Jornalistas Livres

Categoria: Negras e Negros

  • Mais amor, menos ódio

    Mais amor, menos ódio

    Reportagem e edição: Jennifer Mendonça, Fernando Sato, Lisa Costa, Marcela Montserrat e Maria Carolina Trevisan, para Jornalistas Livres

    O coração de Mãe Gilda começou a morrer no segundo em que viu sua foto estampada na capa da Folha Universal, jornal da Igreja Universal do Reino de Deus, ao lado da manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Era outubro de 1999 e a publicação ligava a iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, responsável pelo terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador (BA), a práticas ilícitas. Nos dias que se seguiram, sua casa foi invadida, seu marido foi agredido verbal e fisicamente, e seu terreiro foi incendiado. O coração de Mãe Gilda parou para sempre no dia 21 de janeiro de 2000, em um infarto fulminante. O ódio a matou.

    Para reverenciar a memória de Mãe Gilda e lembrar que intolerância religiosa é crime, foi criado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa em 2007. Diversos atos pacíficos aconteceram pelo país. Veja, no vídeo em destaque, a manifestação em São Paulo, que aconteceu no vão do MASP, na Avenida Paulista, e teve a participação de cerca de 600 pessoas.

    Religiões de matriz africana 

    Foto: Fernando Sato/Jornalistas Livres
    Foto: Fernando Sato/Jornalistas Livres

    A liberdade de crença é garantida pela Constituição. Os principais alvos são as religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. Boa parte dos atos de intolerância são motivados pelo racismo.

    No ano passado, a iyalorixá Mãe Dede de Iansã teve um ataque cardíaco fulminante na Bahia. Sua família alega que o coração da nonagenária parou de bater por causa de perseguições sofridas durante um ano inteiro. na noite anterior a sua morte, fiés de uma igreja evangélica teriam passado a madrugada em vigília proferindo ofensas contra seu terreiro. 

    As denúncias de discriminação religiosa recebidas pelo Disque 100 atingiram em 2015 seu maior número desde 2011, quando o serviço passou a receber esse tipo de denúncia. No ano passado, foram reportados 252 casos, um aumento de 69% em relação a 2014. Os estados do Sudeste concentram a maioria das denúncias.

    Entre os casos de intolerância religiosa, as religiões de matriz africana são os principais alvos.

    No Rio de Janeiro, casos compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro, mostram que mais de 70% dos 1.104 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Rio entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matriz africana.

    Uma menina de 11 anos foi atingida na cabeça por uma pedrada na Zona Norte do Rio de Janeiro quando voltava de um culto, vestida com as roupas dos candomblecistas.

    No Distrito Federal, o governador, Rodrigo Rollemberg, sancionou uma lei, nesta quinta-feira (21/1), que cria a 1a delegacia para investigar crimes de intolerância religiosa. Nos últimos meses, quatro terreiros de religiões de matriz africana foram incendiados no Distrito Federal e entorno. Durante a assinatura da lei, policiais civis do DF fizeram uma manifestação contra a criação da delegacia especializada alegando déficit de funcionários.

    Direito de liberdade de crença

    Foto: Fernando Sato/jornalistas Livres
    Foto: Fernando Sato/jornalistas Livres

    A Constituição Brasileira prevê, em seu artigo 5o, a liberdade de crença religiosa, a proteção e o respeito às manifestações religiosas:

    “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”

    O Código Penal brasileiro também define discriminação religiosa como crime:

    “Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso;”

    Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

    “Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.”
    É obrigação do Estado (que supostamente é laico) garantir esses direitos. “Para esse país aprender a ser um país laico, ele precisa ter amor pelas pessoas, independente de qualquer coisa”, explica a sambadeira Dulcineia Cardoso, a Nega Duda, há 10 anos cantora do bloco afro Ilu Obá de Min, e importante voz na luta pelos direitos das mulheres negras. “Estamos aqui na luta, como a gente faz todos os dias.”
    É preciso respeitar o coração. O ódio faz o coração parar.

    ‪#‎JornalistasLivres‬ no enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa.

  • Racistas no voo da TAM eram funcionários da empresa!

    Racistas no voo da TAM eram funcionários da empresa!

    Por Fernando Sato, especial para os Jornalistas Livres

    “Eu sou de boa, mas depois que começaram a vender passagem nas Casas Bahia, ficou foda andar de avião.”

    Uma piadinha de mau gosto em algum programa de “humor” na TV? Não, poderia ter sido, pois tem programa de “humor” que vou te contar, mas não. Essa frase foi escrita numa comunicação pelo whatsapp entre passageiros de um voo TAM, trajeto Brasília-São Paulo, num sábado.

    Alguns integrantes do Treme Terra, grupo de música e dança negra contemporânea criada no Morro do Querosene, Butantã, estavam voltando de Brasília, onde tinham participado do Encontro Nacional da Juventude. Com eles, estavam também no voo integrantes do NUN (Núcleo Universitário Negro) da UFRJ, Sarau Afrobase, Rua — Juventude Anticapitalista, O PREÇO, Revista Vaidapé.

    Em um determinado ponto da viagem, um integrante do coletivo O PREÇO, que estava atrás de um dos passageiros que trocava essa mensagem, percebeu e avisou os outros. Os integrantes do Treme Terra interpelaram os passageiros dizendo que isso era racismo e que iriam denunciá-los à polícia.

    Nesse momento, os comissários da TAM pediram para que a situação fosse controlada e que a discussão terminasse.

    POR QUÊ?

    Racismo é crime inafiançável. Em vez de tomar o partido das vítimas, os comissários tomaram partido dos agressores. Levaram os dois passageiros para a primeira classe enquanto todos os outros continuaram na classe econômica.

    POR QUÊ?

    Entendendo que a Companhia estava defendendo o agressor racista, os integrantes do Treme Terra começaram a explicar para os outros passageiros o que estava acontecendo. Novamente, foram interpelados, por um outro homem não uniformizado, mas também funcionário da TAM, que empurrou um dos meninos e ameaçou todos, dizendo que retornariam a Brasília caso a “confusão” não acabasse e que chamariam a polícia.

    Sendo que era exatamente isso que o Treme Terra queria.

    Racismo é crime, de novo. Além de coniventes, os funcionários da TAM coagiram e agrediram as vítimas do racismo e privilegiaram os agressores.

    POR QUÊ?

    O Treme Terra é um grupo artístico. Como perceberam que os funcionários da TAM não estavam defendendo os interesses da população, criaram uma intervenção poética, explicando o que tinha acontecido. Um passageiro se exaltou e exaltou um tal de Bolsonaro 2018.

    Oi?

    Os ânimos ficaram no limite mais ainda. Quando outro passageiro chegou para acalmar os ânimos, dizendo que era pai de família, o músico Pedro Henrique respondeu: qual a diferença entre um pai de família e uma mulher negra?

    POR QUÊ?

    Chegando ao aeroporto, foram todos transferidos para a Sala da Polícia Federal. Em outra sala entraram apenas os comissários da TAM mais os passageiros agressores.

    POR QUÊ?

    Depois de duas horas na PF do Aeroporto, com direito a porta na cara e destrato policial, todos foram transferidos para a Delegacia da Lapa, já que o aeroporto não contava com delegado no local. Oi?

    Mais 10 horas de entrevistas, documentações, esperas… Foi só então que o caso se configurou abertamente. Os dois passageiros agressores racistas também são funcionários da TAM. Olha só, que incrível. Isso tem um nome:

    RACISMO INSTITUCIONAL. RACISMO INSTITUCIONAL. RACISMO INSTITUCIONAL.

    Senhora TAM, você é racista. Você, funcionário da TAM, se é conivente com esse caso, você também é racista. Você, passageiro, que também é conivente com o caso, acha que não tem nada a ver com isso, você também é racista. Você, você e você.

    O racismo institucional transforma casos pessoais em um apartheid social. Vivemos isso, não podemos negar. Vivemos em um apartheid social há séculos. Mas, de repente, esses mundos, até então separados, começaram se encontrar nos espaços ditos públicos. Nos últimos 15 anos, esses encontros se intensificaram. Nos shoppings, nas escolas, nas universidades, nos aeroportos. E o caldo entornou. O Brasil cordial virou piada de mau gosto. A democracia racial se transformou em uma propaganda de cerveja.

    Mesmo assim, cada vez que nos levantamos quando somos agredidos, cada vez que parte da sociedade se mobiliza, seja compartilhando em rede, seja indo pra rua protestar contra o genocídio da população jovem negra periférica, cada vez que a imprensa se posiciona claramente, o futuro se torna um pouco mais possível.

    Racistas não passarão.

  • Dandara vive

    Dandara vive

    Com a mesma força com que lutou e resistiu Dandara, a companheira de Zumbi dos Palmares, a histórica Marcha das Mulheres Negras levou milhares de mulheres à capital do país. A manifestação pauta as demandas do movimento de mulheres negras para os próximos 20 anos e mostra que é preciso um novo pacto civilizatório. São as Dandaras de hoje.

    Reportagem: Maria Carolina Trevisan
    Fotos:
    Vinícius Carvalho / Vídeo: Mídia NINJA
    Especial para Jornalistas Livres

    A Marcha das Mulheres Negras avançava lentamente em direção ao Congresso Nacional levando cerca de 15 mil pessoas pelas avenidas de Brasília (DF). Na linha de frente, em respeito à ancestralidade que ancora as religiões de matriz africana, estavam as mulheres mais velhas, abrindo os caminhos sob a proteção dos orixás. Vestiam seus trajes sagrados. Ao apontar na beira do gramado da Esplanada dos Ministérios, as senhoras entoaram em coro o “Canto das três raças”, canção eternizada na voz de Clara Nunes. Foi um dos momentos mais emocionantes do ato.

    A música lembra que o povo desta terra ainda “canta de dor”.

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    As senhoras negras precisaram ultrapassar o acampamento dos manifestantes a favor da intervenção militar para chegar diante da Câmara dos Deputados. O choque de ideologias gerou confusão. Um dos acampados (depois se soube que é um policial civil que já havia sido preso com munição letal há algumas semanas) deu tiros no meio da multidão e dos três caminhões de som. Justificou-se dizendo ter se sentido ameaçado pelas mulheres negras que marchavam por direitos.

    A ação — triste e também reveladora — foi simbólica da violência a que esse grupo social é submetido diariamente. Em nenhuma manifestação de rua, desde 2013, um participante sacou uma arma no meio do ato. Mas contra a marcha de mulheres negras, sim. É como se os corpos negros continuassem, seguidamente, a não ter valor algum. “Nós decidimos que vamos viver. Vamos fazer isso tendo condições de decidir no poder. Não vamos delegar nossa representação a ninguém”, afirma a socióloga Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia. “Essa é a grande virada que a Marcha das Mulheres Negras faz.”

    A atitude da Polícia Militar do DF — muito mais de controlar o cortejo do que de proteger quem estava ali, oposta ao festival de selfies nos protestos da direita — demonstra também a violência de Estado a que estão sujeitas as personagens brasileiras com mais história de resistência e de luta do país. É o racismo explícito e que mata. “O racismo no Brasil insiste em cobrar em vida”, afirma a advogada Ana Luiza Flauzina, doutora em Direito e pós doutora pelo Departamento de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da Universidade do Texas. “Aquele momento é muito simbólico para compreendermos o que é a vida das mulheres negras neste país. É uma vida completamente desprotegida, que pode ser assaltada até no momento em que esse sujeito político está, de alguma forma, empoderado, gritando suas reivindicações na Esplanada dos Ministérios”, completa Flauzina.

    O som dos estampidos ecoa noite e dia, ensurdecedor.

    Por instantes, a agressão fez do canto de alegria “um soluçar de dor”. Acontece que não existe História do Brasil sem considerar a participação das mulheres negras. Sua força é muito maior do que a crueza do racismo brasileiro. Como a de Dandara, guerreira do Quilombo dos Palmares que resistiu à escravidão. Naquele momento, as mulheres que marchavam cuidaram umas das outras e, quando se certificaram de que estavam todas bem, seguiram adiante. Com a mesma dignidade com que enfrentam o dia a dia. “Certamente nós carregamos sobre os nossos corpos um conjunto de contradições e determinações que se superadas são pré-requisitos para fazer deste país uma verdadeira democracia racial, com igualdade e justiça social”, afirma a filósofa e doutora em Educação Sueli Carneiro, fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra de São Paulo e importante liderança do movimento negro.

    “Ser mulher negra é estar localizada estrategicamente nesse lugar de onde se tem que compreender todos o processos de exclusão, desigualdade e marginalização social. Mas é também o lugar em que pode estar a condição de libertação de todos e de todas nós.” Sueli Carneiro.

    Contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver

    Desde 2008, as mulheres negras são maioria no Brasil: correspondem a 50% do total de brasileiras. Em 2009, segundo o “Dossiê Mulheres Negras”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), já havia cerca de 600 mil negras a mais que brancas. Representam 25,5% do total de pessoas no país. A população negra (pretos e pardos) é composta por quase 104 milhões de pessoas, cerca de 51% da população total do Brasil. Portanto, a Marcha das Mulheres Negras não se refere a reivindicar políticas para uma minoria. Trata da maioria da população brasileira. Esse é o ponto de partida.

    “É a primeira vez que mulheres negras ousam ir às ruas para apresentar um novo pacto civilizatório para o povo brasileiro e não apenas para as mulheres negras”, explica Valdecir Nascimento, do Odara — Instituto da Mulher Negra, de Salvador (BA). “Se for bom para as mulheres negras será bom para todo o povo brasileiro”, completa. Uma das demandas específicas da marcha diz respeito à situação de violência que esse grupo social vem sofrendo. A violência letal contra mulheres no Brasil tem taxa muito elevada. Segundo o Mapa da Violência 2015, são 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, índice 48 vezes maior do que no Reino Unido.

    As vítimas de homicídio feminino são predominantemente negras. Foram quase 2.875 mulheres negras assassinadas em 2013. O estudo também mostrou que enquanto a violência letal contra mulheres brancas vem diminuindo, entre 2003 e 2013, houve 54% de aumento no número de homicídios contra mulheres negras. Significa que ser mulher e ser negra, nessa sobreposição que se junta à opressão de classe, é o lugar mais vulnerável da sociedade brasileira.

    Ao mesmo tempo, são elas que abrigam as maiores fortalezas da nossa estrutura. “Nós estamos nos piores extratos sociais, com menor nível de salário, com menor acesso à educação e à saúde, com menor mobilidade social”, alerta a psicóloga Maria Lucia Silva, do Instituto Amma — Psique e Negritude, de São Paulo. “Nós, mulheres negras, fomos o esteio e a construção deste país. Queremos ocupar um lugar de poder, de mobilidade e de acesso para que a gente possa dizer como a gente pensa o Brasil democrático e efetivamente bom para brancos, negros, indígenas, para todos os grupos sociais.

    Depois da caminhada até o Congresso Nacional, um grupo de representantes formado majoritariamente pelas senhoras da Irmandade da Boa Morte (as anciãs, em respeito à ancestralidade) puderam se encontrar com a presidenta Dilma Rousseff. Ela recebeu a “Carta das Mulheres Negras: o Bem Viver como nova utopia”, documento que detalha as proposições do movimento de mulheres negras e demarca as prioridades para os próximos 20 anos. O conceito de “Bem Viver”, no qual se baseia a Marcha, é uma construção conjunta com mulheres indígenas da América Latina e se caracteriza pela luta coletiva que prioriza a complementaridade, em que todos têm direitos. “Marchamos pelo direito de estar no mundo sem violência e sem racismo. Nós marchamos pela vida e não pela sobrevivência”, explica a enfermeira, blogueira e militante Emanuelle Góes, no texto Dialogando sobre o Bem Viver e as Mulheres Negras.

    Ponto de inflexão

    Há 20 anos, a primeira Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida reuniu 30 mil pessoas em Brasília. Naquele momento, o movimento negro denunciava a ausência de políticas públicas para a população negra. Marcou também os 300 anos do assassinato de Zumbi, principal liderança do Quilombo dos Palmares, um território de resistência na capitania de Pernambuco (que se tornaria Alagoas), durante o regime escravista.
    A primeira marcha rompeu com o mito da democracia racial e evidenciou as graves desigualdades a que essa parcela da população estava submetida. Pela primeira vez, o Brasil reconheceu seu racismo. Dez anos depois, aMarcha Zumbi + 10 voltou a juntar milhares de pessoas na capital do país. Começaram aí as primeiras ações afirmativas, que culminaram nas cotas para ensino superior e no Estatuto da Igualdade Racial, entre outras conquistas.

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    Agora, a Marcha das Mulheres Negras, que começou a ser articulada há três anos, pretende dar um passo firme, ser um ponto de inflexão nas conquistas de direitos para a população negra no Brasil. “Essa marcha não tem uma pauta conjuntural. É para falar de uma situação histórica no Brasil, que apesar dos avanços que a gente possa perceber no nível sócioeconômico de exclusão social, as mulheres negras continuam na base da pirâmide”, explica Tricia Calmon, socióloga e militante do movimento negro na Bahia.

    Para Vilma Reis, a Marcha organizou a pauta para os próximos 20 anos. “O objetivo é termos mulheres negras dirigindo as empresas públicas e de capital misto, que são as maiores do Brasil, com equilíbrio na representação política, nas artes e produção de conteúdos de comunicação, e, definitivamente, dando fim ao genocídio”, explica Reis.

    Significa que a Marcha das Mulheres Negras amplia uma concepção de reivindicações isoladas para um conjunto de condições que seriam necessárias na sociedade brasileira, não apenas para um processo de inclusão das mulheres negras, mas da população negra em geral e dos outros grupos que compõem a sociedade brasileira. São demandas mais complexas. “Não se trata de trabalhar especificamente determinados pontos ou determinadas áreas que são desvantajosas para as mulheres negras, mas uma concepção de que a situação da mulher negra só se modifica na medida em que a sociedade brasileira se modifica também”, explica Luiza Bairros, doutora em Sociologia e ex-ministra chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), entre 2011 e 2014. “O racismo não está mais protegido pela ideia da existência de uma democracia racial. Portanto, fica agora muito mais evidente que a questão negra não é uma questão específica. Precisa ser tratada no âmbito das grandes questões nacionais. Chegamos num determinado limite em termos das conquistas para a população negra no Brasil”, diz Bairros.

    O recado da Marcha das Mulheres Negras está dado: para que o país avance, a presença negra nos espaços de tomada de decisão é fundamental. “A ocupação do poder político institucional eu vejo como sendo a parte central da nossa estratégia daqui para frente. Ou você faz que essas concepções que o movimento negro construiu ao longo do tempo cheguem nas instituições através das pessoas que têm efetivamente esse tipo de interpretação e análise da sociedade brasileira, ou então você não vai muito mais adiante. Não tem mais como você pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada”, afirma Bairros.

    Salve a força negra do Brasil.


    Assista as entrevistas:

  • Por que os senhores continuam atirando em nós?

    Por que os senhores continuam atirando em nós?

    Texto de Fernando Sato e vídeo de Adolfo Garroux, especial para os Jornalistas Livres

    Estamos comemorando a Semana da Consciência Negra. Não. Estamos “manifestando” a Semana da Consciência Negra. O que temos para comemorar na semana em que a Marcha das Mulheres Negras é covardemente atacada por militantes do MBL, incluindo policiais civis com arma em punho? No dia em que uma imagem de uma mulher que expõe sua identidade negra é excluída do Facebook sem nenhuma explicação? Quando personalidades negras do mundo das artes são xingadas e vilipendiadas na internet? Quando refugiados negros são assassinados em formato de execução, apenas pelo fato de serem estrangeiros? Quando jogadores são chamados de macacos nos “democráticos” estádios de futebol? No mês que marcou dois anos da morte do estudante Douglas Rodrigues por policiais militares?

    Por que o senhor atirou em mim?

    Douglas Rodrigues tinha 17 anos, cursava o terceiro ano do ensino médio em seu bairro, Jardim Brasil, e trabalhava numa lanchonete em Pinheiros. Menino tranquilo, adorava empinar pipa, coisa de todo mundo na Zona Norte. A mãe dele, Dona Rossana, andava feliz, já que os dois filhos dela começavam a tecer uma amizade realmente permanente. Aquelas amizades que vão pro resto da vida. O Douglas levava seu irmão menor pra tudo que é lado.

    Foi assim naquele dia. Os dois irmãos estavam voltando para casa juntos. De repente, a viatura parou. Não deu tempo pra mais nada. O policial já saiu da viatura atirando. A única coisa que Douglas pode fazer, foi perguntar para o policial: “Por que o senhor atirou em mim?”

    Até hoje essa pergunta ainda não foi oficialmente respondida. De acordo com o advogado da família de Douglas, na Vara Cível já existe uma sentença favorável. O juiz de primeira instância deu ganho de causa e considerou o Governo do Estado de São Paulo culpado por homicídio culposo. Como pena, terá de pagar indenização à familia de Douglas.

    Mas, o Governo do Estado recorreu. O caso será será julgado em segunda instância. Quando? Ninguém sabe.

    Enquanto isso, na Vara Criminal, não existe nem denúncia. A alegação da promotoria é que existem dúvidas no processo. E exigiu uma nova reconstituição do crime. No inquérito policial, o policial alega disparo involuntário. O promotor quer saber se o policial saiu da viatura e só depois disso atirou, ou se o policial já saiu atirando com a arma em punho, o que foi assegurado por testemunhas. Se assim for comprovado, o policial será indiciado por homicídio doloso, quando se tem a intenção de matar ou se assume o risco de matar; e não por homicídio culposo, quando não se tem a intenção de matar.

    Quem policia a polícia?

    Porque o senhor atirou em mim? Porque o genocídio da população negra e pobre faz parte do dia-a-dia da periferia. Porque o racismo é de tal forma institucionalizado que, no Rio de Janeiro, por exemplo, os policiais caracterizam o suspeito negro, como “elemento cor padrão.”

    É incompreensível entender como um policial negro também age dessa forma pré-estabelecida? A socióloga e primeira mulher a dirigir o sistema penitenciário do Rio de Janeiro, Julita Lemgruber, responde: “Policial não tem cor, policial tem farda.”

    Outro ponto que deve ser levado em conta é o fato de as classes sociais se distanciarem. Os ricos e os pobres. Em São Paulo, temos o agravante de que as populações mais desprovidas moram na periferia e são invisíveis aos olhos dos cidadãos da classe média. Quando o policial atua em um bairro rico, ele claramente se porta de uma forma mais polida e respeitosa. Mas quando esse policial se dirige às bordas da cidade, seu comportamento se modifica radicalmente; se torna violento e agressivo nas abordagens e trato com a comunidade.

    Ação e reação. A população atingida por esse tratamento também cria capas de resistência contra a abordagem policial. O momento seguinte é a falta total de relação entre polícia e comunidade. A agressividade se transfere nos atos de resposta da população para a ação policial e o policial, então, trabalha como se estivesse numa guerra e numa guerra, o objetivo é abater o inimigo.

    Assim, funciona o cerne do pensamento policial. Controle social e repressão total. Continuando a citar Julita Lemgruber, ela diz que a polícia rotula de “autos de resistência” os confrontos com a população, o que na verdade são atos de “execução sumária”.

    Outro dia, um amigo foi parado pela polícia. Porque foi parado? De acordo com o policial, por causa das várias tatuagens. “Fez essa tatuagem na cadeia?” Meu amigo, calmamente, tentou argumentar que tatuagem não tem nenhuma relação com criminalidade. Sabem o que o policial respondeu? “Até prova em contrário, todo mundo é suspeito.”

    Oi?

    Esses exemplos poderiam explicar o que aconteceu com o Douglas? Não. Nada explica o que aconteceu com o Douglas. Nada.

    Por que o senhor atirou em mim?

    A Campanha

    Após o assassinato, parentes e amigos de Douglas começaram uma campanha que se viralizou na rede. A campanha “Por que o senhor atirou em mim?” Se transformou em ponta-de-lança em um movimento para dar visibilidade a esse problema da violência, principalmente na periferia. Na mesma época, duas chacinas aconteceram em São Paulo: em Brasilândia e Sapopemba.

    Coletivos, entidades e indivíduos, que se organizaram em assembleias abertas em praça pública foram os artífices dessa campanha. Além de lutar pela justiça no caso do menino Douglas, a desmilitarização da polícia, criação de uma polícia comunitária, a redução de direitos também foram postos à mesa. Lideranças de movimentos sociais, políticos, artistas e intelectuais se juntaram à causa.

    Mas esse ano já se completam dois anos da morte de Douglas. A justiça anda em passos de tartaruga. Mas o maior problema não é esse. Há 11 anos atrás aconteceu o mesmo com Flávio Santana, dentista, negro, filho de sargento da polícia reformado. Foi assassinado em Santana, também Zona Norte, por policiais que ainda forjaram a cena do crime para alegar auto-defesa. Uma campanha imensa foi organizada, e conseguiram a condenação e posterior reclusão dos policiais envolvidos. E, agora em agosto de 2015, uma chacina em Osasco e Carapicuiba matou 19 moradores da região. Ainda sem resolução da justiça. Tudo continua acontecendo sempre igual. Nada muda. Temos que entender que esse processo é endêmico e só uma grande transformação, uma revolução no conceito de proteção à população pode conseguir acabar com essa guerra diária em que vivemos.

    Bacurizinho

    A primeira coisa a se fazer é não esquecer. A segunda é lembrar sempre. Dia 31 de outubro, a família de Douglas e mais coletivos, grupos de teatro, amigos, vizinhos fizeram um ato de memória a Douglas. Foram convidados autoridades e entidades. Houve também apresentações de música, poesia e intervenções.

    “Os mesmos que mataram meu amigo

    Vieram nos escoltar

    Nós não queremos escolta

    Nós queremos justiça”

    O grupo de teatro Mudança de Cena, dirigido por Yara Toscano encenou na rua, a peça “Enquadros”, que discute a morte de Douglas e de outros casos de racismo policial. Num formato chamado de Teatro-Fórum, em um momento da peça foi chamada a participação do advogado de defesa para explicar o processo para todos os presentes.

    O local escolhido foi onde Douglas foi assassinado. Rua Bacurizinho. Triste. Numa rua em que o próprio nome homenageia Douglas. Bacurizinho. Em certas regiões do Brasil, bacurizinho é um jeito carinhoso de se referir aos filhos. O bacurizinho de Dona Rossana. Que se preocupa imensamente com seu outro filho, que ainda não conseguiu superar o trauma daquele dia. Que prometeu na despedida do Douglas, buscar, a qualquer custo, justiça pra ele. E mãe cumpre.

  • “Joga ela na viatura, isso é carniça”

    “Joga ela na viatura, isso é carniça”

    Relato de uma professora negra agredida e presa arbitrariamente em São Paulo

    Por Jeniffer Mendonça, especial para os Jornalistas Livres

    Ser mulher não é fácil em São Paulo (como e resto em todo o Brasil). Ser negra, é ainda mais difícil. Agora, mulher, negra e professora de escola municipal da Zona Leste é só pra quem tem muita coragem. Coragem de mulher, coragem de negra, coragem de quem tem amor pelo que faz e pelos alunos, muitos como ela: negros e periféricos. Infelizmente, em São Paulo é preciso provar isso todos os dias. Em 31 de Outubro passado, por exemplo, o professor Severino Honorato, da rede estadual, procurou nossa reportagem para contar sobre a prisão arbitrária e a uma sequência de violações ocorridas no dia anterior contra uma amiga sua: a professora Andreia Rosa.

    Conseguimos contato com Andreia, que leciona para crianças na Vila Jacuí, e soubemos mais detalhes de sua detenção. Segundo ela, o motivo foi simpelsmente questionar a ação da Polícia Militar que se recusava a dar assistência a um dos dois jovens baleados pelos próprios policiais na rua onde mora.

    Nesse momento, meu vizinho disse que não era ‘um dos nossos’, perguntei se o rapaz baleado no chão era negro. A resposta foi sim. Então, eu disse: ‘se é negro, é um dos nossos, sim. Não vai ser hoje que vai morrer mais um irmão de cor por omissão socorro’.

    Leia a seguir o relato da própria professora Andreia, especial para os Jornalistas Livres:

    Na noite de sexta-feira, do dia 30 de outubro de 2015, cheguei em casa por volta de 23h30, com fome, para variar. Liguei na minha pizzaria favorita pedi esfihas e um refrigerante. Depois de algum tempo esperando, o entregador me ligou e disse que não poderia chegar na minha casa, pois a polícia não deixava ele passar, porque a rua onde eu moro estava interditada. Então, o entregador perguntou se eu poderia retirar a comida com ele, do outro lado da rua. Pedi para aguardar um momento e fui até lá. Nesse instante, vizinhos se aproximaram e perguntei o que estava acontecendo, porque havia tanta polícia na rua, e porque a rua estava interditada.

    Os vizinhos me disseram que a polícia havia atirado em dois rapazes que teriam tentado roubar uma moto. Também, relataram que os policiais disseram que os rapazes estavam supostamente armados, mas que não houve troca de tiros, que apenas os policiais atiraram. Continuaram a contar que se aproximaram dos rapazes baleados para ver se não eram conhecidos. Disseram então que apenas um dos rapazes seria socorrido, que o outro ainda encontrava-se no chão e parecia estar em pior estado. Disseram também, que na rua da feira aqui próximo de casa, no domingo passado, policiais atiram em um rapaz que morreu sem atendimento médico, pois a PM não deixou que o SAMU o socorresse, quando ainda estava com vida. Nesse momento, meu vizinho disse que não era “um dos nossos”, perguntei se o rapaz baleado no chão era negro. A resposta foi sim. Então, eu disse: “se é negro, é um dos nossos, sim. Não vai ser hoje que vai morrer mais um irmão de cor por omissão socorro”.

    A indignação foi maior que o medo, me aproximei do policial que estava ao lado do rapaz baleado e perguntei:

    — Nossa, moço! O que houve com o rapaz? Ele está morto?

    — Não, não está. Foi baleado.

    — Então, por que vão socorrer apenas um? Já que os dois foram baleados?

    — Por que você está solicitando socorro à vítima? Você conhece a vítima? É parente da vítima?

    — Não, eu não sou parente. Mas ele está baleado e caído no chão. Ele precisa de socorro. Por que vocês estão negando socorro a uma pessoa baleada? Por que o carro do Corpo de Bombeiros está indo embora?

    — Moça, o que a senhora está fazendo aqui? Como veio parar aqui?

    — Sou moradora aqui. Moro naquela casa e apontei onde eu morava.

    — Retire-se do local. Passe por esse lado da fita e dê a volta no quarteirão para ir para sua casa. A senhora sabia que está interferindo em uma ocorrência policial?

     

    Um policial puxou meu braço e disse que eu não poderia passar pelo mesmo local onde meus vizinhos estavam passando. Daí em diante, começaram agressões físicas e verbais. Pedi para que me soltasse, que eu queria apenas ir para minha casa, apontando onde morava. Foi quando um policial gritou: joga ela na viatura, isso é carniça. Um outro disse: é só uma nega maluca, joga logo na viatura.

    O mesmo policial que me puxou pelo braço, puxou meu cabelo e me jogou no chão retirando meu turbante. Eu caí na rua, ele chutou meu refrigerante, e ficou pisando com um dos pés nas minhas costas. Eu, já no chão disse: “policial, estou ouvindo você me xingar de carniça. Qual o seu nome?” Então, ele

    me respondeu:

    “meu nome é vai se fod%#&r!”

    Comecei repetir o xingamento dele bem alto, para que todos pudessem ouvir: “vocês estão ouvindo? Ele está me xingando de carniça, está mandando eu me fod%$&r!” O PM continuava a me xingar de carniça, repetindo diversas vezes e se aproximando do meu rosto, que nesse momento, estava colado no chão pela força de um outro policial, enquanto o que pisava nas minhas costas, mantinha uma arma apontada para mim. Dois policiais se aproximaram e um deles me algemou, os dois me pegaram pelo braço, me levando para a viatura, enquanto eu gritava os nomes de meus vizinhos que passavam no local, pedindo para que avisassem meu companheiro que a polícia estava me levando. Eles me jogaram na viatura e bateram a porta.

    No local, havia muitas pessoas, muitos conhecidos. Afinal, são meus vizinhos. E eu me questiono: por qual motivo ninguém fez nada? Por qual motivo ninguém questionou a omissão de socorro ao rapaz negro caído no chão? Por que ficaram indiferentes quandoapenas o rapaz branco foi socorrido, ou enquanto eu sofria repressão e abuso policial?
    Uma das respostas à essas perguntas, muitos já sabem, pelo menos nós pretos sabemos, chama-se racismo institucional. Uma outra resposta é o medo.O que mais ouvi de pessoas conhecidas, de colegas de trabalho, de familiares foi: masvocê não sabe que não se pode “mexer” com a polícia? Eu não consigo ver dessa forma.

    Realmente, não acredito que eu estava agindo contra os policiais, mas sim em defesa da vida, dos bons profissionais e da correta apuração do crime.

    Sei muito bem que a autoridade do policial não dá a ele o direito de agredir física ou verbalmente qualquer pessoa e que conduta violenta é ilegal. Mas, quem se importa, quando esses casos de abuso são cometidos contra pessoas negras, na periferia???
    Na viatura, tentei ficar calma, embora, estivesse totalmente apreensiva quanto o que poderia me acontecer. Só pensava, se meu companheiro iria saber onde eu estava, porque nem documentos eu tinha comigo. Chegamos na delegacia. Como, nunca havia sido presa antes, fiquei aguardando o que eles fariam. Os PMs saíram da viatura e vieram outros perguntar o que havia acontecido e o porquê de eu estar na viatura. Aí policial que me levou à delegacia disse: “é louca. Deve tá drogada. É defensora de bandido”. Nisso, mantive-me sentada mais um pouco e dizia para mim mesmo: “eles não vão me intimidar dizendo essas coisas”.
    Mal sabia eu, que eles usam essa tática há anos. Que, nós negras e negros recebemos o mesmo tratamento desde que fomos trazidos da África as Américas. Há 300 anos atrás, meus antepassados eram açoitados até sangrar. Depois, jogavam água salgada do mar em suas feridas para que gritassem, até urrarem de dor. Então, diziam que eram macacos, que gritavam feito animais, que não sabiam falar, apenas gritar. E assim, ficaram a me insultar, foi quando me levantei na intenção de mostrar que estava presa, mas minha dignidade, ainda estava de pé. Nisso, os dois policiais entraram na viatura e disseram para eu sentar que iriam rodar comigo mais um pouco até planejarem o que diriam à delegada.

    Me desesperei e comecei a gritar de dentro da viatura: “Me tirem daqui, vocês disseram que eu seria trazida para prestar queixa. Quero sair daqui. Qual a necessidade de me manterem aqui dentro? Então é isso? Vocês vão me deixar aqui agonizando, igual fizeram com o rapaz baleado? Socorro, abram essa porta, por favor!” E eles ignoraram meus pedidos gritados e me chamaram de vagabunda, mandaram eu calar a boca porque eles queriam combinar o que falariam à delegada para que ela me prendesse e ficasse todo “redondinho” o depoimento deles. E eu me desesperando dizia: “Ei, eu estou aqui, eu estou ouvindo o que vocês estão falando. Parem, quero falar com delegado, eu não fiz nada disso”. Eles falaram: “cala boca vagabunda que vamos falar com a base”. Quando percebi que estavam falando no rádio, gritei ainda mais alto: “eu não sou vagabunda, sou uma professora, sou mais que um indivíduo, sou uma mulher que foi agredida por vocês, porque questionou omissão de socorro a uma pessoa baleada por vocês”.

    Nesse instante, meu companheiro chegou à delegacia e perguntou aos policiais porque eu ainda estava na viatura. Disse que aquilo era desinteligência por parte deles me manterem ali, que não havia necessidade para isso, pois eu não representava nenhum perigo a eles, já que eu estava algemada, disse que eu era professora, que eu não os havia desacatado, que eu era funcionária pública como eles. Foi, quando eles abriram aporta e falaram: vai sua louca, não era isso que você queria? Agora vai, sai, pode sair”. Me levaram algemada para o interior da delegacia. E lá ficamos por algumas horas, eu e o policial Rogério. Este, por sua vez ficava me encarando e me chamando de louca, fazendo gestos com as mãos.

    Passados alguns muitos minutos, a delegada foi falar comigo. De forma bem irônica me perguntando se eu estava mais calma. Dizendo que esteve no local do crime e que viu a fita que eu cortei e continuou insistindo que eu havia agredido os policiais e que eles tinham testemunhas. A essa altura, a delegada já sabia que eu era professora, que assim como ela, era uma funcionária pública. Mas, ela insistia em tentar me incriminar, sem me dar chances de eu me defender. Deu ordens para o policial me manter algemada até que eu resolvesse colaborar e concordar com a versão dos policiais.

    E lá fiquei algemada e sendo insultada por policiais que me chamavam de louca, vagabunda, desonesta, entre outras coisas disseram até que eu deveria chorar, me ajoelhar e implorar para delegada me soltar. Um PM de nome Petterson, sabendo que eu era uma professora, ouvindo o PM Rogério me chamar de louca, resolveu pegar seu celular, acender o flash e tirar minha foto. Eu disse para ele que eu não o autorizava tirar minha foto, ele me mostrou que estava utilizando whatsapp, então falei pra ele que estavam me chamando de louca, mas que eu tinha sanidade suficiente para saber que uma pessoa só liga o flash quando vai tirar foto, que ninguém precisa ligar flash para falar no whatsapp. Nesse instante, chegou uma policial feminina para me revistar. Perguntei a ela se esse procedimento estava correto: a presença de dois homens enquanto ela iria realizar revista.

    Ela ignorou e me perguntou por que eu estava tremendo e reinterou dizendo, “agora todo mundo é bonzinho, disseram que você agrediu os policiais”. Perguntei se ela acreditava mesmo que eu, sendo uma mulher de 1m e 60cm, pesando cerca de 56 kg poderia agredir quatro policiais homens e armados.

    Também perguntei como ela ficaria se tivesse sido jogada no chão e chamada de carniça, nega maluca, vagabunda, louca, drogada e desonesta, quando se é apenas uma professora questionando omissão de socorro por parte dos policiais que te deram voz de prisão e depois de estar algemada há duas horas. Também perguntei se ela já havia sido tão insultada dessa forma, ela apenas respondeu: boa sorte. Não entendo muito de direitos humanos a pessoas encarceradas, mas me senti violada, sendo humilhada de várias formas: xingamentos, olhares de condenação, fotos sem autorização, julgamentos baseados na sua aparência e cor da pele, seu direito de defesa negado, sua liberdade negada, sem voz, sem comunicação, apenas eu, um corpo feminino em um ambiente totalmente hostil, tentando manter sua dignidade.
    Ainda há pessoas que conseguem manter sua humanidade em uma delegacia. Tive a chance de conhecer uma dessas pessoas. Quando, finalmente tiraram as algemas, um funcionário veio colher minhas impressões digitais, perguntou se eu queria utilizar o banheiro, beber água e lavar o rosto. Perguntou meu nome e ficou tentando me tranquilizar dizendo, que meu companheiro estava lá fora aguardando, que se eu quisesse ele poderia falar com meu companheiro para ir em casa buscar uma roupa e algo para eu comer. Também me disse eu não precisava assinar a versão dos policiais, que eu deveria me manter calma que ele iria pedir para a delegada colher meu depoimento. Eu disse a ele que queria sim que ele falasse com meu companheiro para trazer algum advogado.
    E então, depois de horas esperando, a delegada resolveu ouvir meu depoimento. Porém, antes ficou repetindo a versão dos policiais e me encheu de perguntas. Penso que a intenção dela era me deixar nervosa. A única pessoa que tentava me tranquilizar, a delegada impediu que ficasse na sala, mandou que ele ficasse no corredor. Tentei o máximo que pude ficar indiferente às provocações.

    Sim, considero provocações dizer que fiz coisas que não fiz, como chutar propositalmente os cartuchos de balas/projeteis, cortar a fita de isolamento, agredir os policiais. Não, eu não alterei o local do crime. Não, não agredi os policiais, não eu não os xinguei. Não, eu não os ofendi.

    O mais estranho, é que não foi registrado no boletim de ocorrências que eu fui agredida, que eu tinha arranhões nos ombros, joelhos, nos cotovelos, no queijo, no abdômen, o lábio inferior cortado e inchado. Ela apenas disse que eu estava sozinha, que até meu companheiro havia me abandonado, que eu não tinha testemunhas, que meus vizinhos não se importavam comigo.
    Enquanto, a delega tentava me intimidar e tomar meu depoimento, um funcionário entrou e disse que o perito que foi ao local, estava dizendo que o caso não poderia ser registrado ali, que deveria seguir para o DHPP. Nesse momento, aquela delegada me passou impressão de total insegurança, por desconhecer as portarias relacionadas a seu trabalho. Ela pediu para que o funcionário pesquisasse sobre uma tal portaria, dizendo “assim não dá, toda hora muda essa portaria. Ninguém morreu no local. Só porque ele viu a pessoa baleada no chão, tá achando que houve homicídio”. Ela se dirigindo a mim, disse: “tá vendo, ninguém morreu! O que você foi fazer lá? Por que tinha que cortar a fita? Você que causou tudo isso para você”. Respondi: “se o perito, é um especialista e pode se confundir, por que eu, que sou só uma professora, também não posso ter pensado que o rapaz estava morto. E mais uma vez respondi que não rompi a fita, que eu estava na rua porque fui buscar as esfihas que a PM não deixou que o rapaz da pizzaria entregasse, porque a rua estava interditada. Mas, ela continuava alegando que os policiais tinham testemunhas.
    Já que a delegada não estava disposta a investigar o que eu dizia, resolvi fazer alegações. Disse a ela que eu também tinha testemunhas, mas que ela não deixava eu falar com meu companheiro, pois ele era testemunha de que eu não havia cortado a fita e que o entregador da pizzaria também era testemunha, afinal ele tinha me ligado dizendo que não poderia fazer minha entrega porque a rua estava interditada, logo quem alterou o local do crime, foram os policiais, trocando a fita de local. Mas, tudo isso foi em vão, pois o escrivão não registrou nada do que eu disse, e ela como delegada, também não deu atenção ao fato dessa inconsistência no depoimento dos policiais. Perguntei a ela se as testemunhas eram válidas, pois estão diretamente ligadas ao ocorrido. Já que todos eram vítimas do suposto assalto de moto à mão armada e troca de tiros (com arma de brinquedo dos assaltantes). As testemunhas apresentadas pelos policiais eram: o dono da moto, a outra é a pessoa que solicitou a viatura, que era a mesma que havia pedido uma pizza. Como assim, a pessoa pede pizza e já pede viatura? Então, o cara já sabia que os entregadores seriam vítimas de assalto??? Na minha humilde opinião, mais inconsistências por parte dos policiais.
    Continuei fazendo alegações à delegada: se eu não conheço as pessoas baleadas, por qual motivo chutaria propositalmente, e no escuro, os projéteis? Se as testemunhas estão, de certa forma diretamente ligadas ao crime, pois elas tem interesse que se efetue a prisão dos assaltantes, elas servem como testemunhas? Será que elas não compareceram à delegacia para registrar a tentativa de furto de seu veículo? Onde elas estavam e por que o depoimento delas foi tomado sem a minha presença?
    Nesse momento, o policial que me levou à delegacia, chegou com o rapaz negro que fora baleado. A delegada começou a falar em tom alto, seguido de nervosismo: “se você não tem o papel com a laudo do médico, não posso ficar com ele aqui. Leva ele de volta para o hospital. Cadê o outro assaltante?”. E o policial disse: “o outro tá no hospital. Não posso levar esse de volta, porque a coregedoria está já tá no nosso pé. Não posso ficar rodando com ele”. A resposta dela: “não quero saber, se vira. Aqui ele só fica se tiver alta do hospital, assinada pelo médico”. “Não doutora, isso é mole, fica com ele aqui que eu volto no hospital e trago a assinatura do médico. Só precisa disso”. E mais uma vez, ela demonstrou que não conhecia os procedimentos. Perguntou para o escrivão se era isso mesmo, se só precisava da assinatura do médico.

    E eu, pergunto: se não houve mortes, por que só o rapaz branco ainda estava no hospital? Por que o policial trouxe o rapaz negro sem alta médica? Por que uma pessoa branca quando é baleada merece ficar no hospital em observação e a pessoa negra pode sair, com uma calça azul do hospital com sangue escorrendo pela perna , sem direito de ficar em observação após ser baleado e retirado do hospital sem alta médica?

    Para a delegada sou apenas uma “defensora de bandido”. Foi o que ela disse, apontando para o rapaz: “tá vendo? Olha aí o que você defende, bandido”.Mas, eu sei o que eu estava defendendo um direito básico do ser humano, ser socorrido após ser baleado. E respondi a ela: “doutora, eu não sou juíza, sou professora. Você também não é juíza, é delegada. Os policiais que dispararam suas armas contra os rapazes, também não são juízes. Portanto, não podemos condená-los. Eles têm direito de serem socorridos, afinalomissão de socorro é crime, e eles também têm direito a um julgamento justo diante de um juiz.

    No Brasil, não existe pena de morte decretada por policiais”.

    Minha intenção era deixar bem claro que não defendo bandidos, sou ativista de direitos humanos básicos, principalmente da população negra.
    Acho que minha militância contundente a deixou irritada, porque ela disse que nada do que eu disse iria mudar a decisão dela e finalizou dizendo:“você sabe que você está presa, né?” Eu questionei o motivo, ela disse que os motivos eram: desacato, desobediência e resistência. Ainda tentei fazer minha defesa, perguntando se eu poderia pagar fiança, porque nunca vi ninguém ficar preso por desacato, ou desobediência. Mas, ela alegou que somando os três artigos, passava de quatro anos, portanto eu não teria direito de pagar fiança, que eu ficaria presa até terça-feira (dia 03/11), quando teria direito a uma audiência de custódia e um juiz decidiria minha vida. Nesse instante fiquei com medo, totalmente desesperada, foi quando a única pessoa humana, até então naquela delegacia, entrou na sala e esclareceu a delegada, dizendo que assim que ela finalizasse a ocorrência, ela deveria comunicar, imediatamente, minha prisão, que era só encaminhar para o juiz de plantão, no fórum criminal da Barra Funda, que não havia motivos para eu ficar detida até terça-feira. Ela, mais uma vez demonstrou que não conhecia os procedimentos e perguntou ao escrivão se isso era possível. Ele disse que sim, que era tudo informatizado, que ela poderia encaminhar ao juiz de plantão. Então, pedi a ela que encaminhasse ao juiz, ela se negou. E um tom, que demonstrava irritabilidade com meu pedido, deu ordens para um funcionário me levar de volta para cela, para que eu assinasse o boletim de ocorrência com a versão dos policiais e meu depoimento.
    Antes de assinar, comecei a ler e questionar ao funcionário que me acompanhava porque eu deveria assinar aqueles papeis, já que eu não concordava com nada do que estava escrito. E ele me disse: “não precisa ler. É só assinar. Você não tem que concordar, só tem que assinar. São só procedimentos de rotina. É melhor você assinar. Para o seu bem, assina logo e para de ler, ou você não vai poder ver seu marido”. Quanto mais eu lia, mais eu chorava, de raiva, de indignação por tanta injustiça, ter que assinar declarações que eu não concordava e já passava de quatro horas da manhã e eu ainda não tinha falado com meu companheiro. Por fim, pedi uma cadeira para o funcionário, porque estava com muita dor nas costas e tinha que agachar até a mesa para assinar. E ele disse que ia perguntar a doutora de era possível trazer uma cadeira. Ao ler o boletim de ocorrência, vi que a delegada não mencionou as agressões físicas ou verbais que relatei ter sofrido por parte dos policiais. Afinal, eles são funcionários públicos e devem agir sempre de acordo com a lei. Assim, quando cometem algum abuso estão sujeitos a punição e devem ser denunciados. Eu os denunciei, porém nada foi registrado.

    Nesse momento, senti que não poderia fazer mais nada, minha prisão estava decretada, iria amanhecer e eu sem saber se iria ou não conseguir um advogado.

    Pedi para o funcionário deixar a cadeira comigo, porque estava com muitas dores e com medo dos ratos que estavam transitando na delegacia. Ele me deixou ficar com a cadeira na cela. Um outro funcionário, passou e disse: “vocês deram uma cadeira para essa louca, com esse pano na cabeça. Agora é só ela se suicidar. Pronto agora não falta mais nada”.
    Quando terminei de assinar os papeis e voltei para a cela, o mesmo funcionário que colheu minhas impressões digitais, foi colher do rapaz negro baleado no incidente. Então, perguntei seu nome, era Danilo e perguntei também se lembrava de mim, se tinha visto eu agredir e xingar os policiais.Ele respondeu que que lembrava de mim, que me viu quando me aproximei do policial e perguntei porque iriam socorrer só uma pessoa, e que eu não havia xingado ou agredido os policiais. Em um tom de arrependimento, me pediu desculpas, dizendo que ele havia me colocado naquela situação. E eu disse que ele não me devia desculpas, que ele assim como eu era uma vítima dessa situação.
    Por volta, de 5 horas, depois de ter assinado todos os papeis, finalmente pude conversar com meu companheiro. Ele foi até mim e disse que esteve lá na delegacia o tempo todo, porém a delegada não o deixava entrar. Que ele estava desesperado, sem saber o que tinham feito comigo e como eu estava. Pedi a ele que avisasse todos nossos amigos sobre a minha prisão arbitrária e perguntei se já havia conseguido um advogado. Ele respondeu que estava tentando contatar um advogado e que iria avisar aos nossos amigos o que estava acontecendo.
    Então, quando amanheceu o funcionário que colheu minhas impressões digitais, veio me dizer que o plantão dele estava acabando e que a delegada, ainda não havia encaminhado meu caso ao juiz de plantão do fórum da Barra Funda. Eu agradeci pelo apoio e força que ele me deu durante seu plantão e pedi que falasse com meu companheiro sobre esse fato. E houve troca de plantão, um delegado chegou à delegacia e me cumprimentou e perguntou qual meu artigo. Respondi que estava presa por desacato, desobediência e resistência. E ele comentou:

    “como assim? Ninguém fica preso por desacato. Foi essa delegada que está aí que efetuou sua prisão? Nossa isso é um absurdo! Você sabe que essa sua prisão é arbitrária, né?!

    Espera um pouco que eu vou falar com ela”. Foi então que pensei: “meu Deus existe bons profissionais! Nem tudo está perdido”. Logo em seguida em policial civil veio conversar comigo, perguntou se eu queria tomar café, ou beber água, ou ir ao banheiro, seu eu havia passado a noite lá e se desculpou pela atitude da colega de trabalho. E me disse: ‘você sabe que vai ter que procurar a corregedoria”. Mas, naquele momento eu só pensava em sair, em ir para minha casa.
    De onde eu estava podia ouvir a delegada falando que iria me manter presa, porque os policiais tinham testemunhas e que iria me transferir, já que o delegado não me queria na delegacia. E ela dizia que era para colocar todo mundo na viatura: a mulher (eu), os menores e os nóias, palavras dela. Depois de muita discussão, dois policiais civis vieram falar comigo que eles iriam fazer minha transferência. E finalmente, um advogado chegou e veio falar comigo, por volta de sete horas. Eu perguntei se ele iria colher meu depoimento novamente e se iria pedir um habeas corpus, mas a resposta dele foi não. Que ele já havia falado com a delegada, e que no meu caso não caberia habeas corpus, e sim outra medida.
    Dois policiais civis me levaram, sem algemas, sem viatura oficial, para fazer exame de corpo de delito no IML (Artur Alvim), e seguiram comigo até a 89 DP de forma muita respeitosa e compreensiva, conversaram comigo durante todo o trajeto. Chegando lá, fui revistada por um carcereiro (isso mesmo, um funcionário do sexo masculino), perguntei a ele por qual motivo ele estava fazendo essa revista e não uma policial feminina e ele me respondeu que era procedimento de rotina, que não tinha nada de mais. Eu entendo isso como violação de direitos. Esse mesmo funcionário, ficava me fazendo ameaças o tempo todo que estive na 89 DP. Mesmo, ele sabendo que meu companheiro já se encontrava na mesma delegacia desde às 14hs, ficava dizendo para mim:

    “se seu marido não chegar com seu diploma, vou te colocar lá na outra cela com todas aquelas detentas (aproximadamente 20 mulheres). Tá chorando por que? Tá com dor? Vai rezando para o seu marido chegar logo, senão você vai para lá”.

    Eu sem saber se meu companheiro estava ou não na delegacia, chorava muito, enquanto o carcereiro parecia se divertir com meu sofrimento. Estava tão desesperada, sem noticias, que perguntei e implorei várias vezes para ele ligar e avisar meu companheiro que eu estava ali e precisava desse documento, mas ele ria e dizia para eu esperar mais um pouco.

    Por volta de 16h00, o deputado Carlos Giannazi compareceu à delegacia, se aproximou da cela onde eu estava presa, me cumprimentou e me acalmou, dizendo que meu companheiro, meus amigos e um advogado da Apeoesp se encontravam na delegacia. Que eu ficasse tranquila, pois meu alvará de soltura já havia sido expedido pelo juiz, só estava aguardando chegar à delegacia através de um oficial de justiça. Disse também, que depois eu poderia procurá-lo, para que juntos pudéssemos acionar o Ministério Público e a corregedoria para apurar o caso. Agora, o choro era de alívio. Pelo menos, já sabia que não iria passar mais uma noite na delegacia. Porém, as horas foram passando e nada de sair daquele pesadelo. Então, por volta de 20:00hs, o carcereiro me chamou para assinar uns papeis, dizendo que eu estava livre.
    Quando, sai pude abraçar meu companheiro e minhas amigas, um amigo e o Dr. Marco Aurélio da Apeoesp. Também fiquei sabendo que o Secretario Municipal de Direitos Humanos, o ex-senador Eduardo Suplicy, ligou na delegacia para falar com o delegado sobre meu caso. Foi muito reconfortante saber que não ando só, que tenho ao meu lado pessoas que assim como eu, são solidárias a dor do outro, que são favoráveis aos direitos humanos, à vida e contra qualquer tipo de descriminação. Pessoas que são contra abusos de autoridades e violações de direitos.

    Muito mais que as lesões, dores físicas e emocionais causadas pelo vexame e constrangimento, ficaram em mim as marcas de um Estado opressor, que ainda tem resquícios de autoritarismo da ditadura militar. Que prefere punir que, identificar às causas de tantas formas de violência. Um Estado que viola direitos e que perpetua o racismo.

    Não culpo os policiais, porque assim como eu, são trabalhadores, funcionários públicos cumprindo ordens. Vivemos em uma sociedade inversão de valores, doente e omissa, onde as pessoas se calam diante de abusos de autoridades e violações de direitos humanos.
    Quero acreditar em dias melhores, para todas e todos. Quero viver sem medo. Quero viver em uma sociedade mais justiça e equidade, onde cada um seja respeitado apenas por ser um ser vivente.


    Andreia Luiza Rosa, 42 anos, professora da rede municipal de educação da cidade de São Paulo, mulher negra e ativista dos direitos humanos, contra o genocídio da população negra.

  • QUEM SOMOS [POR NÓS]: exposição traz mulheres da periferia para o centro do debate

    QUEM SOMOS [POR NÓS]: exposição traz mulheres da periferia para o centro do debate

    “A mulher da periferia aparece na televisão, no jornal, quando acontece alguma fatalidade referente a ela. Só nas páginas policiais”.

    A frase acima não vem de uma pesquisa de opinião, tampouco de um estudo acadêmico. Ela faz parte do olhar sensível de Rosana Alves de Castro , mulher negra e moradora do Jardim Romano, zona leste de São Paulo, e uma das mais de 100 mulheres envolvidas no projeto “Desconstruindo Estereótipos: eu, mulher da periferia na mídia”, desenvolvido pelo coletivo Nós, mulheres da periferia, de junho a outubro de 2015.

    Como resultado desses meses de trabalho, no próximo sábado (21/11) acontece a abertura da exposição QUEM SOMOS [POR NÓS], no Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoeirinha.

    A exposição será um convite para adentrar ao mundo das mulheres dos bairros periféricos a partir de suas próprias perspectivas. Com fotografias, autorretratos e registro audiovisual daquelas que fizeram parte do processo. O objetivo é fortalecer a representatividade e o protagonismo feminino, contemplando a intersecção entre classe, raça e gênero, já que as mulheres negras foram maioria nas oficinas.

    De Perus (zona norte) ao Campo Limpo (zona sul); do Capão Redondo (zona sul) ao Jardim Romano (zona leste); de Guaianazes (zona leste) à Jova Rural (zona norte), foram muitas as narrativas, mostrando como a diversidade da mulher que mora nas bordas da cidade extrapola as paredes cristalizadas pela chamada “grande mídia”.

    Manoela Gonçalves, idealizadora da Casa das Crioulas (Perus), uma das entrevistadas e produtoras da Exposição “quem somos [por nós]” — Foto: Vinicius Boppre.

    A mulher da periferia na mídia

    Quando falamos de periferia na mídia, é importante compreender que este termo traz, em si, relações de conflito entre os grupos sociais. Historicamente, São Paulo se constituiu destinando aos mais pobres os espaços mais distantes do centro da cidade. Essa distância, no entanto, não é apenas geográfica, ela é também simbólica, o que reforça a relação entre dominantes e dominados no espaço social e, assim, no midiático.

    Se a mulher, geralmente, é tratada pela mídia de forma limitada, seja nas novelas, comerciais ou imprensa, este problema se multiplica quando se trata da mulher que vive nas bordas da cidade. Uma pesquisa realizada pela É nois | Inteligência Jovem, em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, com mais de 2.300 mulheres de 14 a 24 anos, das classes C, D e E, divulgada em junho deste ano, mostra que 86% das mulheres entrevistadas afirmaram não se sentirem representadas na mídia.

    “Quando acontece alguma coisa com algumas mulheres importantes fica aquela mídia toda. Se é uma pobre coitada, ali mesmo acabou, ficou por ali mesmo. Devia ser vista com igualdade. A rica, a pobre, a preta, a branca, é tudo mulher”, aponta Rosana Alves Castro, participante das oficinas na zona leste.

    A mídia, sendo criada, estruturada e administrada pelos grupos dominantes, colabora, intencionalmente ou não, para a construção de imagens e estereótipos relacionados à periferia. Na tentativa de comunicar para as “massas” uma mensagem padronizada, a mídia cria representações, tipos, perfis do que é considerado como comum e recorrente no que se refere aos bairros periféricos.

    Exemplo disso é o que narra uma das participantes das oficinas, Adriana Cristina de Araujo Fernandes Costa, da zona sul, quando uma TV procurou a ONG que faz parte para uma entrevista. “Uma emissora esteve aqui, mas queriam sensacionalismo. Eles não queriam mostrar o trabalho que a gente faz paro o bem. Eles não mostraram nossa oficina, não mostraram fazendo nossas coisinhas, nossas aulas, não mostrou nosso trabalho. Só mostrou a violência doméstica. Acho que teria que mostrar os dois lados”.

    Além da mídia estar nas mãos dos grupos dominantes, ela também é produzida majoritariamente por homens e poucas são as fontes femininas que são ouvidas. Os comerciais de TV (principal e mais disponível veículo entre o público feminino residente na periferia) trazem um padrão de beleza que não condiz com a realidade brasileira, formada a partir da multiplicidade de origens e uma forte descendência africana e indígena.

    Em relação à mulher negra, especificamente, a mídia, com base nas condições que são ainda resquícios do período escravocrata no Brasil, reproduz situações, tipos, personagens que a colocam em uma das últimas posições do estrato social, como descreve Manoela Gonçalves, fundadora da Casa das Crioulas, em Perus, um dos espaços onde as oficinas aconteceram.

    Ser mulher da periferia, uma mulher negra, é sempre estar armada, com uma voz extremamente firme, se impondo para ser respeitada. Eu quero ter uma voz mais doce calma, mas o homem não escuta. A sociedade não nos escuta com uma voz calma. A sociedade escuta nosso grito e depois nos chama de louca, barraqueira. Então, ser mulher negra pra mim é isso, a gente tem que estar sempre lá no afrontamento”.

    Renata Ribeiro, moradora do bairro de Perus (região noroeste de São Paulo), uma das entrevistadas e produtoras da Exposição “quem somos [por nós]”. Foto: Vinicius Boppre.

    Novelas: a vida que não é nossa

    A maioria das novelas trazem como núcleo central a vida da classe média e classe média alta, divulgando um modelo de vida que em nada tem a ver com aquele vivenciado nas periferias do país, e, de forma específica, nas da cidade de São Paulo.

    Para Manoela, essas narrativas romantizam as relações das mulheres da periferia. “O choro, o drama, as relações. Na novela não se ensina como ser natural. É muito romance para pouca vida real”, aponta.

    E mesmo quando a dramaturgia televisiva traz a favela ou as bordas da cidade para o centro do debate, isso aparece sempre de forma caricatural. A figura do traficante, do sequestrador e da prostituta vendem um retrato infiel e exclusivo da periferia e, principalmente, da gama de mulheres que a compõe.

    Para Renata Ribeiro, também de Perus, muito do que ela assiste nas novelas “são mentiras”. “Se eu fosse construir uma mulher da periferia para a novela, seria minha mãe, ela veio para cá, comprou a própria casa. Virou professora, passou na faculdade. Vai comprar suas coisas, seu carro, viaja quando quer. Uma mulher batalhadora. Isso, para mim, seria uma mulher da periferia”, exemplifica.

    No noticiário, a periferia aparece, na maioria das vezes, como o espaço da violência e medo. Os casos de abuso sexual e violência doméstica, porém, aparecem com maior frequência, mas apenas nos programas sensacionalistas.

    Nos de entretenimento, principalmente aqueles veiculados no período da tarde, o espaço destinado à mulher é sempre supérfluo ou, mais uma vez, sensacionalista. A mãe que procura o filho perdido; a moça que quer emagrecer, a culinária ou as fofocas sobre a novela.

    Na mídia impressa, o corpo magro e o cabelo liso tomam as capas das revistas. A moda serve apenas a um padrão de mulher. As receitas de emagrecimento ou de vida saudável dão o tom às narrativas desses periódicos. As mais populares, trazem informações sobre o signo e simpatias ao amor.

    Nós queremos aumentar as nossas vozes

    Os direitos de nossas mulheres são todos os dias violados, suas dores não são respeitadas, seja quando são parte do ciclo da violência doméstica, seja quando morrem seus filhos, os maridos. Esses programas abusam da fragilidade social e econômica de nossas mulheres para escancarar sua dor como se escancara uma mercadoria.

    Assim, a exposição QUEM SOMOS [POR NÓS] vem em um caminho contrário. Nas fotos e quadros, criados por elas próprias por meio dos debates realizados durante as oficinas, é possível notar uma variedade de elementos, que vão desde a rua onde vivem até as plantas de seu quintal. Nas fotos, uma fotografou a outra, evidenciando aquilo que gostariam que houvesse nas revistas, desconstruindo a sexualização sempre presente de seus corpos. São detalhes, são as mãos que simbolizam o trabalho diário, os cabelos que as deixam vaidosas, o batom que não esquecem de passar, os olhos como signo de coragem, o sorriso que, mesmo em meio a tantas dificuldades, ainda floreia em seus rostos.

    É dizer que não queremos mais as lentes sempre embaçadas do outro, que, lá de cima, imagina tudo que vê, mas tem medo de molhar os pés no chão da periferia. A grande mídia não sabe um terço sobre nós. E a exposição vai a fundo nas vivências dessas mulheres, humanizando o discurso e mostrando como somos diversas.

    Esperamos por todas e todos no próximo dia 21 de novembro, às 15h, no Centro Cultural da Juventude (zona norte de São Paulo).