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  • Geledés: 30 anos de História!

    Geledés: 30 anos de História!

    Poema do desterro

    Os dias de abril vão acabando com a gente

    17 em 2016

    04 em 2018

    07 em 2018

    Dias que lembram o abaixo de tudo a que nos relegam.

    Para que gargalhem as hienas, abutres  e vermes

    Não aguento mais o dia seguinte

    Não tenho mais coração

    Arrancaram-no com o Power-point  da desfaçatez

    As balas do ódio

    O  jejum manipulador de mentes

    A colheita das provas necessárias  à condenação política

    Os twittes dos milicos ameaçadores em cadeia nacional

    Não, não me peçam um coração para refazer o mundo

    Só tenho flecha

    Machado

    Alforje e cabaça

    Chamem os Orixás  à Terra

    À guerra e seus infindáveis começos

     

    Após saudar o tempo, esse tempo tumultuado em que vivemos e que nos é tão denso, tão pesado, saúdo Geledés-Instituto da Mulher Negra, seu nome e sobrenome, neste aniversário de três décadas.  Reverencio os processos transformadores da vida  das pessoas negras no Brasil, protagonizados por esta organização nos últimos 30 anos. Agradeço, particularmente, às transformações  ensejadas na minha vida, quando me acolheu, muito menina, ao 20 anos, no momento fundador, durante as sessões do Tribunal Winnie Mandela.

    A cidade que hospedava o evento, a São Paulo de 1988, cuja imagem vendida era de um lugar cinza tornou-se o mais belo  horizonte para mais uma migrante que eu viria a ser em 1991, em busca da vida na grande metrópole.

    Desejo saúde e vida longa ao Geledés – Instituto da Mulher Negra. Agradeço por terem me possibilitado fazer parte dessa história durante 13 anos. Agora que o tempo de minha saída da organização já ultrapassa o tempo que lá permaneci, a gradeço por esse convite generoso para que eu aqui esteja, neste lugar de honra, celebrando seus 30 anos. Com o coração em festa, agradeço. Nzaambi ye kwaatesa!

    Procurarei me ater ao tempo proposto para esta intervenção, mas, de antemão, peço desculpas se o extrapolar um pouquinho, peço vênia pela condição honrosa de ex-presidenta desta organização, 8 anos antes de a valorosa combatente Dilma Roussef utilizar esse termo para referir-se ao seu cargo de legítima presidenta eleita.

    Antes de um olhar mais detido sobre o tema dessa roda de conversa, as juventudes negras e os processos de educação, passearei por  nove pontos da história de Geledés e de seu legado para melhor contextualizá-lo. Mais do que nunca, o contexto é importante para que entendamos o tempo em que vivemos e para que possamos nos movimentar por ele. Por mim, passaria a tarde aqui discutindo o contexto, o tempo histórico, buscando convergir para nossa história particular várias pontas do novelo.

    O primeiro ponto, o mais relevante de todos é o nome. Pelo nome nos apresentamos ao mundo, dizemos quem somos e de onde viemos, a que tradição pertencemos. O nome é Geledés, um nome ioruba; o sobrenome, Instituto da Mulher Negra. Um nome que nos dizia àquela época, 18 anos antes de o encontro da CIAD na Salvador de 2006  instituir a diáspora africana como a 6ª região de África, Geledés nos dizia: “somos africanas e estamos em diáspora. Descendemos de mães ancestrais. Somos férteis e parideiras. Geramos a vida e a colocamos no mundo para andar, para fazer girar a roda. Não tememos o confronto ou a guerra. Disputamos os lugares de poder estabelecido, ao mesmo tempo em que construímos nossos próprios lugares de poder e essa concomitância é fundamental”. Tencionar o que está posto, abalar as estruturas da casa grande sempre foram prerrogativas dessas senhoras, assim as leio.

    Segundo ponto: ao criar Geledés-Instituto da Mulher Negra, suas fundadoras disseram 20 anos antes de Barack Obama, “sim, nós podemos!” Podemos inventar um mundo em que as mulheres negras sejam senhoras de seu tempo e de sua história. E este ato inaugural impulsionou e fortaleceu organizações de mulheres negras por todo o país, não só inspirou, para usar uma palavrinha da moda, mas efetivamente apoiou, dialogou, estabeleceu pontes, guarneceu processos. Geledés se apresentou como uma ideia; uma ideia iansânica de transformação; fez isso 30 anos antes de o Presidente Lula se definir como uma ideia que não morrerá.

    Terceiro ponto, Geledés posicionou a questão racial no campo dos Direitos Humanos. Sim, era necessário afirmar o óbvio: viver sem racismo é um direito humano, básico, fundamental.

    Quarto ponto, muito antes de a comunicação se tornar um imperativo da contemporaneidade para as organizações negras, Geledés criou e desenvolveu um programa de comunicação.

    Quinto ponto, Geledés estabeleceu relação respeitosa com a juventude negra e uma de suas manifestações culturais urbanas mais portentodas, o movimento Hip Hop. O projeto Rappers de Geledés, coordenado por Solimar Carneiro, provavelmente foi o responsável por, no início dos anos 1990, reivindicar e conseguir espaços para o Hip Hop como manifestação cultural, nos grandes jornais impressos de São Paulo. Pesquisem, procurem saber.  Uma geração de jovens negros formados pelo Projeto Rappers, hoje respeitáveis quarentões, consolidaram-se como músicos, artistas visuais e da dança, performadores, educadores, produtores culturais, agentes sociais com atuação em conselhos tutelares, abrigos e outros espaços de proteção e garantia de direitos para crianças, adolescentes e jovens. Procurem saber. O projeto Rappers editou a revista Pode crê!, inspiração (de novo, a palavrinha da moda) para a revista Raça Brasil, de 1996. Procurem saber, leiam o editorial do primeiro número da Raça. O projeto Rappers realizou um festival de Break na São Bento, a estação São Bento de metrô. Local de (re) existência da moçada, em que se precisava enfrentar a polícia todos os sábados. Geledés inverteu a lógica e ao realizar o festival, solicitou ao poder público, proteção para que aquelas meninas e meninos fizessem sua festa num lugar público. O projeto rappers desenvolveu um processo intenso de formação política que apoiou a constituição de jovens lideranças negras consequentes e com mais poder de desestabilização do sistema. Muitas dessas pessoas continuam na cena pública dando o seu recado.

    Sexto ponto, Geledés e as ações afirmativas de promoção da igualdade racial. Qualquer estudo sério e abrangente que se faça sobre as ações afirmativas para a população negra no Brasil, depois de escrutinar as políticas de governo seguintes à realização da 3ª Conferência Mundial Contra o racismo em Durban, cidade da África do Sul, em 2001, precisa se debruçar sobre as parcerias empresa / sociedade civil, protagonizadas por Geledés – Instituto da Mulher Negra, a exemplo da criação do projeto Geração XXI. Geledés, mais uma vez, no período contemporâneo, esteve na ponta-de-lança de processos fundamentais de interferência nas condições seculares de subordinação da população negra, pois esse é o significado das ações afirmativas no Brasil.

    Sétimo ponto, participação efetiva na internacionalização da temática racial brasileira, em prosseguimento ao trabalho isolado feito por Lélia Gonzales e Abdias Nascimento nos 1970 e 1980. Isso funciona muito no Brasil, mexer com sua imagem no exterior, basta vermos as preocupações do ministro do Supremo Gilmar Mendes com os efeitos negativos que a prisão do presidente Lula causará na imagem do país no exterior.

    Oitavo ponto, a coragem de viver hecatombes internas, rompimentos, desligamentos, rearticulações, como forma de enfrentar os paradoxos e de conviver com eles. Lembremos que, paradoxo, na tradição africana, não é algo necessariamente a ser superado, como as contradições marxistas o são, mas algo com o qual aprendemos a conviver, porque o mundo não é dual. Também merece destaque a fertilidade expressa em tudo aquilo que brotou a partir dos rompimentos e transformações institucionais.

    Nono ponto, a constituição do Portal Geledés. No início dos anos 1990, posicionando-se frente à velha dicotomia do Movimento Negro dos anos 1980, dedicar-se à formação da massa ou à formação de quadros, Geledés se definia como uma organização formadora de quadros, vocacionada para preparar mulheres para atuarem politicamente, para a intervenção em espaços decisórios. E essa preparação, na prática, extrapolava em muito os limites do Instituto Geledés. Paralelamente, o diálogo lato senso com a população negra também esteve presente na ação institucional. Esse braço do Polvo-Geledés atingiu seu ápice com o portal de notícias, fonte avalizada para saber o que acontece na diáspora negra e que tem formado inúmeras pessoas, tanto as anônimas, quanto aquelas reconhecidas e badaladas. Como leitora, às vezes, em certos temas, sinto falta de pensamentos mais autorais da instituição, assinados por ela, e também de uma diversidade maior de autorias que pudesse iluminar aspectos diversificados de um campo temático.

    Certamente, muita coisa ficou de fora desse pequeno roteiro, como exemplo, a atuação de Geledés na área de prevenção e combate à violência contra a mulher, que atinge diretamente as mulheres negras, aquelas que mais morrem em situações violentas. Contudo, por uma questão de fundamento, me restringirei mesmo aos nove pontos que anunciei no início do texto, para exemplificar como Geledés tem papel central nas conquistas da comunidade negra brasileira nas últimas décadas.

    A imprensa divulgou ontem, dia 10 de abril de 2018, que o IBGE, a partir da análise de microdados da PNAD aferiu que a pobreza extrema aumentou  11% e atinge 14,8 milhões de pessoas no pais. Mais um milhão e meio de pessoas miseráveis em relação a 2016.  São efeitos visíveis, palpáveis, tropeçamos neles nas ruas das grandes cidades, depois do golpe parlamentar, midiático e jurídico de abril de 2016. Isso nos atinge diretamente. Somos nós esses novos miseráveis. São os filhos e filhas dessas pessoas que sequer farão ensino fundamental e médio que poderia habilitá-los a concorrer  a cotas raciais e sociais nas universidades públicas, que, em breve podem deixar de existir e sequer teremos mais instituições de ensino nas quais discutir cotas. O exemplo da UERJ grita o sucateamento e a derrocada planejados para justificar a privatização do ensino superior. A reitora da UnB, Márcia Abraão Moura, denunciou de maneira enfática no mês de março que a UnB chegará ao segundo semestre sem dinheiro para funcionar. O quadro da falta de recursos das universidades públicas federais é desalentador e piora a cada mês: falta dinheiro para consertar equipamentos, para pagar funcionários terceirizados, para bolsas de estudos, para materiais de higiene e limpeza. As primeiras ações do desgoverno Temer foram no sentido de eliminar a condição de permanência de pessoas pobres nas universidades públicas, cortando as bolsas de manutenção e, mais recentemente, as de iniciação científica. Também atacou as áreas de excelência em que começávamos a entrar, como o programa Ciências sem Fronteiras. Estudantes de ensino médio sonhavam com a participação no programa e ele foi inviabilizado até o encerramento. O desmonte é articulado, atinge todos os níveis de organização social. Enquanto nos manifestamos contra a prisão de Lula, nossa água é privatizada e vota-se por eleição indireta em caso de vacância na presidência da República. Prepara-se o terreno para derrubar o temeroso e para não termos eleições diretas. Nossa ação também precisa de articulação em vários campos junto com o chamado campo identitário.

    Ora, as conquista das cotas raciais na graduação, a entrada, por concurso de muitos professores negros titulados no período do governo Lula-Dilma, principalmente nas mais de 20 universidades públicas e mais de cem ETECs construídas por eles no interior do Brasil, e mais recentemente as cotas na pós-graduação e mesmo em concursos para docência, permitiram-nos dizer que a universidade é nossa! Entretanto, se não brigarmos por elas, essas instituições deixarão de existir e a discussão de ações afirmativas em universidades públicas não fará mais sentido, simplesmente porque não teremos mais universidades públicas. Para isso o golpe nos encaminha. O desgoverno Temer já fechou a ETEC de Sobradinho, em Brasília. Será a primeira de muitas, se não atentarmos para como esse estado de coisas nos devora, nos aniquila.  E nós, negros, somos os principais atingidos nos processos de acirramento de perda de direitos, de aumento da pobreza e da miséria, bem como de criminalização dos pobres e miseráveis; os que mais sofreremos com as articulações entre governo e planos privados de saúde para o fim do SUS. Desse modo, se as chamadas lutas identidárias que têm sido protagonizadas pelas juventudes negras não se articularem com os contextos maiores que nos oprimem, seremos tratoradas pelos que detêm o poder desde sempre, mesmo que estejamos com o discurso da autoestima e do empoderamento na ponta da língua.   Então, o primeiro ponto fulcral me parece ser a articulação das demandas das juventudes negras aos contextos maiores, numa alquimia que preserve nossas vidas e nos fortaleça.

    O segundo ponto me parece ser que, uma vez dentro, das universidades, por exemplo, é preciso compreender as mutações do racismo e definir estratégias para enfrenta-las a partir de uma perspectiva ampla, profunda e abrangente da operacionalidade do racismo. Não existe espaço para ilusões; continuarão existindo professores racistas, em muitas situações apresentaremos defasagem de conteúdo em função de um ensino médio deficitário e isso deve ser constatação inicial que engendre a busca efetiva de soluções. É mister não esquecer a lição de Steve Biko, estamos por nossa própria conta.

    O mais, conversamos no debate, quando essa audiência tão qualificada também expuser suas ideias. Geledés é uma ideia. Lula Livre é uma ideia. São expressões de projetos de poder.

    Vamos em frente, Wakanda, forever!

  • 30 e nada mais até depois dos 65

    30 e nada mais até depois dos 65

    *com ilustrações de Carolina Itzá

    O toque do celular, o beijo, a noite de ontem, o preço da cerveja que já chegou aos 12 e antes não passava de 7. Lembra de dois anos atrás? Quanta coisa foi e quanta é agora na baldeação entre a linha amarela e verde perto das 16h. Os pelos da axila, os odores, os psiu, os fiu fiu ou o ai não aguento mais isso. Com emprego, sem emprego nessa coisa de não passar dos 30 e ter acabado de chegar aos 20 e poucos. Quem se importa se o berço ainda me embala, se as fábricas me esperam. Produzir e consumir. Consumir eu já sei, só não quero produzir. Nhé nhé nhé nhé nhé. O bebê sem touca está chorando abandonado pelas grandes mães do sentido. O leite que saia daquelas tetas fazia mais sentido do que o mundo agora. Desejo a bonança, mas para chegar lá preciso subir até o último andar de escada. Largar o convencional, o elevador, o sistema, o conforto aveludado. Assim eu choro de novo. Buá buá buá. Chegamos aqui. Talvez seja a hora de pegarmos um voo que sobrevoe as cabeças do mundo enquanto sopramos a verdade da nova era, já que, ninguém entende o nosso chorinho de botequim. Verdade seja dita. Alguns de nós queremos mudar essa casa velha. Encontrar outra saída para essa rua que aparenta ter tantas direções.

    Qual será a minha ainda não sei, mas cansei de chorar e parei de soluçar. Vou-me embora deste berço na inconsequência dos meus 20 e poucos. As máquinas ainda aguardam pacientemente. Seus operantes, ou operados (sabe-se lá) já me convocam avidamente a graxa nas mãos, os sonhos na gaveta do escritório, as férias, os trinta dias, o restante, os enquadramentos, a vida que não sobra. Tem muito boi morrendo, árvore caindo, gente explodindo, dinheiro jorrando. Não é por aí, mas vem por aqui, dizem-me alguns. Não, não vou, não. Vou por ali. Vou para onde possa viver trinta dias e mais trinta e depois outros trinta e, se reclamar, trintão de novo. Um seguido do outro, um sentindo o outro. Vou por ali construir uma narrativa. Soltar outras letras, brigar com palavras que me esperam nas curvas que faço. Quais serão elas não sei ainda, mas é imprescindível consultar o dicionário. Parece-me necessário o afastamento de algumas coisas para chegar a outras no tempo que corre nos relógios de nossas veias. Esse tempo acumulado entope artérias quando ficamos mais velhas e os remorsos e rancores que no coração se alojam não saem mais com trinta dias de férias.

    Passaram-se alguns anos.

    Aliás, o tempo. Liguei a televisão na inocência dos desavisados sobre as grandes tragédias e ouvi que ele não vai sobrar nunca. Só depois dos 65, só depois que o próprio tempo já não mais existir para mim e muitos de meus amigos. O mundo tem passado espantosamente rápido quando olho para o horizonte, sentada no ponto de ônibus da Rebouças com a Avenida Brasil e me recordo das tantas pilhas de papel a serem assinadas, revisadas e arquivadas com o brilho nos olhos de quem quer o mundo todo, todo tempo, toda a experiência, toda vida que transborda e jamais será plenamente sentida enquanto me sento aqui e cheiro a fumaça de máquinas que já se foram quando os meus olhos alcançam qualquer uma delas. Minha avó se sentava na porta de casa e olhava para o tempo. Quando eu era criança nunca entendi o que ela ficava fazendo lá parada. Naquela época eu era o tempo agora. Agora, o vejo passar e me escapar. Ela o encarava. Olhava cara a cara. Acho que ali ela entendia muita coisa e se conciliava com o mundo, o céu, a história dela e dos pais, dos avós, com o nosso vir a ser. Olhar para lata, prédio, teto, outdoor, prateleira, vidro, luz neon, logomarca, banco, cartão, vitrine, telefone, computador, livro ou estante modular não pega nada. Quando a gente amadurece olha para o tempo porque sabe que não demora nada, nada chega a morte. O tempo é mais como um treinamento. Ele cura e abre feridas para o susto não ser grande quando a última visita chegar. Tenho medo de não encarar o tempo. Tenho medo de a vida terminar antes que eu cumpra as horas de vida que devo, antes de bater o cartão da firma e acabar morrendo de velha pensando nos papéis que deixei de assinar e carimbar e pedir para protocolar no nono andar.

    Ilustração de Carolina Itzá