Jornalistas Livres

Categoria: memória e Justiça

  • Bolsonaro quer transferir ossadas da Vala de Perus

    Bolsonaro quer transferir ossadas da Vala de Perus

    A próxima reunião de conciliação entre representantes do governo Bolsonaro, Prefeitura de São Paulo e a Unifesp deve ocorrer nesta segunda-feira, 9/12. A União precisa apresentar justificativas, planejamento e orçamento coerente com a proposta de transferência do material ósseo e demais materiais colhidos da Vala de Perus para a Polícia Civil do Distrito Federal.

    Representantes de Familiares de Mortos e Desaparecidos vêem com muita apreensão essa iniciativa. Primeiro porque vai interromper a pesquisa que vem sendo feita desde 2014; segundo por tornar muito mais difícil o acesso dos familiares aos supostos resultados. Os familiares também denunciam que 27 ossadas dos mortos na região do Rio Araguaia foram para Brasilia, e estão desaparecidas ou engavetadas.

     

    A morte que nunca acaba

    Durante a audiência no último dia 18/11, em que a União fez a proposta, representantes dos familiares puderam se manifestar e Amélia Teles, afirmou: “Esses ossos são de seres humanos.” E completou dizendo que as vítimas só foram tratadas com o devido respeito quando foram para a Unifesp. Além dos mortos no período militar, acredita-se que existam vítimas dos Esquadrões da Morte ou de grupos de extermínio que atuavam em São Paulo nas décadas de 1970/80.

     

    Entenda a manobra do representante do governo Bolsonaro

    A Advocacia Geral da União (AGU), na segunda feira, 18/11, durante a reunião de conciliação na Justiça Federal, em São Paulo, alegou redução de custos, mas sem apresentar qualquer planilha, plano operacional ou mesmo justificativa plausível para a transferência das Ossadas da Vala de Perus para Brasília. O juiz não aceitou o pedido e deu um prazo até dia 2 de dezembro para que a AGU e o procurador, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), apresentassem a documentação a tempo de ser avaliada pelas partes.  A prefeitura, a Unifesp e os representantes dos familiares dos mortos e desaparecidos vão avaliar a documentação e podem se pronunciar na audiência da próxima segunda-feira, 9/12.

    A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Polítícos (CEMDP) é mais uma instância de Estado, não de governo, instituída desde 1993, encarregada de investigar casos de mortes por motivação política. E parte do conjunto de mecanismos do processo conhecido como Justiça de Transição, referentes aos crimes da ditadura militar.

    Brasília é um caminho quase sem volta

    Ouvida pela revista Carta Capita, a procuradora Eugênia Gonzaga, ex-presidente da CEMDP, explicou que foi exonerada por Jair Bolsonaro em agosto. No seu lugar foi empossado um assessor da ministra Damares, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, no mesmo período em que o presidente fez declarações ofensivas que atingiram familiares de Felipe Santa Cruz, morto durante a ditatura. O governo Bolsonaro prima também por empregar agentes do estado envolvidos em mortes, como denunciamos em: https://jornalistaslivres.org/ex-esquadrao-da-morte-nomeado-governo-bolsonaro/

    A manobra da União também pretende comprometer o convênio com a Unifesp, pois a solicitação feita na audiência do dia 18 de novembro ocorreu 20 dias antes da data limite para a Universidade solicitar a verba para continuidade da pesquisa para 2020, na parte federal do convênio.

    Peritos trabalham em Ossadas na Vala em 2010. Imagem da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo

     

    O reconhecimento do CAAF/Unifesp

    O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp tem grupos multidisciplinares de pesquisa em Direitos Humanos, um deles é o Grupo de Trabalho de Perus, que foi criado em 2014 para analisar as 1.049 caixas com remanescentes humanos que foram encontrados na Vala de Perus. O trabalho pretende identificar 41 desaparecidos políticos cujas histórias indicam que foram colocados nesse local, nos anos 70, como modo de encobrir as graves violações de direitos humanos dos governos militares. A pesquisa se desenvolve mediante parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, hoje Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) e com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos (SMDH), da Prefeitura de São Paulo, por meio de um Acordo Técnico de Cooperação (ACT).

    O CAAF, além do reconhecimentos internacional, tem outros grupos de trabalho que desvendam crimes cometidos pelo Estado em períodos democráticos, como os Crimes de Maio de 2006.

    Mais sobre impunidade e violência do Estado em:

     

    O Grupo Violência do Estado No Brasil  foi responsável pela pesquisa forense em parceria com Centro Latino-Americano da Universidade de Oxford e financiado pela Newton Fund. O projeto teve seu foco voltado para a análise de 60 casos de pessoas assassinadas por arma de fogo na região da Baixada Santista. Deste modo, no projeto foram reunidos indícios pelos quais foi possível observar que as pessoas assassinadas nesses episódios foram mortas pela violência do Estado. Como resultado, ao final do projeto, foi desenvolvido o relatório “Violência de Estado no Brasil: uma análise dos crimes de Maio de 2006”.

     

    A ATUAÇÃO DO CAAF HOJE

    O CONDEPE, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em parceria com o CAAF/Unifesp, está montando um grupo de trabalho para apurar as mortes dos nove jovens, ocorridas nesse domingo, 1/12, por ação violenta da PM no bairro Paraisópolis, como afirmou Dimite Sales, coordenador do CONDEPE, em seu twitter.

    Mais sobre as mortes de Paraisópolis:

    Família de um dos jovens mortos em Paraisópolis refuta versão de pisoteamento no massacre

     

    Os becos do massacre em Paraisópolis

     

    Abertura da Vala de Perus na década de 1990

    MAIS SOBRE A VALA DE PERUS:

    O Cemitério Dom Bosco, hoje com o nome de Colina dos Mártires, foi criado em 1971 pelo então prefeito Paulo Maluf, e foi utilizado para esconder os corpos de pessoas mortas, sepultadas como indigentes pelas forças de segurança do regime militar. A luta dos familiares na busca pelas pistas só começou a se concretizar na década de 1990, a partir da gestão de Luíza Erundina, por meio da CPI Perus – Desaparecidos Políticos, da Câmara de Vereadores de São Paulo, quando mais de mil ossadas foram transferidas para outros lugares e foi inaugurado o memorial da vítimas.

     

    Em ação civil pública ajuizada pelo MPF em 2010, a União foi condenada pela Justiça federal a examinar os cerca de 1.049 sacos com ossadas que apodreciam no cemitério do Araçá, e haviam sido retiradas da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco. Em 2014, com base nesta condenação elas foram transferidas para Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que em convênio com a prefeitura criou o CAAF. Mais de 800 caixas de ossos já foram analisadas e o processo pôde ser acompanhado por familiares de mortos e desaparecidos. No ano passado foram identificadas as ossadas de Dimas Antônio Cassemiro e Aluísio Palhano, mortos em 1971 pela ditadura militar.

    LEIA TAMBÉM

    BANCÁRIO ASSASSINADO NA DITADURA É IDENTIFICADO NA VALA DE PERUS

     

     

     

    A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva, foi fundamental que este grupo de trabalho fosse criado.

    MAIS EM: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-i-cap4.html

    http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_1_A-formacao-do-grupo-de-antropologia-forense-para-identificacao-das-ossadas-da-vala-de-perus.pdf

    Outras informações podem ser obtida neste livro (arquivo pode ser baixado por este link). Ele foi realizado durante o governo Dilma Rousseff, via Comissão da Anistia. Podem ser encontrados diversos artigos sobre a vala e a luta para conquistar este direito à memória, verdade e justiça, que não pode ser usurpada pelo governo Bolsonaro.

     

  • “Torre das Donzelas”: a história, a memória e o cinema

    “Torre das Donzelas”: a história, a memória e o cinema

    Por Karina Morais, para o Jornalistas Livres                                                                                             

     

    “Torre das Donzelas” é o nome que ficou conhecido o Presídio Tiradentes, em São Paulo, durante a Ditadura Militar no Brasil. O nome decorre em função de um de seus pavilhões, destinado à presas políticas, como a ex-presidenta Dilma Rousseff, que lá permaneceu por mais de três anos.

    Na perspectiva de mantê-lo isolado, o local foi construído fora dos limites da cidade e conta com um longo histórico de repressões: foi criado ainda no período colonial, em 1852, enquanto Casa de Correção, para onde eram levados os negros escravizados pegos em fuga. Na jovem República, durante a ditadura Vargas, passou a receber presos políticos, função que se repetiu entre o final da década de 1960 até o início da década de 1970, com a Ditadura Militar.

    O espaço foi desativado em 1972 por conta das obras no metrô, para a abertura da estação Tiradentes. De sua edificação, quase nada sobrou. No local, mantém-se apenas um arco de entrada, enquanto remanescente de suas estruturas, sendo patrimônio histórico tombado pelo CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. O local entrou também para o “Guia dos Lugares Difíceis de São Paulo”, publicação organizada pelo Prof. Dr. Renato Cymbalista e lançado no último mês, na Casa do Povo, em São Paulo, na perspectiva de elucidar os espaços de conflito na cidade. Ainda que apenas um pórtico tenha sido mantido, sua preservação é importante pois registra na cidade a memória da dor e da opressão, sumariamente invisibilizadas nas linhas da história.

    Neste ano, em um contexto em que saudosistas dos anos de chumbo falam abertamente sobre fechar o Congresso, instaurar um novo AI-5 e comemorar o início do período ditatorial, a “Torre das Donzelas” se tornou nome de um dos mais importantes longa-metragens produzido desde o Golpe de 2016. Dirigido por Susanna Lira e estreado no último 19 de setembro, o documentário conta com diversos relatos de mulheres que foram confinadas ao Presídio Tiradentes, enquanto presas políticas, durante a Ditadura Militar. Relatos exclusivos de Dilma Rousseff e de suas companheiras da prisão são tratados no documentário, abordando temas como o cotidiano no cárcere, os métodos de tortura e as redes de solidariedade, compondo um rico e minucioso registro de história oral.

    Se você é de São Paulo, ainda não conferiu ou quer prestigiar esse importante trabalho mais uma vez, a oportunidade é essa! O Sindicato dos Advogados de São Paulo (SASP) promoverá, na próxima quinta-feira (05/12), às 18h30, uma exibição gratuita do longa contando com a presença de algumas das “donzelas”, que debaterão o tema com os convidados. O evento integra a programação do CineSASP e o sindicato está localizado na Rua Abolição, 167 – centro. Anote aí na agenda!

    Nós, Jornalistas Livres, temos clareza que a história não é linear, mas de avanços e retrocessos e de que a disputa pela memória é, sobretudo, uma ferramenta política.

    #DitaduraNuncaMais

     

    Arte sobre a exibição do documentário, “Torre das Donzelas”
  • Zumbi Resiste e vive

    Zumbi Resiste e vive

    Texto: Zumbi Resiste. Fotos da marcha: Gabriel de Moura. Outras fotos: Gabriel Carcavalli

    A poucos metros da Faculdade Zumbi dos Palmares, no bairro do Bom Retiro, está localizada a Rua Jorge Velho, ponto de passagem de alguns alunos da instituição. Mas o que muita gente não sabe é que essa rua esconde uma história que torna esse fato um desrespeito com a comunidade negra: Jorge Velho foi o bandeirante que ordenou a morte de Zumbi dos Palmares.

    Após essa descoberta os alunos da Universidade se reuniram para criar o movimento Zumbi Resiste, que tem como objetivo transferir a homenagem de Jorge Velho para Zumbi dos Palmares, além de transformar o local em um espaço de resistência da cultura negra.

    “Uma rua é um pouco de nós e o nome dela não pode ser contra nós. Se é, não devemos mudar de rua, precisamos mudar o nome da Rua. Mudar o nome das ruas, nunca mais mudar de rua.” – disse, José Vicente, reitor da faculdade.

     

    Ocupação da rua

    No dia 20 de Novembro, durante a Marcha da Consciência Negra, um chamamento foi feito pelos alunos da Universidade, em plena Avenida Paulista, promovendo uma ocupação na Rua Jorge Velho para pressionar as autoridades pela mudança do nome da rua.

    A ocupação aconteceu no última dia 23. Os alunos da faculdade interditaram a rua e exigiram, através de discursos e manifestações artísticas, que a mudança seja feita e encarada com urgência pelas autoridades públicas.

    “Acho de extrema relevância a mudança desse nome, por todo processo histórico, pelo assassinato de Zumbi e pela forma que as elites se organizaram para exterminar um líder revolucionário. Essa mudança fará jus ao verdadeiro herói nacional.” – Jupiara Castro, fundadora do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo.

    Dra. Lazara Carvalho, Profª Najara Costa, Marilice Martins, Profª Hainra Adani Acosta e Dra. Bruna Cândido

     

     

    A história de Jorge e Zumbi

    Zumbi dos Palmares nasceu na Serra da Barriga e se tornou líder do Quilombo dos Palmares, tornando-se símbolo de resistência contra a opressão portuguesa. Denominado “O senhor das guerras”, Zumbi foi responsável pela libertação de um incontável número de escravos, se apoderando também das armas e munições, que posteriormente eram usadas na defesa do quilombo. Zumbi virou assim uma lenda entre os afro-descendentes que viviam no país, criando inclusive o mito de que seria imortal.

    Foi então que Domingos Jorge Velho recebeu a incubência de destruir o Quilombo dos Palmares, em troca de dinheiro e terras. Velho e sua tropa comandaram diversos ataques ao Quilombo dos Palmares com métodos altamente brutais e sendo descrito por pessoas da época como “um dos maiores selvagens que já haviam visto”. Até que em 1694, as tropas de Jorge Velho, com mais de 6 mil homens, obtiveram êxito e promoveram um verdadeiro banho de sangue no Quilombo dos Palmares, assassinando a maior parte da população que ali vivia e prendendo mulheres e crianças.

    Zumbi, mesmo ferido, conseguiu escapar da invasão e em 20 de Novembro de 1695 foi apanhado em seu esconderijo, sendo morto pelas tropas de Jorge Velho que dias depois expressou em ofício a Sua Majestade que Zumbi havia sido morto por um partida de gente do seu terço. Após isso, a cabeça de Zumbi ainda foi cortada, salgada e exposta em praça pública para que fosse usada como exemplo a todos os afro-descendentes da época.

     

    Pressão nas autoridades

     

    Através da #zumbiresiste, uma mobilização está atingindo de forma direta os políticos da cidade de São Paulo, exigindo que a homenagem dessa rua passe a ser de Zumbi dos Palmares. Um petição pública também está disponível para que qualquer pessoa do país possa assinar e reivindicar essa homenagem. Todas as informações estão no site zumbiresiste.com.br.

    “Trazer esse absurdo à tona é mostrar o quanto ainda deve ser corrigido. Essa é uma rua, mas quantos Domingos Jorge Velhos são homenageados por aí?” – Alex André, aluno da faculdade.

  • Elisa Lucinda: Quero a história do meu nome

    Elisa Lucinda: Quero a história do meu nome

    É Brasil. Há uma esfera civil que os perseguidores da democracia não alcançam. Algo parece estar para acontecer. Estou em Brasília no Simpósio Internacional “Indígena-Negro, da ancestralidade ao futuro”, promovido pelo MPT e a OIT. Estou entre os meus e descubro que minha tribo me perdeu. Quando entraram aqueles parentes cantando, vibrando seus maracás nas mãos ornadas, fiquei tonta: rostos pintados cobertos de simbologia; dos cocares aos adornos de peito, mãos, quadris e pés, o corpo tela. Pigmentos, cores, tudo vindo da natureza sem a ajuda de uma papelaria para pincéis ou tintas. Segue a tonteira, a doidera, a ancestralidade gritando na cabeça. É que a maioria do povo brasileiro conta que teve uma avó pega a laço. Ora, se de um lado somos herdeiros de tais estupros, por outro, somos também filhos de uma força que existe há muito mais de 40 mil anos. E que é sabedora dos poderes da natureza mais do que qualquer um da civilização branca. Começo a chorar. O que dói no meu peito é o vácuo. Nunca conheci minha bisavó Domingas. Como se chamaria originalmente? Só ouvi dizer. Que não gostava de usar calcinha. Teria nome de flor? De pássaro? Quem saberia? Foi pega a laço, roubada de sua aldeia, sua gente, sua família. Seu corpo ficou à disposição de seu caçador. Quem sabe me dizer como se chamava antes de receber o nome Domingas?

    Julio e o filho, Yonã

    O indígena Júlio, dono do cocar mais bonito do simpósio, me apresentou seu menino Yonã e me disse com um sorriso luminoso, banhado de puro Oxóssi: significa “Aquele que caminha sobre as águas”, na língua Xucuru. O outro veio me dizendo o seu nome original, do qual agora não me recordo, e me diz que significa “Barulho que faz o rio que corre à beira dos cajueiros”. Uma outra ainda, linda, pintada de urucum meticulosamente em volta dos olhos, precisa, e absolutamente roots, como se tivesse pulado de um quadro para a realidade, me disse com olhos sorridentes que seu nome era Pekāshaya que significa “Pena linda e verdadeira”. Mas, como não era permitido que indígenas pusessem nomes indígenas nos seus filhos (seria cômico se não fosse trágico) deram-lhe o nome de Edna. Um verdadeiro poema lhe foi tirado para ser nomeada com um nome que não conta a sua história, o seu lugar na sua tribo.

    Depois veio a conversa com os Kalungas, os quilombolas, o povo preto que está no mundo desde os primórdios, o primeiro homem. A mesma história se repete, nomes lindos que em sua tradução ficam parecendo versos: “A que veio para trazer a paz”, “Os olhos de Deus”, “Presente de Oxalá”, “A que traz grande honra”. Veio uma jovem escritora linda me dizendo que seu nome era Semayat, em aramaico, língua etíope, e que quer dizer “Sol ou Céu do meio dia”. Meus olhos se encheram de lágrimas de novo ao saber disso. A hora em que nasci! Me senti órfã também da história do nome africano que me antecedeu.

    Estou aqui entre Guaranis, Kaiowás, Kalungas, Pataxós, Fulniôs, quilombo Buriti do Meio, Terenas, Xukuru, Shanenawas, Bororós, Xoklengs, quilombo Retiro dos Bois de Minas, Kadiweu, Kariri xocó, Quilombo de Mesquita, Tupinambás ha ha hãe, Quilombo João Borges de Uruaçu, Jardim Cascata de Aparecida, Xavantes, BarésMundurucus e quilombo Conceição das Criolas. Estou em casa. Entre memórias. Se a gente tivesse se juntado antes, índios e negros, Crivella não tinha ganhado no Rio, nem o Witzel. Faltou terreiro, faltou maracá. Pouca gente sabe, porque isso nossa história oficial não quer contar, que em Palmares viviam indígenas, pretos refugiados e até brancos legais. Consta que eles já existiam naquela época. Inconformados, Lgbts, os sensíveis em geral, orientados por Xangô, pelo Sol, pela Lua, fundaram ali uma nação justa. O Sol, deus indígena, governa para todos. O Sol é de esquerda já que ilumina sem diferenças de classes, em relação a negros, indígenas e baianos. A união dessas forças sob fundamentos tão comuns é mesmo imbatível. Para o indígena, ele é quem pertence à mata, não é dono dela, por isso é guardião. Ele cresceu brincando de fazer a própria casa com material vindo da natureza: barro, palhas, galhos, troncos, folhas. Não sobrevive sem as coisas que planta ou que caça. Da mesma maneira, um filho de Oxóssi não desmatará pois é ele próprio a mata. Uma filha de Yemanjá não ofende o mar pois é ela o próprio mar. E assim por diante.

    Alguma coisa parece que vai acontecer, uma coisa nova. Sinto os tambores, a força do canto desses dois povos. Ser humano é um ser ambientalista naturalmente. Fomos separados, foram queimados os nossos nomes, fomos pulverizados em navios diferentes para que não nos juntássemos, vivemos numa hora em que essa união se tornou irreversível. Há pouco tempo raramente se via um elenco de maioria negra em cartaz. Agora, pelo menos nas principais cidades brasileiras, o que se vê é uma proliferação imparável do que estão chamando de lugar de fala. Uma ocupação de espaços nunca dantes navegados em grupo. Era sempre um único preto solitário em cada elenco, em cada trincheira. Agora que avançamos e que o sistema de cotas misturou as cartas do jogo, agora quando nós somos a maioria pela primeira vez nas Universidades, não se pode dar mais ré nisso, e podemos dizer que o Brasil está realmente se preparando para ser um novo país. No último dia do simpósio, com saudações aos orixás, à ancestralidade, às sagradas escrituras todas expostas na natureza e nela refundadas, todos tínhamos a impressão de que algumas coisa muito grande estava para acontecer. Não passou um dia e deu bem alto nos jornais virtuais e gerais que Lula estava livre! Eu sabia que alguma coisa ia acontecer.

    Toda dominação branca que nos acostumou a chamá-la de civilização tem muito que aprender com os fundamentos dos que tenta, há anos, dizimar.

    Eu só sei dizer que quanto mais aprendemos com os povos originários, mais acessamos os antídotos para mazelas atuais, mais encontramos explicações para o que somos, de onde viemos, para onde vamos. Apartada e separatista, longe dos princípios amorosos com o planeta, a humanidade civilizada segue batendo cabeça, longe de si e louca por dinheiro, motivo de crimes,roubos e infelicidades.

    Voltei mais nutrida, tomei lição de casa. Não sei se no meu nome indígena corre um rio, nem sei se há no meu nome africano uma estrela do mar, mas caminho na linhagem da ancestralidade e quanto mais pesquiso, quanto mais aprendo sobre o que mataram ou tentaram ocultar, fica mais fácil lembrar.

  • Negro Matapacos, o revolucionário

    Negro Matapacos, o revolucionário

    Matapacos foi um famoso cão viralata que apareceu nos protestos de estudantes para a educação gratuita em 2010, desafiando o gás lacrimogêneo e os canhões de água e acompanhando os estudantes como um companheiro leal em sua luta, apenas atacando ou latindo para os “pacos” (gíria chilena para “policiais”) e nunca estudantes e manifestantes.

    A imagem do cachorro preto de bandana vermelha é compartilhada em todo o país por todas as redes sociais. Os chilenos sempre prestam homenagens ao cão que marchou com o povo e ficou ao lado deles quando enfrentavam a violência do Estado. Muitos cartazes, desenhos e pixações vistos nos protestos de hoje fazem lembrar Matapacos com frases como: “Estai Presente! (Eu estava presente!)” e “In Tu Memória (Em sua memória)” e tratam-no como um santo padroeiro dos manifestantes.

    Negro Matapacos morreu de velhice há 2 anos, mas o seu espírito rebelde vive nas ruas de Santiago e de outras cidades em todo o Chile, enquanto o povo continua a lutar pela justiça e pela igualdade.

     

  • Por que a chapa peronista de Alberto Fernandez e Cristina Kirschner pode vencer as eleições argentinas

    Por que a chapa peronista de Alberto Fernandez e Cristina Kirschner pode vencer as eleições argentinas

    Comício final de campanha em Mar Del Plata

    Com a economia em frangalhos, depois de quase quatro anos de governo neoliberal de Maurício Macri, a Argentina acumula perdas: só neste ano, o PIB recuou 2,5%. O desemprego já superou a marca dos 10,6%, e continua subindo. Os dados também mostram um aumento da sub-ocupação. No segundo trimestre de 2019, a taxa ficou em 13,1%, contra 11,8% nos três meses anteriores e 11,2% no mesmo período em 2018.O resultado pode ser visto nas ruas, com a multiplicação das pessoas vivendo ao relento e pedindo esmolas mesmo nos bairros mais ricos da cidade de Buenos Aires. O País voltou a mendigar empréstimo ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e toda a situação fez com que o peso argentino despencasse, agravando a situação de descontrole inflacionário. A inflação esperada para 12 meses é de 48,3%. Para completar a devastação, a paralisar de uma vez qualquer possibilidade de recuperação, o Banco Central argentino tem subido os juros em uma tentativa de evitar a fuga de dólares. Atualmente, a taxa de juros está perto de 85%, o risco-país duplicou, ficando acima de 2 mil pontos, e o peso sofreu forte desvalorização.

     

    Alternativa a tamanha desgraça, o peronismo de Cristina Kirschner e Alberto Fernandez, que disputa neste domingo (27) a eleição presidencial argentina, com larga possibilidade de vitória, acumula imenso capital político. Primeiro de tudo porque todos os indicadores econômicos dos dois governos de Cristina (entre 2008 e 2015) são melhores do que os de Mauricio Macri, como se verá a seguir. Depois, porque ela encurralou os militares e sacralizou a idéia dos direitos humanos, não permitindo o avanço dos fascistas nostálgicos da Ditadura e do extermínio de adversários políticos, como ocorreu no Brasil, com Bolsonaro. Por fim, porque conseguiu manter-se fiel à tradição operária do peronismo, organizado pela base, lançando pontes para os novos movimentos de juventude e de mulheres. Sempre, entretanto, mantendo vivo o traço popular. Como disse Cristina, ontem, no comício final em Mar Del Plata: “Nunca mais Neoliberalismo!”

     

    Mais emprego, menos dívida e menor inflação com Cristina

     

    O quadro a seguir foi elaborado pelo grupo editorial “Perfil” e mostra um comparativo entre o governo de Macri e o segundo mandato de Cristina, que não foi tão bom como o primeiro. Mesmo assim, as vantagens do peronismo na condução da economia parecem evidentes, sobre a política econômica neoliberal.

    O PIB com Cristina (entre 2012 e 2015) andou de lado. Mas, com Macri, caiu 4,3%. A taxa de pobreza, com Cristina contava-se em 29%. Com Macri, subiu 7 pontos percentuais. A inflação média em 4 anos foi de 30,5% com Cristina e de 42,6% com Macri. De cada 100 trabalhadores, 5,9 estavam desempregados sob o governo de Cristina. Agora são 10,1 desempregados. Com Cristina, 17 bilhões de dólares fugiram do país, em busca de praças mais seguras. Essa cifra subiu para 70 bi com Macri. A dívida pública cresceu de 43 bilhões de dólares para 110 bi com Macri. A conclusão do boletim “Perfil”: “A Argentina termina 2019 mais pobre, mais frágil, mais vulnerável do que em 2015 e do que em 2011”. 

     

    de infografia comparacion macri cristina 20190914

    Memória e verdade, contra os “Bolsonaros”

    Os 17 hectares ocupados atualmente pelo Espaço Memória e Direitos Humanos, em um dos endereços mais conhecidos de Buenos Aires, a avenida do Libertador, 8.151, ajudam a explicar graficamente como o peronismo encurralou os militares e sacralizou a idéia dos direitos humanos.

    No país vizinho, a Ditadura Militar instituída por um golpe de Estado desfechado em 1976 é lembrada todos os dias pelos crimes de lesa-humanidade que cometeu ao matar, torturar, fazer desaparecer, sequestrar e exterminar opositores. Calcula-se que pelo menos 30.000 pessoas tenham sido assassinadas durante os sete anos que durou o regime.

    Escola de Mecânica da Armada, um dos cerca de 500 centros clandestinos de extermínio de opositores do Regime Civil-Militar: Nunca esquecer!

    Jornalistas Livres estiveram, na terça-feira (22), no complexo de prédios em que funciona o Espaço Memória, uma construção castrense que abrigou a ESMA (Escola de Mecânica da Armada), destinada à formação de suboficiais, e que, entre 1976 e 1983, durante a Ditadura Militar, foi transformada no principal entre os cerca de 500 centros clandestinos de prisão, tortura e extermínio espalhados pelo país.

    Ali, monitores encaminham adolescentes (maiores de 12 anos) por entre construções crivadas de memórias de dor, sofrimento e perdas. No percurso que fizemos, acompanhávamos estudantes da escola Santa Lucia, um estabelecimento de ensino católico, que viera em excursão da cidade vizinha de Florencio Varela (a 32 km de Buenos Aires).

    Meninos ainda imberbes e garotas em uniforme escolar com meias três quartos ouviam atentamente, em silêncio total, a voz da monitora contando-lhes sobre o horror que aquelas paredes encerraram na noite dos direitos humanos. Alguns choraram diante da descrição do drama vivido pelas mulheres grávidas que eram sequestradas e despersonalizadas, mantidas como verdadeiras incubadoras até a hora do parto.

    Encapuzadas 24 horas por dia, as grávidas opositoras do regime dos generais eram mantidas às cegas. Também obrigavam-nas à imobilidade as algemas que lhes prendiam os pés e, por fim, eram proibidas de falar. Em vez de nomes, números identificavam-nas. Na hora de dar à luz, essas mulheres eram assistidas por médicos da Marinha. Depois das dores do parto, elas nunca mais veriam seus filhos, porque estes lhes eram tomados e dados como presentes a famílias de militares. Em seguida, anestesiadas, várias dessas mães foram jogadas em aviões, que as descarregavam no Rio da Prata, para morrerem afogadas, nos “Vôos da Morte”.

    Foram Nestor e Cristina Kirschner os que enfrentaram a poderosa Marinha argentina, tomando-lhes o complexo escolar-matadouro e entregando-o para que servisse como homenagem permanente aos mortos e desaparecidos da Ditadura. Foi também por iniciativa deles, junto aos movimentos de familiares de vítimas e sobreviventes do regime militar, que os responsáveis pelas atrocidades cometidas acabaram atrás das grades, diferentemente do que ocorreu no Brasil, em que nenhum torturador foi punido por seus crimes.

    Milhares de adolescentes assistiram e seguem assistindo às aulas, atividade que nem mesmo o governo ultraneoliberal de Maurício Macri, aliado de Jair Bolsonaro, conseguiu desorganizar.

    As estações do metrô de Buenos Aires homenageiam os mortos da ditadura, com fotos e obras de arte nomeando-os e retratando-os –tudo o que não pode ocorrer é o esquecimento, porque –isso as Mães da Praça de Maio sempre ensinaram– a Memória é o caminho para impedir que novos crimes como aqueles cometidos pela Ditadura se repitam.

    E há o comovente Parque da Memória, também destinado a homenagear as vítimas do terrorismo de Estado –uma área do tamanho de 14 campos de futebol que margeia o Rio da Prata, em que se erigiu um paredão onde estão inscritos os 30 mil nomes dos desaparecidos e assassinados pelo aparelho repressivo ditatorial (dez vez mais nomes do que os inscritos no memorial em homenagem aos mortos no World Trade Center, em Nova York).

    Parque da Memória: menino flutua sobre o esquecimento

    Lá também se encontram obras de arte pungentes, alusivas ao pesadelo nacional representado pelo governo militar, como é o caso da que representa o menino Pablo Míguez, um dos cerca de 500 meninos e meninas sequestrados durante a Ditadura. Pablo foi preso na Escola de Mecânica da Armada, assassinado aos 14 anos de idade e arremessado ao rio da Prata, em 1977. Na escultura de Claudia Fontes, feita em aço polido, de modo a refletir as cores das águas do rio, Pablo flutua sobre o esquecimento.

    Um Bolsonaro homenageando torturadores até seria possível na Argentina, mas ele nunca seria eleito presidente. É por isso que o melhor amigo de Bolsonaro na Argentina, Maurício Macri, não ousa mexer com os cadáveres da Ditadura.

    Pelo papel que desempenharam na Democratização do País, ao não permitir que o Terrorismo de Estado fosse esquecido, Nestor e Cristina Kirschner têm a gratidão completa das vítimas. No comício final da chapa peronista em La Plata, capital da provincia de Buenos Aires, uma das que mais sofreram em perdas humanas durante a Ditadura, Hebe Pastor de Bonafini, fundadora da associação Mães da Praça de Maio, fez questão de comparecer e levar seu apoio à chapa peronista. Aos 90 anos, foi beijada e reverenciada pelos militantes.

     

    30.000 nomes gravados no muro. Dez vezes mais do que no Memorial aos Mortos no World Trade Center, em Nova York

    Sindicatos no poder e organização de base

    O peronismo de Cristina Kirschner continua fincado nas poderosas organizações sindicais argentinas. Um passeio por entre a massa presente nos comícios da “Frente de Todos” basta para que se percebam diferenças sensíveis com os recentes comícios eleitorais brasileiros, encabeçados pelo PT.

    Segundo o vereador Dario D’Aquino, do Partido Justicialista (Unidad Cidadã), que também é secretário geral do Sindicato dos Trabalhadores Municipais da cidade de Florêncio Varela, o povo argentino perdeu ”todos os direitos” durante o governo de Macri. “O peronismo voltará porque o povo está sendo levado novamente a lutar contra o neoliberalismo. O modelo político terá de incluir o povo e para isso não há nenhum instrumento melhor do que o peronismo.”

    “Sim, vamos voltar! Voltaremos, voltaremos. Vamos voltar!” é uma das músicas cantadas a plenos pulmões pelos operários nos comícios, assim como a Marcha Peronista, cantada pela primeira vez na Casa Rosada em 17 de outubro de 1948:

    Los muchachos peronistas,

    todos unidos triunfaremos,
    y como siempre daremos
    un grito de corazón:
    «¡Viva Perón, viva Perón!».

    Por ese gran argentino
    que se supo conquistar
    a la gran masa del pueblo,
    combatiendo al capital.

    ¡Perón, Perón, qué grande sos!

    ¡Mi general, cuánto valés!

    Perón, Perón, gran conductor,

    sos el primer trabajador.

    Por los principios sociales
    que Perón ha establecido,
    el pueblo entero está unido
    y grita de corazón:
    ¡Viva Perón! ¡Viva Perón!

     

     

    https://youtu.be/VPSNiSfjSnc

     

     

     

    Faixas e bandeiras são feitas a mão, em vez de fabricadas por empresas profissionais de publicidade. Carregam a humanidade dos traços imperfeitos, mas comprometidos dos militantes de base. Inexistem aqueles indefectíveis “coletes” das centrais sindicais, que se banalizaram nas manifestações brasileiras.

    Não há praticamente venda de bebidas alcoólicas. Apenas água e refrigerante, durante o ato. Não há shows ou sorteios para atrair a militância. As bandas e fanfarras ligadas aos sindicatos só aparecem ao fim dos eventos, com seus tambores indefectivelmente decorados com as cores argentinas e as efígies de Perón e Evita (às vezes, também aparecem Cristina e Nestor Kirschner).

    Gabriel, militante peronista desde criança, explica que os sindicatos argentinos são as principais organizações sociais referenciadas na tradição de Perón, mas que há muito mais, como os círculos de discussão e debates, os núcleos de bairro, mediados por relações de solidariedade e camaradagem. São reuniões semanais?, perguntamos. E ele responde: “É todo o tempo.”

    Mas o caráter marcial da Marcha Peronista, claramente, não combinaria com a onda feminista que está varrendo a Argentina, e que reuniu mais de 500.000 pessoas entre os dias 12 e 14 em La Plata, no 34º Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans, Travestis, Bissexuais e Não-Bináries. Coube a Cristina Kirschner começar a combinar e harmonizar símbolos que teriam tudo para ser contraditórios.

    E ela o fez. No Instituto Pátria, criado por Cristina assim que deixou a Casa Rosada, e que poderia ser apenas uma ONG análoga ao Instituto Lula ou ao Instituto FHC, promovem-se discussões visando à atualização do peronismo, à formação de militantes jovens e às elaborações teóricas feministas, entre tantos temas. Só assim para combinar a radicalidade da juventude com a força da tradição de décadas.
    “É por isso que se vêem tantos jovens gritando a letra da Marcha Peronista, um hino septuagenário cantado como se fosse uma letra de rock”, explica-nos a jovem peronista da Universidade Nacional de La Plata.