antológico de Lula, que pode ser comparado a um rio com múltiplos afluentes, por ser indutor de esperanças várias. Lula provocou estímulos inabarcavelmente amplos. De sua fala surgiram vários rebentos de maternidade/paternidade coletiva: assim como Luther King ele também sonhou (e realizou), falou do que assusta os inimigos, como mencionou Mandela, e não se curvou na derradeira hora, seguindo a atitude exemplar de Dilma Rousseff.

    O pronunciamento de Lula guarda semelhanças com a carta-testamento de Getúlio. Ambos nos ensinaram, a partir de ângulos diferentes, que é o discurso que funda a História e não o contrário. Tema espinhoso que habita os arredores da filosofia da linguagem, das teorias do discurso e da enunciação, o par discurso X história é próprio da luta política. Manejá-lo bem, é saber estabelecer parâmetros precedentes para o que se diz e, pela fala, restaurar a história e o movimento do mundo.

    A psicanálise nos ensinou que a realidade é o discurso, que o seu habitat natural é a linguagem. Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e definem, não são quaisquer coisas: são articulações (relações) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e são por ele estruturadas. Além disso, são passíveis de transformações e têm funções.

    Pode-se insistir, com razão, que ao contrário de Getúlio Vargas, Lula não opera um movimento anti-horário para dignificar o seu passado. Não. Ele não precisa disso. O seu pronunciamento exerce uma função indispensável num presente que prepara dias cada vez mais difíceis para todos nós: ele possibilita que voltemos a sonhar com um futuro em que prosperidade, justiça e igualdade sejam cimentos para a edificação de um outro país.

    Num mundo e num país poliperspectivamente partido, quando Moro anuncia que “já era” para Lula, eis que ele inverte, com o pronunciamento, os elementos dessa equação e anuncia que na verdade tudo só está começando. “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês.”

    Vindo de onde veio, é um homem forte, audacioso que, na condição de prisioneiro político, coloca o judiciário brasileiro no subsolo da História, ao passo que o pé direito de sua edificação política ficou mais alto (mas as mãos que a construíram seguiram certamente à esquerda). Lula mitou again!

     

    veia neste link a transcrição, na íntegra, do discurso de Lula

    #LulaLivre

     

    ***Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).

  • 9 PASSOS PARA FORJAR UMA EVIDÊNCIA

    9 PASSOS PARA FORJAR UMA EVIDÊNCIA

    São Paulo, 8 de janeiro – Durante a ação policial no ato desta sexta-feira contra o aumento da tarifa, quatro estudantes foram revistados e interrogados pela Polícia Militar. Um PM colocou na mochila de um deles um material suspeito, tido como explosivo, que havia sido encontrado junto a um poste.

    Um dos meninos, Matheus Machado Xavier, encontra-se agora na 78 DP.

  • “O cidadão que consome drogas é um portador de direitos como todos os outros”

    “O cidadão que consome drogas é um portador de direitos como todos os outros”

     

    Em entrevista aos Jornalistas Livres, o antropólogo Mauricio Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Drogas defende que a atuação do Estado deixe de ser uma questão de segurança pública e passe a ser observada sob o ponto de vista da saúde e dos direitos humanos.

    A guerra às drogas é um modelo falido. A política de repressão ao uso e comércio fracassou: não houve redução na oferta e demanda de drogas ilícitas. Ao contrário, o que aconteceu foi o aumento da violência, o superencarceramento e mais corrupção, mistura que amplia a vulnerabilidade social de quem já se encontra em situação delicada.

    O Brasil é um dos países mais ativos na construção do “proibicionismo”, políticas que criminalizam o consumidor, que têm viés punitivo, ligado à segurança pública e não aos direitos humanos. “Há uma tendência cada vez mais forte de questionamento, em nível global, da guerra às drogas e de todos os seus terríveis efeitos na saúde pública, no nível de violência e criminalidade”, explica o antropólogo Mauricio Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Drogas, lançada na noite desta quinta-feira (28/5). A Plataforma é uma rede formada por 28 entidades e composta por um robusto conselho consultivo, que agrega lideranças em diversas áreas ligadas à justiça e aos direitos humanos.

    Colocar a questão das drogas no rol da saúde pública, sob a lupa dos direitos, com foco na redução de danos — e não na criminalização — , faz parte da missão da Plataforma, que pretende qualificar o debate e incidir sobre as políticas de drogas. Tem como eixos prioritários a promoção da saúde pública, da educação, do desenvolvimento social e econômico e a redução de todos os tipos de violência. Propõe uma cultura de paz, que trabalhe a liberdade, a autonomia do indivíduo e o respeito aos direitos humanos.


    Jornalistas Livres — Estamos vivendo uma mudança nas políticas de drogas na América Latina. Políticas de viés punitivo e proibicionista, importadas dos Estados Unidos, se provaram ineficazes e, pior que isso, nocivas. Legalização e mudanças na legislação são tendências atuais, assim como uma abordagem que considere saúde pública e direitos humanos. Qual é o posicionamento da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas sobre uma política eficiente e inclusiva? É uma tendência mundial?

    Mauricio Fiore— Um apontamento, antes de responder. Ainda que os EUA tenham tido um papel fundamental na consolidação da paradigma proibicionista, não podemos dizer que os países latinoamericanos tenham importado esse modelo. O Brasil é um bom exemplo de um país que teve papel ativo na construção do proibicionismo, principalmente com relação à maconha. Feita essa ressalva, o cenário é esse que você desenhou, há uma tendência cada vez mais forte de questionamento, em nível global, da guerra às drogas e de todos os seus terríveis efeitos na saúde pública, no nível de violência e criminalidade e no respeito aos direitos humanos.

    As cerca de trinta organizações que compõem a Plataforma não têm um consenso fechado sobre um novo modelo de política de drogas, mas um consenso em torno do diagnóstico crítico ao paradigma atual. Alguns membros trabalham com a ideia de simplesmente tirar as drogas do campo penal, outros em regular sua produção e comércio; outros membros estão mais focados no tratamento digno e em liberdade para usuários e dependentes de drogas. Ou seja, a Plataforma quer ser um instrumento para potencializar a ação de seus membros e colocar a discussão sobre política de drogas em outro patamar e, assim, construir uma política de drogas mais justa e eficaz.

    JL — Como se dá essa relação entre a proibição e o nascimento do tráfico, tema da campanha do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec)? Como seria se não houvesse proibição?

    Mauricio — Sob uma certa perspectiva, foi a proibição que criou o tráfico, já que colocou fora de qualquer tipo de controle um mercado gigantesco e, ao mesmo tempo, gerou um faturamento de risco por conta de ilegalidade. A campanha do Cesec é muito feliz em chamar a atenção da população em geral para isso, pois há uma naturalização da questão das drogas, como se o tráfico sempre tivesse existido. O que sempre existiu é o uso de drogas, o tráfico é uma fenômeno contemporâneo. Caso nos afastemos progressivamente do modelo proibicionista, poderemos criar políticas públicas que foquem no uso de drogas em si e nos problemas que elas podem acarretar, que não sou poucos.

    JL — Quais são as políticas defendidas pela PBPD? Como podem “garantir a autonomia e a cidadania das pessoas que usam drogas e o efetivo direito à saúde e ao tratamento em liberdade”, parte da missão da organização?

    Mauricio — Como eu disse anteriormente, a Plataforma atua mais a partir de um diagnóstico crítico do que tendo um modelo de política de drogas pronto. Mas há alguns valores compartilhados, como a retirada da questão das drogas da esfera penal, o fortalecimento da redução de danos como forma de atenuar os efeitos negativos das substâncias psicoativas e também a defesa de modelos de atenção e tratamento baseados em evidências científicas e não no isolamento forçado e com práticas desumanizadoras. Um ponto central das políticas promovidas pela Plataforma é ver no cidadão que consome drogas, tenha ele problemas ou não com esse uso, um portador de direitos como todos os outros e cuja assistência médica e social visem a melhora de seu quadro, não necessariamente a sua submissão moral a uma determinada escala de valores.

    JL — Como vocês avaliam as políticas de drogas no Brasil? Qual é a tendência? Há abertura para o diálogo? O que opinam sobre os programas da prefeitura paulistana na Cracolândia?

    Mauricio — O Brasil está distanciado das discussões mais avançadas em política de drogas, está inserido completamente no paradigma proibicionista do sistema ONU.

    “Somos um dos países que mais sofre as consequências dessa política na nossa violência. Temos mais de 55 mil homicídios por ano e a política de drogas é uma parte importante desse cenário.”

    No entanto, percebemos algumas possibilidades de avanço no horizonte. Mas há que se ter cuidado, pois a lei de drogas de 2006, por exemplo, foi percebida como um avanço na época, mas teve consequências práticas muito ruins, como o aumento do encarceramento. De qualquer forma, há setores no executivo e no judiciário que admitem que o crescimento exponencial do encarceramento e, assim, sinalizam mudanças pontuais. O STF, por exemplo, deve discutir em breve um recurso que pede ainconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal.

    Caso julgue o recurso procedente, isso pode ter um impacto importante, forçando o legislativo a se posicionar mais claramente na definição de uso e tráfico. Mas ainda há muita resistência na sociedade, que encara qualquer crítica à situação atual como uma defesa do uso de drogas. Na verdade, é uma defesa do debate racional sobre política de drogas, o que ainda não acontece no Brasil. Sobre o Braços Abertos, nos parece uma política inovadora, que encara o problema das pessoas que vivem naquela área como muito além do consumo abusivo de crack, mesmo que esse seja um problema dramático. No entanto, há problemas, não só do próprio programa, mas que têm a ver com o próprio modelo proibicionista e nossa estrutura urbana. A coordenação científica da Plataforma está envolvida numa pesquisa de avaliação do programa que deve estar pronta nos próximos meses.

    JL — Está comprovada a relação entre crimes hediondos e uso de drogas? O que está por trás dessa associação?

    Mauricio — As evidências indicam que a maior associação entre crimes violentos e drogas está no seu mercado, e não no consumo em si. É claro que há uma associação entre padrões de consumo de algumas drogas com ações violentas, por exemplo, o consumo de álcool com violência doméstica. Mas uma política de drogas digna desse nome tem que enfrentar essas possibilidades de acordo com os padrões e as características do consumo de cada substância. Drogas estimulantes, por exemplo, devem ser pensadas de maneira mais cuidadosa, no que diz respeito à violência associada, do que a maconha ou o tabaco, para ficar em dois exemplos práticos. Mas, repito, hoje é o mercado de drogas ilícitas que está relacionado à violência.

    Ironicamente, inclusive, a lei brasileira considera o tráfico de drogas um crime equiparado aos crimes hediondos, com uma execução penal severa. Esse é um dos motivos que faz com que mais de um quarto dos homens e dois terços das mulheres presas tenham sido punidas por tráfico de drogas.

    Foto: Mídia NINJA