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Tag: Comitê de Direitos Humanos da ONU

  • Liminar da ONU suspende Ficha Limpa

    Liminar da ONU suspende Ficha Limpa

    Por Thaís S. Moya (1)

    Desde que o Comitê Internacional de Direitos Humanos das Organização das Nações Unidas (ONU) despachou liminar que requer do Estado brasileiro garantias da candidatura de Lula, a mídia tradicional tem tentando de várias formas diminuí-la.

    O fato é que o requerimento da ONU foi um tiro quase fatal no Golpe porque o Comitê é fruto e parte do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), tratado internacional ratificado pelo Estado brasileiro por meio de dois Decretos, em 1992 e 2009, o que aloca-o em nosso ordenamento jurídico com status de supralegalidade, ou seja, acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição Federal.

    Quem afirma isso é nada mais, nada menos do que o Supremo Tribunal Federal (STF). Além de vários Ministros já terem afirmado, em decisões monocráticas, que tratados internacionais sobre direitos humanos estão acima da lei ordinária, o colegiado publicou, ao menos, um Acórdão que versa sobre o tema, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5240, de 2015, que tratou da “audiência de custódia”:

     

    Parágrafo primeiro do acórdão do STF na ADI 5240

     

    Talvez, ainda mais importante, tenha sido a definição da Súmula Vinculante 25, que alterou a 619, que trata do fim da prisão por dívida, tendo como fundamento exatamente o caráter supralegal dos referidos tratados, no caso, o Pacto de São José da Costa Rica. Ou seja, a lei que autorizava a prisão de depositário infiel perdeu seu efeito.

     

    Precedente Representativo para a Súmula Vinculante 25

     

    É aqui que a Lei da Ficha Limpa cai por terra diante da Liminar da ONU, pois trata-se de uma lei inferior ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o que consequentemente anula os efeitos de inelegibilidade do ex-presidente Lula. Cenário que reitera a Constituição Federal no que tange as normas eleitorais de inelegibilidade:

    Inciso III do Artigo 15 da Constituição Federal de 1988

    Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

    III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

    Portanto, a candidatura de Lula está assegurada não apenas pela Liminar da ONU, pois a própria Constituição reafirma-a tendo em vista que o ex-presidente não teve seu processo transitado em julgado, ainda lhe restam duas instâncias: Superior Tribunal de Justiça (STJ) e STF.

    Resta, então, a conclusão de que, se o Estado de direito for respeitado, Lula será candidato e poderá fazer campanha. Não há escapatória jurídica e digna para o Estado brasileiro ignorar ou negar a liminar da ONU. Caso optem pela indignidade, o Golpe ficará nu para o mundo todo.

    Notas

    1 Thaís S. Moya é socióloga, pós-doc em Ciências Sociais (Unicamp)
    2 Para ver o inteiro teor do acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5240, de 2015: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=308563579&tipoApp=.pdf
    3 Para ver a Súmula Vinculante 25: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1268
    4 Essa matéria recebeu o selo 025-2018 do Observatório do Judiciário.
    5 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • O Brasil para inglês ver e o Brasil real

    O Brasil para inglês ver e o Brasil real

    Meu sucessor como presidente se coloca,
    falsamente, como vítima de uma conspiração da ‘‘elite’’.
    (FHC) (1)

    Parece evidente que o Lula jamais será julgado de forma imparcial.
    (FKC) (2)

    O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), 87 anos, buscou um dos arautos do capitalismo financeiro global para fustigar Lula: publicou uma matéria no Financial Times, jornal inglês, em que nega que Lula esteja sofrendo perseguição política. Nega que a democracia brasileira esteja em ruínas. Nega a vigência de um Estado de Exceção no país. Nega inconformidades no impeachment de Dilma Rousseff e no processo que condenou Lula.

    O jurista Fábio Konder Comparato (FKC), 81 anos, denuncia que nunca houve democracia no Brasil. Denuncia que Lula, considerado um intruso pela oligarquia, nunca será julgado de forma imparcial. Denuncia que o Judiciário brasileiro sempre foi corrupto. Denuncia que há dois ordenamentos jurídicos no país: o oficial e o real.

    Apenas uma letra (FHC e FKC) e todo um universo os diferenciam. Colocamos seus pensamentos lado a lado.

    A condenação de Lula

    FHC

    “O ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva tem todo o direito de defender o seu ponto de vista no país e no estrangeiro em relação aos processos judiciais que pesam sobre ele. Esses processos levaram à sua prisão, depois que um tribunal federal de apelação, em janeiro, manteve sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro.

    A maneira pela qual Lula da Silva escolheu para defender-se para o mundo, no entanto, precisa ser contestada. Em um artigo recente, ele apresentou uma versão da história recente do Brasil que não carrega qualquer relação com a realidade. Isso seria um problema para os historiadores, não fosse ele o líder político influente que é.”

    FKC

    “A Operação Lava Jato manifestou uma estranha associação de alguns Procuradores da República com o juiz Sérgio Moro, para promover ações penais por corrupção, praticamente só contra políticos do PT e empresários a eles ligados.

    A Operação acabou por provocar a destituição da presidente Dilma Rousseff pelo Congresso Nacional e a instalação de um novo governo federal, cuja atuação se destaca pela entrega de mão beijada da extraordinária riqueza das nossas jazidas de petróleo do pré-sal a estrangeiros, bem como pela redução escandalosamente inconstitucional dos direitos sociais, para benefício do grupo oligárquico dominante.

    Logo a seguir, tivemos a esperada denúncia criminal do ex-presidente Lula, a fim de que ele não possa se candidatar à presidência em 2018. Atingido assim o verdadeiro objetivo da Operação Lava Jato, é de se esperar que ela venha desde logo a ser desmontada.” (FKC) (3)

    O Estado de Direito

    FHC

    “O ex-presidente retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, em que o Estado de Direito deu lugar a medidas arbitrárias concebidas para minar a ele e seu partido. Isso não é verdade.”

    FKC

    “Eu andei estudando recentemente a tradição judicial brasileira. O Judiciário no Brasil sempre foi corrupto. E isso não era dito, obviamente, pelos brasileiros, mas foi dito, sem exceção, por todos os viajantes estrangeiros.” (4)

    O governo FHC

    FHC

    “Também não é verdade, como Lula da Silva afirma, que o Brasil estava sem rumo antes que ele assumisse a presidência em 2003. É só lembrar da bem-sucedida estabilização da economia, depois de anos de hiperinflação, que começou com o Plano Real lançado pelo ex-presidente Itamar Franco e continuado durante o meu governo. Este foi também um período marcado pela constituição de programas sociais que Lula da Silva expandiria seria posteriormente.”

    FKC

    “Logo no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, foram privatizadas nada menos do que oitenta empresas públicas, notadamente a Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores empresas mineradoras do mundo, a maior produtora mundial de minério de ferro, de pelotas e de níquel, além de produtora de manganês, ferroliga, cobre, bauxita, potássio, caulim e alumínio. (….)

    Essa privatização, justificada à época pelo chamado Consenso de Washington – conjunto de dez recomendações do Fundo Monetário Internacional adotadas em 1990 – foi, na verdade, operada na bacia das almas.

    Os compradores da Companhia do Rio Doce, por exemplo, beneficiaram-se de financiamento subsidiado pelo BNDES, não tendo sido levado em conta, no preço de venda das ações de controle, o valor potencial das reservas de ferro por ela possuídas, as maiores do mundo.

    Contra essa operação de venda do controle público da Vale do Rio Doce foram intentadas mais de cem ações judiciais, nenhuma delas acolhida pelo Judiciário; o que bem demonstrou a submissão cabal dos magistrados à dominação da oligarquia empresarial, nacional e estrangeira.

    Para completar esse quadro de completo abandono do princípio republicano e do Estado de Direito, logo no começo do seu mandato Fernando Henrique Cardoso iniciou tratativas junto ao Congresso Nacional para operar uma mudança constitucional, permitindo a sua própria reeleição como Presidente da República, incluindo nessas tratativas a compra de votos de vários deputados federais, que acabaram sendo judicialmente condenados. O Presidente, no entanto, saiu ileso de todo esse criminoso episódio, não tendo contra ele sido intentado em juízo procedimento algum.” (5)

    Sobre a democracia brasileira

    FHC

    “Sua versão das últimas décadas da história brasileira é peculiar, na qual ele às vezes aparece como o salvador do povo e, por vezes, como vítima de uma conspiração da ‘elite’. Sua versão propicia, inadvertidamente, a deslegitimação do esforço coletivo que é o fundamento da democracia brasileira.”

    FKC

    “O governo verdadeiro da democracia, que nunca, jamais, em momento algum, vigorou no Brasil, é o regime político em que a soberania, ou seja, o poder supremo, pertence a quem? Ao povo. Acontece que a burguesia, muito mais inteligente, do que a gente imagina, já desde o século XVIII aceitou essa ideia, mas debaixo do pano era ela que dava as cartas no regime da chamada democracia representativa.” (6)

    O impeachment de Dilma

    FHC

    “O impeachment e deposição da presidente Dilma Rousseff do cargo em 2016 não foi, ao contrário do que Lula da Silva afirma, um golpe de Estado. Foi o resultado de, entre outras coisas, a violação do seu governo de lei de responsabilidade fiscal do Brasil no período imediatamente anterior à eleição 2014.

    O processo de impeachment seguiu todas as conformidades constitucionais, sob a supervisão do Supremo Tribunal brasileiro, no qual a maioria dos ministros foi nomeada por Lula da Silva e Dilma.”

    FKC

    “Haveria alguma personalidade com mais chances do que ele [o juiz Sérgio Moro] para enfrentar politicamente Luiz Inácio Lula da Silva?

    Acontece que nenhum magistrado pode candidatar-se a algum posto eletivo no Brasil. Só restava, portanto, uma saída, que era inviabilizar a própria candidatura potencial de Lula, mediante a sua condenação criminal. Foi o que fez Sérgio Moro em sentença prolatada em julho de 2017. Logo em seguida, em flagrante violação de seus deveres de magistrado (Lei Complementar n. 35, de 14.03.1979, art. 36, III), o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que atuou como segunda instância no respectivo processo, teceu publicamente rasgados elogios à sentença condenatória.

    Não foi essa, porém, a única condenação criminal a Lula, como não tardou a se verificar.

    Nesse meio tempo, nossos oligarcas prepararam e executaram em 2016 o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República, por meio de manobras ilegítimas, com a conivência do Ministério Público e do Poder Judiciário. O proveito para a oligarquia brasileira e o Estado norte-americano foi imediato e conspícuo, como se verá mais abaixo.” (5)

    O devido processo

    FHC

    “A minha crítica não é motivada pelo antagonismo pessoal. Lula da Silva e eu lutamos juntos contra o regime autoritário que dominou o Brasil entre 1964 e 1985. Na sequência, quando concorremos como adversários em eleições democráticas, eu mantive uma relação construtiva com ele.

    Lamento que o ex-presidente enfrente acusações adicionais de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas o fato é que os processos judiciais em que ele esteve envolvido seguido o devido processo e foram realizadas em conformidade com a Constituição e o Estado de Direito.”

    FKC

    “Os grandes burocratas casavam-se com as filhas dos grandes fazendeiros, dos grandes senhores de engenho (…) O dinheiro público era considerado um patrimônio próprio desta sociedade, de grandes agentes estatais e grandes empresários. (…) Afinal das contas, é todo um velho costume. Acontece que a operação Lava Jato, como eu disse antes, ela veio entrar nesse campo e atacar esse velho costume. E, a meu ver, isso foi necessário para desmoralizar os petistas e os governantes ligados ao petismo. Mas, ao final das contas, teve um lado negativo para eles, americanos e seus asseclas brasileiros: é que ficou evidente que, ao final das contas, isso aqui não começou ontem com o Lula, vem de séculos.” (4)

    Efeitos “colaterais” da operação Lava Jato

    FHC

    “O caso de Lula da Silva não é um caso isolado. No Brasil, existem os políticos de todos os partidos na prisão, muitos dos quais tiveram condenações mantidas por um tribunal de apelações. Entre eles incluem-se membros do meu próprio partido, o PSDB.”

    FKC

    “O que, porém, ninguém previra foi o espraiamento da Operação Lava Jato, de modo a atingir individualmente os próprios oligarcas; inclusive o Presidente da República, fato sem precedentes em nossa história republicana. Denunciado criminalmente duas vezes pelo Procurador-Geral da República, Michel Temer teve que prodigalizar uma ampla distribuição de benesses aos deputados federais, a fim de barrar o início do processo penal perante o Supremo Tribunal Federal. Tudo isso, enfim, parece assegurar que, segundo todas as probabilidades, a coligação oligárquica tradicional permanecerá como titular da soberania em nosso país durante um tempo indefinido.” (5)

    Sobre o cumprimento de pena quando ainda cabe recurso

    FHC

    “O precedente para a prisão após uma condenação ser mantida por um tribunal federal de apelações decorre de um acórdão do Supremo Tribunal que é muito anterior à condenação de Lula da Silva. Pessoas condenadas começam a cumprir sua sentença sem que isso afete o seu direito de recorrer aos tribunais superiores.”

    FKC

    “O preceito fundamental da presunção de inocência, assegurado pelo art. 5º, incisos LVII e LXI, da Lei Maior, está sendo lesionado pela Presidente dessa Suprema Corte diante da insistente recusa de pautar o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54 – na qual se busca ver reconhecida a necessidade do trânsito em julgado de sentença condenatória para o início do cumprimento de pena, exatamente como previsto no Texto Constitucional.” (FKC e mais quatro juristas em petição ao STF) (7)

    Sobre a (in)elegibilidade de Lula

    FHC

    “Além disso, a inelegibilidade de Lula da Silva para concorrer à presidência nas próximas eleições é resultado de uma iniciativa popular que recebeu mais de 1 milhão de assinaturas, foi aprovada pelo Congresso e assinado em lei por ele mesmo em 2010. A chamada Lei da Ficha Limpa, resultante de uma campanha da sociedade civil contra a corrupção, proíbe qualquer pessoa condenada por um tribunal de apelações de concorrer a um cargo eletivo.

    A iniciativa popular que resultou na lei foi uma resposta direta ao escândalo do Mensalão, um esquema fraudulento de compra de descoberto em 2005. O desmantelamento desse esquema de corrupção não impediu outro, ainda maior, de ser perpetrado em alguns dos maiores empresas estatais, notadamente Petrobras. A investigação sobre este escândalo, conhecido como Lava Jato ou “Car Wash”, descobriu um esquema para desviar bilhões de dólares para Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva.”

    FKC

    “No Brasil, desde a colonização até agora, existem dois ordenamentos jurídicos. Existe o ordenamento oficial, que em grande parte não é aplicado. E existe o ordenamento jurídico real, que é dado nas suas grandes decisões justamente pelos oligarcas. Na Constituição de 88 introduziu-se o plebiscito e o referendo. E um jurista que é mais ou menos conhecido no meio jurídico propôs, ao Conselho Federal da OAB, uma lei para regulamentar o plebiscito e o referendo. Evidentemente que essa lei nunca foi aprovada. Por quê? Porque o plebiscito e o refendo existem no ordenamento oficial, como mostra para o estrangeiro, ‘nós somos um povo civilizado, democrata etc.’, mas não pode existir na realidade.” (6)

    O momento atual do Sistema de Justiça brasileiro

    FHC

    “O Brasil está passando por um processo doloroso mas necessário de remoralizar a sua vida pública, e as ações do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário fazem parte deste processo.

    Nem sempre me sinto confortável com as penas impostas ou com a expansão das detenções preventivas, em que o acusado é preso antes mesmo de seu primeiro julgamento em um tribunal inferior.”

    FKC

    “Como era de se esperar, os bons resultados das políticas implementadas pelo Governo Lula não deixaram de inquietar o poder oligárquico. Aproveitando-se do controle oligopólico que exerce há décadas sobre os meios de comunicação de massa, ele centrou seus ataques nos casos de corrupção ou prevaricação envolvendo ministros, que foram obrigados a deixar seus cargos.

    Malgrado tais percalços, no entanto, o apoio popular a Lula não cedeu durante ambos os mandatos. Ao final do primeiro deles, em dezembro de 2006, uma pesquisa do Instituto Datafolha indicou que 52% dos entrevistados consideravam o seu governo ótimo ou bom; e em março de 2010, no último ano do segundo mandato, essa percentagem havia aumentado para 76%. Tais fatos voltaram a inquietar sobremaneira nossos oligarcas.” (7)

    O país de FHC e o país de FKC

    FHC

    “É uma grave distorção da realidade, no entanto, para dizer que há uma campanha segmentada no Brasil para perseguir indivíduos específicos. O meu país merece mais respeito.”

    FKC

    “Durante anos … eu estou com 81 anos, até mais ou menos os 75 ou 76 anos, eu tinha esperança nesse país. Confesso que agora não tenho mais. É claro que a história é sempre feita de imprevistos e é possível que surja um imprevisto qualquer, a morte súbita de alguém ou um acontecimento extraordinário, mas dentro dos cânones constitucionais, eu não vejo saída.”

    “Mas, então, por que o senhor continua?” Perguntou Rodolfo Lucena.

    “Porque eu acho que tenho o dever de denunciar. Denúncia é importante. Se não produzir efeitos imediatos, ela acaba produzindo efeitos futuramente. E ela serve de exemplo. Eu disse que a mentalidade coletiva só se muda através de uma educação pública e educação pública organizada durante gerações, mas essa educação pública organizada durante gerações, ela é também estimulada pela denúncia. Porque se o crime coletivo ficar evidente para a população, os oligarcas não poderão escondê-lo. Eles vão tentar levar a coisa ao máximo que puderem sem cair no abismo, mas o que eu não sei é quando isso vai se dar.” (4)

    Notas

    1 Todas as citações ao ex-presidente FHC foram extraídas do artigo Lula da Silva’s vision of Brazil is a damaging fiction:
    https://www.ft.com/content/7775bddc-a46c-11e8-a1b6-f368d365bf0e

    2 Comparato: ‘Parece evidente que Lula jamais será julgado de forma imparcial’: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/07/comparato-parece-evidente-que-lula-jamais-sera-julgado-de-forma-imparcial

    3 Contra o absolutismo do Judiciário, o controle social. Entrevista com Fábio Konder Comparato:
    http://www.ihu.unisinos.br/noticias?id=560415:contra-o-absolutismo-do-judiciario-o-controle-social-entrevista-especial-fabio-konder-comparato-2&catid=159

    4 Comparato fala a Tutameia sobre julgamento de Lula: https://youtu.be/wM2Csu4Ei68

    5 Comparato: 2016, a grande revanche oligárquica:

    Comparato: 2016, a grande revanche oligárquica

    6 Prof Fábio Konder Comparato A oligarquia brasileira ao longo da história: https://www.youtube.com/watch?v=qyBr8cEjV_8&feature=youtu.be

    7 Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54: https://www.conjur.com.br/dl/adpf-pt-pcdob-omissao-carmen-lucia.pdf

    8 Essa matéria recebeu o selo 024-2018 do Observatório do Judiciário.

    9 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Juiz Carlos Cerqueira proíbe manifestação em Salvador

    Juiz Carlos Cerqueira proíbe manifestação em Salvador

    NOTA Á IMPRENSA

    JUSTIÇA PROÍBE MANIFESTAÇÃO CONTRA AUXILIO MORADIA. NEM A DITADURA MILITAR CHEGOU A ESSE PONTO

    Um juiz de direito da Bahia proibiu a manifestação marcada por movimentos sociais de Salvador contra a o vergonhoso auxílio moradia para juízes e procuradores, e contra a partidarização do judiciário, que permanentemente persegue os partidos de esquerda e por outro lado protegem os golpistas corruptos que assaltaram o governo em 2016. Um dos principais expoentes da instrumentalização da justiça para fins políticos é o juiz Sérgio Moro, que estará num evento na mesma data da manifestação agendada. Ele não se constrange em posar para sucessivas fotos ao lado de amigos e correligionários do PSDB, recebendo prêmios de banqueiros e grandes empresários pelos serviços que presta a seus superiores. E o juiz é daqueles “notáveis” que dizem combater a corrupção, mas recebe o imoral auxílio moradia (além de vários outros), mesmo tendo casa própria num dos bairros mais caros de Curitiba.

    A pedido do Shopping Barra, o juiz Carlos Cerqueira Júnior, da 6ª Vara Cível e Comercial, proibiu qualquer tipo de protesto, dentro e fora do shopping e ainda estipulou uma multa de R$ 100 mil em caso de descumprimento da decisão judicial. É um absurdo completo, um desrespeito total ao direito de expressão, se proibir que em qualquer lugar da cidade, as pessoas não tenham direito de protestar contra quem quer que seja. Nem a ditadura militar ousou chegar a esse absurdo.

    Ironicamente, a decisão do magistrado baiano representa justamente o que a manifestação pretende denunciar: o autoritarismo do Judiciário brasileiro, que tem colocado em xeque o Estado Democrático de Direito, nestes tempos sombrios. É inadmissível o flagrante e contumaz desrespeito de juízes – e não só eles, incluindo também promotores, procuradores, policiais federais, entre outros agentes que atuam em nome do Estado – à Constituição Federal.

    Os magistrados brasileiros fantasiam uma ideia de superioridade, que os colocam em uma posição de intocáveis, mas não são. Estão sujeitos a críticas porque são servidores públicos e, assim sendo, devem satisfação ao povo toda vez que pairar sobre eles suspeitas e confirmações de desvio de finalidade em suas atividades. Não se pode aceitar que juízes atuem para fazer prevalecer suas posições políticas e ideológicas, em detrimento da imparcialidade e do interesse público.

    Não custa lembrar que é a todos permitido o direito de reunião, ‘independentemente de autorização’, como garante o artigo 5º da Constituição, em seu inciso XVI. O mesmo artigo constitucional, no inciso IV, garante ainda a liberdade de manifestação do pensamento. São direitos conquistados com muita luta do nosso povo, e garantidos em uma Constituição que encerra um tempo de autoritarismo no Brasil, que foi a ditadura militar (1964-1985). Não aceitamos uma nova ditadura! Pedimos respeito à democracia.

    O estado de exceção posto em prática pela República de Curitiba a serviço de Michel Temer não vai intimidar aqueles que lutam pela liberdade e pela democracia.

    Salvador, 22/08/2018
    Fórum dos Movimentos Sociais de Salvador

    Notas

    1 Para ver o despacho do juiz Carlos C. R. De Cerqueira Jr.:

     

    [aesop_document type=”pdf” src=”https://jornalistaslivres.org/wp-content/uploads/2018/08/DECISÃO-SSA.pdf” caption=”Decisão Interlocutória”]

    2 Essa matéria recebeu o selo 023-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Brasil tem obrigação de respeitar Comitê da ONU

    Brasil tem obrigação de respeitar Comitê da ONU

    Por Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Zanin Martins

    Na sexta-feira (17/8), o Comitê de Direitos Humanos da ONU proferiu uma decisão histórica e de alta relevância para a defesa das garantias fundamentais ao acolher o pedido de liminar que apresentamos em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assegurar que ele possa “concorrer nas eleições de 2018” do Brasil, com “acesso adequado à imprensa e aos membros do seu partido político”.

    Em 22 de maio, o mesmo órgão internacional já havia alertado o país para que não fosse realizada “qualquer ação que impeça ou frustre a apreciação” pelo comitê sobre as grosseiras violações a garantias fundamentais que apontamos no corpo do comunicado individual feito em favor do ex-presidente em 28 de julho de 2016 — mesma data em que anunciou que irá analisar o mérito das violações apontadas.

    No pano de fundo do comunicado estão fatos notórios

    ocorridos antes e durante a ação penal em que Lula

    foi indevidamente acusado e condenado pela prática de “atos indeterminados

    No pano de fundo do comunicado estão fatos notórios ocorridos antes e durante a ação penal em que Lula foi indevidamente acusado e condenado pela prática de “atos indeterminados” para, supostamente, beneficiar uma empreiteira em troca de uma parte do preço de uma afirmada reforma em apartamento em Guarujá (SP) que teria sido “atribuído” ao ex-presidente.

    No início do procedimento internacional, apontamos violações aos seguintes dispositivos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCPP):

    Artigo 9 (1) e (4): proteção contra a prisão ou detenção arbitrária;

    Artigo 14 (1): o direito a um tribunal independente e imparcial;

    Artigo 14 (2): direito de ser presumido inocente até que se prove a culpa por lei; e

    Artigo 17: proteção contra interferências arbitrárias ou ilegais na privacidade.

     

    Em julho deste ano, requeremos ao comitê, adicionalmente, a análise de violação ao artigo 25 do PIDCPP, que impede a imposição de “restrições infundadas” ao direito de “votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário por voto secreto, que garantiam a manifestação da vontade dos eleitores”. O pedido foi acolhido e também será objeto de oportuna apreciação pelo órgão internacional.

    À época do protocolo do comunicado, possivelmente diante do ineditismo da medida e do desconhecimento da via, algumas vozes se levantaram para questionar a medida. Atualmente, outras vozes — em regra interessadas no desfecho do processo eleitoral ou mesmo em impedir a candidatura do ex-presidente por algum motivo — tentam converter a decisão e a obrigatoriedade de seu cumprimento pelo país em mera “recomendação” ou em situação de menor relevância jurídica.

    Em 2009, de forma soberana e juridicamente válida,

    o Brasil reconheceu a jurisdição do Comitê de Direitos Humanos da ONU

    Nada mais descabido. Em 2009, de forma soberana e juridicamente válida, o Brasil reconheceu a jurisdição do Comitê de Direitos Humanos da ONU ao aprovar o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos por meio do Decreto Legislativo 311/2009. Vale dizer, aquilo que era facultativo — a aprovação do protocolo e da jurisdição do comitê — tornou-se obrigatório e vinculante a partir da edição desse ato normativo.

    Neste ponto, relevante uma digressão. Após mensagem presidencial dirigida ao Congresso Nacional, o tema tramitou pelas comissões (i) de Relações Exteriores e de Defesa Nacional; (ii) de Direitos Humanos e Minorias; e (iii) de Constituição e Justiça e de Cidadania, todas da Câmara dos Deputados.

    Na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, a relatoria coube ao deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que ressaltou em trecho de seu parecer que foi aprovado em 24/5/2006:

    Entendemos que não figura entre as preferências de regimes ditatoriais a assinatura de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e que, em 1992, o Brasil firmava aos poucos, sua democracia. Contudo, quase quinze anos se passaram entre a assinatura do Pacto e seus Protocolos e quase dez desde a recomendação das Nações Unidas. Cabe ao Congresso, portanto, envidar esforços para que a aprovação dos Protocolos seja realizada da forma mais expedita possível”.

    No âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a relatoria coube ao deputado Bosco Costa (PSDB-SE), que apresentou parecer, aprovado em 4/9/2016, destacando o seguinte:

    A adesão ao presente protocolo se harmoniza com a política adotada pelo Brasil em suas relações externas. O País já admite a competência de importantes órgãos internacionais de direitos humanos, nos âmbitos global e regional, para o exame de casos individuais, como a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos, o Comitê para a Eliminação da Discriminação racial e o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Assim, a aprovação da competência do Comitê das Nações Unidas representa mais um avanço da política brasileira na defesa dos direitos humanos e no reconhecimento do indivíduo, em algumas situações, como sujeito de direito internacional”.

    Por seu turno, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a relatoria coube ao deputado Luiz Couto (PT-PB), que destacou em seu parecer, aprovado em 8/11/2006, o seguinte:

    O texto é meritório. A adesão ao presente protocolo se coaduna com a política seguida pelo Brasil em suas relações externas, que, de maneira exemplar, defende a proteção internacional do ser humano. Nessa linha, o País já admite a competência de importantes órgãos internacionais de direitos humanos, nos âmbitos global e regional, para exame de casos individuais, como o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra Mulheres e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

     A aprovação da competência do Comitê das Nações Unidas representa mais um avanço da política brasileira no reconhecimento do indivíduo, em algumas situações, como sujeito de direito internacional”.

    O Plenário da Câmara votou a matéria em 5/6/2008, e o Senado, em 10/6/2009, resultando na edição do já referido Decreto Legislativo 311, que foi promulgado pelo então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), em 16/6/2006.

    Além da existência do aludido ato normativo que reconhece a jurisdição do Comitê de Direitos Humanos da ONU, o Brasil foi notificado sobre a existência do comunicado de Lula e, desde então, apresentou três manifestações perante aquele órgão. Em nenhuma delas o país recusou a jurisdição do comitê para analisar as violações apontadas pelo ex-presidente ou o caráter vinculante das decisões proferidas por aquela instância.

     

    Ao contrário. Em manifestação apresentada em 27/1/2017, o Brasil afirmou:

    “219. O Estado brasileiro aproveita esta oportunidade para reafirmar seu compromisso com o Sistema de Direitos Humanos das Nações Unidas e particularmente com esse honorável Comitê de Direitos Humanos”.

    Em outra manifestação, apresentada em 29/9/2017, a representação do país afirmou:

    “119. A República Federativa do Brasil reafirma aqui seu comprometimento com o Sistema das Nações Unidas de Direitos Humanos e com esse Comitê”.

    É impensável e incompatível com a boa-fé, portanto, que, após confirmar o compromisso de respeitar as decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU por meio de decreto legislativo e também por manifestações no caso concreto de Lula, o Brasil possa se furtar ao cumprimento da decisão proferida pelo órgão internacional.

    Oportuno lembrar, ainda, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal registra a obrigatoriedade da jurisdição das cortes internacionais de direitos humanos reconhecidas pelo Brasil. Embora se referindo à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o decano da suprema corte, ministro Celso de Mello, fez registrar a necessária “observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos” (STF, AP 470 AgR-vigésimo quinto, rel. p/ o ac. min. Teori Zavascki, voto do min. Celso de Mello, j. 18-9-2013, P, DJE de 17-2-2014).

    “O cumprimento de suas sentenças é mandatório,

    nos termos da obrigação internacional firmada pela República”.

    A Procuradoria-Geral da República também já se manifestou no mesmo sentido. Na ADFP 320/DF, embora também se referindo à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o órgão máximo do Ministério Público Federal defendeu perante o Supremo Tribunal Federal que “as decisões proferidas pela Corte em face do Estado brasileiro têm força vinculante para todos os poderes e órgãos estatais. O cumprimento de suas sentenças é mandatório, nos termos da obrigação internacional firmada pela República”.

    Na mesma manifestação, o então procurador-geral da República fez referência ao artigo 7º do ADCT e concluiu: “Houve, pois, decisão constitucional originária de inserir o Brasil na jurisdição de uma — ou mais — cortes internacionais de direitos humanos, o que constitui vetor interpretativo de conciliação do Direito e da jurisdição internos com o panorama normativo internacional a que o país se submeta, em processo integrativo também previsto nos §§ 2º e 4º do artigo 5º da Constituição”.

    Acreditamos que o Brasil não irá se deixar contaminar

    pela antiga tentação de países que negam proteção

    a garantias fundamentais mediante a invocação de disposições do Direito interno

     

    Acreditamos que o Brasil não irá se deixar contaminar pela antiga tentação de países que negam proteção a garantias fundamentais mediante a invocação de disposições do Direito interno. Até porque essa espécie de recusa é expressamente proibida pelo artigo 27 da Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, também aprovada pelo Brasil (Decreto 7.030/2009) sem qualquer reserva a essa disposição.

    Buscamos superar, no caso Lula, a distância entre a teoria e a vigência real dos direitos humanos. O Comitê de Direitos Humanos da ONU apontou, por meio de suas recentes decisões, o acerto desse caminho e irá julgar o caso do ex-presidente Lula possivelmente em 2019. As determinações até aqui proferidas têm por objetivo impedir a ocorrência de danos irreparáveis ou que possam frustrar a execução da decisão final.

    De acordo com a Observação Geral 33, editada pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em encontro realizado em Genebra de 13 a 31 de outubro de 2008, “em qualquer caso, os Estados-Pares terão que utilizar de todos os meios que estiverem ao seu alcance para dar efetividade às determinações do Comitê”.

    Esperamos que as autoridades brasileiras e também os agentes não estatais de alguma forma envolvidos cumpram as decisões do Comitê de Direitos Humanos da ONU, porque eventual responsabilidade internacional sobreviverá a governos, a mandatos, nomeações ou concessões. É o Brasil, como Estado-parte, que assumiu a obrigação de dar eficácia às deliberações daquela Corte Internacional de Direitos Humanos.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 022-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • É verdade que ordem judicial não deve ser discutida, mas sim cumprida?

    É verdade que ordem judicial não deve ser discutida, mas sim cumprida?

    O advogado e mestre em relações internacionais, Fábio Balestro Peixoto*, respondeu com clareza às principais questões acerca da decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU. O comunicado determina que o governo brasileiro garanta os direitos políticos e eleitorais do ex-presidente Lula no pleito de 2018.

    Reproduzimos a matéria originalmente publicada no Sul21.

    Sobre a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU (por Fábio Balestro Floriano)

    A decisão é de cumprimento obrigatório?

    Não se deixem enganar pelo linguajar diplomático da comunicação, que fala em ‘recomendação’ e outros termos suaves: a decisão é de cumprimento obrigatório. No momento que foi ratificado o Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos – Decreto nº 311/2009, as decisões do Comitê passaram a ser vinculantes. “Requested” é a linguagem diplomática. A obrigação jurídica é a mesma. O linguajar é o mesmo do art. 25 do regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que fala em ‘solicitar’) e do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.136/2002) (o qual também fala em ‘recomendação’) – que condenou o Brasil no caso Aline Pimentel com a comunicação nº 17/2008 e teve a decisão seguida à risca.

    Mas e a soberania nacional?

    O Brasil, no exercício de sua soberania, independentemente, decidiu aderir ao Protocolo Adicional ao Pacto de Direitos Civis e Políticos em 1992 e ratificou (confirmou) essa decisão em 2009, no Decreto 311. A partir daí, as decisões exaradas pelo Comitê por fatos ocorridos a partir de 2009 são de cumprimento obrigatório pelo Estado. O Brasil pode, se quiser, denunciar o tratado – o que equivale a retirar-se dele. É o que a Venezuela fez em 2012 em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos. As decisões tomadas antes da denúncia, entretanto, continuam valendo. E essa é uma postura infantil, para dizer o mínimo – do tipo ‘concordei com as regras do jogo, mas como perdi não concordo e não brinco mais.’ Aliás, nunca é demais frisar: é possível a um país aderir ao tratado de Direitos Humanos e não ao Protocolo Facultativo, que permite a avaliação de casos individuais. O Brasil sempre se vangloriou de ser um dos países que mais assinou tratados de Direitos Humanos. O problema é que, quando se assumem esses compromissos, estamos sujeitos a cumpri-los. Não é diferente agora.

    Quem, afinal, emitiu a decisão?

    Todos os tratados de Direitos Humanos do Sistema ONU possuem um Protocolo Facultativo que permite reclamações individuais. Em virtude desse protocolo existe um comitê permanente de especialistas que analisa os casos um por um. No caso do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, esse comitê é o chamado Comitê de Direitos Humanos, que integra o sistema ONU de monitoramento de tratados. Então as desqualificações que estão havendo de que seria “uma decisão de especialistas e não da ONU” não são válidas. Elas são de um comitê de especialistas criado pelo organismo justamente para analisar denúncias individuais de violações ao Pacto de Direitos Civis e Políticos e portanto, embora impreciso, não é errado dizer que “são da ONU.” A explicação ao final da nota quer dizer apenas que o Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos entregou a comunicação à representação brasileira, mas ela foi emitida pelo Comitê e não por eles – o que em nada a invalida.

    A comunicação fala em “interim measures”. Isso quer dizer que não é pra valer?

    “Interim measures” são medidas cautelares, ou provisórias – idênticas às tomadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Belo Monte em 2011 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do presídio Urso Branco em 2002, assim como em tantos outros casos de violações de Direitos Humanos no qual a inação deixa direitos sob ameaça. E, exatamente como no direito interno, cautelares devem ser cumpridas até que saia uma decisão final. O objetivo disso é evitar que um direito da vítima sofra uma lesão irreparável. E, nesse caso, importa ainda frisar que a defesa de Lula fez três pedidos: liberdade, direito de reunião – seja com a coligação ou para dar entrevistas – e o direito de concorrer. O Comitê disse ‘não’ ao primeiro pedido e ‘sim’ aos dois últimos.

    Afinal, constataram violação de direitos no caso do Lula?

    Sim e não. Ele quer dizer que foi achada uma possível restrição a direitos civis e políticos segundo o descrito no Pacto. O mérito dessa restrição (que pode ser válida juridicamente, como no caso da restrição de liberdade a apenado com trânsito em julgado) só vai ser decidido no futuro, mas até lá, provisoriamente e para evitar que haja lesão irreparável de direitos no caso de ser considerada inválida a restrição, deve-se garantir o direito de Lula concorrer e de dar entrevistas e reunir-se com membros de sua coligação.

    *  Fábio Balestro Floriano é advogado, Mestre em Relações Internacionais (UFRGS), especialista no Estudo das Instituições Ocidentais (University of Notre Dame) e Doutorando em Direito (USP). Atuou defendendo o Estado brasileiro em cortes e fóruns internacionais entre os anos de 2011 e 2012, e continua atuando em casos junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

    Notas
    1 Matéria originalmente publicada em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2018/08/sobre-a-decisao-do-comite-de-direitos-humanos-da-onu-por-fabio-balestro-floriano/
    2 Essa matéria recebeu o selo 021-2018 do Observatório do Judiciário.
    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

     

  • Com Supremo, com tudo. Só esqueceram da ONU

    Com Supremo, com tudo. Só esqueceram da ONU

    Por Carol Proner
    Advogada, doutora em direito, Professora de Direito Internacional da UFRJ, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

     

    Affirmanti incumbit probatio (Brocardo jurídico em desuso no Brasil)

    O silêncio do grupo Globo decide mais que qualquer juiz no Brasil. A tática agora é não pautar assuntos constrangedores ou aqueles que não podem ser sustentados sem o apelo à mentira. E é por isso que não há muitas linhas sobre o recente caso da ONU, assim como também passaram em branco os “golpes blancos en América latina” alertados pelo Papa Francisco na visita dos brasileiros ao Vaticano. Mas, in dubio, pode ser que as câmeras dos cinegrafistas da emissora tenham contraído uma espécie de vírus, no dia do registro da candidatura de Lula, e se esmeraram em imagens laterais, deixando fora de foco aproximadamente 30 mil pessoas.Vamos falar francamente: não precisamos de professores de direito internacional para explicar que a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU vincula, obriga e gera responsabilidade. Para os que têm alergia ao direito internacional, fiquemos com a prata da casa, temos leis de sobra para assegurar os direitos políticos do candidato, leis constitucionais amplamente respaldadas pela legislação-base, sem contar a antecedência, a jurisprudência e a velha e boa “prudência” de não deixar escoar direitos irreparáveis.

    Para começo de conversa, a decisão da ONU espelha a legislação pátria: o mandamento decorre dos direitos e garantias constitucionais e da tradição democrática e responsável do direito eleitoral que, mesmo nas brechas da lei que pune quem não tem “ficha limpa”, é cuidadoso com o direito-síntese mais importante do nosso sistema político: o direito de votar e ser votado.

    A decisão da ONU complementa o que já temos, mas também é um alerta para que, caso alguma autoridade tenha esquecido de aplicar a lei no curso de um processo não justo, que momentaneamente acalme-se e acautele esses direitos que, não por acidente, são chamados de fundamentais. Em suma, teve um dia ruim? Ficou com vontade de ligar para o carcereiro da Polícia Federal de Curitiba e exigir descumprimento de uma ordem judicial? Lembre-se que a ONU está de olho em você e, com base numa vontade que o Estado brasileiro exarou em 2009, aderindo, via Decreto Legislativo, ao mecanismo de fiscalização universal de direitos civis e políticos, a decisão é mandatória: um imenso “cumpra-se” que abarca a responsabilidade de todo o Estado brasileiro e não somente de um juiz que cometeu crime, mas ainda não foi afastado.

    Não prefiro a ironia como forma de escrita, ainda mais quando estamos vivendo no limite do aceitável, quando há gente fazendo greve de fome para que outros não padeçam em consequência de uma crise total que vive o nosso país. Mas por vezes, diante do arbítrio com altas doses de cinismo, recorremos ao sarcasmo para encarar os principais responsáveis pelo agravamento da crise democrática e soberana, pois estão todos nus.

    Sob os olhos do mundo, o Brasil se transformou, entre todas as tentativas em curso na América Latina, no case mais escandaloso de perseguição midiático-judicial a um líder político. Escandaloso porque erraram a mão, exageraram e provocaram uma forte reação popular e internacional. O processo de combate à corrupção, preparado para mascarar a trama via “legitimação pelo procedimento”, foi desmascarado logo na origem do chamado Caso Lula, tanto pela defesa do ex-Presidente quanto por argutos juristas que identificaram e denunciaram a prática de lawfare e os atos de exceção no sistema de justiça.

    Hoje é transparente o vínculo entre o golpe jurídico-midiático-parlamentar contra Dilma e o ativismo jurídico-midiático contra Lula, processos paralelos e complementares que engolfaram a democracia não apenas pelo comprometimento das eleições de 2018, mas também por revelar limites dramáticos do modelo: agora, amarrando bem – com supremo, com tudo – é possível apear presidentes ou encarcerar candidatos para evitar o acontecimento da democracia.

    Só se esqueceram dos expertos da ONU.

    Nos encontros que temos tido com juristas e cientistas políticos de outros países, essa é a dura mensagem que o caso brasileiro está transmitindo: um alerta para todos os países que vivem a ilusão do acordo possível entre os valores liberais do (neo)constitucionalismo e os direitos dos povos historicamente desgraçados. Na hora certa, quando o mandamento do (neo)contratualismo se resume a “não pactuar com a democracia” – racionalidade pós-democrática – os elitismos, incluindo o elitismo judicial, se levantam e falam grosso com los de abajo. É aí que teremos que enquadrar qualquer projeto de reforma do judiciário que se preze, mas isso é assunto de futuro.

    Por enquanto, devemos celebrar. Essa decisão cautelar da ONU é muito boa para a resistência democrática, já que temos consciência de que se trata de acúmulo para fortalecer um momento mais adiante. Como já não acreditamos na justiça, será mesmo por diversão que acompanharemos a decisão do ministro Barroso arbitrando a proibição dos direitos inalienáveis de Lula, apesar da decisão-espelho da ONU. Ele vai tratar a entidade como o Cabo Daciolo trata a URSAL, provavelmente fazendo coro com o Bolsonaro, que a considera covil de comunistas.

    Tentando imaginar a embaraçosa situação dos perpetradores do golpe e daqueles que agora têm nas mãos o destino de tudo isso – não só do Lula-Livre, mas de suas próprias biografias – talvez, se pudessem voltar no tempo, teriam feito tudo com mais capricho: quem sabe um juiz menos acusador, um Ministério Público menos power point, desembargadores menos apressados, ministros da Suprema Corte menos vaidosos e uma mídia menos canastrona. Poderiam ter chegado lá pisando no povo, naturalmente, mas com elegância.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 020-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.