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  • A fogueira do Grande Inquisidor

    A fogueira do Grande Inquisidor

    Ao escrever O Grande Inquisidor, um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance “Os Irmãos Karamazov”, Fiódor Dostoiévski, em 1879, parece que estava revelando a Inquisição em pleno vapor no Brasil, em 2020, sob o arbítrio de muitos Grandes Inquisidores, disfarçados.

    Por Gilvander Moreira[1]


    Lobos em pele de ovelhas, com sede de sangue, continuam atiçando a fogueira da fome, na qual o estômago de mais de 10 milhões de irmãs e irmãos nossos ronca e faz o corpo tremer como se estivesse sendo eletrocutado por fios elétricos de tortura. Mães e avós muitas vezes têm que reprimir as lágrimas para não chorar na presença de filhos/as e netos/as implorando por um pedaço de pão. Centenas de agrotóxicos, que não são defensivos agrícolas, mas produtos tóxicos, injetam arma química no prato do povo brasileiro que, ao comer, está contraindo câncer, obedecendo cegamente os ditames de um mercado idolatrado. Agronegociantes com exagero de agrotóxico mandam para a fogueira do câncer mais de 700 mil pessoas por ano. Por ano, mais de 250 mil pessoas estão sendo mortas na fogueira da inquisição do câncer, epidemia causada principalmente pelo exagero de agrotóxicos e produtos enlatados. “Leite na caixinha é veneno puro”, me disse um trabalhador que trabalhou 18 anos em um laticínio de uma transnacional. Além disso, o agronegócio e seus executivos como Grandes Inquisidores seguem desertificando os territórios e empurrando os camponeses para as periferias das grandes cidades e jogando-os no meio de uma guerra civil não declarada. Agronegócio, um Grande Inquisidor, exterminador do futuro da humanidade.

    O Grande Inquisidor, em outras vestes e em faces metamorfoseadas no Brasil, também está instalado nas grandes mineradoras que como dragão do Apocalipse, de forma cruel e bárbara, seguem planejando e cometendo crimes/tragédias com requintes de crueldade, arrasando territórios, apunhalando as montanhas, exterminando as fontes de água e sacrificando rios e povos. Só em Minas Gerais, com mais de 300 anos de superexploração minerária, as empresas de mineração controlando o Estado deixaram um rastro de milhares de mortos, soterrados vivos ou morrendo um pouco a cada dia de silicose, depressão ou outras várias doenças contraídas em trabalhos extenuantes. Não podemos esquecer que dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a mineradora Vale, assassina contumaz e reincidente, “sepultou vivos 272 filhas e filhos nossos”, clamam os parentes que sobrevivem vertendo lágrimas. Foi um crime/tragédia da mineradora Vale em conluio com o Estado, em Brumadinho, MG. Esse crime continua e cresce todos os dias. “Todo dia é dia 25” se tornou lema dos milhares de vítimas do Grande Inquisidor também instalado nos grandes projetos de mineração que tritura a mãe terra, superexplora a dignidade da pessoa humana e apunhala mortalmente a dignidade de todos os seres vivos.

    A Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, da CPT, desde 1997, demonstra que mais de 30 mil trabalhadores continuam anualmente submetidos à situação análoga à de escravidão. O pelourinho, o chicote e o tronco continuam violentando a dignidade humana em monoculturas da cana, do eucalipto, do café, de grandes projetos de mineração, na construção civil, na produção de roupas e calçados, em telemarketing etc.

    Por integrar uma das dez Comissões do CNDH[1] sei que são ameaçados de morte no nosso país milhares de militantes que lutam por justiça social e direitos humanos fundamentais. Perseguir, ameaçar e tentar tirar a paz e o sono de quem luta por justiça social são tarefas macabras cumpridas por jagunços, milícias armadas com a cumplicidade de um Estado que aplica o direito penal máximo para os empobrecidos e o direito civil/empresarial benevolente para as grandes empresas. Desde 1985, a CPT publica anualmente um grande livro intitulado Conflitos no Campo Brasil, que demonstra que nos últimos 46 anos, mais de 3.000 lideranças camponesas foram assassinadas pelo Grande Inquisidor latifúndio-latifundiário-agronegócio de várias formas: por degola, enforcamento, metralhados, fuzilados, em emboscadas, pelas costas, da garupa de um motoqueiro cúmplice etc. E, pior, há impunidade em demasia para os jagunços e principalmente para os mandantes. E há punição em demasia para os pobres, negros e juventude de periferia.

    Precisamos recordar uma característica fundamental dos Evangelhos da Bíblia, principalmente dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): na primeira parte dos evangelhos sinóticos – 1ª fase da missão de Jesus Cristo -, a característica básica é a SOLIDARIEDADE, com ternura, compaixão e misericórdia. Entretanto, no meio da missão acontece uma “crise galilaica”: Jesus faz análise de conjuntura e descobre que está sendo ingênuo, pois mesmo fazendo os milagres no varejo, via processo de solidariedade, está aumentando o número de famintos, de paralisados, de cegados, de excluídos. Jesus percebe que precisa dar uma guinada no rumo da missão e passar a denunciar os podres poderes da religião, da política e da economia e quem reproduz estes poderes. Por isso, na segunda parte dos evangelhos sinóticos – 2ª fase da missão pública de Jesus -, a característica básica passa a ser LUTA POR JUSTIÇA. Jesus Cristo foi condenado à morte não apenas porque era solidário, mas principalmente porque lutou por justiça e, por isso, incomodou os podres poderes da religião, da política e da economia.

    A lógica de democracia formal e representativa é outro Grande Inquisidor do povo ao vender a ideia mentirosa de que basta votar em eleições com regras que beneficiam “os de cima” para se chegar à democracia real, econômica e social. Cruel ilusão, pois entra eleição e sai eleição e o tal de fulano ainda é pior …

    O sistema capitalista, máquina de moer vidas, é O Grande Inquisidor Mor, pois sequestra a terra no campo e na cidade em propriedade privada capitalista como base para promover o capital superexplorando a dignidade da pessoa humana, da classe trabalhadora e da classe camponesa. A manutenção da latifundiarização no campo brasileiro e da especulação imobiliária nas cidades são bases materiais objetivas – Um Grande Inquisidor Mor – que reproduz a inquisição, a repressão, a violência e o enforcamento do povo cotidianamente, de muitas formas.

    Na sociedade capitalista O Grande Inquisidor inquire, tortura, faz guerra e mata em nome de Deus. Eis um exemplo: um cozinheiro dos freis carmelitas, em Houston, descendente de latino-americanos, foi soldado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Em julho de 1997, todo piedoso, com camiseta de Nossa Senhora de Guadalupe e escapulário no pescoço, toda vez que me via, pedia para eu o abençoar. Devoto piedoso, um dia me disse: “Na Guerra do Vietnã, eu era soldado paraquedista. A gente pulava do avião e já caía no meio de uma comunidade e eu, com a metralhadora na mão disparava à vontade. Só eu matei mais de 500 vietnamitas”. Quando o cozinheiro piedoso me disse isso, estarrecido, eu perguntei a ele: “Você não se arrepende de ter matado tanta gente?” Ele, altaneiro, me disse: “De jeito nenhum. Estávamos lá no Vietnã em nome de Deus, éramos os defensores de Deus. Guerreávamos contra os comunistas ateus e filhos do demônio.” O cozinheiro piedoso meteu a mão no bolso e me mostrou uma nota de dólar onde estava a inscrição “we trust in God” (Nós acreditamos em Deus). E acrescentou: “Se não fôssemos nós lá na guerra contra os vietnamitas, o demônio teria tomado conta do mundo, pois para eles “a religião é ópio do povo.” Naquele momento, percebi que os capitalistas se dizem pessoas religiosas, mas na prática são grandes inquisidores cotidianamente, abstratamente dizem que acreditam em Deus, na prática são idólatras, pois matam irmãos como Caim.

    Entretanto, a história demonstra que o Grande Inquisidor não tem a última palavra. Os Grandes Inquisidores são jogados na lata de lixo da história e quem faz e entra para a história são os torturados e matados pelo Grande Inquisidor. Nessa linha, o germe da revolução que superará o capitalismo, essa máquina feroz de moer vidas, está inoculado em Assentamentos para milhares de famílias acampadas na luta pela reforma agrária, está nas Comunidades Indígenas, Quilombolas e muitos outros Povos Tradicionais que enfrentam O Grande Inquisidor cotidianamente. Só em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, 30 mil famílias se libertaram da cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor construindo 30 mil casas em 119 ocupações, enfrentando o Tribunal, jagunços, tropa de choque, resistindo a despejos e construindo “debaixo pra cima e de dentro pra fora” uma cidade que caiba todas e todos. Assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia, todos/as que são submetidos a processos inquisitoriais também ressurgem, combatendo o bom combate e construindo esperança e lutas inspiradoras pelo bem comum. Sigamos na luta como discípulos/as de todos/as que foram vítimas do Grande Inquisidor, seja no poder religioso, político ou econômico

    22/10/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    [2] Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

    Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Francisco de Assis nos inspira e nos interpela – Por frei Gilvander – 20/10/2020

    2 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020

    3 – Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

    4 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    5 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    6 – Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

    7 – Não jogue agrotóxicos na terra/agricultura familiar/agroindústria. Assentamento Padre Jésus. Vídeo 6

    8 – O que as mineradoras estão causando em Minas Gerais? Por Frei Gilvander, em Live, da ADUENF – 23/7/20


  • Novo normal: Brasil tem mais de mil mortes por dia e governantes festejam o tal “platô”

    Novo normal: Brasil tem mais de mil mortes por dia e governantes festejam o tal “platô”

    Por Ricardo Melo*

    A pandemia do coronavírus está fora de controle em todo o planeta. Sintomático: o país considerado o mais desenvolvido do mundo, os Estados Unidos, meca do capital financeiro, é incapaz de deter as mortes que se acumulam aos milhares. Lidera o ranking da morbidez. Atrás dele, disputando o pódium do genocídio, está o Brasil de Jair Bolsonaro.

    Tem se falado muito sobre o primado da ciência, bla, bla bla. É bom que se aposte na certeza científica contra as feitiçarias, charlatanices e vendedores de remédios contra piolhos como salvação da humanidade. Ou contra mercadores de cloroquina que só fazem encher os bolsos(naros) de um dinheiro extra.

    Os fatos, porém, ultrapassam este debate. Vamos falar do Brasil. Um governador como João Dória comemora que São Paulo aparentemente atingiu um tal “platô”. “Temos y infectados, x mortes e a situação parece estar se estabilizando.”   

    Ei, que negócio é este? Como assim? Tem gente morrendo. E não é madame que acha que morador de rua é folgado e gosta de viver ao relento. São na maioria trabalhadoras e trabalhadores abandonados à própria sorte e sem condições de se defender. Os números são inequívocos. Há um corte social evidente entre as vítimas. Aqui no Brasil, nos EUA e pelo mundo afora.

    Há dinheiro de sobra rodando pelo mundo para debelar uma pandemia como esta. Ninguém de bom senso acredita que a colaboração entre cientistas de ponta de todo o mundo não poderia achar uma saída rápida para aplacar um vírus. Mas o que se vê é uma guerra entre laboratórios multinacionais gananciosos para ver quem vai chegar primeiro à pedra filosofal. 

    Enquanto isso, além das vítimas do vírus, assiste-se ao sacrifício desumano de milhares de profissionais de saúde que tentam fazer o que o capitalismo predador não faz. Salvar vidas. Eles trabalham sem proteção, em sistemas públicos de saúde desmantelados e entregues ao olho gordo do dinheiro grosso.  As histórias de enfermeiros e médicos que morreram vítimas do vírus ou se mataram por não conseguir impedir a morte de pacientes recheiam as páginas dos principais jornais do mundo. 

     

    Novo normal no Jornal Nacional

    Por aqui, a tragédia também virou o novo normal. O Jornal Nacional, da Rede Globo, já trata o assunto como uma seção. Colocou um apresentador que parece ter saído de uma impressora 3D para falar sobre os números do dia. Como se estivesse falando das cotações da bolsa ou do dólar. Ou da previsão do tempo. “Amanhã vão morrer tantos, sobreviver outros. Agora é com você, Bonner”. A rede Globo sempre será a Globo, a mesma que “descobriu” que havia uma ditadura no Brasil com quase meio século de atraso.

    E seguem os enterros. Literalmente.

    Vamos falar claro: as medidas de relaxamento do isolamento social são criminosas. Isto mesmo, senhor Dória e outros governadores e prefeitos. Vejam o caso da Índia e de outros países. Enquanto não houver uma vacina ou uma solução intermediária, a exposição de cidadãos a céu aberto equivale a uma sentença de morte distribuída por amostragem.

    Sobre Bolsonaro é inútil falar. Faz tempo, cerca de trinta anos, que ele tá pouco se lixando para o Brasil. Tá mais preocupado com Queiróz e dona Márcia (a propósito: para quem não sabe, a avó da mulher dele, Michelle Bolsonaro, foi recolhida no meio da rua com o coronavírus. Neste momento, luta contra a morte num hospital ).

    Enfim, é um escândalo. Os culpados estão identificados. São as autoridades, aliadas do capital gordo, que menosprezam a vida dos que não têm como se proteger e pregam o libera geral. Dane-se o povo. Aquelas excelências estão resguardadas por grandes hospitais, planos de saúde e benesses de todo tipo. Trump, Bolsonaro e Dória estão sãos e salvos. 

    Para a maioria, sobra o “platô” das covas.

     

    *Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.

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  • Pandemia: 1% mais rico do País não está nem aí para as mortes dos pobres

    Pandemia: 1% mais rico do País não está nem aí para as mortes dos pobres

    Por Ricardo Melo*
    A que ponto chegamos. Em meio a uma praga que diariamente fulmina milhares de vidas mundo afora, lemos, ouvimos, assistimos __até pelo confinamento compulsório__, supostos luminares preocupados com o que virá depois.
    Uma pergunta: e o que está acontecendo agora?
    É impressionante ver “especialistas” contabilizarem mortos “inevitáveis”. Chegou-se ao cúmulo de uma assessora de Bolsonaro, Solange Vieira, registrar que os óbitos de agora são velhos em sua maioria e aliviam as contas da Previdência.Assim informam os noticiários, embora ela agora tente desesperadamente desmentir.
    Justiça seja feita, não se trata apenas do Brasil. Na maioria dos países dominados pelo grande capital, a grande preocupação é com o fim dos isolamentos, das quarentenas, com a reabertura do comércio, a reativação da indústria e a “retomada da economia”.
    Mortos? E daí?
    Detalhe: briga entre Moro e Bolsonaro, ambos walking deads, rusgas com o Supremo, Congresso, embates com governadores, claro, têm sua importância. Mas o que o povo quer e precisa saber é o seguinte:

    Cadê o auxílio miserável de R$ 600 que 1 em cada três brasileiros ainda não recebeu? Cadê os testes? Cadê os leitos de UTI? Cadê os respiradores? Cadê a esperança? Cadê?

    Tantas perguntas sem respostas criam fogueiras de angústia e desassossego: Quem vai morrer amanhã? Qual parente ou amigo vou ver num caixão à distância? E quando for comigo? Com as pessoas que amo?
    É uma vergonha.
    Poucos dos endinheirados se importam com as mortes que se acumulam HOJE. Em plena avenida Brasil, em São Paulo, o drive thru do chiquérrimo Laboratório Fleury tem fila de carros de luxo na porta. Dentro deles, pessoas que fazem os testes para Covid-19: R$ 450 para saber se você está com o vírus agora; R$ 420 para saber se você já foi contaminado e, portanto, tem anticorpos para a doença. Total: R$ 970 por cabeça. Enquanto isso, os pobres morrem sufocados, afogando-se no seco, sem nem ao menos terem confirmada a causa de tanto sofrimento. É por essas que a doença hoje está matando o povo mais carente na imensa maioria dos casos.
    Porta-vozes dos tubarões do 1% mais rico da população nem enrubescem ao afirmar que, não fossem as favelas, a situação já estaria sob controle (Guilherme Benchimol, sócio do Itaú, criador da XP investimentos, o caça níqueis dos incautos, milionários lavadores de dinheiro e que tem como garoto propaganda gente como Luciano Huck).
    Sei que prego no deserto dominado pela mídia oficial e seus comparsas. Mas a verdade tem que ser dita.
    Os bilhões e bilhões de dólares nas mãos de uns poucos seriam mais do que suficientes para socorrer os milhões que hoje estão à míngua, sem direito a um tratamento digno.
    Tem mais: a tecnologia high tech, capaz de tantas proezas, certamente tem condições de encontrar em tempo recorde uma vacina contra um vírus que não passa de uma sequência de outros que já surgiram.
    Mas não. O que se observa é uma disputa entre laboratórios farmacêuticos poderosos para ver quem chega primeiro a um remédio ou a uma vacina eficaz para, assim, disparar nas bolsas de valores. Pura especulação. Não há colaboração entre cientistas de ponta. Tampouco os grandes conglomerados multinacionais sentem-se obrigados a reorientar sua produção para equipamentos voltados a salvar as milhares de vida perdidas diariamente. Estão mais preocupados em demitir e cortar salários sob o argumento de que “a economia parou”.
    Agora, virou moda falar em “novo normal”. Uma estupidez à altura dos cínicos que engordam seus cofres à custa das vidas dos mais pobres e do sucateamento dos sistemas públicos de saúde promovido pelo neo-liberalismo atroz.
    O que precisamos é inaugurar um tempo em que a solidariedade e o respeito aos desvalidos falem mais alto que a ganância desmedida imposta pelo capitalismo imperialista.

    *Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.

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    RICARDO MELO: Brasil à deriva, salve-se quem puder!

     

  • Vidas ou lucro? Modelo capitalista neoliberal entra em xeque com pandemia do Novo Coronavírus

    Vidas ou lucro? Modelo capitalista neoliberal entra em xeque com pandemia do Novo Coronavírus

    Marcos Rezende*

    O que dizer do “tão promissor” mundo livre, quando o seu país líder, os EUA, é a nação com o maior número de mortos pelo Coronavírus? No momento em que escrevo esse breve texto, já se somam 105.000 mil mortos pelo Coronavírus no mundo e os EUA ultrapassam a Itália e alcançam a marca de mais de 19.600 vidas perdidas para o novo Corona, ou melhor, para a potência homicida do capital.

    Quando todos os sinais recomendavam parar, líderes do capitalismo optaram por seguir com a rotina das vidas robotizadas que sustentam a riqueza de uma ínfima minoria, mesmo que essa desobediência custe essas próprias vidas. O capital robotiza seres humanos e faz com que pessoas priorizem enriquecer alguém em lugar de preservar a própria vida e a de seus pares. Foi assim que Trump deu ordem para que quase 20.000 cidadãos estadunidenses fossem mortos, dizendo que, em nome do capital e da concentração de riqueza, os EUA não iriam parar.

    Foi este também o pensamento do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que hoje se encontra internado em uma UTI em virtude da contaminação pelo Coronavírus e do agravamento do quadro da doença. Johnson voltou atrás em seu posicionamento e se permitiu orientar pela ciência, que apontava que com a estratégia inicial de não Isolamento mais de 250.000 pessoas viriam a óbito no Reino Unido. Esta mesma pesquisa sinalizava que os EUA poderiam alcançar números de morte entre 1 milhão e 2,2 milhões, caso o comportamento homicida de Trump se mantivesse com a mesma força que no início da Pandemia.

    No Brasil, que neste momento há 1.090 mortos e 20.247 pessoas infectadas, número que não pode ser considerado baixo, o presidente Bolsonaro teima em manter o mesmo tipo de postura que levou os EUA a ser o país com mais mortes por Coronavírus no mundo. Enquanto os governadores dos Estados brasileiros lutam para manter as pessoas em isolamento domiciliar, o presidente incentiva a população brasileira a ir para rua e tem colecionado maus exemplos para o povo do Brasil. Como se não bastasse a postura homicida de Bolsonaro, o Brasil ainda conta com um Ministro da Saúde que titubeou nos primeiros dias de combate ao COVID-19 frente à pressão política do Chefe do Executivo, colocando em cheque o próprio juramento de salvar vidas, e que continua variando a depender do nível da “fritura” pública a que o submetem o presidente, seus filhos e seguidores.

    A postura dos defensores do capital é responsável pelo número excessivo de mortes de pessoas contaminadas pelo Coronavírus ocorridas em todo o mundo. Se alguém ainda tinha alguma dúvida das mazelas do capitalismo, o Coronavírus desmonta qualquer justificativa para que estas dúvidas permaneçam, fazendo até cair o véu que tapava os olhos de defensores do neoliberal “Estado mínimo”. Quando, em nome da concentração de riqueza, se permite que pessoas tenham as suas vidas colocadas em risco, tem-se a certeza de que o capitalismo se sustenta com a morte dos nossos iguais.

    Mais que isso, o fato de o capitalismo ter a desigualdade racial como estrutura que lhe é fundante faz com que os dados sinalizem que a população negra tem o maior número de mortos vítimas do Coronavírus, considerando a proporção de negros infectados. No Brasil, por exemplo, os negros representam 25% dos infectados, contudo chegam a 32,8% dos mortos, segundo informações publicadas pelo G1. Isso joga luz sobre o cenário das desigualdades sociais e as consequentes vulnerabilidades em que a população negra, em regra, se encontra inserida.

    Não sei dimensionar quais as lições que o Coronavírus ainda pode nos deixar. Mas já podemos dizer que este novo vírus não nos deixa ter dúvidas de que as nossas vidas são moedas de troca para que os 2.153 bilionários do mundo concentrem riqueza maior do que 4,6 bilhões de pessoas, algo em torno de 60% da população global. Precisamos desobedecer os líderes mundiais que oferecem as nossas vidas para que os ricos aumentem seus patrimônios. Precisamos ficar em casa! A lógica do mundo livre é homicida e cada líder que incentivar seu povo a seguir nas ruas é um assassino em série. Que recriemos um novo modelo de sociedade onde as vidas e a igualdade sejam as riquezas pelas quais dedicaremos os nossos esforços. Venceremos o Coronavírus e preservaremos a todos, afinal as vidas são o que realmente importa.

     

    *Marcos Rezende é historiador, mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela Faculdade de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ativista do movimento negro brasileiro, sendo membro-fundador do CEN (Coletivo de Entidades Negras), instituição da luta antirracista presente e 17 Estados do Brasil

  • ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

    ELISA LUCINDA: Cadê o futuro que estava aqui?

    Tudo cancelado. Era março e, de repente, o futuro não estava mais ali, a ação nas ruas exigindo saber quem mandou matar Marielle,  minha apresentação no teatro São Pedro em POA, o curso de literatura viva para professores que participarão da primeira Festa da Palavra em Itaúnas… tudo se pulverizou em materialidade imaginada só e sem o “quando”. Estávamos todos ansiosos indo para o futuro quando o mundo parou de ir. Se bem que eu andava reclamando de gastar tanto o meu verbo ir. A vida vai levando a gente num frenesi que, muitas vezes, não se tem tempo nem de desfazer as malas porque uma viagem se sobrepõe à outra. E o pior, isso era bom, isso era o “sucesso”.  

    Sem perceber, como escravos robotizados, entramos na doida corrida do ouro, porque dentro do sistema capitalista de altos lucros para os senhores, tudo nosso é muito caro. Então tem que se ganhar muito dinheiro pra se viver com a mínima dignidade: saúde, escola boa, comida, roupa, transporte. Tudo caro. Tudo escrotamente caro. E quem mais trabalha, menos ganha. A comida é cara. Uma passagem de avião, comprada na hora de viajar, despudoradamente te cobra mais porque sabe que você precisa, que é uma emergência. Aproveita-se o momento do desespero, é escancaradamente a taxa desespero! É isso que o capitalismo não quer que pare. Uma máquina de moer gente para transformar em dinheiro! É isso! Estávamos sendo moídos por dentro, lutando pesado para achar um canto para nossa necessária aula de Yoga, de música, um telefonema para os amigos. Congestionadíssimo, o tempo presente, ia sempre acumulado das tarefas de ontem, impossíveis de serem cumpridas num só dia, e as de hoje que, se não fosse a vida on line não pertenceriam ao tempo presente  simultaneamente. Esperávamos cartas por dias. Agora, elas chegam de toda parte do mundo dentro do mesmo “agora” em que apenas se esperavam cartas há vinte anos atrás. O agora não mudou de tamanho. É certo que pode ser imenso, mas é um agora apenas.

     

    O novo vazio: São Paulo confinada pela lente de Victor Moriyama
    O novo vazio: São Paulo confinada pela lente de Victor Moriyama

            A verdade é que desembarcamos dentro de nossas casas violentamente.

    Não tem mais aquela reunião física, aquele trabalho foi pra onde ninguém sabe, nem quando. Fora comprar comida, pra que comprar um vestido agora? Pra quê? Aonde vamos? Não vamos. Há uma hora em que o dinheiro vai acabar. O que faremos? É só uma questão de prazo. Isso me aflige e ao mesmo tempo me leva para o espaço da ignorância. Aquele em que fico quando ainda não sei o que eu vou fazer, que cena vou escrever, qual poema, que arco dramático terá esse romance ou essa  peça. É profícuo esse lugar. É vazio. Mas é nele que vai brotar o que houver. Estou perdida. Triste e estranhamente feliz. Tenho alguns compromissos virtuais, reuniões, aulas, mas, de cara, uma vida inteira voltou pra mim sem horas marcadas. Molho as plantas, cozinho, malho, amo, namoro meu amor, e as coisas estão todas animadas sabendo que voltei. No ateliê, recentemente organizado por uma especialista, a fofoca dos lápis, purpurinas, colas, tesouras e papéis de texturas e cores diversas é imensa. Também me aguardam roupas para tingir, revista da biblioteca, esculturas para colar, e muitos cadernos com seus manuscritos decifráveis e a serem digitados. O negócio é animado. Os livros, meu Deus, tantos livros se assanhando pra mim. Lerei todos? 

    Tudo se conecta e implora pela empatia, pelas correntes virtuais de solidariedade, pelo mundo desintoxicado de seu modo egoísta. Esse é o momento para a gente distribuir, olhar para aquilo que não usamos, compartilhar. Os dias de isolamento da humanidade precisam nos levar a uma nova sociedade. Estávamos isolados antes. Vivendo para derrotar o outro. 

    Creiam-me: o mundo muito torto conseguiu chegar aqui até com a fé sendo um produto de manipulação e de grana ao mesmo tempo. Ou seja, um mundo miserável, do ponto de vista espiritual. Amaldiçoado seja o templo que cobra prestação dos fiéis, e o pior,  que tem a má fé de os aglomerar em tempos de contágio onde o ser humano é o único e perigoso hospedeiro e transmissor da devastadora doença. E o presidente chamando o povo para a morte. Será que é ideia dele matar esses crentes? Já que ele sabe que não são todos atletas. Ou esse Deus tem preferências, é injusto, e só vai proteger do vírus os que pagarem o dízimo? Será que é por motivo comercial que os templos não podem parar? Se eu fosse evangélico, ia achar que o presidente está de má fé comigo. O Deus que faz tal distinção não pode ser chamado de Deus. Este é um tipo de cargo que não aceita injustos. Sem citar ainda os produtos vendidos nos templos e tudo isso é negociado, passa de mão em mão entre fiel e vendedor. A verdade é que a grana é que não pode parar. Muitos templos são negócios. Quem quer que não fiquemos isolados agora está apavorado em ficar sem dinheiro, perder o seu altíssimo lucro e fala-se em economia e como se essa pudesse existir sem a mão do trabalhador. Como se não fosse uma produção humana. Quem tem mais dinheiro está achando que tem mais direito à vida do que seu empregado doméstico que ele não liberou na quarentena. 

    Fiquemos em casa, reinventemos a vida. Há muito o dinheiro está em luta com o amor. Usando o seu nome em vão. Até bancos falam levianamente de amor e felicidade e lucram trilhões nos emprestando dinheiro a juros cruéis de dar inveja à mais alta agiotagem, fazendo refém a humanidade. Agora é hora de eles enfiarem as mãos nos próprios bolsos e tirarem as mãos dos nossos. É bom que a reparação tão logo aconteça. Urge.

    Enquanto isso sinto que a Natureza está gostando. As praias estão desertas. Ouvem-se mil vozes de pássaros em Copacabana. Espécies em extinção voltaram a dar as caras. Os céus estão mais azuis e estrelados em toda parte, de Pequim a Sampa, e o número de desastres automobilísticos nas estradas despencou geral. Golfinhos aparecem nas orlas, brincam. O planeta  respira, desocupamos seus poros. Parece que a Terra descansa de nós. Eu sinto, ela está farta de nós, da nossa presença tóxica, predatória, destruindo e pisando afoitos com a bota da pressa querendo fazer o tudo. Seguíamos vorazes, velozes e furiosos, em busca do pseudo próximo novo. De repente, aquele futuro imediato não será mais daqui a pouco. Vai demorar e será outro. Estamos sem quando. Esse importantíssimo advérbio de tempo que nos guiava como uma estrela na noite escura do inédito. Sabemos que a ciência deve ser ouvida, a arte compartilhada para nutrição geral e que o Estado, representante do povo que é, tem que segurar a estrutura e nos manter vivos até chegarmos à nova ordem. Que encontre esta grana. Que milionários usem os altos lucros agora para nos manter viáveis se quiserem ter gente viva consumindo quando o futuro voltar a ser possível.

    Abaixo os neoliberalistas, abaixo separatistas, abaixo a vida escrota e competitiva até o talo. Coisa tensa. Pois o jogo mudou. O mundo todo se tornou contaminador e contaminável. Neste momento constatamos que paz, igualdade e sobrevivência não são assuntos particulares. Renomados indígenas afirmam que o futuro é um delírio branco pois, no encalço cego deste futuro desprezamos passado e presente, que são simplesmente o seu chão. Estivemos todos muito tempo fora de casa. A mãe Terra nos  botou pra dentro. Que nos seja lição. O que do que fomos servirá para o novo mundo que surgirá depois da guerra? Já não somos mais os mesmos.

     

    Coluna Cercadinho de  palavras, Elisa Lucinda, outono inusitado, 2020

     

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  • Expedição ao Planeta dos Macacos?

    Expedição ao Planeta dos Macacos?

    por Luís Andrés Sanabria Zaniboni,

     

    – Yll? Você já se perguntou…. bem, se alguém viverá no terceiro planeta?
    – No terceiro planeta não pode haver vida – pacientemente explicou o Sr. K – nossos cientistas descobriram que há muito oxigênio em sua atmosfera
    Ray Bradbury. Crônicas marcianas

    Quando falamos de esquerda e direita, testemunhamos uma história semelhante à do livro de ficção científica Planeta dos Macacos, de Pierre Boulle: um território áspero, onde muitos discursos e práticas sobreviveram a seus criadores, mas sua ressignificação e sua defesa acabaram jogando a favor dos lados antagônicos. Tendo a confusão como regra, esta sociedade de macacos construiu seu mundo com base na fadiga do pensamento crítico e na substituição deste por uma fé cega no “progresso” que as classes dominantes pregavam, assim invisibilizando as formas e as maneiras que permitiram a germinação e a reprodução de dominações e explorações em sua sociedade.

    Pensar as direitas em nossa região latino-americana e caribenha nos sugere compreender os tempos políticos para além das situações eleitorais, que são espaços confusos e distorcidos, onde se jogam dinâmicas de “marketing político” e falsas polarizações que colocam feminismos como Feminazis, ou que confrontam os trabalhadores entre si, evitando a abordagem crítica dos processos que estruturam nossas sociedades, que são os acordos das elites.

    No momento em que são escritas estas linhas, vivemos processos, na América Latina e no Caribe, de reconfiguração da correlação de forças em distintos níveis, que não conseguem encontrar sua interpretação na mera disputa eleitoral. O resultado é que a disputa eleitoral torna-se muito rasa, impossibilitando aprofundar as latências que permitiriam entender o surgimento das posições e dos sujeitos que configuram as opções de disputa em espaços culturais, políticos, econômicos e sociais.

    Democracias em alta-tensão

    Assim, podemos identificar uma primeira contribuição desta exploração: compreender que as direitas são propostas de sociedade e que os seus temas transcendem espaços eleitorais, de modo que as conformações das direitas também estendem seus territórios a espaços não-partidários e não-eleitorais (empresas, fundações etc.). Por esta razão, é necessário aprofundar a compreensão e análise das direitas em longos períodos de constituição, para mostrar suas relações e suas disputas com os contextos do sistema capitalista.

    Testemunhamos uma transição que questiona as formas e os modos de democracia representativa, onde a confusão de significados e sequestro dos sentidos são espaços em tensão que disputam diversos sujeitos individuais e coletivos. Em nossa sociedade, palavras como paz, trabalho ou família, encontram, nas discussões das mais diversas naturezas, uma variedade de significados e de sentidos contraditórios, que vão desde uma posição progressista até converter-se em um argumento conservador.

    Esta situação levou a uma constante polarização no interior das nossas sociedades, enriquecida por uma simplicidade que proporciona uma visão dicotômica em benefício das latências dominantes enraizadas, desse modo a hegemonia encontra os caminhos para consolidar o seu projeto em torno das elites da democracia de baixa intensidade.

    Assistimos uma era política dominada pelo processo eleitoral, que reduz a maioria das estratégias e posições para meros discursos e práticas eleitorais. Esta tendência corroeu seriamente nossas ligações entre sujeitos, até chegar a simplificar nossas relações político-culturais para meras ações e encontros instrumentalizados, comícios ou conversas, sem processos pedagógicos ou problematização de nossas realidades.

    Seguindo este cenário, podemos ver a preeminência de marketing político em nossas ações, ou seja, o domínio da forma como mensagem, despolitizando-se seu conteúdo e respondendo a um conteúdo meramente estético, através de estereótipos dominantes para buscar uma falsa simpatia e empatia de setores da sociedade.

    Mas, enquanto essas duas tendências se acomodam em alguns espaços, muitos setores não tradicionais de política, como igrejas neopentecostais, entre outros grupos de fundamentalismo religioso, também conseguiram posicionar-se com um maior fortalecimento do conservadorismo. Podemos caracterizá-los com dois elementos desde onde é composta sua posição, uma pseudo-lei natural e uma moral inerente ao ser humano, este é o processo que podemos encontrar através da articulação que surgiu como movimento contra a “ideologia de gênero”.

    Direita: Quais territórios e articulações lhe dão forma?

    Uma vez neste ponto, é importante problematizar uma questão, ante o domínio da democracia representativa e sua carga eleitoral, as direitas são apresentadas como atores em disputa, mas diante do exposto, as direitas não são atores per se, mas concebem propostas de sociedades, é assim que podemos caracterizar algumas continuidades (capitalismo, patriarcalismo e colonialismo) que se manifestam nesses projetos:

    • a primazia do individualismo que encontra três espaços onde sua presença e prática são evidentes; a raiz do consumismo que reduz o indivíduo a consumidor, o aumento do personalismo como forma de gestão política ou a marca como elemento distintivo em política, anulando assim as formas e os modos coletivos dialógicos.

    • totalização do mercado, e ligada a esta mudança causada pelo capitalismo, vemos todos os dias os direitos adquiridos assistirem a uma metamorfose que os converte em serviços disponíveis para clientes, despolitizando sua gestão. É assim que o esvaziamento da política na democracia representativa e o cancelamento da incidência da maioria na gestão encontram seu lugar na centralidade da tecnocracia, despolitização da administração nas mãos dos peritos.

    • sintomaticamente descobrimos que a concentração e o controle dos meios de comunicação tem sido uma constante que tem proporcionado o posicionamento ideológico das elites e seu projeto dominante, combatendo as dissidências e construindo seus sentidos, mas também criminalizando e apropriando-se da narrativa, onde a judicialização da política é a amostra mais sutil na consolidação de sentidos e narrativas dominantes.

    Contudo, nos últimos 30 anos, temos visto como a cooptação e ressignificação de práticas pela direita conseguiram posicionar formas e modos que têm disputado nossas sociedades, gerando algumas adaptações:

    • o surgimento de um assistencialismo social focado na financeirização da política, uma forma de se transformar as articulações em meras transferências bancárias, permite a despolitização do diálogo como espaços de construção democrática, alienando contradições sociais da pobreza, por exemplo.
    • a preeminência de um discurso pós-ideológico que busca ignorar as relações socioculturais, econômicas e políticas como produtores de sentidos, e reduzir tudo a leis pseudo-naturais de matriz social darwiniana como referência, um exemplo disso é a propagação de posicionamentos relacionados à “Escola Sem Partido”.

    • o surgimento de um CEOcracia, a administração do público sob a dinâmica empresarial, como a forma que a “gestão” converte a política em gerenciamento de resultados e, uma vez mais, despolitiza os espaços.

    • O surgimento de tendências fundamentalistas religiosas neopentecostais causou uma emergência de atores com influência eleitoral dos postulados da teologia da prosperidade, que tem impactado a relação entre fé e política centrada na ideia do chamado divino de governar o reino por cristãos e a luta contra o mal que corrompe a sociedade (direitos sexuais e reprodutivos, diversidade sexual, por exemplo), a disputa tem gerado uma agenda religiosa sobre assuntos não-religiosos, alcançando uma posição moral conservadora.

    • judicialização da política: se argumentamos que cada vez mais o espaço político é apequenado, é identificável como a “justiça” assume um papel de mediador do que era política, mas assistimos como se tornou um instrumento de controle, por parte das elites dominantes, onde os andaimes existentes respondem mais à lógica da reprodução, e, portanto, o fenômeno da ideologia corrupção: é a capacidade narrativa de vincular processos de ações ilegais como sinais de tendência política.

    Esta descrição nos leva a pensar que pouco mudou e que estas sociedades que testemunham supostas mudanças de época, estão enfrentando o que nunca perdeu lugar na acumulação por espoliação: o capitalismo, o patriarcado e o colonialismo.

    As continuidades e adaptações que descrevemos, não só nos posicionam perante a necessidade de compreender os ciclos de acumulação, senão também de luta e resistência que têm permitido contestar a hegemonia de certos sentidos e práticas, colocando em evidência as rupturas do tecido social como o crescimento da xenofobia, do racismo, da violência contra as mulheres e à diversidade sexual, mas também os processos de concentração de riqueza em poucas mãos.

    É necessário disputar a partir de diferentes territórios corpos, uma vez que tentamos mostrar que as direitas não são apenas partidos políticos a derrotar: são projetos de dominação e exploração que ampliam suas formas e modos através de nossas sociedades, organizações, coletivos, que constroem sentidos e práticas em benefício da desapropriação dos bens comuns e da acumulação concentrada de capital.

    A abertura e integração das direitas em nossas sociedades e sua participação nos processos democráticos formais nos levam a questionar os elementos que são disputados na construção dos sentidos e práticas, que não passam necessariamente de forma protagônica pelas instituições e pelos processos formais, mas correspondem a latências que estão “por baixo” em constante disputa e reposicionamento.

    O planeta dos macacos é uma metáfora para uma sociedade que tecia sua existência através da história dominante: a segurança do mito, a totalização do inimigo como aquele outro ente estranho, alienígena e dominado que não pode nos contaminar, e o poder da disciplina. Isso nos chama a refletir sobre as propostas de sociedades que vivemos e sentimos, mas também aquelas que tentamos construir, especialmente quando elas trazem as histórias imaculadas, mas as práticas gestantes de continuidade.

     

    * Luís Andrés Sanabria Zaniboni é assistente do centro de Estudios y Publicaciones Alforja

    ** Tradução por César Locatelli. Revisão por Lucila Longo