Jornalistas Livres

Categoria: Saúde

  • A Revolta dos Jalecos

    A Revolta dos Jalecos

    Fotos de Helio Carlos Mello, para os Jornalistas Livres

    Como uma aorta, artéria de grande fluxo, a ladeira entre o Estádio do Morumbi e os portões do Palácio dos Bandeirantes, se fez em fluidez, um batalhão com centenas de jalecos brancos, médicos substituindo a legião de torcedores na rua, saídos dos hospitais, ambulatórios e faculdades. O doente aqui é outro, é o Estado que renega proventos.

    Nesta quinta-feira passada (24), uma manifestação chamou a atenção por sua singularidade e grande número de participantes. Em um protesto contra o calote do reajuste de suas bolsas de estudo, médicos residentes do Estado de São Paulo foram para a porta do Palácio dos Bandeirantes, sede do governador e também médico Geraldo Alckmin, muitos com nariz de palhaço e punho cerrado.

    Num raro momento de conciliação política, o mesmo carro de som e a mesma rua bloqueada foram divididos por médicos que se sentem representados pela turma do “Vem Pra Rua”, que bateu panelas a favor do impeachment da presidente Dilma e defende a PEC 55, e militafntes aguerridos que defendem, sim, a permanência do SUS, o investimento contínuo e progressivo na pasta da Saúde e a ampliação das políticas sociais inclusivas.

    No meio disso tudo, claro, havia também os que não se posicionavam. E, independentemente de qualquer ideologia, é fato que os jalecos brancos ali na rua têm uma luta legítima. E pouquíssima compaixão da sociedade. A mera cobertura da manifestação pelos Jornalistas Livres despertou centenas de comentários ofensivos de leitores do facebook abaixo das imagens publicadas.

    Residentes são médicos que, depois de formados em clínica geral, prestam concursos públicos para bolsas de estudo em hospitais-escola para que possam se especializar em alguma área médica sob a orientação de preceptores. Numa comparação simples, residentes são estudantes de pós-graduação que, como também ocorre nas áreas de humanas ou exatas, concorrem a uma bolsa de estudos, por concurso público, para estudo remunerado.

    Como os outros bolsistas, deveriam dedicar-se exclusivamente ao programa de residência que, por sinal, tem esse nome porque parte da bolsa inclui moradia no hospital-escola ou auxílio-moradia aos estudantes que vêm de outras cidades.
    A carga horária de trabalho é de 60 horas semanais. Podem estender por 72 com plantão de 12 horas noturno. Ganham cerca de R$ 2900 mensais num regime que não inclui 13o salário e 11% de desconto de INSS.

    Sabe-se que residentes fazem plantões extra em hospitais particulares. Também é sabido que muitos assumem a responsabilidade de casos onde o quadro de especialistas não dá conta da demanda. Pesquisas apontam, ainda, que é entre residentes que existe maior número de quadros de depressão, dependência química pelo abuso de medicamentos, entre elas anestésicos, e álcool.

    O médicos residentes cobram de Alckmin o aumento de 11,9% que já foi concedido há oito meses, resultado de outra greve de 2015. Todos os Estados do Brasil já tiveram o reajuste incorporado ao pagamento, menos São Paulo.

    Ali, na porta do palácio do governador, gregos e troianos reivindicavam direitos como trabalhadores que são. O que espanta é ver que nesse mesmo grupo há os que defendem o fim do SUS, a aprovação da PEC 55 que congela os investimentos em Saúde, a terceirização em massa dos profissionais regidos pela CLT em Organizações Sociais que sucateiam a cada dia a profissão que escolheram.

    Há algo de muito simbólico numa manifestação de médicos, portanto. Só Alckmin para unir tamanha contradição. Ou, talvez, numa oportuna lembrança, a quase unificação das entidades de classe da categoria contra o programa Mais Médicos quando foi implantado.

     

    Em tempo: os Jornalistas Livres repudiam mensagens de ódio em seus comentários. Ofensas serão ocultadas, excluídas e usuários que desrespeitam as condutas mínimas num debate democrático serão banidos de nossa página.

  • Falar para mudar a história

    Falar para mudar a história

    “Nós vamos te quebrar por dentro”

    delegado Fleury para Frei Tito

    O que se busca com a Clínica do Testemunho? Maria Cristina Ocariz, coordenadora da Clínica afirma em seu artigo, A psicanálise e as consequências psíquicas dos fenômenos ditatoriais, que:

    “Somos cientes de que não se consegue fazer justiça plena, pois cada morte é única e constitui uma tragédia irreparável. Mas podemos dar nome aos nossos mortos e construir narrativas que reconstruam a história silenciada durante todos estes anos.”

    Por que falar e reconstruir a história já passada? Por que não deixá-la enterrada? A história silenciada sobre a ditadura está entre os fatores determinantes do ódio exacerbado em que estamos mergulhados, nessa segunda década do século XXI:

    “Sabemos que a violência, o império do ódio, o mal-estar que tomou conta de nosso país na atualidade são multideterminados. Mas insistimos: o silêncio sobre os anos da ditadura e a anistia aos criminosos, são variáveis fundamentais na etiologia destes fenômenos. Prospera a economia da impunidade e da vingança.”

    Por onde caminha a tortura dentro de nós? Por que permanece a assombrar suas vítimas? A tortura busca quebrar a estrutura psíquica para calar a vida e as ideias de pessoas e instituições proibidas:

    ‘Você não é ninguém’, ‘Você não tem nome’, ‘Você não existe’. Estas são falas do terrorismo de Estado que tem como efeito um cenário impreciso entre a vida e a morte. O discurso do torturador ressoa como: ‘Eu sou Deus, você não existe, eu sou o dono da vida e da morte’.”

    O terrorismo de Estado libera e legitima a maldade inerente ao ser humano. Ocariz cita Freud, para marcar nossa inclinação agressiva-destrutiva:

    “O ser humano não é um ser manso, amável, só capaz de se defender se o atacam; possui uma boa cota de agressividade. O próximo é uma tentação para satisfazer nele sua agressividade, explorar suas forças de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despossuí-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, lhe infligir dores, martirizá-lo e assassiná-lo. (…) O homem é o lobo do homem.”

    Tentamos conter a hostilidade que nos constitui com a lei, com a cultura, nem sempre com sucesso:

    “Existe uma bestialidade original que deve ser domesticada; a lei estabelece um limite nas pulsões primitivas, e instaura a repressão ou recalque das pulsões e, no melhor dos casos, a sublimação das mesmas. Em nenhum caso haveria uma satisfação plena.”

    A disjuntiva ou barbárie ou civilização é falsa no entender de Ocariz:

    “Apelamos aqui a um conceito desenvolvido por Freud em 1919. Dada a hostilidade primária no ser humano, não existe nada de natural no amor ao próximo. Se deve existir como a lei e a proibição é porque não é natural, senão o contrário. A barbárie não se opõe à civilização, temos que pensar a barbárie na civilização.”

    A história do homem está repleta de genocídios que podem se repetir a qualquer momento:

    “O fato de terem existido outros genocídios na história do mundo confirma sua pertinência à condição humana. Como disse Primo Levi, a respeito do nazismo “Tem sucedido e, por conseguinte, pode voltar a suceder: isto é a essência do que temos a dizer”.

    Ocariz cita o testemunho da professora Maria Cecília Bouças Coimbra “A tortura não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. (…)” (p. 143)

    E qual seria a função da psicanálise? Como opera sua função clínica?

    “A psicanálise sustenta um princípio ético: o desvelamento de uma verdade que, se permanecer encoberta, irá se manifestar através de sintomas sociais e/ou subjetivos. (…) O remédio contra a malignidade do oculto, do não sabido, do não dito que produz efeitos sintomáticos, é a descoberta dos fatores conscientes ou inconscientes que estão em sua etiologia. A explicitação da verdade, embora seja dolorosa, operará como uma incisão a fim de drenar, aliviar e curar o abcesso do sinistro.”

    A Clínica do Testemunho busca acolher, abrigar e curar as pessoas e a sociedade. Busca inibir a tendência, que as sociedades têm, de repetir fatos violentos e traumáticos quando a palavra é silenciada.

    “Em 1914, Freud escreve “Recordar, repetir e elaborar”. O fundamento desse artigo é que as situações traumáticas devem ser recordadas e elaboradas. Tal necessidade de elaboração pode ser observada tanto nas modalidades de retorno do sofrimento psíquico de cada sujeito, quanto nas repetições de fatos violentos e traumáticos que marcam as sociedades governadas com base na supressão da experiência histórica. A falta de verdade abre caminho para a repetição como sintoma social.”

    A verdade explícita pode mudar a história:

    “Falar é uma escolha subjetiva e política que se opõe a silenciar, pois entendemos que é preciso falar para que a verdade seja conhecida, para que os danos sejam reparados, para que cesse a repetição do horror, transformando o curso da história.”

    “(…) que não anoiteça calmo o nosso sono,

    enquanto todas as pessoas não gozarem do inalienável direito de ter direitos”.

    Madre Cristina, fundadora do Sedes Sapientiae

    Notas

    1 Todas as citações acima foram extraídas do artigo A psicanálise e as consequências psíquicas dos fenômenos ditatoriais, no livro Violência de Estado na ditadura militar (1964-1985) – Efeito Psíquicos e Testemunhos Clínicos, organizado por Maria Cristina Ocariz, Editora Escuta, 2015. O livro é distribuído gratuitamente e pode-se baixar em www.justica.gov.br/seus-direitos/anistia

    2 As inscrições para as Clínicas do Testemunho tiveram início no dia 19 de março de 2013, através do edital publicado no Diário Oficial. Poderá se inscrever qualquer anistiado político pela Lei nº 10.559/2002, bem como seus familiares. Os interessados em participar dos grupos terapêuticos ou receber atendimento psicológico individual devem entrar em contato com a Clínica Psicológica (11) 3866 2736 / 3866 2735 ou pelo e-mail clinicatestemunhosedes@sedes.org.br.

  • ‘Esta água tem uma coisa dentro dela que está acabando com a vida da gente’

    ‘Esta água tem uma coisa dentro dela que está acabando com a vida da gente’

    Texto: Larissa Gould. Fotos: Leandro Taques.

    Dona Eliane Gomes da Silva, tem 67 anos, 28 em Cachoeira Escura. No rosto e nas mãos as marcas de uma vida cheia de privações. Nos convida para entra em sua casa, durante a marcha do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, em sua passagem pelo distrito. O único cômodo é dividido em quarto, sala e cozinha. Nos recebe na porta, sua filha senta em um sofá ao lado, o outro filho ao seu lado, o terceiro deitado em uma cama nos fundos. Começa a falar rápido, antes mesmo de ligarmos os equipamentos. As angustias de mãe têm pressa para serem botadas para fora. Contadas àqueles jornalistas desconhecidos que se colocam em sua frente. No desespero por ajuda, nos confere sua confiança.

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    É casada e têm três filhos. Arrimo de família, recebe uma pensão de R$ 600,00 “e ainda pago aluguel”. O marido faz pequenos serviços gerais e de pedreiro para complementar a renda. Os dois pescavam no Rio Doce para fazer um extra. “Era muito bom antes da Lama, o povo todo pescava e nadava. Dava para tomar a água direto do Rio que não tinha problema”, lembra.

     

    Nos mostra as manchas na pele dos filhos, e até do cachorro “Já passei óleo queimado nele, não funciona, um até já morreu”, relata.

     

    A família toda está doente. Assim como os vizinhos. Ela perdeu 30 kg e sente dores no corpo, na barriga e na cabeça. Seu marido  tem uma infecção no ouvido há meses “saí pus com sangue”. A filha de 17 anos teve uma infecção uterina. Todos têm doenças na pele. Mas o caso mais grave, é o do filho mais velho, enfermo na cama: não anda, não fala. “Ontem eu gastei meu último dinheiro para pagar o carro que faz mudança para levar ele na UPA, por que a ambulância não quis vir pegar”. O médico não dá diagnóstico algum. “Disse nada. Perguntou o que ele tinha comido. Digo: é a água. Daí ele não falou mais nada. Aplicou as injeções, mandou tomar uns comprimidos e mandou para casa. Os comprimidos eu não comprei não por que não tenho dinheiro”. Na hora ele até melhorou, mas foi só chegar em casa que já caiu de cama.

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    Por conta disso, teve que comprar os mantimentos da família fiado na vendinha local. Não sabe como vai passar até receber. “Liguei na Samarco, eles dizem que ‘vão vir visitar, vão vir visitar’ até hoje não veio ninguém.”
    Na conversa, dona Eliane relata, além dos problemas com a água contaminada e doenças, dificuldades para a realização do cadastros dos atingidos, até hoje ela e sua família não receberam o cartão, com o valor de um salário mínimo + 20% por dependente, que a empresa deveria dar aos atingidos.

    Veja seu relato (a parte que conseguimos gravar =] )

     

    Jornalistas Livres: O que mudou na vida da senhora e do Distrito depois da Lama?

     

    Eliane: A situação aqui é essa, nós sobrevivíamos dos peixes. Nós não pescava, não era com carteira, mas nós pescava para comer e para vender. E a barragem vai, arrebenta e vai tudo embora as nossas armadilha. Agora, estamos vivendo com as graças do senhor, e nós bebemos dessa água. Por que a bica que tem a outra água é tanta gente que até seca. E nós bebemos dessa água e cozinhamos dessa água e ficamos tudo doente. Esta daqui (aponta para a filha) foi para o hospital 4 vezes, este daqui (aponta para o filho ao lado) deu pereba na perna e no corpo todo. Eu adoeci e tô com gosto de barro na boca.

     

    JL: A família toma esta água todo dia? Existe outra água para usarem?

     

    E: Uai, vai fazer o quê? A gente tem que comer, dinheiro para comprar água mineral não tem. No começo o povo começou a partir as águas mineral aqui. Depois ó (faz um gesto de fim com as mãos) parou. Tavam batendo até nos outros aí por causa de água. Teve até briga, tirando sangue aí dos outros.

     

    Disse que tinha gente pegando água mineral e vendendo. Eles tavam dando para matar necessidade. Mas disse que tavam vendendo água mineral. É por isso que parou. Por causa de uns, outros dançam, né?

     

    Filha: E ninguém mais aguenta ter que ir buscar água na bica.

     

    JL: E onde fica a bica? Como funciona?

     

    E: É uma bica que tem ali embaixo. Tá que nem procissão de tanta gente. Dá até briga naquela bica ali por causa de água. E a água lá quando o sol tá muito quente a água seca. A água seca. E aí a gente tem que beber desta água, cozinhar com ela, tomar banho com ela.

     

    JL: Quantas vez por dia vocês vão buscar água?

     

    Filha: Não dá para ficar ir buscando toda hora, né. Meu pai tem problema na coluna e não pode ficar indo toda hora.

     

    E: Ele tá indo buscar água doente. O prefeito diz que também toma desta água. Eu digo: toma dessa água? Cê é rico, se paga para para buscar água longe e para comprar água mineral. Agora, nós que somos pobres que vive das graças do senhor não temos condições de comprar. Mas Deus vai ver o que faz para nós, por que a minha vida tá sofrida viu? Tá sofrida com esse problema desta água, adoecendo a gente dentro de casa aqui. Não tem jeito não, é só Deus mesmo para tomar conta de nós. O povo já pegou número de CPF e nada.

     

    JL: Mas onde a senhora fez o cadastro?

     

    E: Fiz ali com o pessoal ali, já tem quase um ano e não resolveu nada. Diz eles que cadastrou né, eu ligo para a Samarco e a Samarco todo dia diz que tá vindo aqui visitar. Todo dia eles tão vindo visitar aqui e nunca que eles vêm visitar. Eles tá querendo é isso, que a gente morra. É isso que eles querem. Eu não tenho uma casa, um lugar para mim poder mudar daqui para mim usar uma água que não tem infecção nela. Água não tenho condições de comprar, então a gente tem que morrer aqui mesmo, bebendo a água.
    JL: Mas quem fez o cadastro da senhora? Te deu algum comprovante?

     

    E: A gente fez o cadastro lá com o Celso.

     

    JL: Mas o Celso é da Samarco, da prefeitura, de alguma igreja ou instituição?

     

    Não é de igreja não, nem da Samarco, é um homem que conserta televisão. Ele pegou nossos dados e falou para a gente entrar com um advogado. Eu digo, me dá o dinheiro que eu pago o advogado.

     

    JL: Então, na verdade a senhora nem sabe se o seu cadastro foi feito. Esse tal de Celso pegou os dados da senhora, mas não deu nenhum comprovante. A Samarco não veio aqui fazer o cadastro?

     

    E: Não sei.

     

    Filha: Não, não veio ninguém da Samarco aqui.

     

    JL: Nem da prefeitura?

     

    Filha: não, nada.

     

    E: Eu ligo para a Samarco e eles dizem que vão vir nos entrevistar e não vêm. Eu digo, ‘depois que nós estiver tudo no caixão vocês não precisam vir mais não. Não precisa vir.

     

    Filha: E tem um monte de gente recebendo por aí e a gente nada.
    JL: E a saúde da senhora?

     

    E: Eu vou secando, vou só secando. Meu peso não é este, meu peso era 60 kg. Eu tô pesando 32 Kg. Aqui em mim (aponta para a barriga) dói tanto que parece que tem uma bola, demora duas horas pra mim conseguir andar e eu tenho que ficar assim (se contraí) parece que tem uma coisa me cortando. Quando eu bebo está água eu vomito, dá vomito. É essa água. Esta água tem uma coisa dentro dela que está acabando com a vida da gente.

     

    Filha: o médico falou que eu não estou mais conseguindo fazer ‘as coisas’ por causa desta água, que dá problema no intestino.

     

    E: Ele ali (aponta para o filho ao lado) pegou pereba na perna, sabe o que eu tive passar? Pó secante. Secou, mas ir por dentro? Como fica?
    A gente tá todo intoxicado, aquela ali (aponta para a filha), teve até infecção no útero. Na garganta também. Meu marido tá com o ouvido todo inflamado, sai até pus com sangue.

     

    O único dinheiro que eu tinha, que era para eu fazer compra pra mim comer mais meus filhos, eu paguei o carro para levar meu filho para a UPA. Por que a ambulância não quis socorrer. O restantinho que eu tinha para comer dentro da minha casa. Agora eu precisei de comprar troço fiado pros filho comer. Não sei da onde eu vou arrancar esse dinheiro para pagar.

     

    JL: E os vizinhos?

     

    Mesma coisa. Muitas pessoas aqui intoxico tudo. Aquela vizinha ali (aponta para o lado) adoeceu tudo e perdeu até o pai. O pai da minha vizinha morreu, por causa desta água aí. A água infeccionou ele todo.

     

    JL: E os animais de estimação da senhora?

     

    Morreu até um. Já morreu um cachorro já. Morreu um cãozinho dos meu. Da mesma água que nós bebe, eles bebe. Da mesma comida que nós come eles come. Eu passei óleo queimado no cachorro e não adiantou nada. Um até já morreu.

     

    JL: E um ano depois do desastre? Como tão as coisas?

     

    E: Nada foi resolvido, então eles tá querendo é isso. Que a gente morre.

    1 ano de Lama e Luta – Cachoeira Escura: no mapa da tragédia

    A lente encontra um rosto, mas não conclui o clique: “Moço, entra aqui para ver o estado do meu filho, essa água está matando ele”.

    Entramos em sua casa, uma casa simples, de um único cômodo. A Marcha dos Atingidos por Barragens passava em sua porta. Dona Eliane Gomes da Silva, uma senhora de idade, é uma das atingidas pelo desastre da lama.
    A Marcha saiu de Regência/ES e chegou ao distrito de Cachoeira Escura em seu segundo dia, depois de ter passado por Colatina, Mascarenhas, Baixo Guandu e Governador Valadares.

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    Cachoeira Escura, distrito de Belo Oriente, fica na Macrorregião do Vale do Rio Doce, no Vale do Aço, a cerca de 250 km da capital mineira. Saindo da rodovia BR-381, à direita, uma ruazinha de mão dupla, com um restaurante e um bar, dá boas vindas ao distrito. A rua segue com uma fileira de casas térreas, igreja, praça, gente sentada nos banquinhos em frente às casas vendo a marcha passar…

    Em torno de 12 mil pessoas moram lá, não é uma cidade “nunca vai virar, porque aqui tem a Cenibra, empresa de Eucalipto que gera a maior parte do PIB do município”, explica Camila Brito, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, que acompanha a região.

    Mas talvez nunca ficássemos sabendo de nenhuma dessas coisas, não fosse o crime cometido pela Vale/Samarco/BHP. Em 05 de novembro de 2015, a barragem da mineradora rompeu. O Mar de Lama tóxica soterrou Bento Rodrigues, distrito de Mariana, e outros municípios vizinhos, deixando 21 mortos, e a contagem continua. “Estávamos em uma reunião quando ficamos sabendo do rompimento, mas não tínhamos dimensão do tamanho do desastre naquele momento” lembra Camila. Ninguém tinha.


    A Lama tóxica seguiu o do Rio Gualacho do Sul, para Rio Carmo até Rio Doce, envenenando a água até Regência, no Espírito Santo, onde desembocou no mar. Os danos ambientais e sociais são imensuráveis. Cachoeira Escura e seus 12 mil habitantes fazem parte dos atingidos.

    Dona Eliane. Foto: Leandro Taques.
    Dona Eliane. Foto: Leandro Taques.

    Quando eu tomo essa água sinto o gosto de barro na boca, dói tudo, dói o peito, a barriga, a cabeça”, relata dona Eliane. Sua família toda está doente. O marido tem uma infecção no ouvido há meses “saí pus com sangue”, a filha de 17 anos teve uma infecção uterina, ela própria perdeu 30 kg. Todos têm doenças na pele. Mas o caso mais grave, que motivou o seu convite é o filho, enfermo na cama: não anda, não fala. “Ontem eu gastei meu último dinheiro para pagar o carrinho que faz mudança para levar ele na UPA, por que a ambulância não quis vir pegar”. – E o médico disse para a senhora o que ele têm? “Disse nada. Perguntou o que ele tinha comido. Digo: é a água. Daí ele não falou mais nada. Aplicou as injeções, mandou tomar uns comprimidos e mandou para casa. Os comprimidos eu não comprei não por que não tenho dinheiro”. – E ele ficou melhor? “Na hora ficou sim, mas chegando em casa já caiu de cama de novo”.

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    Camila. Foto: Leandro Taques.

    Assim que o crime foi cometido, o MAB passou a visitar as cidades e distritos atingidos. No primeiro contato com Cachoeira Escura, moradores influentes da região trataram logo de dispensar o movimento. Ali, de acordo com eles, nada havia acontecido. “O prefeito fala que bebe dessa água, digo: ele tem dinheiro e manda buscar longe”, reclama dona Eliane.
    Estranhando a reação, voltaram com uma outra abordagem. “Coloquei logo um carro de som na rua, falando que o Movimento dos Atingidos por Barragens estava ali para denunciar o crime da Samarco, e que ia fazer uma reunião em uma escola municipal”, conta Camila. Uma multidão apareceu.

    Um ano depois as famílias ainda não foram indenizadas. Tampouco foi soluciona o problema da água envenenada. “O meu vizinho morreu com infecção e o corpo cheio de perebas.” – Tem médico? A Samarco já cadastrou a família da senhora? “Não cadastrou não. Aqui tem uma médica cubana, que vem aqui e passa pra gente pomada, remédio. Ela fala que é para a gente não tomar a água, mas não tem como. Dinheiro para comprar não tem. Tem uma biquinha ali na frente, para o povo todo, dá até briga. Tem dia que a gente fica o dia todo lá para voltar com dois galões de 5 L de água. Não tem outro jeito, tem que tomar a água”.

    É assim a rotina do vilarejo. A bica que D. Eliane se refere é um cano na rua. Depois do acidente, ela conta que o vizinho, solidário, puxou um cano da fonte de água do seu quintal até a rua. Está é a única fonte de água potável e gratuita da vizinhança.

    Passamos por ela no caminho da marcha. E a marcha seguiu. No caminho, outros atingidos relataram problemas de saúde e nos mostram manchas na pele. De acordo com a prefeitura, a água não apresenta riscos.

    De cidade a cidade a marcha dos atingidos cresce. Em Cachoeira Escura eramos cerca de 300. Em cada parada um ato simbólico representava a luta e a esperança de todos. Lá, plantaríamos mudas de árvore às margens do Rio Doce.

    Lá também fica uma estação da Vale, uma das proprietárias da Samarco, patrocinadora do crime da lama tóxica. Acontece que a Vale e o Estado não gostam de luta.

    Ora, que mal haveria mulheres, crianças, trabalhadoras e trabalhadores, atingidos e atingidas, plantarem mudas? O mal de plantar a resistência.

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    A Vale não facilitou, colocou os trens no meio do caminho, e avisou aos funcionários que um bando de baderneiros estava a caminho, que poderiam até tentar quebrar os trens. O Choque se colocou entre os manifestantes e os trens. Que ironia, o mesmo Estado que negligencia os atingidos é o que protege a empresa assassina. Ironia, mas não novidade.

    Munidos de cassetetes, escudo e cães. Tentaram parar a marcha.

    Coitados. Como se depois de caminhar centenas de quilômetros alguns vagões e militares fossem parar aquele povo de luta. Deram a volta. Plantaram as mudas, plantaram a esperança, plantaram a resistência. Um ano de lama, um ano de luta. 

    Veja também:

    Povo de luta não esquece crime de Mariana

    “O problema é que muito pescador só sabe pescar. Todo dia vivia no rio e agora não pode ir para o rio mais”

     

  • Para Padre Júlio Lancelotti, sofrimento do povo de rua está ligado à ação violenta da GCM

    Para Padre Júlio Lancelotti, sofrimento do povo de rua está ligado à ação violenta da GCM

    Em entrevista aos Jornalistas Livres, o Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral Povo da Rua, responde às declarações feitas na tarde de hoje (16/06) pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), a respeito dos óbitos de moradores de rua em decorrência da recente frente fria que assolou a cidade.

    Haddad afirmou não haver ligação direta entre a ação da Guarda Civil Metropolitana e as mortes. Para o Padre Júlio, não se trata uma investigação policial a respeito de uma questão pontual, mas antes de um problema social, do trato diário da GCM com a população em situação de rua.

    “Vamos em qualquer dos lugares onde a população de rua está perguntar: como é a ação da GCM?

    É truculenta, ameaçadora, intimidatória, vexatória, humilhante. É o que se chama escracho.”

    O padre afirma ainda que o fato de os laudos médicos não incluírem hipotermia como causa mortis não isenta a administração pública, uma vez que a temperatura é um fator agravante para condições sociais e de saúde pré-existentes. Para ele, as pessoas poderiam ter sido acolhidas ou mesmo socorridas a tempo, em todo caso.

    “Eu penso que a administração pública deveria ser mais humilde, mais humana, conversar. Não ter medo de ser avaliada e até criticada, porque receber crítica pra mudar é um sinal de maturidade.”

    Por fim, o Padre Júlio comenta a situação dos albergues da prefeitura, que segundo ele têm condições de insalubridade e não acolhem os moradores de rua de maneira humana. Ele coloca a disposição o centro de acolhimento da Casa Belém, na Rua dr. Clementino 608, aberta em todas as horas do dia e da noite:

    “Se você encontrar um irmão de rua que quer ser acolhido pode trazer aqui, ele será acolhido com um abraço.”

    Entrevista: Laura Capriglione
    Edição: Henrique Cartaxo, para os Jornalistas Livres

  • “O Brasil está ao lado dos países mais retrógrados em relação a luta histórica das mulheres”, ex-ministro da Saúde José Temporão

    “O Brasil está ao lado dos países mais retrógrados em relação a luta histórica das mulheres”, ex-ministro da Saúde José Temporão

    O médico sanitarista José Gomes Temporão foi ministro da Saúde de 2007 a 2010 e diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Entre os governos do PT, foi o que mais tempo ficou à frente da pasta. Na chamada Nova República apenas José Serra se manteve tanto tempo no cargo. Durante o governo de Lula, o ex-ministro comprou brigas com os conservadores ao defender, por exemplo, que o aborto, é assunto para ser tratado por mulheres e dentro do âmbito da saúde pública.

    Hoje, Temporão é diretor executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), da Unasul.  O médico conversou com os Jornalistas Livres sobre o papel do Instituto para o desenvolvimento de uma estratégia de saúde comum à América do Sul e o risco que atual congresso representa para os avanços conquistados nos últimos anos.

    teporaoJornalistas Livres – Atualmente o senhor é diretor executivo do Isags. Qual o papel do Instituto para a América do Sul?

    Temporão – O ISAGS é uma organização internacional, pública, intergovernamental diretamente vinculado ao Conselho de Ministros da Saúde da UNASUL. É resultado do processo político de integração da América do Sul e tem por objetivo se constituir em um centro de altos estudos e debates de políticas para o desenvolvimento de lideranças e de recursos humanos estratégicos em saúde, buscando fortalecer a governança em saúde dos países da América do Sul e contribuir  para articular a atuação regional e a saúde global.

    JL – Em 2011 o senhor se filiou ao PSB. Os parlamentares deste partido votaram maciçamente a favor do processo de impeachment da presidenta Dilma Russeff. O atual ministro das Relações Exteriores, José Serra, em seu primeiro dia de trabalho, soltou uma carta atacando o diretor da Unasul por questionar o processo em curso no Brasil. Como o senhor se posiciona sobre o impeachment de Dilma?

    Temporão – Eu me desfiliei do PSB acompanhando a posição de outros companheiros como o Roberto Amaral e entendo esse processo como uma grave ruptura da ordem democrática me colocando ao lado daqueles que defendem o mandato da presidente Dilma e questionam os argumentos utilizados para afastá-la da presidência da república.

    JL – Durante sua gestão como Ministro da Saúde no governo Lula, o senhor teve posições polemicas sobre a questão do aborto, defendendo que este era um assunto para ser tratado por mulheres e dentro do âmbito da saúde pública. Senadores chegaram a usar esta matéria para dizer que o PT é contra a família. Passados alguns anos que avaliação o senhor tem das medidas tomadas quando era ministro? O senhor vê algum avanço neste tema no Brasil e na América Latina?

    Temporão –  Com exceção da decisão do STF que incluiu entre os motivos legais para a interrupção voluntária da gravidez a anencefalia, não há muito a comemorar. A exceção é o Uruguai que aprovou uma lei mais liberal sobre o tema. Neste momento forças extremamente conservadoras ameaçam no Congresso Nacional grave retrocesso na atual legislação propondo restringir, se não impedir, o que hoje consta na legislação brasileira sobre o tema. O Brasil hoje está ao lado dos países mais retrógrados do mundo em relação a esta luta histórica das mulheres brasileiras.

    JL – Os médicos sanitaristas historicamente estiveram à frente da criação e defesa do SUS. Como o senhor enxerga o SUS nos dias de hoje? O SUS é capaz de garantir ao cidadão o direito constitucional de acesso à saúde?

    Temporão –  O processo que levou à criação do SUS tem raízes nas lutas contra a ditadura militar e expressa um processo histórico por direitos e cidadania em nosso país. Nesse período de mais de duas décadas de implantação do SUS houve expressivos avanços em termos de ampliação do acesso e de estruturação de políticas e programas que hoje garantem atenção integral à saúde a cerca de 75% da população brasileira. E isso deve ser reconhecido. Por outro lado existem contradições e fragilidades que impedem que essa reforma se estabeleça em toda sua plenitude. Entre elas estão o subfinanciamento, o estímulo ao mercado privado através de subsídios e renúncias fiscais, o modelo de atenção ainda muito centrado na atenção hospitalar e o modelo de gestão hoje pulverizado entre gestão pública, terceirizações, OSS [Organizações Sociais de Saúde], criando um modelo fragmentado que impacta negativamente a eficiência e a qualidade dos serviços.

    JL – O atual ministro da Saúde considera que não é possível sustentar o nível de direitos que a Constituição determina. O que o senhor pensa sobre isso? É possível garantir saúde Universal para todos?

    Temporão – O SUS e seus princípios pétreos- universalidade, integralidade, gratuidade e democracia- conformam um processo civilizatório que deve ser defendido por todos que compreendem a saúde como um direito de cidadania e dever do estado. A defesa do SUS é a defesa do direito à vida plena e com qualidade para todos. Defendê-lo radicalmente é um compromisso com a democracia e o desenvolvimento nacional.

     

     

  • Ministro Interino da Saúde é vaiado em Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.

    Ministro Interino da Saúde é vaiado em Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.

    Fotos: Ruas e Redes

    Na noite desta quarta-feira (1) foi realizada a abertura no XXXII Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, na cidade de Fortaleza/CE. Com o tema “Municípios Brasileiros – Acreditamos, fazemos e temos propostas”, o evento contaria com a participação do ministro interino da Saúde, Ricardo Barros (PP).

    Contaria, pois a participação do ministro ilegítimo motivou protestos durante o Congresso. Trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS), dentre eles secretários municipais de saúde de todo o país, e profissionais da área vaiaram Barros, denunciando o golpe à democracia e os ataques ao SUS.

    Ricardo Barros faria um discurso de abertura, mas, após chuva de vaias, desistiu. Os manifestantes receberam o ministro no saguão de entrada e seguiram até o local da plenária com gritos de “Golpistas, Fascistas, não passarão” e “Eu tô na rua, é para lutar por um projeto de saúde popular”.

    “Em Fortaleza a resistência, protesto e escracho ao Ministro Golpista e Provisório continua. Em cada local, sinais da resistência feita por vários atores sociais de um Congresso que reúne mais de 4 mil pessoas”, relatou em nota o movimento Ruas e Redes, presente na ação.

    O ministro interino de Temer, tesoureiro-geral do PP, é investigado por corrupção, peculato e outros crimes, as ações são por sua gestão como prefeito de Maringá (PR).

    O Congresso Nacional de Secretarias Municipais de Saúde acontece no Centro de Eventos, na capital cearense, até o próximo sábado (4).

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