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  • DANIEL HÖFLING: A Casa-Grande propaga o coronavírus Covid-19

    DANIEL HÖFLING: A Casa-Grande propaga o coronavírus Covid-19

    A propagação exponencial do Covid-19 mediante contato social é um fato incontestável e qualquer medida na direção contrária ao  isolamento doméstico deve ser prontamente repelida. Me pergunto como se dará tal isolamento no país da eterna Casa-Grande e Senzala.

    O Covid-19 chegou ao Brasil através daqueles cuja condição econômica permitiu a realização de uma viagem intercontinental, ou seja, diminuta parcela da população. Um esforço diligente de isolamento deste restrito contingente ajudaria muito na contenção do espraiamento viral. Seria uma medida factível e democrática, caso não morássemos no último país a abolir a escravidão.

    As relações econômicas (e, portanto, sociais) nacionais residem em grande medida na capilaridade quase infinita dos circuitos de renda que afluem da classe alta, média alta e simplesmente média em direção a um contingente enorme de pessoas menos afortunadas. Apoiados numa miríade de serviçais os integrantes da classe média e seus superiores não imaginam uma vida sem as benesses e mordomias da Casa-Grande.

    Empregadas, faxineiras, lavadeiras, babás, porteiros, jardineiros, entregadores, piscineiros (ocupação genuinamente pindorâmica) dentre outros amenizam a vida dos supostamente vencedores. Não passa pela cabeça dos mesmos acordar às 7:00 sem encontrar a mesa posta, ainda que para isso a empregada doméstica – maior contingente ocupacional do Brasil com mais de 9 milhões de indivíduos – tenha que acordar às 4:30 para estar de avental “limpa e sorridente” ao desjejum. Arrumar a própria cama, lavar a própria louça, recolher a própria roupa, jogar o próprio lixo e abrir o próprio portão são atitudes impensáveis para uma sociedade nascida do escravismo.

    A escassez de oportunidades faz com que milhões de pessoas diariamente, na busca pela sobrevivência, vão ao encontro dos transmissores do Covid-19. E, na volta para casa, em ônibus e metrôs lotados, contaminem a grande parcela da população que nunca saiu do seu  massacrante cotidiano. Ao chegarem em casa, a disseminação nas moradias mais precárias, principalmente nas favelas, tem enorme potencial propagador.

    O Covid-19 poderia ser uma oportunidade para repensarmos o absurdo da sociedade excludente assentada na exploração dos serviçais baratos; da desigualdade, da injustiça, do preconceito, da dor e da tristeza. Mas a força de destruição do Covid-19 é menor que o carma da construção e consolidação de uma sociedade eternamente alicerçada no fantasma do escravismo. A primeira medida correta a ser tomada, a de isolar os endinheirados viróticos de seus serviçais, provavelmente nem será levada em consideração. Pelo contrário: hoje foi anunciada a morte da primeira empregada cujos senhores, conscientes da própria contaminação, não a dispensaram do serviço.

    No Brasil, mais do que qualquer outro lugar, os mortos governam os vivos.

     

    Daniel de Mattos Höfling

    é doutor em Economia

    pela Unicamp

    (Universidade Estadual de Campinas)

  • ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    ELISA LUCINDA: a morumbização do olhar sobre a tragédia de Paraisópolis

    Desigualdade e racismo, mas o olhar anestesiado do Morumbi não vê - acervo Favela News
    Desigualdade e racismo, mas o olhar anestesiado do Morumbi não vê – acervo Favela News

    Há poucos anos, dentro de uma academia de ginástica no Jardim Botânico, uma colega de alongamento estava esfuziante junto com as amigas, comentando o champagne, o filho que chegou de Londres a tempo, o tênis verde-amarelo que tinha comprado para a sobrinha, e a alegria que tinha sido o dia de domingo na família num evento que custei a perceber que se tratava da passeata em Copacabana a favor do impeachment da Dilma.

    Como tinha visto as imagens do evento, aproveitei para perguntar pra ela por que não havia negros na referida manifestação pública. Ela então me olhou com olhos imensos, embora meio ocos, ampliada na minha frente aquela cara cheia de preenchimentos, embora vazia: “Ah, esses artistas fazem cada pergunta! Os pretos não têm cultura, Elisa! Para eles tanto faz, política não interessa.” Para esta senhora, como sou uma artista conhecida, eu era uma espécie de não-negra, alguma categoria em mim me embranquecera aos seus olhos.

    Na sequência, reajo:

    “Querida, preciso te explicar uma coisa. Como mulher negra que sou, vejo um país que você não vê.”

    Ao que ela imediatamente retrucou indignada:

    “Que que é isso? Você não é negra, você é bonita com esses olhos! Para de se rebaixar, de se denegrir”.

    Toda errada, e segura de que estava muito certa, minha interlocutora me encheu de preguiça. Por onde começar? Isso me levou, na época, a prestar extrema atenção à ignorância que a casa grande sempre teve do povo brasileiro, e uma ignorância que pode conviver bem com clássicos da cultura universal. A pessoa pode ter lido grandes autores, mas esse saber pode não fazer cruzamento sociológico aplicável à interpretação da nossa realidade.

    A tragédia de Paraisópolis é um horror cheio de erros contra a Constituição e contra os Direitos Humanos. Na primeira versão oficial dada pelos policiais, falou-se em enfrentamento por parte dos frequentadores do baile, em pisoteamento, em apologia às drogas e sexo.

    Depois, vídeos trazendo fatos mostram o ataque deliberado por parte das forças de segurança (ó ironia) contra os jovens, e agora, laudos periciais apontam para sufocamento, enforcamento, ou seja, o assassinato das vítimas. Não houve confronto. Parece que esses policiais estão sendo treinados para crer que vidas negras não importam. E não é por acaso que seu pensamento combina muito com o dos vizinhos, os que moram no Morumbi, e que gostariam sinceramente que aquela comunidade não existisse mais, que fosse dedetizada e parasse de existir assim, esfregando a pobreza na beira dos jardins das redondezas. É incômodo. Compromete o IPTU, é desagradável, por isso aquele muro dividindo os mundos. Tentando que uma parte da cidade partida não fagocite a outra.

    A sordidez do jogo desigual deixa as periferias, as favelas, as comunidades pobres todas reféns das igrejas ou de algum boteco para se divertirem. Nada mais. Não há opções. Dentre essa população moram mil vocações: médicos, engenheiros, artistas plásticos, bailarinos, atores, astronautas, cientistas, filósofos, professores, ensaístas, escritores. Mas, como a regra do jogo é educação zero para o povo, e o não-direito ao compartilhamento das riquezas da sociedade como um todo, fica meio proibido sonhar deste tamanho ali. E como não se tem teatro, nem cinema, nem modo de se expressar isso, se o indivíduo for cantor, o melhor dia da vida dele é o dia que ele canta na igreja. E Deus ganha aí todo o território da sua vocação.

    Se sou ator e moro num lugar onde a melhor performance “teatral” que se vê é a de um pastor, é o que eu vou ser então. Eu mesma, por exemplo, se tivesse nascido numa favela e nela tivesse sido criada, certamente o melhor dos meus destinos seria ser uma rapper, uma funkeira, ou então, com a minha criatividade, poderia me dedicar e chegar a ser uma importante chefe de facção.

    Quem pode afirmar que não? Quando o Estado deixa intelectual e culturalmente desnutrida uma população, ele está exercendo o abandono, o mesmo abandono que muitos pais oferecem aos filhos muitas vezes. Não se importam com o seu destino. E mesmo que esse exército de pobres se transforme numa multidão de servidores domésticos, cuidando com dedicação os filhos dos ricos, construindo suas casas, cozinhando, servindo, lavando suas roupas, levando os meninos ao colégio, sua importância humana segue sendo nenhuma. Há um desprezo por cima, como se fosse um requinte desta crueldade. O baile funk não é crime, e sem ele a coisa vai ficar pior.

    A alma precisa de cultura. É ali o único encontro que se tem com a arte. Adolescente quer se divertir, dançar, cantar, se libertar, curtir. Faz parte da saúde jovem. Tanto é verdade que jovens ricos fazem festinhas “quentes” em suas casas, com os pais sempre ausentes. Frequentam suas raves onde rola droga farta, sexo nos banheiros, apologia  à sacanagens, drogas como MD que exacerbam a sexualidade, sem temer a invasão da polícia. Lá a polícia não vai. E os pais compreendem, para eles não há delito: “São brancos, ricos, adolescentes e jovens. É natural”.

    Agora, você que me lê, responda, por favor: se as festas ricas do país são abarrotadas de tudo que dizem que havia no baile funk de Paraisópolis, por que a polícia não vai nelas? Isso nos faz crer que o que se combate nestas agressões policiais não são as drogas, correto? Você que me lê poderia me explicar  por que a mesma ação não é feita nas zonas nobres das cidades, mesmo que haja ali maciça presença de meninos mimados, sem limites na vida e nos cartões de crédito, capazes de qualquer coisa, e confiantes de que seus pais têm contatos no judiciário, na alfândega, nas fronteiras, e podem fazê-lo desaparecer para esfriar as coisas num apartamento em Dubai, se der alguma merda? Por quê? Tudo isso eu não invento.

    Está aí para quem quiser ver. Há muitas boates famosas, no Rio de Janeiro e em São Paulo abarrotadas de brancos, com bundas brancas tentando ir até o chão. São ricos, transando na cara de todo mundo pra geral ver, à base de muita droga sintética e cara, que baile funk  algum nunca ousou conhecer. Ouvi dizer que são coisas de arrepiar! Até substâncias para anestesiar cavalo tem e quem me contou foi um usuário contumaz e extremamente seguro de sua impunidade.

     

    Matar, limpar e dedetizar

     

    Circulou nas redes o vídeo de uma reunião de condomínio no Morumbi. Todos com caras de gente que se reúne pra “dedetizar” o prédio. Todos preocupados com sua segurança, desprovidos de empatia com a situação da comunidade vizinha, destilavam suas pautas de desprezo com essas vidas humanas: Não tem como o Exército entrar lá e “limpar” de uma vez a favela, gente?” “E se nós que temos mais poder aquisitivo oferecêssemos carros blindados à polícia? Que com esses carros eles não conseguem combater nada.” Enquanto essa reunião absurda acontecia, em minha página no instagram alguns seguidores, não muitos, mas não tão poucos como eu gostaria, reverberavam o mesmo pensamento desses condôminos, comentando a cena: “A culpa é dos pais que deixam os filhos de 14 anos num baile desse. Quem mandou tá lá dentro, rebolando a bunda?”, “É isso que acontece, com tanto sexo e drogas rolando, queriam o quê?”

    Bem, os comentários não avançavam em análises profundas. Seguiam na linha da criminalização daqueles jovens,. Nenhum deles tem nome, sobrenome, importância. São pobres e pretos por isso devem morrer. Quando morava na Lagoa e estava havendo um tiroteio no ápice do morro, perguntei ao policial que estava na esquina se podia subir para ir pra casa. Neste momento, um vidro fumê de um carro blindado importado, desce e revela o rosto de uma mulher loira que dizia: “A polícia tem que subir no morro e matar todo mundo, você tá ouvindo, seu policial? Sobe lá e mata todo mundo pra gente ficar livre desse inferno”. Foi então que eu olhei pra ela e afirmei: “Você não tem filho lá, né?”. É isso, todos os que acham que Paraisópolis não foi violada em seus Direitos Humanos, entre eles seu direito à vida, não têm filhos nem parentes lá.

    Novos laudos e depoimentos revelam destruição de provas e até lavagem do sangue na calçada do crime feita por policiais. Que tristeza, meu Deus! E essa crônica pergunta: qual é o seu olhar? Se você brada sua fé em Deus e em nome Dele, em nome da ordem, já se perguntou o que faria seu Jesus Cristo nessa situação? Para mim, a morumbização do olhar é esse anestesiamento, essa falta de sentimento, esse não se importar com a sanguinária cruzada do rico contra o pobre, e que se utiliza da força do Estado, da ignorância e do despreparo de vários policiais, também oriundos da pobreza, para que, sem pena, ou consciência, se voltem contra os seus. Em toda regra há exceções e no Morumbi conheço gente realmente fina na sensibilidade. Mas é exceção. Astrid Fontenele, por exemplo, por amar profundamente seu filho preto, fez uma revolução e conseguiu que a escola rica dele frequentasse a escola pobre ao lado e vice e versa. Quebrou o muro que a maioria dos seus vizinhos do Morumbi quer preservar.

    Morumbi significa colina verde em Tupi. Representa uma coisa límpida, descarregada de ódio, desprovida de toda a escrotidão que ronda a prataria desumana de muitas mesas. Morumbi ficou significando algo oposto à beleza de sua etimologia.Talvez ali muito poucos se importem quando matam um guardião tupi, o inventor do nome do bairro. Talvez nem saibam a origem do nome. O espírito da colina verde pede amor e não o descaso que essa morumbização do olhar tem significado. É difícil nesse momento escrever essa crônica, sem que doa o meu peito. Na minha página, um a um, com paciência, respondi a cada tentativa de justificar a matança: então porque dançam devem morrer? Porque usam drogas devem ser assassinados? Porque gostam de sexo também? É pena de morte então? Pena de morte para quem?

    É bom ficarmos de olho porque quem está anestesiado não sente que está anestesiado. Claro, né? Então, repare se o seu olhar não está desfalcado da sensibilização da realidade. O Morumbi é vizinho de Paraisópolis. Expõe o jogo sujo da desigualdade. Criminalizar quem sempre perde o jogo empobrece muito a riqueza. Essa não tem o meu respeito. Ao final do dia, lendo as mensagens, vi que uma delas tinha espelho no meu peito. Vinha de Cláudio Jorge, meu grande amigo, grande músico e compositor que amo e respeito: “Putz, o exercício para não ter ódio está me matando”.

  • Um dia o engenho das ‘Donatas’ pega fogo

    Um dia o engenho das ‘Donatas’ pega fogo

     

    Por Marcos Rezende*

    Foram muitas as justificativas da “Casa Grande” para manter as suas posturas de mitológicos(as) democratas raciais. Ouvimos dizer que Donata, a diretora da Vogue é “boa e carinhosa” (Ivete Sangalo), que o sentimento dos críticos e das críticas era algo de rancor ou desrespeito, algo de quem os olhos “espreitavam por detrás do buraco da fechadura das redes sociais, muitos indignados, […] porque privados de participação no convescote […]” (Raul Monteiro, jornalista baiano).

    Achando pouco concordar com o projeto punitivo de Moro que amplia o excludente de ilicitude para policiais e reforça o extermínio do povo negro, Rui Costa, o governador do Estado mais negro do Brasil, participa da festa faz dancinha e posta nas redes sociais.

    Bom senso mesmo quem teve foi o Terreiro do Gantois, que cancelou a continuação da festa (sim, a última etapa do aniversário seria no espaço religioso) em respeito à ancestralidade do nosso povo.

    Enquanto isso, nessas últimas duas semanas, nos Estados Unidos, vários fatores demonstram como personalidades negras tem se comportado ou deveriam se comportar. A exemplo da cantora Rihanna, que não aceitou cantar no maior evento esportivo do País, a final do Superbowl, em respeito e homenagem ao jogador Kaepernick, que durante a execução do hino nacional se ajoelhava em sinal de protesto contra o racismo existente nos Estados Unidos e acabou sendo criticado por Trump e hoje está sem contrato.

    Também o rapper Drake protestou, ontem à noite, ao ganhar o Grammy e, ao aparecer de surpresa na premiação, estabeleceu forte crítica à indústria da música e valorizou as pessoas que reconhecem os artistas. O mesmo fez o ator e cantor Childish Gambino, que ganhou 2 Grammys e não foi buscar. Kendrick Lamar também não compareceu em protesto.

    Inclusive os três foram convidados para se apresentar na cerimônia e não aceitaram acusando a instituição Grammy de racista.

    Com certeza os brancos no Brasil fazem questão em não tratar disso. Como se essa realidade não existisse.

    Estamos cansados deste racismo que prega uma bondade que nunca inclui negros e negras, salvo quando na condição de serviçais, aqueles que sempre são dignos dos subcontratos, ou ainda quando na condição de quem conseguiu se adequar às regras da “Casa Grande” (por uma questão de sobrevivência, eu prefiro pensar). Não adianta pregar (falso) altruísmo, quando não se abre mão de seus próprios privilégios para que haja reparação.

    As críticas não se dão pela pobreza da Bahia, Raul Monteiro, pois ela não é pobre. Muito pelo contrário! A Bahia é de uma riqueza incomparável, seja pela grandeza de sua população, composta majoritariamente por mulheres negras, seja pelas suas riquezas naturais. As desigualdades que existem na Bahia, no Brasil e em grande parte do mundo se dão pelo racismo e pela concentração das riquezas nas mãos de uma minoria branca, ainda resquício do patriarcado de um Brasil colonial e escravocrata.

    Afeto, amor ao próximo ou qualquer altruísmo não são compatíveis com um país que foi o último a abolir o trabalho escravo. Ou melhor, a abolir o trabalho escravo do ponto de vista formal, já que a escravização dos corpos e da força de trabalho da população negra ainda se mantém como uma constante no Brasil. Negros e negras não são alvo da afetividade da elite branca brasileira, pois uma relação afetiva não permite a concentração de tantos privilégios para uns (umas) em detrimentos de outros (as). O nome que se dá a isso é subjugação, como estratégia do racismo de manter negras e negros no lugar do ostracismo serviçal.

    A perversidade é tão grande que as profissionais, baianas negras, sentem-se obrigadas a sair em defesa dos seus algozes, assim como negras e negros eram “obrigados” a serem “pretos (as) da “Casa Grande”. Assim, o racismo se retroalimenta, com um altruísmo deletério e seletivo, onde negras e negros são queridos quando se encontram nas “senzalas” contemporâneas, preferencialmente com vestes e poses que fazem alusão à condição de mucamas. O racismo que estrutura o nosso País não pode se naturalizar nem muito menos ser atenuado por um pedido de perdão e sob a justificativa de (falso) afeto.

    Já que não abrem mão das heranças e privilégios do processo de escravização, se assumam racistas e entendam que um dia o engenho pega fogo!

    *Marcos Rezende, Ogan, Historiador, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela UFBA e Coordenador de Relações Internacionais do Coletivo de Entidades Negras (CEN)