A gestão de Doria Jr (PSDB), governador de SP desativa os aparelhos de assistência à moradores em situação de rua na região da luz. São unidades do Atendimento Diário Emergencial (Atende). Já nesta quinta (22), a Secretaria de Segurança Pública realizou mais uma operação higienista na Cracolândia. A razão para tanto é a entrega de um condomínio popular que já entregou 916 apartamentos e pretende chegar aos 1130 nas próximas semanas.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública informou que o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (DENARC) deflagrou “na manhã desta quinta-feira (22), a Operação de Campo de Polícia Judiciária Cracolândia 2019” que conta com “566 agentes de segurança, entre policiais civis, Dope e Demarco, policiais militares do patrulhamento de área, do Trânsito e BAEP, ALÉM DE guardas civis metropolitanos, com apoio de cerca de 140 viaturas e uma aeronave da Polícia Civil “, para impretar “20 mandados de busca e apreensão e 21 de prisão na região”.
O coletivo A Craco Resiste, que defende a redução de danos, se manifestou por nota: “uma semana depois do governador João Doria admitir que pretende deslocar a Cracolândia para a zona norte, a Polícia Civil realiza uma grande operação na região da Luz. O motivo alegado da ação, que envolve ainda a PM e a GCM, é combater o tráfico. É importante lembrar que a operação de hoje acontece após o fechamento da maior parte dos serviços de atendimento às pessoas com uso abusivo de droga e em situação de rua. Há um esforço conjunto da Prefeitura e do Governo Estadual para esconder a aglomeração de gente pobre na região da Armênia” Leia a nota na integra https://www.facebook.com/1780530862198286/posts/2301919416726092/
Os usuários de drogas que estão na região da Luz, historicamente, desde os anos 2000 (aproximadamente) e que já tiveram uma série de políticas públicas que tratavam a questão como um problema de saúde, através do programa “De Braços Abertos”, da gestão do ex-prefeito, Fernando Haddad, sempre foram sistematicamente atacadas por ações violentas, veja lista mais abaixo das matérias feitas pelos Jornalistas Livres.
Segundo a população do entorno do fluxo, o real caráter da operação é remover, espontaneamente ou compulsoriamente, os usuários para uma outra área da Av. Zaki Narchi, região norte da capital, o que se concretizado, deverá ser o novo endereço da Cracolândia em São Paulo.
Com essa informação, de quem habita o território e presencia diariamente massivas e truculentas ações da Secretaria de Segurança Pública, dá para concluir claramente que depois de 2017, nada mudou: a Prefeitura de Bruno Covas e Governo de João Doria Junior não sabem lidar com a situação e tratam mais uma vez as pessoas pobres e vulneráveis como lixo, assim como moradores da região para poderem entregar promover a especulação imobiliária na cidade e agradarem seus amigos, donos de grandes construtoras.
A névoa que cobre a Avenida Paulista e encobre a lua na foto, não é das queimadas em Mato Grosso, onde vivemos hoje, ou de outros estados da região amazônica. É do gás lacrimogêneo lançado às centenas de litros pela PM sobre estudantes que protestavam contra o aumento das passagens de ônibus e quem mais estivesse nas ruas, como por exemplo os jornalistas, no fatídico 13 de junho de 2013. De alguma forma, os dois eventos estão conectados.
O excesso, pra dizer o mínimo, de violência policial sobre manifestantes foi exigido em editoriais pelos jornais e comentaristas de TV que reclamavam “o direito do cidadão de bem” de ir e vir numa das principais avenidas da cidade e contra “a balbúrdia” dos estudantes e ativistas, em sua maioria de esquerda. O evento mudou o padrão de aceitação da sociedade sobre as manifestações. A partir desse dia, se fosse uma manifestação “sem partido”, “contra tudo o que está aí”, com bandeiras do Brasil, teria cobertura no Jornal Nacional e direito a selfies com os policiais. Mas se fosse de “baderneiros”, contra o governo de direita do PSDB de São Paulo ou com bandeiras vermelhas, o tratamento seria como o de 13 de junho. As manifestações de direita, no final, derrubaram o governo. Tivemos Temer prometendo milhões de empregos com a reforma trabalhista, o que era mentira, enquanto recebia malas de dinheiro na garagem. Depois tivemos a prisão sem provas do principal candidato de esquerda ao governo federal e eleição de um fascista que chega nos dar saudade da velocidade com a qual Temer destruía a economia, os direitos, a educação e meio ambiente no Brasil.
As nuvens de fumaça das queimadas que escondem agora o sol em quase metade do Brasil começaram ali. São mais escuras, espessas e duras, assim como as balas de borracha que cegavam os jornalistas são hoje as balas de fuzil que executam doentes mentais em surto na ponte Rio Niterói e centenas pobres e negros nas comunidades cariocas (e não só). A nuvem do fascismo, da opressão, da falta de perspectiva, já penetrou fundo nos cérebros mais frágeis. Dois adolescentes mataram oito colegas e professores numa escola em Suzano em março. Hoje, outro jovem feriu mais cinco numa escola no Rio Grande do Sul. Essas nuvens não vão se dissipar se não agirmos. Se não reagirmos. É passada a hora de quem ainda tem consciência nesse país se levantar e dar um BASTA !
José Dirceu dispensa apresentações. Um dos mais conhecidos ativistas da esquerda brasileira desde a década de 1960, passou de líder estudantil secundarista a guerrilheiro, de preso político a exilado, de clandestino no Brasil a fundador do Partido dos Trabalhadores, de Ministro Chefe da Casa Civil a condenado sem provas no chamado “Mensalão”. Nem seus mais de 70 anos, uma virose “braba” que exigiu uma “bomba” de antibiótico, uma viagem de carro de Campo Grande a Cuiabá (“estou evitando viajar de avião”) e uma queda que lhe luxou uma das costelas foram o suficiente para se negar a uma maratona de compromissos na capital mato-grossense acima de 36 graus. Reunião com a Juventude do PT pela manhã, entrevistas à tarde, palestra para cerca de 200 pessoas no início da noite e autógrafos no seu novo livro, Zé Dirceu – Memórias, Volume 1 (Geração Editorial, 2018. De sua infância à cassação do mandato parlamentar), até as 23:00 provam que ele segue sendo uma potência política e uma voz fundamental na conjuntura atual.
Áudio, fotos e vídeos: www.mediaquatro.com Edição de Vídeos: Anna Clara Natividade
Sobre a Ação Penal 470, o chamado “Mensalão”, e o ativismo jurídico:
“O domínio de fato foi precedido por uma série de medidas que já demonstravam o ativismo político e a submissão à chamada ‘pressão popular’, ou seja, da mídia, no meu caso. Eu não poderia ser cassado porque eu era deputado licenciado e a jurisprudência do Supremo rezava que não podia. Então, por sete a quatro, o Supremo mudou, durante o meu indiciamento na Câmara, o entendimento e reviu a sua jurisprudência. Isso foi em 2005 ainda. Aí construíram a tese de que o parlamentar ‘carrega’ o decoro com ele, ‘carrega’ o mandato com ele. Depois o Supremo me condenou sem provas, mas o Congresso me cassou sem provas, na verdade, dizendo que cassou o Roberto Jefferson porque ele não provou que havia o ‘mensalão’, então ele tinha atacado a honra da Câmara, e me cassaram porque eu era o ‘chefe do mensalão’.
[…] O domínio de fato não tem nenhuma relação com a minha situação, porque o próprio jurista que definiu isso disse à Folha de São Paulo que na verdade essa instituição foi criada na Alemanha para diferenciar os autores de crimes de guerra, os participantes daqueles que tinham o domínio do fato, depois de condenados para diferenciar as sentenças. Não era base para condenação. A base para a condenação eram as provas materiais. O domínio de fato foi criado para diferenciar a pena de morte da prisão perpétua, da pena de 25 anos, de 15 anos, para os demais participantes do crime. […] aqui no Brasil foi usado pra dizer que eu tinha obrigação de saber o que estava acontecendo, porque antes exigia um ‘ato de ofício’. E mais, um ministro dizia que o ônus da prova cabia a mim, o Fux, e a Rosa Weber falou, está nos anais do Supremo, que não tinha prova mas a literatura jurídica permitia. Isso teve consequências graves, abriu caminho para tudo o que assistimos depois na Lava Jato. Infelizmente nós não aprendemos a lição e ainda votamos uma legislação na Câmara que tem sido utilizada de maneira abusiva além do que o texto dos artigos permitisse, como a Lei da Delação, a Lei da Organização Criminosa, Lavagem de Dinheiro, a Lei Antiterrorista… São legislações que têm de ser cercadas de cuidados para que não sejam usada politicamente. Por exemplo, como é que alguém pode ficar preso quatro anos e depois delatar? Como é que alguém pode delatar preso? Os procuradores dizendo na imprensa que iam condenar a 100 anos, prendendo familiares, bloqueando bens, processando familiares… Como é que essa delação pode ser digna, espontânea, à vontade própria? Então houve muita pressão psicológica, na família. […]
Depois nós assistimos às ilegalidades, algumas que o Supremo já deteve, como é o caso das conduções coercitivas sem a recusa do investigado ou réu de se apresentar em juízo quando é intimado pela autoridade competente. Isso agora está proibido. As prisões preventivas, eu fiquei preso um ano e nove meses sem ser julgado na segunda instância. As antecipações de pena… E a situação está se agravando. Hoje não há sigilo bancário, fiscal, telemático, nenhum. O Ministério Público tem o poder de fazer investigações sigilosas, dizem que são administrativas, mas foi o Supremo que deu aquilo que a Constituinte negou. A Constituinte negou que o Ministério Público Federal, Estadual, fosse a polícia judiciária na União e nos Estados. O Supremo em 2016 deu o poder de investigação ao Ministério Público: quem investiga, acusa. Então nós estamos tendo não só o ativismo judicial”
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Sobre a Lei Antiterrorismo e os Movimentos Sociais
“O mais grave é a tentativa de usar Lei Antiterrorismo contra os Movimentos Sociais como ele (Jair Bolsonaro) ameaçou, de classificar o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de terroristas. Isso é gravíssimo! […] Os movimentos têm de atuar dentro da lei, defender a lei, recorrer à lei, ao Ministério Público, ao judiciário. Eles que fiquem com o ônus de compactuar (com as ilegalidades). Como foi o caso da cassação da candidatura do Lula. Nós não podíamos retirar a candidatura do Lula, o Lula desistir, indicar outro. O Lula tinha de ser registrado como candidato porque assim a Constituição reza, porque não foi condenado em última instância.
Evidentemente que, no caso concreto, os movimentos têm todas as condições jurídicas de atuar dentro da lei. E nós temos que lutar para mudar as leis que nós consideramos injustas, faz parte. Lei é produto da sociedade, do movimento da sociedade, das lutas sociais, das lutas políticas, das transformações econômicas e sociais de um país”.
Sobre seu papel hoje e o governo Bolsonaro
“Fazer o que estou fazendo. Andar pelo país, ouvir, aprender, reler o país, que mudou muito nos últimos 15 anos, desde que o Lula foi eleito presidente, nos cinco anos em que eu estive ausente. Falar, contar a minha história, a história da minha geração. Defender o PT, defender o legado de Lula. Defender aquilo que mas propostas que estão sendo apresentadas pelo novo governo com relação a várias questões importantes para o país. Primeiro, a democracia. Realmente a defesa radical da democracia, das liberdades, das garantias individuais, que ele vive ameaçando. Fala em desconstituir os direitos difusos, do consumidor, da mulher, do negro, do índio, do meio-ambiente. Em outros momentos mistura Estado com religião, e isso é gravíssimo, só olhar os conflitos no mundo. Ameaça usar a violência contra os adversários, várias vezes, reiteradas vezes, ou antinacional, apesar de falar de Brasil, Brasil, Brasil. Mas as propostas dele, econômicas, essa submissão dele à política econômica externa do Trump, essa coisa quase inacreditável de colocar o Brasil nessa posição de satélite dos EUA. E principalmente a política econômica, a austeridade, corte de gastos, desconstituição de direitos sociais…
Economia pelo lado do trabalhador, da saúde, da educação, da previdência, não do lado dos juros e da reforma tributária. Não da propriedade, da riqueza e da renda daqueles 10% de brasileiros que têm a metade da renda nacional. E sim dos 50% de brasileiros, 100 milhões, que só tem 10% (da renda). Muito menos do que aqueles 0,1% que têm quase 30% da renda nacional e que deviam pagar imposto sobre grandes fortunas, heranças, doações. Como aconteceu na Franca, agora, quando o clamor nacional foi taxar as grandes fortunas e não a gasolina”.
E a conjuntura nacional em relação à internacional?
“Vejam o que está acontecendo agora na França, na Argentina, na Hungria. Haverá resistência, haverá oposição, haverá luta. Haverá muita oposição às futuras medidas. Eu espero que o futuro governo se mantenha dentro da democracia e aceite as regras do jogo democrático, como nós aceitamos quando eles ocupavam as ruas do país, paravam o país, protestava, ocupavam Brasília, até chegar ao ponto de derrubar a presidenta através de um impeachment que todos nós sabemos que foi forjado. Uma inverdade de pedaladas, de uso de transferências de recursos complementares sem autorização constitucional, enquanto nós sabemos que nada disso era crime de responsabilidade”.
A oposição terá poder para propor mudanças nas leis e resistir ao retrocesso político?
“Nós temos experiência acumulada no Brasil para apresentar propostas de reforma da previdência, tributária, contrapondo a dele (Bolsonaro). Também de sistema bancário e de reforma política. E temos também como enfrentar. Porque o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, e os procuradores que estão em torno dele, podem apresentar uma série de propostas de reforma do Código de Processo Penal que, na verdade, como a prisão em segunda instância, são outra invasão da atribuição constitucional. Isso só o Congresso pode mudar a Constituição onde diz que alguém só pode ser considerado culpado quando o último recurso tramita julgado no Supremo ou no STJ. Tanto é que os procuradores tinham proposto fazer essas mudanças constitucionais, o Ministro Peluzzo, enquanto Presidente do Supremo, enviou uma proposta de PEC pro Congresso, mas não passou.
Então acredito que nós temos condições, sim, de por exemplo debatermos mudanças no regime penal. O que quer o presidente eleito? Terminar com as progressões de penais, agravar as penas… Agora, com essa estrutura penitenciária que nós temos no país, enquanto toda a tendência no mundo é cada vez menos regime fechado, cada vez mais multas pecuniárias, perda de direitos e funções, trabalho alternativo, em último caso exigir regime fechado. Se você não dá condições para o preso trabalhar e estudar, se não dá pra ele condições mínimas de vida, lógico que ele não só reincide no crime, como passa a participar das organizações criminosas como o PCC porque eles têm estrutura para dar apoio e cobertura pra família dele e para ele, às vezes pra fugir, inclusive”.
Como tem sido o cumprimento das sentenças de cadeia por você e pelo Presidente Lula?
“Bom, falando sobre o Presidente Lula, muito bem, com altivez, dignidade, trabalhando, lendo, escrevendo, se relacionando com os companheiros e companheiras todos dos partidos, as lideranças, recebendo visitas. E ele está se defendendo através de seus advogados nas instâncias da justiça e denunciando quando há decisões que nós consideramos que atingem as garantias de direitos individuais e do devido processo legal, o contraditório, que o ônus da prova cabe ao acusador e mesmo quando determinados institutos jurídicos são deformados e utilizados contra nós.
No meu caso, eu fiquei preso um ano e nove meses, já tinha ficado preso sete mesmo no fechado no chamado ‘mensalão’ e quatro meses no semiaberto e dez no aberto. Então eu cumpri a pena e fui indultado, o que é uma verdadeira mancha na história do Supremo Tribunal Federal. […] Eu cumpria pena e transformei um ano e oito meses que eu fiquei preso no Centro Médico Penitenciário de Pinhais no Paraná numa luta. Cuidei de uma biblioteca, reorganizei para atender os presos, sábado e domingo escrevi esse livro que agora estou divulgando pelo Brasil, cuidei da minha família e sou muito grato pela solidariedade e apoio que tive por todo o país.”
Sobre as disputas com a Direita:
“Nós temos que nos acostumar, porque até é um direito, que o MBL, ou as igrejas evangélicas, ou pastores, façam a disputa política conosco, seja pelos bairros das cidades, seja nas universidades e nos sindicatos, porque eles vão acabar trazendo a pluralidade sindical. Nós temos que lutar, porque nós temos do nosso lado os direitos dos trabalhadores e teremos apoio deles. É só olhar a Argentina, a França a Hungria e você vê isso.
Haverá luta no Brasil, haverá resistência na tentativa de retirar direitos. Tem de tirar privilégios, isso nós vamos apoiar! Fazer Reforma da Previdência começa com militares e judiciário, não pelos trabalhadores rurais e pelos trabalhadores da iniciativa privada, que esses contribuem, empregado e empregado, em meio trilhão de reais na Previdência do INSS. Agora, os militares contribuem com R$ 2 bilhões e custam R$ 34, o funcionalismo público, principalmente o judiciário, não contribui nem com 20% dos benefícios que recebe. Então, haverá luta. A ditadura já tentou criar os Diretórios Acadêmicos pelegos, proibiu a UNE, os DCEs. Mas nós sobrevivemos. Em 1976, 77 a UNE já estava reconstruída. E nós mesmos enfrentamos a ditadura e reabrimos todos os centros acadêmicos ainda na década de 60. Agora, é preciso mudar os métodos de atuação dos partidos, do movimento social, das centrais sindicais, que já estão se reunindo para criar seminários e construir um Congresso das Classes Trabalhadoras para enfrentar as medidas do Bolsonaro”.
E quanto às Comunicações?
“O que nós assistimos na campanha foi que foi feita uma reforma eleitoral que deu direito ao candidato de autofinanciar sua campanha. Isso liberou o poder econômico, porque o Meirelles gasta R$ 40 milhões, mas os candidatos do PT, nenhum tinha mais de um milhão pra gastar e assim mesmo do fundo partidário. Segundo, eles diminuíram o tempo de rádio e televisão, nos dias e horários. Aís as televisões, os jornais e as rádios é que faziam a campanha. Terceiro, e é mais grave ainda, eles não combateram Fake News, não combateram o uso ilegal das redes, entendeu? E mais, não combateram a compra de votos! Porque houve uma compra de votos no país imensa. Nós temos que ter, já podíamos ter tido desde 2008, capacidade de responder nas redes. Porque em 2008, na eleição do Obama, já ficou evidente a importância das redes, e na do Trump nem se diga, dando até numa crise internacional. O problema do Brasil é que se precisa aplicar a Constituição. É isso! Porque agora eles começam a ter concorrência pela primeira vez, a Globo, a Record, SBT, Bandeirantes, a Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, porque o El País tem um jornal na internet e a internet não exige capital nacional, onde só permite 33% de capital estrangeiro, então vão ao Supremo tentar impedir que o El País tenha uma página, um jornal aqui. Mas eles não têm como impedir que as plataformas da Amazon, Netflix, Fox, Warner, Disney, entrem no país. Uma coisa é taxar o Google, taxar os grandes grupos econômicos, grandes monopólios, agora, não tem como impedir que eles disputem publicidade. Então eles (a Grande Mídia nacional) vão ficar cada vez mais dependentes do sistema bancário, da indústria automobilística, farmacêutica, imobiliária e mais dependentes do governo, da publicidade governamental, que é uma grande força principalmente para as oligarquias políticas que dominam rádio e televisão nos estados, onde duas ou três famílias de políticos dominam o cenário. Nós para nos opormos a isso hoje, não precisamos de jornal impresso, nem de televisão, basta utilizar as redes. E o Bolsonaro mostrou isso na campanha. Lógico que isso desequilibra a luta democrática: poder econômico e oligarquias midiáticas fazendo campanha abertamente pra políticos tentando controlar a opinião pública nos estados.
Hoje não há diversidade e pluralismo na Rede Globo, por exemplo, nem na GloboNews. E não há informação, há ‘formação’. Todo o tempo querendo convencer o país de um determinado rumo. É um direito deles fazer isso no editorial. Mas os debates, entrevistas, têm de ser plurais e diversificados porque a Constituição exige. Então o que nós precisamos fazer e não fizemos é aplicar a Constituição”.
Patriotismo, religião e sexo:
“Essa tentativa do Bolsonaro é a mais perigosa. A manipulação da fé do povo. Na verdade, ele usa o nacionalismo, a pátria, religião e a família, como aliás os militares usavam em 64. Era a Marcha da Família, com Deus pela Liberdade, como se o Brasil estivesse ameaçado pelo comunismo, pela União Soviética. Agora é a Venezuela, o PT, são os vermelhos. Há uma manipulação muito grande. E há uma intenção clara de reprimir a diversidade, o pluralismo, as diferentes orientações sexuais. Há um preconceito muito grande contra o pobre, o negro.
Mas ele, até porque não foi tratado pela mídia como deveria ter sido tratado, a mídia foi conivente muitas vezes e omissa com as declarações que ele fazia como ‘matar 30 mil’, ‘vamos metralhar os petistas’, deixando claro o preconceito racial, no caso dos quilombolas, deixando claro o machismo dele, exacerbado, com relação às mulheres, quando acha natural que as mulheres ganhem um salário desigual ao dos homens, que a mulher seja do lar, recatada, essa história que a função da mulher é ser mãe, e tudo isso a humanidade, inclusive o país que ele usa como referência, os EUA, já superou. É um direito das pessoas não concordarem com isso, temos de respeitar. Agora, o governo tentar fazer disso uma escola sem partido? Daqui a pouco vai fazer teatro sem partido, música sem partido, literatura sem partido, imprensa sem partido, igreja sem partido, ou seja, uma coisa totalitária e isso nós temo de combater”.
A questão das disputas e talvez conflitos na América Latina e no mundo.
“Os EUA são um império em decadência e a China em ascensão. Não existe império que entra em decadência sem lutar. O Trump já é a expressão disso: uma tentativa de defender a América em primeiro lugar, de defender a economia e o emprego nos Estados Unidos. Tudo o contrário que o Bolsonaro está pregando no Brasil. O Bolsonaro devia aprender com o Trump a defesa dos interesses nacionais, do emprego brasileiro, da indústria brasileira, da tecnologia brasileira. A China, por outro lado, será a maior potência do mundo nos próximos anos. A questão da guerra comercial, no fundo, é uma cortina de fumaça pra isso. Na verdade, o Trump está esperneando para tentar evitar a decadência dos EUA.
Com relação à América Latina, o Lopes Obrador acabou de ganhar a eleição no México. O Macri hoje perderia a eleição na Argentina. É verdade que o Piñera voltou ao poder, mas ele já perdeu pra Michele Bachelet e surgiu um partido novo forte agora no Chile. Então, são altos e baixos e luta da política e social. A Frente Farabundo Martí governa duas vezes El Salvador. Daniel Ortega já está há dois mandatos na Nicarágua. No Panamá é bem provável que vença uma frente progressista. Na República Dominicana tem um governo progressista. Em Honduras houve um golpe para interromper o governo Zelada. No Equador o Rafael Correa fez seu sucessor mas foi traído, mas ele continua com o respaldo que num plebiscito completamente manipulado ele teve 36% de votos. E o próprio Peronismo resiste, sobrevive e pode vencer novamente na Argentina.
Sobre intervenção militar, conflito regional, se os americanos decidem fazer uma intervenção na Venezuela é evidente que haverá um conflito regional porque imediatamente 500 mil venezuelanos irão imigrar para o Brasil e um milhão para a Colômbia. E muitos colombianos irão imigrar para o Equador, como aconteceu em outros momentos. Vai ser uma desagregação da Amazônia e Colômbia, Equador e Brasil se verão envolvidos nesse conflito. Não adianta falar que não acontecerá. Tem de se opor à intervenção nos assuntos internos da Venezuela. […] Os militares brasileiros, a elite brasileira ficam sonhando com o guarda chuva americano, isso é uma ilusão”.
Como está o Brasil hoje?
“As riquezas que o Brasil tem, o pré-sal que estão entregando, a Amazônia, a água, as terras, o sol… O Brasil é o país mais rico do mundo, porque não tem inverno. Outros são ricos como o Brasil mas têm inverno, como a China, a Rússia, o Canadá. E o Brasil é o sexto país do mundo, quinto território, oitava economia… Industrializado, rico, mas tem desigualdade e pobreza. O principal problema do Brasil é a desigualdade, não é o déficit público, não é o problema do sem-terra ocupar terra, ou o sem-teto ocupar áreas abandonadas nas cidades.
O problema do Brasil é a profunda desigualdade e o profundo egoísmo das elites e a vocação delas para o autoritarismo. A história do Brasil prova isso. Quando há ascensão social, cultural, política, de amplas massas do povo trabalhador, eles vêm e dão o golpe e colocam um governo de direita, muitas vezes com apoio de parcelas dos trabalhadores. Mas a verdade esse é o ciclo da vida histórica do Brasil”.
Em 14 de setembro de 2017, a Universidade Federal de Santa Catarina foi surpreendida com a invasão da polícia federal para prisão de um funcionário e seis professores, entre eles o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, acusado de chefiar uma quadrilha que roubou R$ 80 milhões. Duas semanas depois, Luiz Cancellier não suportou o linchamento moral e a humilhação pública produzida pela imensa calúnia oficial que sofreu. No dia 2 de outubro, lançou-se do sétimo andar do Beira-mar Shopping de Florianópolis, oferecendo seu cadáver para denunciar um crime de abuso de poder e um espetáculo midiático sem precedentes que violou os direitos jurídicos e a dignidade de um cidadão inocente.
Uma composição artística das imagens desse massacre contra os direitos humanos praticado no governo do golpe será projetada nas paredes externas do Cic – Centro Integrado de Cultura, em Florianópolis, onde ocorre a Mostra Strangloscope, com apoio da Secretaria de Cultura e Arte da UFSC – Sécarte. Desde o momento da operação policial que prendeu o reitor, a cineasta intervencionista Clélia Mello capturou um grande volume de imagens de manchetes, jornais, vídeos, sites e páginas da internet que compõem a ópera do suicídio político do jornalista, professor e jurista.
Editadas vertiginosamente, sem repetição, as imagens e letreiros colocam o leitor diante dos acontecimentos midiáticos que denunciam o crime da própria espetacularização jurídica sem impor um posicionamento a priori. A ideia desse cinema expandido é que cada um faça, na intersecção entre o racional e o sensível, sua própria síntese dos elementos que se interligam nessa tragédia resultante do que podemos chamar de Fake News oficial.
Projeção hoje na fachada do Centro Integrado de Cultura, em Florianópolis
Quinta (20/09) às 20 horas Mostra Strangloscope/ Secarte /UFSC
Mostra temática ‘da natureza política’
Artista intervencionista Clélia Mello
Matéria feito por Rodrigo de Novaes, do Jornal Empoderado
Na mesma linha das mudanças recentemente organizadas pelo governo federal, intransigentes e buscando retrocesso dos avanços duramente conquistados pela sociedade, foi aprovada a nova Política Nacional de Saúde Mental. A medida, há anos concebida em moldes gerais pela Associação Brasileira de Psiquiatria, tem viés puramente mercadológico. Busca concentrar as ações de saúde mental nas mãos dos psiquiatras e sinaliza para a volta dos manicômios. Distancia os outros profissionais de saúde do cuidado e, o que é mais grave, precariza os Centros de Atenção Psicossocial.
De todos os retrocessos encabeçados pelo governo Temer, este é talvez um dos maiores.
A reforma vai contra todo um movimento iniciado na Itália no século passado que visava mudar radicalmente a forma de se acompanhar a pessoa com problemas de saúde mental. Vale lembrar, Foucault e tantos outros escreveram sobre isso, que as sociedades ao longo da história da humanidade procuraram sempre segregar o paciente com problemas de saúde mental. O “ louco” ( termo leigo com o qual nos acostumamos) fora sempre apartado do convívio com os outros. Muitos morreram, acusados de heresia. Outros foram lançados em barcos pelos rios da Europa ( a famosa nau dos loucos). A maioria, entretanto, era confinada em lugares insalubres, segregada, tratada com o cuidado que se dá aos animais. A realidade, antes sob a forma de celeiros e depois nos lúgubres manicômios, perpetuou-se até a nossa história recente. Filmes como “ Bicho de sete cabeças” abordaram o tema no contexto do nosso país.
Este contexto começou a mudar no início do século passado a partir de modelos como o do psiquiatra italiano Basaglia, que vislumbrava uma linha de cuidado do paciente com doença mental que agregasse humanização e inserção na sociedade. Suas experiências foram rapidamente adotadas pelos maiores centros de referência e sua concepção é hoje a mais aceita pelos teóricos. No Brasil surgiram na cidade de Santos os NAPS ( Núcleos de Atenção Psicossocial) que mais tarde inspiraram a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), existente em todas as cidades do Brasil. Em consonância com as teorias mais recentes, nosso país viu médicos, psicólogos, sanitaristas e terapeutas ocupacionais entre outros encabeçarem a bem sucedida Reforma Psiquiátrica, que visava mudar radicalmente a forma como eram abordados as pessoas assistidas.
A nova Política Nacional de Saúde Mental pretende, entre outras coisas, reduzir drasticamente os investimentos em aparelhos humanizadores como os CAPS e endossar investimentos em enfermarias. É a trágica volta dos manicômios. Conseguimos, bizarramente, ir contra tudo o que se pensa em saúde mental na atualidade.
Muitos psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, sanitaristas e membros da sociedade organizada tem se posicionado contra o retrocesso. Cabe a todos nós, brasileiros e cidadãos, lutar por uma forma mais digna de abordar as pessoas em sofrimento mental.
Quer dizer, para as famílias mais pobres, o aumento de R$ 3,80 para R$ 4,00 nas tarifas de ônibus, metrô e trem em São Paulo, determinado pelo prefeito João Doria e pelo governador Geraldo Alckmin nesta virada de ano, não causam impacto apenas no orçamento. A maior restrição à mobilidade afeta, como consequência, a saúde psíquica das pessoas de baixa renda. Quem propõe essa análise é o psicanalista Daniel Guimarães, um dos criadores da Clínica Pública de Psicanálise. Ele escreveu sobre a hipótese num artigo para o site Outras Palavras.
“O meu ponto é baseado em levantamentos recentes de que o sofrimento psíquico, incluindo formas mais agudas como a loucura, é maior entre a população pobre. Portanto, qualquer medida que afete economicamente a população de forma negativa a coloca em riscos maiores dos que os que já vive. O que fiz, agora com alguns recursos da psicanálise, foi levar esse argumento para a dimensão da saúde psíquica”, explica.
Ele se refere à pesquisa “São Paulo megacity – um estudo epidemiológico de base populacional avaliando a morbidade psiquiátrica na região metropolitana de São Paulo: objetivos, desenho e implementação do trabalho de campo”, de Maria Carmen Viana, Marlene Galativicis Teixeira, Fidel Beraldi, Indaiá de Santana Bassani e Laura Helena Andrade. Publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria em dezembro de 2009, ele pode ser lido, em inglês.
A ligação entre a psicanálise e o debate sobre mobilidade não é à toa. Natural de Florianópolis, Santa Catarina, Guimarães, de 34 anos, foi um dos fundadores, em 2005, do Movimento Passe Livre (MPL), que propõe a gratuidade no transporte público e convoca protestos contra aumentos de tarifa em várias cidades do Brasil. Vivendo na capital paulista há dez anos, ele se tornou psicanalista e, pouco depois de se afastar organicamente do movimento, participou em 2016 da criação da Clínica Pública de Psicanálise, que realiza atendimentos gratuitos a pessoas de baixa renda.
Segundo o psicanalista, “o impedimento do deslocamento do corpo na cidade empobrece o repertório de imagens, palavras, sons e ruas, aquilo que usamos para produzir fantasias que nos confortam em situações de frustração. Um repertório psíquico mais pobre pode encontrar mais dificuldade para encontrar saídas quando o sofrimento chega”.
Na entrevista a seguir, Daniel também fala sobre as possíveis consequências do sofrimento psíquico “coletivo” nos territórios periféricos, da necessidade de se popularizar a psicanálise e do trabalho da Clínica Pública de Psicanálise.
DIPLOMATIQUE – Você defende que o aumento das tarifas de ônibus, metrô e trem tem impacto negativo na saúde psíquica da população. O que uma coisa tem a ver com a outra?
Daniel Guimarães – É uma extensão de um argumento que o Movimento Passe Livre levanta há muitos anos. Cada aumento representa índices mais elevados de exclusão. O custo do transporte é um dos maiores no orçamento familiar. Num país de extremos e muita miséria como o Brasil, qualquer elevação no preço da passagem significa redução de usuários do transporte. Isso quer dizer que a população mais pobre, em especial a periférica, acessará menos os serviços públicos centralizados e já muito burocratizados. O meu ponto é baseado em levantamentos recentes de que o sofrimento psíquico, incluindo formas mais agudas como a loucura, é maior entre a população pobre. Portanto, qualquer medida que afete economicamente a população de forma negativa a coloca em riscos maiores do que os que já vive. O que fiz, agora com alguns recursos da psicanálise, foi levar esse argumento para a dimensão da saúde psíquica.
Desde coisas muito concretas como o aumento do forte desconforto emocional nos trens e ônibus lotados – a cada aumento se reduz a quantidade de usuários o que, por sua vez, faz as empresas reduzirem a quantidade de viagens ofertadas, ampliando a quantidade de pessoas por metro quadrado –, o desperdício de energia psíquica nas longas esperas, a falta de conforto nas horas acumuladas nos longos trajetos, maior risco para mulheres por conta dos abusos… a lista é longa. Há uma música chamada “A volta pra casa”, do Rincon Sapiência, que ilustra bem o que estou querendo dizer. Mas, além disso, inseri uma nova hipótese, que é apenas o início de uma pesquisa natural para mim, que agora sou psicanalista, mas por mais de dez anos militei no Movimento Passe Livre. O impedimento do deslocamento do corpo na cidade empobrece o repertório de imagens, palavras, sons e ruas, aquilo que usamos para produzir fantasias que nos confortam em situações de frustração. Um repertório psíquico mais pobre pode ter mais dificuldade para encontrar saídas quando o sofrimento chega. Apostaria que saber que há um mundo lá do outro lado que não pode ser acessado é um a mais de frustração. Ou ainda pior: saber, sem reconhecer os motivos, talvez até assumindo responsabilidade e culpa por isso.
O sistema de transporte tarifado é uma espécie de apartheid, e proponho o arcabouço da psicanálise para tentar explicar os fenômenos que vêm sendo demonstrados, que citei anteriormente: o maior índice de loucura entre pobres e o maior número de formas amplas de adoecimento psíquico entre populações com a capacidade de mobilidade reduzida. É um salto metafórico da mobilidade do corpo para seus equivalentes psíquicos. Nesse sentido, políticas públicas de direito à cidade, como a tarifa zero, poderiam ser fortes aliadas na saúde mental da população, não apenas para ter acesso a equipamentos públicos centralizados, mas também para passear, ver outras paisagens, ouvir novas palavras, encontrar pessoas de outros lugares, se aventurar e, ao voltar, poder sentir o estranhamento com relação ao próprio espaço onde vive. Desnaturalizar as coisas. Por que no centro há mais árvores? Por que tem metrô só até tal lugar? Por que não posso deslocar meu corpo e meu desejo para encontrar a pessoa amada? E assim por diante.
Negros e mulheres são os grupos que mais sofrem com a pobreza, como aponta, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Pode-se concluir que estes (em última instância, a mulher negra) são os grupos populacionais que mais sentem os efeitos psíquicos do que você chama de “exílio periférico”?
Me parece que são pesquisas a serem feitas. A aposta é que sim, pelas características de classe com atravessamentos de gênero e raça que é o nosso próprio tecido social esgarçado.
Quais as consequências de um aumento de tarifa para o tecido social de um território em que a imensa maioria das pessoas sofre “coletivamente” desse adoecimento psíquico?
Acredito que medidas como essa façam a vida social ser mais sofrida, menos solidária, mais violenta entre os mais pobres ou a partir dos mais pobres em relação aos mais ricos, que sofrerão isso que se chama “violência urbana” quando ela alcança o centro. É um trajeto dialético iniciado pelo mercado, empresas de ônibus e prefeitura em especial, que ataca a população, reduzindo suas perspectivas de vida, passando pela repressão física policial. E entre esta população de exilados, como chamava [o geógrafo] Milton Santos, negros e mulheres estão em condições de desvantagem por aspectos históricos da nossa formação des-urbana. A cidade, que vai deixando de ser cidade para ser apenas um grande mercado, deixa de ser espaço social. Essas medidas econômicas antipopulares são, portanto, antissociais.
Você escreve que há uma imagem de que a psicanálise é um serviço prestado por integrantes de classes abastadas para integrantes de classes abastadas. Por que essa é a imagem que prevalece?
Talvez porque foi assim que a psicanálise primeiro se estabeleceu no Brasil, a partir de médicos psiquiatras higienistas. Muito mudou da década de 1930 para cá, é evidente. Psicanalistas críticos, de esquerda, foram essenciais na própria formulação do sistema de saúde pública, agora sob risco após o golpe [o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016]. Muita prática revolucionária passou pelo campo da psicanálise. Nomes como Hélio Pellegrino, Nise da Silveira, Antonio Lancetti, para citar poucos. Mas há espaço para uma controvérsia de difícil solução. Pode ser que a psicanálise acerte mais do que erre ao permanecer marginal como profissão e “oficialmente” ausente das formações no ensino superior. Cursos de psicologia de universidades públicas talvez sejam os grandes propagadores da psicanálise para além da super elitizada Sociedade Brasileira de Psicanálise. Mas há a questão difícil da forma como alguém se torna analista. No arranjo pedagógico que temos à nossa disposição é muito delicado formar um analista. Se a própria análise é central nesse processo, em que o sujeito passa pela experiência de suas próprias questões e conflitos inconscientes, como qualificar este processo em termos de avaliação? A crítica ao modelo da análise didática [análise à qual o futuro analista se submete, como parte de sua formação], ainda em vigor, me parece ser de enorme valor.
Então temos um cenário em que os psicanalistas são pessoas que passaram por cursos de psicologia, ou medicina/psiquiatria e que, depois, cursaram especializações em psicanálise, enquanto faziam sua análise pessoal pagando grandes valores. Algumas instituições, como as onde eu estudo, ampliaram muito as portas para fora desse modelo, barateando a mensalidade, não exigindo um processo analítico com integrantes da própria instituição, embora exija alguma formação acadêmica prévia. Por sorte eu tinha um diploma de jornalista. Mas foi a vida vivida que me levou para um consultório de psicanálise como paciente e, de lá, me instigou a estudar e fazer psicanálise do outro lado da poltrona.
O próprio sistema público de ensino é uma questão, aliás. Sua ampliação foi interrompida após o golpe recente. É necessário inserir a psicanálise no sistema de saúde pública – e lutar mesmo pela manutenção e ampliação da saúde pública. Talvez seja esse o horizonte da Clínica Pública de Psicanálise. Atender quem nos procura e não pode pagar os preços do mercado da psicanálise. Demonstrar que há demanda popular por cuidado emocional e que a psicanálise, esse tratamento pela fala, escuta e relação, está sendo buscada por pessoas que não se sentiram cuidadas o suficiente por outros modelos, em especial os puramente baseados em medicamentos.
Mas é também necessário dizer que a psicanálise precisa ser popular no sentido de permitir que a população mais pobre possa sonhar se apropriar dela. Não será suficiente os analistas críticos socialistas de classe média atenderem os pobres. Ou, pior ainda, criarem formas precárias de atendimento, que servem mais aos interesses desses analistas que preferem dedicar pouco do seu tempo para um trabalho tão sério e relevante. Será fundamental inserir a psicanálise também no imaginário popular. Se o imaginário popular assim desejar, é claro, a própria psicanálise será transformada. É uma questão importante, central mesmo. Não nos interessa utilizar a psicanálise como forma de reeducação das pessoas. Não somos professores de nada, tampouco temos um projeto pronto. Nossa tarefa é proporcionar mais energia psíquica para quem nos procura. Seja lá qual destino essa pessoa dê para essa energia que estava, digamos, encatracada.
Você pode explicar melhor então como é o trabalho da Clínica Pública de Psicanálise?
Nós temos algumas formas de trabalho. Em primeiro lugar, é importante dizer que existimos lá, na Vila Itororó [no bairro paulistano da Bela Vista], para que não seja esquecido que naquele conjunto de casas habitavam famílias. Elas foram removidas, em nome de um certo tipo de conceito de “público”, ao qual nos opomos, para que ali se tornasse um desses polos de cultura de mercado. Então começamos a clínica para proporcionar a essas famílias a possibilidade de elaboração daquela violência. Para ressignificar o conceito de público, a favor da população e não do mercado.
Depois de mais de um ano e meio de trabalho fomos percebendo que muito mais importante do que atender aquelas pessoas – as que aderiram à ideia, pois nenhuma foi obrigada a participar – seria manter essa história viva. Porque casos como esse são recorrentes no nosso período histórico e é importante que se saiba que há sofrimento quando famílias que moravam juntas são separadas. Que há sofrimento quando a sua noção de território espacial se confundia com o território psíquico existencial e as duas são abruptamente, sem seu desejo, separadas. Destroçadas. Como essas pessoas reconstruirão suas vidas e relações?
A partir disso fomos ampliando as formas de atendimento. Sempre com um rigor semelhante ao nosso trabalho em consultório e, ainda melhor, transformando nossa forma de trabalho em consultório a partir das experiências – não confundir com experimentos – ali realizadas. Mas nunca como um “plano b” para os pobres. Somos aproximadamente nove analistas, três supervisoras e uma artista. Mais analistas entrarão para o grupo em 2018. Cada um de nós atende de três a dez pacientes regulares. Temos também um plantão que funciona aos sábados, onde as pessoas podem ir quando quiserem e ser atendidas pelo mesmo analista que as atendeu anteriormente. O grupo de analistas que atua no plantão é sempre o mesmo. Há alguns meses começamos também um trabalho em grupo aos sábados. O grupo é aberto, não é necessário retirar senha como nos atendimentos individuais nos plantões, que funciona por ordem de chegada. Minha impressão é que, diante da solidão na megalópole da cultura contra a política organizada, a combinação de trabalho terapêutico em grupo e os atendimentos individuais está sendo muito boa.
Em 2018 pretendemos também ampliar o aspecto de formação na Clínica. Ano passado apoiamos um curso do Margens Clínicas, coletivo companheiro da nossa caminhada, além de abrir espaço para um grupo de estudo de mulheres que estão interessadas na formação da subjetividade racial brasileira a partir de uma referência marxista e psicanalítica. No futuro, quem sabe, poderemos aos poucos produzir nosso próprio grupo de estudos e, assim, criar esse espaço de formação popular de psicanalistas, trazendo para os estudos de psicanálise os mais variados conteúdos interdisciplinares que circulam pela vida intelectual e afetiva popular. Talvez então a Clínica Pública de Psicanálise seja um trabalho contracultural, político, que realiza no agora o que poderia vir a ser um serviço público, construído de forma independente, de baixo para cima.