Jornalistas Livres

Categoria: memória e Justiça

  • Coronel Ustra pode ser condenado esta semana por tortura e assassinato

    Coronel Ustra pode ser condenado esta semana por tortura e assassinato

    O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) marcou para a próxima quarta-feira, 17 de outubro, a audiência de julgamento da apelação da defesa do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra pela tortura e assassinato do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, em julho de 1971. O coronel foi condenado em primeira instância mas recorreu.

    O crime ocorreu nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), centro de tortura comandado por Ustra entre outubro de 1969 e dezembro de 1973.

    Em 2008, em outro processo, Ustra foi declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em ação movida pela família Teles. Em 2012, a Justiça negou o recurso do coronel reformado e manteve a decisão. Ustra morreu em 2015.

    O Coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o mesmo que continua sendo homenageado pelo candidato Jair Bolsonaro, quando foi major do Exército e comandante do DOI-Codi, entre setembro de 1970 a janeiro de 1974, usava os codinomes de “Dr. Tibiriçá” ou “Dr. Silva” para suas ações criminosas.

    A Comissão Nacional da Verdade registrou pelo menos 502 casos de tortura e mais de 40 assassinatos ocorridos no DOI-Codi sob o comando do Ustra, incluindo a tortura sofrida Dilma Roussef entre outros. A Comissão disponibilizou um canal no Youtube em que é possível assistir uma série de depoimentos, inclusive a do torturador (clique para acessar)

    A luta das famílias

    A ação judicial movida por estas duas famílias (Teles e Merlino), tem um sentido especial de justiça e reparação moral e política, e é uma iniciativa pioneira e inusitada no Brasil, o único país da América Latina que não tem nenhum torturador da época da ditadura militar condenado. 

    Luiz Eduardo da Rocha Merlino, foi sequestrado em sua casa em Santos, em 15 de Junho de 1971, e torturado por 24 horas seguidas e abandonado numa solitária. Morreu em decorrência da omissão e dos graves ferimentos que sofreu por tortura. Conheça mais sobre a história de Merlino e a luta por justiça no site coletivomerlino.org .

    Assista à vídeo-biografia, onde Celso Frateschi relata em primeira pessoa como foi a morte de Merlino. Acesso o link do relatório final produzido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo da Verdade Rubens Paiva.

     

     

    A série de vídeo-biografias tem uma playlist específica,

    Tortura e Assassinato

    Trechos da matéria de Tatiana Merlino e André Caramante disponível no site.

    Caixão lacrado

     A notícia da morte de Merlino chegou à família por meio de um telefonema ao seu cunhado, Adalberto Dias de Almeida, que era delegado da Polícia Civil. Adalberto e tios de Merlino foram ao IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo onde foram informados de que lá não havia nenhum morto com esse nome. Usando da sua condição de delegado, Adalberto foi em busca do corpo do cunhado. Abrindo uma por uma as portas das geladeiras, localizou o corpo de Luiz Eduardo com marcas evidentes de tortura e sem identificação. O corpo foi entregue à família num caixão lacrado.

    A versão que foi dada à família foi a de que Merlino teria se suicidado ao jogar-se embaixo de um caminhão na BR-116, na altura de Jacupiranga, quando estava sendo transportado para Porto Alegre para a identificação de militantes. Tal versão consta do laudo necroscópico assinado por Abeylard Orsini e Isaac Abramovitch. O veículo que o teria atropelado nunca foi identificado e tampouco foi realizada uma ocorrência no local do fato.

    40 anos de luta por verdade e justiça

    A família de Merlino luta há 40 anos por justiça, ainda em 1979, a mãe do jornalista, Iracema da Rocha Merlino, já falecida, moveu uma ação declaratória na área cível, mas foi rejeitada, sob a alegação de prescrição.

    Em 2008, a família moveu uma nova ação declaratória na área cível, que não pretendia nenhuma indenização pecuniária, apenas o reconhecimento moral de que ele foi morto em decorrência das terríveis torturas que sofreu nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, mas o processo foi extinto na primeira instância, não chegando sequer a ser julgado em seu mérito.

    Através de seus advogados Fábio Konder Comparato, Claudineu de Melo e Aníbal Castro de Souza, os familiares de Merlino recorreram ao Superior Tribunal de Justiça, mas o relator do caso não considerou o recurso e arquivou o processo em março de 2010.

    Em 2010, os advogados dos familiares de Merlino entraram com uma nova ação, ainda na área cível, desta vez por danos morais, contra o coronel Ustra. Também neste caso os advogados do coronel encaminharam ao Tribunal de Justiça de São Paulo um recurso (“agravo de instrumento”), tentando bloquear o seguimento do processo. Porém não obtiveram sucesso. E finalmente, em 27 de julho de 2011 a juíza Claudia de Lima Menge ouviu as seis testemunhas arroladas pelos familiares de Merlino.

    O coronel Ustra havia indicado como suas testemunhas de defesa algumas pessoas que deveriam depor por carta precatória em seus estados, pois nenhuma residia em São Paulo,  algumas delas declinaram da convocação, como o senador José Sarney, por exemplo. Por fim uma única testemunha falou em sua defesa, depondo em Brasília: o general Paulo Chagas declarou não ter notícia de nenhum ato de tortura praticado pelo coronel Ustra e também que o Exército brasileiro nunca tinha dado nenhuma ordem escrita para torturar presos. A juíza proferiu a sentença de condenação na primeira instância, para que o coronel Brilhante Ustra  pagasse uma indenização à família de Merlino.

     

    Com trechos do relatório da Comissão da Verdade do Estado e São Paulo Rubens Paiva , do site Memórias da Ditadura e do site www.coletivomerlino.org

  • “Canalha”, “covarde” e “contrabandista”: relatórios expõem reputação de Bolsonaro no Exército dos anos 80

    “Canalha”, “covarde” e “contrabandista”: relatórios expõem reputação de Bolsonaro no Exército dos anos 80

    Por Vinícius Segalla para o DCM

    Um dossiê formulado pelo Estado-Maior das Forças Armadas concluído em 27 de julho de 1990, ao qual a reportagem teve acesso, detalha informações nada abonadoras reunidas pelo alto-comando do Exército desde o julgamento que arrancou Bolsonaro do anonimato, nos anos 80, até o início da sua vida parlamentar, na década seguinte.

    Na peça investigatória, há dezenas de anotações feitas pelos oficiais com relatos da jornalista Cássia Maria Rodrigues, então trabalhando na revista Veja, que disse ter sido ameaçada de morte por Jair Bolsonaro, conforme já informado pelo DCM.

    Para além do que denunciava a repórter, chama a atenção uma carta sem assinatura recheada de denúncias e comentários ofensivos contra Bolsonaro. A investigação não descobriu quem era o autor, mas constatou ser de um colega de farda do agora presidenciável. As autoridades militares que fizeram o relatório trataram de investigar as informações da carta apócrifa. Segundo informam, constataram a veracidade de uma parte do que consta ali. De outra, disseram não ter sido capazes de produzir provas.

    O documento repercutiu dentro e fora da caserna, como mostra reportagem do jornal carioca “Tribuna da Imprensa” do dia 22 de abril de 1991.

    Segundo consta no dossiê, uma cópia do relatório e da carta foi distribuída aos alunos e professores da ESEME (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército). O texto critica as intenções do capitão e faz acusações. Em um dos trechos da carta incluída nos documentos, lê-se, em mensagem a Jair Bolsonaro:

    “Ao invés de fazer croqui de bombas, escreva quantas vezes você foi ao Paraguai trazer muamba. Conte sobre os seus problemas no Mato Grosso. Verifique qual é o seu conceito na Brigada Paraquedista.”, diz a missiva, em parte referindo-se ao episódio narrado pelo próprio Bolsonaro à Veja, de que preparava atentados à bomba para promover sua campanha por aumentos de salários.

    A conclusão do relatório aponta que Bolsonaro passou a atuar na esfera dos militares sem “representatividade” ou “delegação” para tanto, questionando e acusando autoridades “de forma descabida” e contrariando as regras de hierarquia e ordem das Forças Armadas.

    Trecho de carta anexada ao dossiê do Exército sobre Jair Bolsonaro

    Também há menções ofensivas a Rogéria Nantes Braga, então esposa de Bolsonaro. O militar autor da carta fazia acusações de cunho pessoal a Rogéria, que a reportagem preferiu não publicar por não trazer conteúdo de interesse público. Mas não fizeram assim os colegas e comandantes de Bolsonaro que pregaram a carta na parede do quartel.

    Rogéria é mãe dos três filhos mais velhos do capitão reformado e foi eleita vereadora do Rio sob influência do marido em 1992. Depois, se separaram, e Bolsonaro disse que foi porque ela não o estava mais consultando antes de decidir seus votos e outras ações na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

    De qualquer forma, a insistência de Bolsonaro em fazer campanha dentro dos quartéis e os comentários que fazia na tribuna irritavam o oficialato. Em uma outra carta revelada pela imprensa em maio de 91, o então chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Jonas de Morais Correia Neto, o chama de “embusteiro, intrigante e covarde”, acusando-o de “inventar e deturpar visando aos interesses pessoais e da política”, como mostra reportagem abaixo, de 16 de abril de 1991.

    Em outubro daquele mesmo ano, quando Bolsonaro já era deputado federal então pelo PDC-RJ (Partido Democrata Cristão), suas frequentes visitas ao antigo emprego, para fazer propaganda política e angariar votos, contrariaram de tal maneira seus ex-comandantes que estes proibiram a entrada de jair Bolsonaro nos quartéis do Rio de Janeiro. É que, de acordo com o Comando de Operacões Terrestres (Coter) do Exército Brasileiro, Jair Bolsonaro estava insuflando a revolta na tropa.

    O general Alberto dos Santos Lima Fajardo, então comandante do Coter, explicou a punição em entrevistas à imprensa. Disse que Jair Bolsonaro estava “insuflando oficiais superiores e sargentos com panfletos criticando exaustivamente comando da tropa”.

    Ao ficar sabendo da punição, Bolsonaro disse que estava sendo perseguido pelo generalato que ocupava o Comando Leste (divisão administrativa do Exército Brasileiro em que está o Rio de Janeiro). Alertou seus colegas deputados para o risco que aquele tipo de arbitrariedade cometida pelo Comando Terrestre representava para a Câmara. Disse que o general Fajardo estava “agindo irresponsavelmente” e que era questão de tempo para que outros congressistas passassem a receber este tipo de tratamento persecutório que os comandantes do Exército lhe conferiam.

    A punição a Bolsonaro durou mais um ano. Nunca mais até hoje o Exército proferiu uma ordem como essa contra qualquer outro parlamentar brasileiro.

  • MUSEU NACIONAL: esse incêndio tem nome e sobrenome: Michel Temer

    MUSEU NACIONAL: esse incêndio tem nome e sobrenome: Michel Temer

    O Museu Nacional do RJ arde em chamas há mais de duas horas. Seu acervo de mais de 20 milhões de itens não existe mais. São milhares de anos de História do Planeta, não só do Brasil. O acervo era usado pra estudos de geologia, antropologia biológica, paleontologia.

    O descontrole do fogo é total. Não há água, os bombeiros trabalham com UMA escada magiro e estão impotentes diante da tragédia.

    O fóssil de Luzia, o mais antigo ser humano encontrado no Brasil, estava guardado em uma sala do Museu Nacional do Rio de Janeiro. A natureza preservou Luzia por 11 mil anos. O descaso com a ciência e a memória nacional transformaram seus restos em cinzas hoje.

  • REITORES EXIGEM: basta de perseguição e abusos de poder contra universidades!

    REITORES EXIGEM: basta de perseguição e abusos de poder contra universidades!

    Protesto silencioso, aos fundos da cerimônia em homenagem ao reitor morto. Fotos: Jornalistas Livres

    Não fosse a fúria persecutória da Polícia Federal contra suas próprias vítimas, a morte do reitor da UFSC teria ficado na acomodação coletiva, para que a história se encarregasse de fazer justiça. Mas a enxurrada de denúncias de intimidação a professores e dirigentes da Universidade Federal de Santa Catarina, militantes sociais e vários veículos de mídia independente, incluindo os Jornalistas Livres, reacendeu a revolta contra os abusos de poder cometidos pela Operação “Ouvidos Moucos”. Os  ataques de agentes federais em nome de uma operação estatal que até agora só gerou morte, espetáculo midiático e inquisição provocam desde a sexta-feira (27/7), amplo repúdio. Manifestos vêm de entidades democráticas e comunidades acadêmicas, como a Andifes e SBPC, Floripa Contra o Estado de Exceção e Curso de Jornalismo da UFSC. Multiplicam-se também pronunciamentos de setores jurídicos, como as recentes declarações do ministro Gilmar Mendes, cobrando providências do ministro Raul Jungmann contra a PF, e até da grande mídia, que foi cúmplice do linchamento moral do reitor Cancellier. Esse espanto tardio com a violação legal dos direitos de cidadãos brasileiros pelo estado policialesco foi sintetizado no inesperado editorial da Folha do dia 30/7, intitulado “Arbítrio à solta”. O destaque afirma que “Inquérito aberto contra professor da UFSC por causa de uma entrevista evidencia que apuração de desvios descambou para intimidação inaceitável”.

    As perseguições denunciam o corporativismo dos agentes de exceção, que preferem se auto proteger e atacar seus questionadores a reconhecer os equívocos cometidos no caso do reitor, vitimado por uma lista sem fim de violações aos direitos jurídicos. Todas as manifestações de repúdio a esses procedimentos intimidatórios são marcadas pela comparação aos gestos mais sádicos das ditaduras, do editorial da Folha de S. Paulo, à entrevista de Gilmar Mendes e à nota pública da Associação Brasileira de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (leia abaixo na íntegra). “As universidades federais são patrimônio da sociedade brasileira, e não cessarão a sua luta contra o obscurantismo no Brasil”, afirma a Andifes. A carta foi emitida no domingo (29/7), quando veio a público a perseguição contra o professor do Curso de Jornalismo e chefe de gabinete da UFSC Áureo Moraes. “Uma vez mais, presenciamos a Universidade Federal sendo vítima do arbítrio e da censura”, diz ainda o manifesto. Também a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), emitiu nota em 1/8, manifestando extrema preocupação com a existência de um inquérito policial visando limitar, reprimir ou punir atos de manifestação pública ocorridos dentro do campus da UFSC em dezembro de 2017. Em nota de apoio aos professores perseguidos, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES/UFSC) afirma que o combate ao desvio de verbas na UFSC é só uma aparência para destruir sua autonomia e, de forma explícita, abrir caminho à privatização. “Manifestamos o nosso veemente repúdio à forma autoritária, arbitrária, desumana e espetacularizada que foi adotada na Operação Ouvidos Moucos e que agora assume um caráter intimidatório e contrário à liberdade de expressão por parte da delegada que a época conduzia a operação, que se utilizando de abuso de poder, coibiu qualquer crítica aos desvios existentes em parte do Poder Judiciário, particularmente na condução da citada investigação”, afirma ainda o documento.

    O professor Áureo Moraes foi indiciado em investigação da Polícia Federal em junho passado, sob a acusação de ter participado de uma cerimônia em comemoração ao 57º aniversário da UFSC, quando a instituição prestou uma homenagem ao reitor Luiz Carlos Cancellier e lamentou sua morte. Para justificar a investigação, a delegada Érika Marena, responsável pela ordem de prisão endossada pela juíza federal Janaína Cassol, entrou com uma representação contra o professor por crime contra a honra, conforme reportagem de Wálter Nunes para a Folha: “PF intima professor da UFSC após evento com críticas à polícia”. Justamente ela, que foi denunciada pela família de Cancellier por ter arruinado a reputação do reitor, conforme declarou o ministro Gilmar Mendes à jornalista Mônica Bérgamo, em sua coluna na Folha:  “Eles [Polícia Federal] não têm nenhum cuidado com a honra alheia e são tão cuidadosos quando criticam os seus”.

    Através da intimação de Áureo, a PF busca responsabilizar a instituição por um ato organizado por estudantes, professores, servidores e movimentos sociais que aproveitaram o aniversário da universidade para exigir investigação e punição dos abusos de poder no caso do reitor. Os manifestantes ocuparam o local do ato oficial empunhando cartazes e faixas contra o estado de exceção, a espetacularização da justiça, a falta de cuidado nas apurações, a violação  da autonomia da universidade e dos direitos jurídicos constitucionais. Nos cartazes e faixas repetia-se a questão: “Quem matou o reitor?”

    O foco de investigação da PF gira, contudo, em torno de uma única faixa que fez fundo ao discurso do chefe de gabinete com o enunciado “As faces do abuso de poder”, acima das fotos dos agentes envolvidos na Operação Ouvidos Moucos: a delegada da Polícia Federal Érika Marena; a juíza federal Janaína Cassol; o procurador da República André Bertuol; o corregedor Geral da UFSC Rodolfo Hickel do Prado e o superintendente regional da Controladoria-Geral da União Orlando Vieira de Castro Júnior. No encerramento da cerimônia, os manifestantes em torno da cerimônia romperam pela única vez o silêncio dos cartazes e faixas, puxando as palavras de ordem: “Queremos justiça”, “Justiça, justiça, justiça!”, “Fora Temer”, “Cau, presente!” e “Universidade pública sempre!”

    Outros dirigentes da UFSC estão sendo obrigados a prestar depoimento na investigação, como o próprio reitor Ubaldo César Balthazar, que substituiu Cancellier após vencer eleições diretas e foi normalmente confirmado no cargo pelo novo ministro da educação, Rossieli Soares da Silva, na sexta-feira, 38/7. Além do professor Áureo Moraes, está sendo investigado pela mesma manifestação o arquiteto popular Loureci Ribeiro, liderança do Coletivo Floripa Contra o Estado de Exceção, entidade erguida um dia após a tragédia da UFSC, que também emitiu nota protestando contra os novos abusos e intimidações pelos agentes da “Ouvidos Moucos”. As investidas se baseiam em acusações de calúnia e difamação e de crimes contra a honra, que ocorrem no âmbito do direito privado e deveriam se restringir a pessoas físicas privadas. “As ações públicas de agentes públicos podem ser criticadas no espaço público de uma democracia, sob pena de suprimirmos a “liberdade de expressão que constitui o estado democrático”, explica a professora Maria Borges, que está se especializando em filosofia do direito.

    Professor Áureo Moraes, de terno azul, seguido à direita pelo reitor Balthazar e pelo ministro da Educação, que o nomeou no cargo na sexta-feira, 28/7. Da foto, ao menos cinco dirigentes da UFSC estavam na cerimônia

    Realizada no dia 18 de dezembro, no Hall da Reitoria, com a universidade já bastante esvaziada, a cerimônia iniciou com música clássica e discursos serenos, sem exaltações, num esforço oficial de marcar de modo discreto e sereno o aniversário da instituição. O que prevaleceu, contudo, foi o clima fúnebre, num misto entre luto e luta.

    Com a execução do “Lamento Sertanejo”, que fala da saga de um brasileiro humilde vindo do interior, como o reitor Cancellier, o Madrigal e Orquestra de Câmara da UFSC, regido pela maestrina Miriam Moritz, deu o tom da tristeza de uma universidade que viveu a violência policial como nunca antes na sua história. Ao tomar a palavra, Balthazar lamentou que fosse obrigado a fazer a homenagem póstuma a Cancellier como reitor pró-tempore. Antes dele, Áureo Moraes afirmou que se vivia um momento duplo: primeiramente de congraçamento pela história da UFSC e depois de luto pela perda de um líder tão importante para a comunidade, atingido por “uma série de absurdos cometidos”. Evocou a serenidade do sertanejo, “que se indigna, se revolta, mas apresenta esse lamento da forma mais serena possível”. Acrescentou ainda: “Precisamos exercitar todos os dias a nossa coragem contra tudo o que nos fizeram, mas construir a harmonia para defender a autonomia universitária e combater qualquer arbitrariedade. “E ninguém tem o direito de abalar essa harmonia daqui por diante”.

    Na sequência, o quadro do reitor Luiz Carlos Cancellier, morto com apenas um ano de gestão, foi integrado à galeria dos reitores da UFSC e passou a ser uma lembrança dolorosa na parede da ante-sala do Conselho Universitário. Nota de repúdio às intimidações abusivas publicada hoje em sua página oficial, o Curso de Jornalismo da UFSC/ Pós-Graduação em Jornalismo informa que ao ser intimado pela PF, o professor Áureo “foi pressionado a identificar os estudantes, colegas docentes e técnicos administrativos que participaram do evento e protestaram contra o que consideram abuso de autoridade de partes dos agentes públicos responsáveis pela famigerada operação ‘Ouvidos Moucos’, cujos desdobramentos trágicos e resultados pífios são conhecidos, publicamente”.

    A tentativa de censurar e criminalizar a instituição pelo direito e liberdade de se manifestar contra a conduta de agentes públicos federais não é apenas procedimento da mais arbitrária e prepotente das ditaduras, como assinalou em artigo publicado pelos Jornalistas Livres o cientista político da UnB, Luís Felipe Miguel (ele próprio vítima de ameaça de processo pelo ex-ministro Mendonça Filho, que o acusou de improbidade administrativa pela proposição da disciplina O Golpe de 2016 e o Futuro da Democracia no Brasil). É também prova inequívoca de frieza e crueldade com o sentimento coletivo natural de revolta pela tragédia, que significa, em última instância, três mortes: a do reitor, a da autonomia universitária, a do Estado Democrático e de Direito.

     

    PERSEGUIÇÃO A JORNALISTAS

    A fúria persecutória pós-morte de Cancellier atinge também a mídia independente. Uma repórter dos Jornalistas Livres está sofrendo ação criminal na 7ª Vara da Justiça Federal pelo ex-corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, que incriminou o reitor na PF e Justiça Federal, municiando o pedido de prisão com base em uma possível ameaça de morte que teria sido ouvida não se sabe por quem. Em dossiê publicado no dia 30 de outubro, os Jornalistas Livres denunciaram o histórico de conduta do então corregedor, revelando os processos judiciais que o envolvem por abuso de poder, calúnia e difamação, produção de invasão a domicílio mediante falso testemunho de ameaça de morte a mão armada, espancamento e tortura psicológica de mulheres, além de crimes de trânsito e de direção perigosa que colocam em risco a vida da comunidade, um com agressão física e outro com carteiraço.

    Na acusação aos Jornalistas Livres, Hickel alega ter recebido ameaça anônima de morte na forma de um bilhete em papel impresso que teria sido entregue num envelope dirigido a ele em sua sala na UFSC, com três palavras digitadas: “Bandido, assassino, psicopata”. À “ameaça” estaria anexada uma cópia do dossiê “Corregedor que entregou reitor à PF já foi condenado por calúnia e difamação”. Estaria anexado ainda relatório de seus dados no Sistema de Informação de Segurança Pública (SISP), extraídos por três agentes da Polícia Militar de Santa Catarina entre os dias 3 de outubro e 10 de novembro de 2017. Com base nesses relatórios, cujo acesso só é permitido a agentes do sistema, em dezembro de 2017, Hickel também moveu queixa contra os policiais no Comando Geral do BOPE de São José por vazamento de informações sigilosas, que resultou na abertura de Inquérito Policial Militar. Os policiais alegaram que fizeram consultas ao cadastro individual de Hickel para consumo interno porque o noticiário sobre o suicídio do reitor envolvendo o nome do corregedor suscitou curiosidade. A Justiça Militar considerou o acesso ao SISP regular e o IPM nº 776/2017 foi arquivado em 25 de junho pelo juiz militar Marcelo Pons Meirelles. Embora o ex corregedor fizesse uso constante das câmeras internas de vigilância da UFSC para abrir processos administrativos e expedientes intimidadores contra dezenas de servidores, estudantes e professores, desta vez nenhuma delas foi acionada para comprovar o recebimento da ameaça e a sua relação com os demais fatos.

    Exonerado do cargo pelo reitor Ubaldo Balthazar em 2 de fevereiro, o corregedor entrou com mandado de segurança contra a UFSC para anulação do ato. Todavia, seu afastamento da universidade foi mantido pelo juiz federal Osni Cardoso Filho, após verificar que Hickel era alvo de uma sindicância instaurada pela Corregedoria Geral da União, em Brasília, a partir de denúncias de desvios de conduta, assédio moral, tortura psicológica e perseguição a membros da comunidade universitária. Até hoje não foram divulgados os resultados dessa investigação, que ouviu dezenas de pessoas na UFSC no início do ano. Nem o reitor, nem o atual corregedor Ronaldo Viana, nem as dezenas de vítimas que alegam ter sido aterrorizadas e assediadas por ele têm qualquer informação a respeito. Na tática do atacar para se defender, a delegada Érika Marena também está movendo perseguição judicial contra os jornalistas Marcelo Auler e Paulo Henrique Amorim.

    NOTAS PÚBLICAS DE ENTIDADES DEMOCRÁTICAS

    Em defesa da liberdade de expressão e da autonomia universitária

    01/08/2018 

    Menu de NavegaçãoNós, docentes do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), reunidos em Colegiado, no dia 30 de julho de 2018,  manifestamos nosso mais veemente repúdio aos atos de agentes públicos, neste caso da Polícia Federal/SC, que ferem dois direitos fundamentais tão duramente consagrados na constituição: a liberdade de expressão (direito à opinião) e a autonomia universitária.

    O professor Áureo Mafra de Moraes está sendo alvo de uma investigação da Polícia Federal por ter participado, na condição de chefe de gabinete do reitor, da homenagem feita ao reitor morto, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, por ocasião da celebração dos 57 anos da UFSC. Intimado pela PF, o professor Áureo foi pressionado a identificar os estudantes, colegas docentes e técnicos administrativos que participaram do evento e protestaram contra o que consideram abuso de autoridade de partes dos agentes públicos responsáveis pela famigerada operação “Ouvidos Moucos”, cujos desdobramentos trágicos e resultados pífios são conhecidos, publicamente. O processo revela prepotência e autoritarismo. Estamos de acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), que em nota pública sobre o episódio escreveu: “A autonomia universitária, resguardada pela Constituição Federal, tem sido desprezada, e aqueles que deveriam fazer cumprir a lei e garantir os direitos expressos na carta magna brasileira, lançam mão de artifícios para intimidar, cercear e tentar impor um regime ao qual a Universidade não irá jamais se curvar”.

    Não se trata de um caso isolado. O professor Paulo Pinheiro Machado, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH/UFSC), que atuou de forma pacífica durante a invasão do Bosque da UFSC pela Polícia Federal em 2014, após oitivas e inquéritos similares da PF tornou-se réu em um processo recentemente confirmado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Outros episódios já aconteceram também na Universidade Federal de Minas Gerais (invasão do campus e condução coercitiva do reitor) e, mais recentemente, a instauração de processos contra professores da Universidade Federal do ABC (em São Paulo), pelo fato de terem organizado um lançamento de livro. Há menos de um ano, os mesmos agentes públicos, liderados pelo Ministério Público Federal e ministro da Educação, tentaram impedir, na Universidade de Brasília (UnB), a realização de uma disciplina que refletia criticamente sobre os acontecimentos que levaram ao afastamento da ex-presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2016. A universidade pública federal brasileira está sob intenso ataque pelas forças que tomaram o poder político no país, não há dúvida.

    Assim, nos manifestamos em defesa da liberdade de expressão e da autonomia das universidades públicas federais.

    Universidade é lugar de conhecimento e liberdade

    A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) manifesta sua indignação com as ações desencadeadas por agentes que afrontam a Universidade Pública Brasileira e o Estado Democrático de Direito. Uma vez mais, presenciamos a Universidade Federal sendo vítima do arbítrio e da censura.

    Nesta sexta-feira, 27 de julho, a imprensa nacional revelou que a Polícia Federal de Santa Catarina instaurou inquérito contra o professor Áureo Mafra de Moraes, chefe de gabinete da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O professor foi intimado, no mês passado, por ter participado de ato público pelo 57º aniversário da UFSC, ocasião em que lamentou a morte do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que se suicidou em outubro de 2017, após ser preso sem acusação justificada, sendo submetido a humilhações descabidas.

    A intimação do professor Áureo Mafra de Moraes, e a determinação para que faça comunicação em caso de eventual mudança de endereço, bem como a tentava de proibir manifestações da comunidade universitária, constitui lamentável retrocesso para a democracia brasileira. A abertura de inquérito policial contra o professor Áureo de Moraes agride, assim, a universidade e a democracia. Infelizmente, é mais uma demonstração de repetidos abusos e desrespeito à lei que temos vivenciado e que lamentavelmente nos remete à Ditadura, período em que, é bom lembrar, o arbítrio e o abuso de autoridade eram práticas correntes e justificadas com argumentos estapafúrdios. A autonomia universitária, resguardada pela Constituição Federal, tem sido desprezada, e aqueles que deveriam fazer cumprir a lei e garantir os direitos expressos na carta magna brasileira, lançam mão de artifícios para intimidar, cercear e tentar impor um regime ao qual a Universidade não irá jamais se curvar.

    A Andifes, as reitoras e os reitores das Universidades Federais solidarizam-se com a comunidade da Universidade Federal de Santa Catarina, com seus gestores, ex-reitores e com seus servidores, reiterando o direito constitucional às manifestações pacíficas, que não podem ser criminalizadas, pois se constituem em conquista essencial da vida democrática. As manifestações promovidas pela comunidade universitária da UFSC e pela sociedade são legítimas e democráticas. São vozes cidadãs que pedem justiça e que justamente rechaçam as ameaças à Universidade Pública. Ao mesmo tempo, conclamamos toda a sociedade a reagir às violências repetidamente praticadas por órgãos e indivíduos que têm por obrigação respeitar a lei e o Estado Democrático de Direito. As Universidades Federais são patrimônio da sociedade brasileira, e não cessarão a sua luta contra o obscurantismo no Brasil.

    Brasília, 29 de julho de 2018.

     

    Nota da SBPC em SC sobre tentativa de cerceamento da liberdade de expressão na UFSC

    01/08/2018 

    A Secretaria Regional da SBPC em Santa Catarina recebeu com extrema preocupação as notícias divulgadas recentemente em nível nacional a respeito da existência de um inquérito policial visando limitar, reprimir ou punir atos de manifestação pública ocorridos dentro do campus da Universidade Federal de Santa Catarina em dezembro de 2017. Nossa representação estadual repudia qualquer tentativa de criminalização e censura à manifestação pacífica de ideias, principalmente quando se trata de um ambiente acadêmico onde deve prevalecer a autonomia universitária, o espírito democrático, o respeito à Constituição e o livre trânsito de opiniões.

     

    Florianópolis, 1 de agosto de 2018
    Nota do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior Andes/SN- UFSC repudia perseguição de professores
     
    Na atual conjuntura de fortalecimento da visão da educação como mercadoria e das constantes ameaças à autonomia universitária no Brasil e de privatização das universidades, entendemos que a investigação que envolve o Prof. Áureo Mafra de Moraes relativa ao evento de aniversário de 57 anos da UFSC, em dezembro passado, é mais um ataque à autonomia da comunidade da UFSC e um cerceamento à livre manifestação de ideias. Desta forma, a diretoria da seção sindical do ANDES-SN na UFSC manifesta apoio ao Prof. Áureo e permanece na defesa do exercício da democracia e da Universidade Pública.
     
    O ANDES UFSC manifesta ainda o apoio à investigação de desvios de recursos nas Universidades Federais ou em quaisquer outros espaços, mas considera essencial que estas investigações ocorram respeitando o Estado Democrático de Direito e à ampla Defesa. Manifestamos o nosso veemente repúdio à forma autoritária, arbitrária, desumana e espetacularizada que foi adotada na Operação Ouvidos Moucos e que agora assume um caráter intimidatório e contrário à liberdade de expressão por parte da delegada que a época conduzia a operação, que se utilizando de abuso de poder, coibiu qualquer crítica aos desvios existentes em parte do Poder Judiciário, particularmente na condução da citada investigação.
     
    Por fim, destacamos que na atual conjuntura, sob a aparência de investigar desvio de recursos nas Universidades Públicas e sob o argumento de combate à corrupção, está em jogo um ataque neoliberal à estas instituições públicas, cuja finalidade é destruir sua autonomia e, de forma explícita, abrir caminho à privatização. Combatemos e denunciamos estes ataques à Universidade Pública e nos somamos à luta daqueles que fortalecem e defendem o Patrimônio Público e o Estado Direito e que, veementemente, rechaçam o Estado de Exceção.
     
    Diretoria da Seção Sindical do ANDES na UFSC

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    Estado policial 

    Por Roberto Romano da Silva

    Talvez vários procuradores de justiça, juízes e delegados de polícia desconheçam a obra de Raymond Carré de Malberg. É pena, porque o jurista francês publicou escritos fundamentais para a vida democrática, na passagem do século XIX para o XX. Suas análises e advertências, não acolhidas  pelos conterrâneos, anunciaram o clima de terror na pretensa república de Vichy, escabelo usado pelo nazismo para destruir, humilhar, vencer as resistências dos que perderam nos campos de batalha. Carré de Malberg se preocupou com o Estado de direito e os ataques contra tal regime. No doutoramento, defendido em 1887, o tema prenuncia o desenvolvimento posterior de sua pesquisa: História da exceção no direito romano e nos antigos processos franceses (Editora Rousseau). No capítulo intitulado “Transformação das praescritiones pro reo em exceções” ele mostra o quanto eram importantes, no direito romano, pontos que hoje passam despercebidos na opinião pública e para muitos juristas. Trata-se em primeiro lugar de não conduzir uma decisão sobre questões maiores a partir de questões menores. E também sobre a pergunta se um processo seguiu todos os trâmites exigidos e, ademais, se o magistrado é de fato e de direito competente para o veredicto. Sem aqueles requisitos o direito perde todo sentido, cai o Estado na voragem da força física, arbítrio, truculência contra os réus. Ao deixar o direito, o poder seguiria rumo à barbárie. Vale a pena ler semelhante trabalho, acessível no site da Gallica, Librairie National de France.

    Qual o motivo para evocar o jurista do século 20? Carré de Malberg  assumiu uma posição positivista no direito constitucional. Entenda-se: ele considerava estratégico analisar o Estado existente, não o idealizado que reside nos manuais de direito, nas aulas universitárias ou sentenças de juízes que da situação efetiva nada conhecem. Eles julgam e condenam ignorando a sociedade real a que deveriam servir. Seria excelente se, em nossa terra, as lições trazidas por ele fossem conhecidas e praticadas. O divórcio entre o povo e a prática do direito seria amigável. Ao persistir o vezo de aplicar códigos idealizados, nossa justiça é levada a um divórcio litigioso com a população, sobretudo a que não habita os palácios. Um ensino precioso que o pensador nos traz, trata justamente da calamidade que rege o trato das chamadas autoridades e o mundo civil em nossos tristes dias. Refiro-me à sua definição do Estado policial.

    Vivemos no século 20 sob dois Estados policiais, a ditadura Vargas e a civil/militar de 1964. Em ambas os direitos foram espezinhados, o monopólio estatal da força física foi mantido com selvageria, foram feitas prisões injustificáveis em direito ou ética, torturas, censuras, exílios, assassinatos de opositores. Sob a Polaca, a suposta segurança nacional justificava os excessos do poder. Na ditadura de 1964 surgiram os Atos Institucionais, vários deles redigidos pelas mãos do mesmo autor da Carta de 1937, Francisco Campos, o nosso Carl Schmitt. Na calada da noite, mesmo decretos secretos, delírio totalitário, foram impostos à Nação. E  sempre em nome de causas pretensamente nobres, como o combate à corrupção e a luta contra agentes subversivos. É de Raymond Carré de Malberg uma das mais exatas definições do Estado policial. Naquele poder “a autoridade administrativa pode, de modo discricionário e com uma liberdade decisória mais ou menos completa, aplicar aos cidadãos todas as medidas que ela julga útil a ser tomada por iniciativa dela mesma, para enfrentar circunstâncias e atingir em cada momento os fins que se propõe. O Estado policial se opõe ao Estado de direito” (Contribuição à teoria geral do Estado, Paris, Société du Recueil Sirey, 1920).

    Na França de Vichy, o Estado policial atingiu o ápice,  em país que ajudara a cidadania mundial a conquistar não apenas o Estado de direito, mas democrático. Em alguns meses, séculos de políticas livres foram esmagados sob as patas do exército invasor, dos colaboradores, das polícias alemãs e francesas. Em parceria com a gendarmeria que ajudava os alemães, existiram as Seções Especiais de Justiça. Nelas, alguns magistrados sem caráter e sentimento patriótico julgavam os seus concidadãos como inimigos do Estado. Sim, trata-se de tribunais de exceção cujos atos desprezam todas as regras do direito: falta de motivos publicados, ausência de recurso, aplicação retroativa da lei. O leitor entende, agora, a causa do apelo a Raymond Carré de Malberg: sua própria terra seria o lugar infernal do estupro de todo direito, o paraíso do Estado policial de exceção.

    No século XX, em quase todos os Estados a realidade do indivíduo comum, desprovido de poderes contra o Estado, foi similar e magnificamente ilustrada por  Jan Kott: “Quatro horas da madrugada…Instante situado entre noite e aurora, minuto em que, nas instâncias superiores, as decisões foram assumidas e o que deveria ocorrer já aconteceu. Hora em que é possível salvar a própria cabeça e fugir. Hora derradeira da opção livre. Toca o telefone, alguém bate à porta. Quem? Não sabemos. Um amigo ou o enviado pelo Grande Mecanismo?” (Shakespeare, nosso contemporâneo). Pouco importa a cor da farda, se ela é negra, marrom, verde ou cinza. O fato é que ela anuncia o Grande Mecanismo policial, o fim dos direitos, a tirania autorizada por muitas  togas. Eric Voegelin tem páginas candentes sobre a cumplicidade de magistrados com o poder fardado, basta ler, se o estômago é forte, suas linhas intituladas  Hitler e o povo alemão.

    Quando se discutiu o Ato Institucional de Número 5, Pedro Aleixo, ao ouvir os bajuladores de sempre afirmarem que o ditador de plantão “jamais abusaria do instrumento legal” replicou (e tal fala lhe custou a presidência): “e o guarda da esquina?”. Nas frases de Jan Kott é clara a decisão tomada em instâncias superiores. Mas as execuções são feitas por subalternos que tocam a campainha das vítimas É-lhes permitido o pior arbítrio. Foi assim que fardas às claras ou dissimuladas estupraram no período a maioria dos campi brasileiros. Naquele instante de terror um sábio dirigente  universitário se insurgiu contra os fuzis: “aqui, esses beleguins de tropa militar não entram, porque entrar na universidade só através de vestibular”, disse o  reitor Pedro Calmon Muniz de Bittencourt, de imortal memória.

    Professores foram cassados, aulas dadas sob a escuta de espiões ou delatores que reportavam aos donos do poder o que se fazia no âmbito acadêmico. Além do  vilipêndio dos corpos, os tiranos quiseram destruir mentes e corações. O abuso da força se transformou em ethos policial no Brasil. E para nossa tristeza, muitas togas apoiaram e apoiam tal hábito. Ainda em 2005 escritórios de advocacia foram invadidos por forças policiais, em evidente desrespeito a todas as normas de  direito público, cosmopolitas e brasileiras. Na ocasião, denunciei a anomalia. (Cf. Boletim Advocef, Ano IV, set. 2005, edição 31, p. 10).

    Com a Operação Lava Jato retornaram os abusos e arbítrios, sempre no conúbio de setores do Ministério Público, Polícia, Magistratura.  Não bastam os cortes drásticos de recursos praticados por um governo nada comprometido com as ciências e as técnicas. Não basta o êxodo de cérebros (o perverso Brain Drain) que arranca pesquisadores de sua terra e os leva para os países hegemônicos, em detrimento de nossa gente. Não bastam os salários de miséria com o qual aqui sobrevivem cientistas competentes que  testemunham  recursos públicos empregados em auxílios moradia e benesses para  setores governamentais e da Justiça. Agora ressurgem prisões coercitivas ao estilo descrito por Jan Kott, campanhas de propaganda contra universidades públicas e lideranças políticas, entradas nos campi à caça de supostos corruptos cuja culpa está longe de ser definida. Humilhações foram aplicadas em autoridades acadêmicas como sequer nas duas ditaduras do século XX havia ocorrido. Em tal cenário deu-se o assassinato da alma e o suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Logo após, ocorreu a prisão do reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, com o mesmo festival truculento. A operação “Esperança Equilibrista” (deboche cruel dirigido propositalmente às  vítimas da ditadura instaurada em 1964) anunciou a decadência de nosso fragílimo Estado de direito.

    Professor Áureo Moraes, indiciado em inquérito policial por manifestação da comunidade universitária contra abusos de poder que vitimaram o reitor Cancellier

    O dr. Áureo Moraes, amigo do reitor de Santa Catarina, está sendo  ameaçado de ser processado por “calúnia”, por instigação das mesmas autoridades que até hoje não responderam pelo dano irreparável cometido contra a integridade física e moral de Cancellier.  É preciso recordar que no Estado de direito a garantia da vida e da pessoa civil dos governados é obrigação intransferível do poder público? Muito pouco surgiu do processo policial contra o reitor. Mas a intimidação se volta contra os que foram e são solidários diante de sua memória e família. É tempo de todas as universidades brasileiras se unirem num só corpo para exigir dos legisladores alguma lei contra o abuso de autoridade. Tal desvio, como disse acima, se transformou em sinistro ethos. Quanto ao Ministério Público, dificilmente ele encontrou uma defesa mais fiel do que em minha pessoa. Face a tamanha  violência, só poderei me colocar em suas fileiras quando a prática atual for encerrada. É tempo de todas as nossas instituições e dos que nela operam, reconhecerem a diferença entre o Estado de direito e o Estado policial.

    Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).
  • HUGO STUDART, O CALUNIADOR DOS GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA, É SÓ UM FILHINHO DE PAPAI

    HUGO STUDART, O CALUNIADOR DOS GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA, É SÓ UM FILHINHO DE PAPAI

    Hugo Studart é um jornalista obcecado pela Guerrilha do Araguaia. Só que o pessoal do PCdoB – Partido Comunista do Brasil nunca engoliu o cara. Porque ele sempre insistia que muitos dos guerrilheiros desaparecidos em vez de terem sido mortos pelas forças a serviço da repressão, na verdade tinham-se bandeado pro lado dos algozes do regime. O Hugo Studart dizia que tinha fontes incríveis, que tinha segurança absoluta… Mas nunca trouxe provas, nunca nenhum dos “traidores” apareceu, como apareceu o Cabo Anselmo, pra comprovar a tese do Studart…

    Mas ele insistiu ao longo de mais de 40 anos. Agora, essa matéria espetacular e imprescindível da Joana Monteleone e do Haroldo Ceravolo, do Opera Mundi, esclarece quem são as fontes do Hugo Studart… É o pai dele! Hugo Studart, cujo nome completo é Carlos Hugo Studart Correa, é filho de Jonas Alves Correa, que vive atualmente no Pará, e que, na época do massacre da Guerrilha do Araguaia era tenente-aviador , ocupando um alto posto no comando do CISA, o serviço de informações da Aeronáutica, a quem cabia capturar guerrilheiros e transformá-los em “informantes” da Ditadura, como condição de sua própria sobrevivência.

    Ou seja: o “jornalista” Hugo Studart passou esses anos todos defendendo o trabalho do papai, o enredo do papai –a defesa do papai para a História. “Fake News”, pra quem quiser encarar, é isso!

    Passou no Jornal do BrasilO Estado de S. PauloFolha de S.PauloVejaMancheteIsto É Dinheiro, Isto ÉInterviewPlayboyCaminhos da TerraImprensaRepúblicaPrimeira Leitura e Brasil História.

    E agora, Hugo Studart? Vamos contar a verdade? Contar a verdade sobre o Massacre da Guerrilha do Araguaia?

    Leia aqui os dois links essenciais pra entender quem é o Hugo Studart, o filho que passou a vida tentando passar um pano na vida do pai.

     

    http://operamundi.uol.com.br/conteudo/geral/49795/precisamos+falar+sobre+o+pai+de+hugo+studart.shtml

     

    http://operamundi.uol.com.br/conteudo/geral/49794/cena+de+amor+entre+soldado+e+guerrilheira+no+araguaia+e+na+verdade+estupro+diz+ex-combatente.shtml

  • NO BECO QUE A CIMEIRA NÃO VIU

    NO BECO QUE A CIMEIRA NÃO VIU

    Após 20 anos da Chacina do Beco do Candeeiro, em Cuiabá, o assassinato de três adolescentes entre 13 e 16 anos continua impune. Ato em memória das vítimas e por JUSTIÇA acontece hoje, 10 de julho, a partir das 17h, no Beco do Candeeiro, na praça Senhor dos Passos. Por Johnny Marcus

    “14 anos, quinze tiros de fuzil, as vísceras esfoladas, expostas, coagulando. O sol assiste em fogo o sonho de viver que ainda pulsa nos miolos”.

    Esse verso dantesco é de autoria do poeta Edson Veóca e faz parte de um projeto de inclusão social chamado “Literatura Marginal”, idealizado e publicado pelo escritor Ferrez, em 2000, em parceria com a revista “Caros Amigos”, da qual é colunista.

    Ferrez é morador da favela de Capão Redondo, na Grande São Paulo, e autor de diversos romances. Os mais conhecidos são “Capão Pecado” (2000) e “Manual Prático do Ódio” (2003). Tive a felicidade de ler ambos tão logo foram publicados.

    Assim que deitei os olhos nas palavras de “No beco que a cimeira não viu”, no ano 2000, senti uma tristeza profunda e foi inevitável não pensar na chamada Chacina do Beco do Candeeiro, ocorrida dois anos antes em Cuiabá.

    Em 10 de julho de 1998, os adolescentes Adileu Santos, o Baby, 13, Edgar Rodrigues de Arruda, o Indinho, 14, e Reginaldo Dias Magalhães, o Nado, 16, foram executados com tiros à queima roupa, na rua 27 de Dezembro, popularmente conhecida como Beco do Candeeiro, no centro histórico da capital.

    O caso ganhou grande repercussão na mídia local e nacional, e gerou grande comoção social. Contudo, as investigações conduzidas pelo Ministério Público levaram a um único suspeito, o ex-policial militar Adeir de Souza Guedes Filho, 49, que acabou absolvido por falta de provas, após submetido a júri popular, em 2014.

    Até hoje, vinte anos depois, as mães dos meninos assassinados buscam por justiça. No local das execuções foi erguida uma estátua, esculpida pelo artista plástico Jonas Côrrea, ao mesmo tempo tributo aos jovens e promessa de que os crimes jamais seriam esquecidos.

    Os autos do processo, com mais de mil páginas, sugerem inépcia por parte do Ministério Público para a elucidação do caso. A investigação trabalhou, primordialmente, com três vertentes: os homicídios teriam sido cometidos por um pistoleiro profissional a mando dos comerciantes da região, supostamente inconformados com sucessivos assaltos, ou como ação de um processo de eugenia implantado na capital e até mesmo como vingança do cabo Hércules de Araújo Agostinho, o pistoleiro de João Arcanjo Ribeiro, porque uma das crianças teria roubado um cordão de ouro de sua esposa enquanto ela voltava de ônibus para casa.

    Cômico se não fosse trágico, essa linha de investigação não pôde ser comprovada porque os cartuchos recolhidos na cena do crime foram “perdidos” dentro do Fórum da Capital, o que inviabilizou um laudo de balística com a arma de Hércules, uma pistola 765, semelhante a arma usada pelo policial militar Sandro Márcio Martines para matar Alinor Santana Pereira, em 1999.

    Toda essa situação não resolvida sempre mexeu comigo e, por conta do peso dos vintes anos passados, resolvi produzir um livro-reportagem sobre o caso. O provável título será “Beco Sem Saída – A Chacina do Beco do Candeeiro 20 anos depois”.

    Pretendo inicialmente mostrar como esses meninos chegaram às ruas. E aqui cabe um esclarecimento importantíssimo: nenhum deles era de fato “menino DE rua”. Ainda que passassem vários dias perambulando pelo centro histórico, eles sempre voltavam às suas respectivas casas.

    O Baby, por exemplo, nem em Cuiabá morava. Residente em Cáceres, estava na capital há uma semana, onde veio passear porque a escola pública onde estudava estava em greve. Quem esclarece a situação é sua mãe, dona Maria Santos.

    Também conversei com dona Albina Rodrigues de Arruda, mãe de Indinho. Segundo ela, o filho estava de férias da escola quando foi assassinado. Ainda não consegui contato com a mãe de Nado. De acordo com relatos, ele não foi criado pela mãe biológica.

    O mais importante desse projeto literário-jornalístico é resgatar a humanidade dessas crianças. Contar suas histórias, relembrar seus sonhos. Em segundo plano está o desejo de esmiuçar ao máximo as investigações conduzidas pelo Ministério Público através de análise dos autos do processo e depoimentos das autoridades competentes.

    Há cerca de um mês tive a felicidade de conhecer o “Psicanálise na Rua”, coordenado pela professora Adriana Rangel, do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso. O projeto social atende pessoas em situação de vulnerabilidade no centro histórico de Cuiabá e marcou para hoje, 10 de julho, um ato em memória da chacina do Beco do Candeeiro.

    Desde a manhã estão ocorrendo intervenções, como limpeza do Beco, maquiagem das moças e ensaio fotográfico. As fotos serão expostas a partir das 17h, no próprio Beco, quando haverá apresentações artísticas. Dona Albina, mãe de Edgar, e dona Maria, mãe de Adileu, vieram de Lucas do Rio Verde e Cáceres, respectivamente, exclusivamente para participar do ato.

    A companheira Gabriela Rangel, antropóloga e filha da professora Adriana, é quem está à frente da organização. Ela conta que o tributo de hoje vai além da chacina ocorrida há vinte anos e é “uma forma de dar espaço a essas pessoas que de alguma se excluíram ou foram excluídas do meio social. Será um dia de intervenção para dar um presente a essa população de rua como representantes e herdeiros desses meninos chacinados”.

    Também fazem parte deste coletivo a Associação dos Familiares Vítimas da Violência (AFVV), a União de Negros pela Igualdade (Unegro), Instituto Mulheres Negras de Mato Grosso (Imune), A Lente, Outros 300, entre outros parceiros.

    A sua participação é importantíssima. Venha trocar uma ideia com a gente. Vamos discutir essa questão. Ela diz respeito a todos nós.

    Reforçando que o ato acontece hoje, 10 de julho, a partir das 17h, no Beco do Candeeiro, na praça Senhor dos Passos.