Neste dia 14 de novembro de 2019 completa-se um ano do desaparecimento de Rosiney Trindade de Oliveira, em Portugal, ocorrido em circunstâncias misteriosas e possivelmente associado ao tráfico de mulheres.Muitas e muitos de nós lutamos por melhores condições e direitos na vida de uma mulher, principalmente na condição de imigrante. Infelizmente, Rosy tornou-se mais um caso concreto para esta luta.
Mulher, trabalhadora, de origem humilde, estava fora dos círculos universitários que dominam a cidade de Coimbra e, portanto, fora de uma rede apoios que facilitaria a denúncia e a atenção ao caso. Rosy é de Curitiba, mas nos últimos anos morou em Itajaí, Santa Catarina. Chegou em Portugal no dia 1 de outubro de 2018 e começou a trabalhar em Lisboa. Poucos dias depois, aceitou uma proposta de emprego anunciada na internet para trabalhar no restaurante Restinova, na região de Coimbra.Como funcionária do restaurante, poderia também usufruir dos alojamentos que existiam nos fundos do restaurante e foi ali mesmo onde Rosy morou por 28 dias. O restaurante, localizado em uma curva mal iluminada à beira de uma pequena estrada, é conhecido por ser parada de caminhoneiros e viajantes.
No dia 14 de novembro de 2018, durante a madrugada, Rosy desaparece e todos seus pertences, exceto documentos e celular, ficam no alojamento. O caso logo é abordado com um discurso irresponsável, seja pela mídia ou por funcionárias e dono do restaurante, sugerindo um comportamento duvidoso da vítima. De imediato, despejam a clássica versão estereotipada sobre mulher brasileira: “Rosy gostava de beber vinho de noite”, “Rosy usava lingeries” e etc. A irresponsabilidade é tanta que uma das primeiras matérias realizadas mostram funcionárias e repórter revirando as malas de Rosy antes mesmo da polícia chegar ao local.
Desde então, acontecimentos levantam suspeitas sobre o restaurante e o dono, José Correia, como o caso de uma ex-funcionária que diz ter sido assediada pelo mesmo. Correia se recusa a dar entrevista há mais de 6 meses.
Enquanto isso, no Brasil, a família tentava se organizar com doações online para conseguirem vir à Portugal, mas o valor arrecadado foi suficiente para pagar apenas a taxa de emissão do passaporte de um deles.
Neste marco de um ano após o desaparecimento de Rosy, o cenário não é dos melhores. O caso está sendo investigado pela Polícia Judiciária de Coimbra, mas em sigilo. Não há nenhuma informação ou declaração após abril de 2019. São 7 meses em silencio e 1 ano sem respostas. O consulado brasileiro no Porto e em Lisboa se solidarizaram com o caso, mas nunca se pronunciaram ou pressionaram por respostas às investigações.
No dia de hoje, o Vozes no Mundo – Frente pela Democracia no Brasil, realizou em Coimbra uma manifestação para fazer valer a continuidade de investigações efetivas que, na ausência da família, que não tem condições financeiras de estar presente para garanti-la, pode cair no esquecimento e se tornar mais um dado para a estatística das mulheres brasileiras trabalhadoras desaparecidas em Portugal e na Europa.
Protesto realizado na cidade de Coimbra na tarde de
A cidade de Sinop, em Mato Grosso, está no centro de uma nova polêmica envolvendo censura artística e ideológica. A prefeitura do município tem um projeto para revitalizar e embelezar os pilares de sustentação dos viadutos com grafites que tenham como tema a flora e a fauna. Em tempos de queimadas recordes no estado e de manifestações pelo meio ambiente na Organização das Nações Unidas, os artistas Rai Campos e Matias Souza incluíram em seus grafites, pintados semana passada, as figuras do conhecido líder indígena Kayapó, Cacique Raoni, e da jovem ativista sueca Greta Thunberg, que fez um dos mais duros discursos em defesa da vida no planeta na abertura da Cúpula do Clima, na ONU. Apesar de estarem na periferia da cidade, os desenhos atraíram a fúria de adeptos da extrema direita, que têm tentado deslegitimar quem luta pela vida na Terra.
Segundo reportagem do portal Olhar Direto, o diretor de cultura do município de Sinop, Daniel Coutinho, defende que o rosto da ativista sueca não condiz com as regras do evento (1º Encontro Internacional de Graffiti – Matograff), que tem como tema principal a fauna e a flora. “Não será apagado devido à censura. Esse é um projeto de incentivo à cultura que foi feito pelos grafiteiros do município. E o tema é a fauna e a flora. Eles iam trabalhar elementos voltados à natureza, à floresta Amazônia, insetos, animais, enfim”, teria dito Coutinho. “Agora, o lance da imagem da polêmica é a Greta mesmo, por ela estar em evidência, ter toda essa situação política… então eu penso que se tivesse sido uma menina qualquer desenhada lá, estaria fora do contexto também, mas talvez não teria causado toda essa polêmica”.
O painel completo pintado por Matias Souza antes do vandalismo
Na manhã de ontem, o painel com o rosto da ativista sueca foi pichado citando de forma pejorativa a prisão ilegal do ex-presidente Lula. Até o momento, ainda não há uma decisão sobre o apagamento ou não do grafite com Raoni, que ontem também foi novamente alvo de ofensas pelo presidente Jair Bolsonaro em evento para mineradores.
Hoje, artistas e ativistas de Mato Grosso publicaram uma carta com dezenas de assinaturas contra a censura e em apoio aos grafiteiros. Veja abaixo na íntegra:
O artista Rai Campos publicou em suas redes sociais protestos contra o possível apagamento de sua obra
Carta em Apoio às Artes e Contra a Censura
Nós, artistas de Mato Grosso e sociedade civil, abaixo-assinados, vimos a público expressar nossa solidariedade aos artistas visuais, Rai Campos e Matias Souza que pintaram as imagens do Cacique Kayapó Raoni e da ativista sueca Greta Thunberg no contexto do 1º Encontro Internacional de Graffiti – Matograff, que reuniu artistas de toda a América Latina na cidade de Sinop-MT, entre 24 e 26 de setembro de 2019. Ao mesmo tempo, repudiamos a atitude vergonhosa de parlamentares da Câmara de Vereadores de Sinop e demais envolvidos que, de forma arbitrária e antidemocrática, censuram a expressão artística. Em diversas mídias foi divulgado que as obras serão apagadas e serão pintadas outras imagens no local com justificativas infundadas que se caracterizam como intolerantes e sem o mínimo de compreensão do papel da arte para a sociedade.
Gostaríamos de relembrar a Constituição da República de 1988 – artigo 5º, inciso IX – a qual garante a liberdade de pensamento e expressão artística como um direito fundamental do cidadão ao prescrever ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Os artistas censurados fazem parte de uma geração de artistas que democratizam a arte por meio do grafite, linguagem contemporânea que sai dos espaços institucionalizados (como museus e galerias) e inserem as obras nos mais diversos suportes dos espaços públicos e particulares, tornando-as acessíveis à todos.
Queremos, portanto, reiterar o nosso posicionamento e ressaltar a importância da liberdade de expressão e respeito às manifestações culturais que fortalecem a democracia.
Mato Grosso 02/10/2019
Assinam:
Adnilson Silva Lara (Dj Taba) – Músico
Adir Sodré – Artista visual
Gervane de Paula – Artista visual
Ruth Albernaz – Artista visual / bióloga
Vitoria Basaia – Artista visual
Eduardo Mahon – Advogado / escritor
Ivens Scaff – Escritor
Willian Gama – Curador de Arte
Vinicius Souza – Jornalistas Livres / UFMT
Jean Siquera (Siq) – Grafiteiro / tatuador
Adriano Figueiredo – Artista Visual
Marília Beatriz de Figueiredo leite – Escritora
Luiz Marchetti – CALM Centro Visual Luiz Marchetti
Vera Capilé – Cantora / compositora / psicóloga
Maria Teresa Carrión Carracedo – Editora
Naine Terena – Artista / Jornalista
Ludmila Brandão – Professora UFMT
Rosylene Pinto – Artista Visual
Amanda Gama – Advogada / galerista
Adriano Souza – Secretário Adjunto de Cultura de Juína – MT
Rosemar Coenga – Escritor
Livia Bertges – Escritora
Imara Quadros – Arte educadora
Ivan Belém – Artista / arte educador
Lúcia Palma – Atriz
Roberto Ferreira – Ator / arte-educador
Anna Maria Ribeiro Fernandes Moreira da Costa – Antropóloga
Silvia Turina – Artista Visual
Zuleica Arruda – Arte educadora/ artista visual
Vera Baggetti – Arquiteta/ artista visual
Luciene Carvalho – Poeta
Flávio Ferreira – Diretor do teatro Cena Onze
Gloria Albues – Cineasta / jornalista
Otília Teófilo – Artista livre
Reinaldo Mota – Médico / professor
Amarildo Ferreira – Psicanalista
Santiago do Pântano – Tatuador / Músico
Jean Carlos Bass – Músico
Hector Flores – Músico
Roger Perisson – Publicitário / músico
Odilio Marcelo da Costa (Xito CondUta do Gueto) – Músico
Paulo Cesar – Rondonópolis MT
Jeff Keese – Arquiteto / curador / expógrafo
Claudete Rachid Jaudy – Atriz / professora
Carlina Rabello Leite – Produtora cultural
Volney Albano – Jornalista/Presidente Municipal do PT Cuiabá
Foi através do ativismo antiespecista e culinário que surgiu no Facebook o Ogros Veganos, o maior grupo de veganismo do Brasil – e um dos maiores do mundo. Falando de comida por um viés político, sua a ideia é mostrar que a alimentação sem exploração animal não é só salada, como pensa a maioria das pessoas, e que pode, sim, ser variada e apetitosa.
Ellen Guimarães, 31, é vegana há sete anos e foi uma das idealizadoras do grupo. Na época, Paulo Victor Pinheiro, 33, era casado com Ellen e criou através de seu perfil o grupo na plataforma. Apesar de “criador”, ele não se envolveu com o grupo por muito tempo. Pelo menos desde 2016 Paulo não tem qualquer atuação dentro do espaço de ativismo culinário vegano.
Até a noite do último dia 29 de setembro o grupo contava com sete moderadoras, seis mulheres feministas e um moderador aliado à luta das mulheres. Durante a madrugada do dia 30 o golpe foi dado: todas foram retiradas da moderação e excluídas do grupo.
“Paulo não fez nada além de criar o grupo através de seu perfil. Estávamos eu e ele na cozinha quando ele abriu o computador, criou e colocou uma capa – coisa que ele adora usar como prova para dizer que o grupo é dele. Quem compôs a moderação fui eu, quem administrou as confusões fomos nós, moderadoras. Nós criamos as regras, quem cuida do grupo há mais de cinco anos somos nós. Eu e todas as moderadoras, nunca Paulo. Ele se absteve de moderar o grupo há muitos anos. Não participava das discussões, não se inteirava dos assuntos e não estava presente em nada” disse Ellen em um comentário no Facebook que foi apagado por Paulo minutos depois.
Sem diálogo e usando de uma autoridade técnica-virtual, Paulo baniu, e vem banindo, todas as mulheres que se posicionaram contra sua ação tirana. Nas redes sociais, ele se apresenta como Paru Vegan – fisioculturista vegano – e “defende” os direitos das mulheres.
Antes do golpe, a última publicação de Paulo no grupo aconteceu no dia 17 de julho de 2017 e não se tratava de uma publicação de moderação.
Ativismo com dedicação
Com 175 mil membros, o grupo é o maior do segmento no país e serve como fonte de informação, inspiração e troca de experiencias entre pessoas do mundo todo. No ambiente é possível falar sobre veganismo, libertação animal, reforma agrária, direito a alimentação, ecologia, meio ambiente e feminismo. O Ogros Veganos se define como ativismo antirracista, anticapitalista, feminista, pelo direitos humanos e pela libertação animal.
O grupo é declaradamente de esquerda e defende um veganismo político e não um movimento dependente da indústria e pautado pelo mercado.
Durante as eleições de 2018, foi um dos poucos grupos de Veganismo a adotar uma postura contrária a Bolsonaro. Em 28 de outubro, dia em que Bolsonaro foi eleito presidente, uma das moderadoras sofreu uma tentativa de invasão em sua conta do Facebook.
Da esquerda pra direita: Talita, Mieko, Sara, Tamine e Ellen, moderadoras do Ogro Veganos. Tamine e Sara não compõem o time atual de moderação. A foto foi feita após a acusação de que a moderação era muito dura por colocar sempre as regras em primeiro lugar
Com dedicação diária por parte das sete moderadoras, o grupo conta com a contribuição de mulheres de diferentes regiões do país. A pesquisadora Talita Silva Xavier, de 32 anos, entrou na moderação quando o grupo tinha apenas 18 mil membros e diz que desde essa época Paulo não participava com frequência. Mãe de uma bebê de 6 meses, ela se divide entre as tarefas da vida pessoal, o ativismo vegano e materno.
“Dedico umas duas horas por dia ao grupo. Vou moderando ao longo do dia e quando acordo para amamentar minha filha de madrugada. Na madrugada/manhã do último domingo, por exemplo, ajudei uma mulher também puérpera que postou uma dúvida sobre amamentação. Dividi minha experiência pessoal e recomendei um grupo específico de maternidade vegana” explicou Talita. “Diariamente, temos centenas de posts e dezenas deles estão fora das regras. Além disso, cuidamos do conteúdo dos comentários – não pode ferir direitos humanos ou dos animais”, observou.
Mieko Cabral, 28, e a advogada Andréa Albuquerque, 36, também eram moderadoras. Elas destacam a importância de pontuar que todo o trabalho é voluntário e que não há nenhum envolvimento financeiro dentro do grupo. Em 2018 uma empresa chegou a procurar a moderação interessada em comprar o grupo, mas a proposta foi recusada por conta dos principios ideológicos e éticos do Ogros Veganos.
Posicionamento do Facebook e deturpação da missão do grupo
Segundo apurou os Jornalistas Livres, o Facebook entende a questão com uma lógica empresarial e vê Paulo como criador da empresa, mesmo que ele nunca tenha atuado. Portanto, cinco anos de trabalho diário feito por mulheres serão roubados com o aval da plataforma, já que ela se recusou a fazer uma análise específica sobre o caso, levando em conta que o grupo Ogros Veganos não se trata de uma empresa.
Ainda segundo a apuração o grupo somente seria devolvido caso o conteúdo atual deturpasse a missão e visão do grupo. Desde ontem os posts estão passando pela aprovação de Paulo e diversos deles tem conteúdos não-veganos. As moderadoras aguardam agora o posicionamento do Facebook sobre a questão.
Publicação com uso de Mel – proibido pelas regras do grupo
Publicação com marca não-vegana – proibido pelas regras do grupo
Manifestação dos membros
Em todas as publicações do grupo há comentários pedindo que o grupo seja devolvido às moderadoras. Pelas redes sociais Paulo foi cobrado por centenas de pessoas pela atitude tirana e, excluindo de qualquer possibilidade de diálogo, trancou os comentários de suas publicações.
Por Walter Falceta, especial para os Jornalistas Livres
O jornalista Mario Magalhães e seu mais novo livro “Sobre Lutas e Lágrimas, Uma Biografia de 2018”
O jornalista Mario Magalhães e seu mais novo livro “Sobre Lutas e Lágrimas, Uma Biografia de 2018”
Por Walter Falceta, especial para os Jornalistas Livres
Atribui-se ao 32º presidente estadunidense, Franklin Delano Roosevelt, a perturbadora frase: “leva-se um bom tempo para trazer o passado ao presente”.
De fato, corre tempo demais até compreendermos o porquê das pequenas e grandes tragédias cotidianas. Roosevelt pensava, por exemplo, nos equívocos e desvarios econômicos e financeiros que haviam conduzido seu país à Grande Depressão.
O desprezo pelo passado frequentemente nos conduz ao horror e ao sofrimento, fenômeno que se apresenta aos olhos dos historiadores no período entre as duas devastadoras guerras mundiais que marcaram o Século 20.
No Brasil, há quem ainda não tenha compreendido, por exemplo, a natureza do Golpe Militar de 1964, que ceifou vidas, esperanças e amores.
Pior é a crença patológica em um passado edulcorado, no qual a farda supostamente garantiu aos brasileiros um tempo de ordem, progresso e segurança, de gestores públicos imaculados, jamais envolvidos em casos de corrupção.
Se o passado é moldado pela construção e reprodução de narrativas particulares, faz-se necessário garantir que o pensamento da civilidade possa concorrer com aquele da barbárie.
O livro “Sobre Lutas e Lágrimas – Uma Biografia de 2018” (Editora Record, R$ 44,90) escrito pelo jornalista Mário Magalhães, serve brilhantemente a esse propósito.
A obra trata do pretérito recente, esse que ainda não tivemos tempo de processar, cuja análise atenta exibe uma fieira de ocorrências espantosas, absurdas ou mesmo inacreditáveis.
A pena virtuosa do colega Mário nos choca ao narrar, por exemplo, os eventos de abril, quando o ex-presidente Lula deixou a resistente São Bernardo e rumou ao cárcere em Curitiba, vítima estoica das tramas lavajateiras.
Ora, um recuo modesto no tempo, que seja a 2008, exibe um país governado pelo mesmo nordestino. A economia cresce e multiplica-se a oferta de empregos, o filho do porteiro ingressa na universidade e a fome vai desaparecendo do cotidiano das famílias mais humildes.
Na época, poucos imaginavam que o ex-metalúrgico, mandatário colecionador de sucessos na gestão pública, pudesse cair vítima de um golpe articulado por procuradores reacionários em parceria com um magistrado de cultura limitada.
Causa estranheza que, em 2018, nos tenha faltado tempo para compreender 1968, o famoso ano rebelde que não terminou. Vivemos o ano passado de forma vertiginosa, ocupados, procurando entender o mês anterior, o dia de ontem, a hora passada.
Neste Brasil líquido, senão gasoso, como nos reconta o genial Mário, assistimos à caça de macacos, incriminados como transmissores da febre amarela. Se houve empoderamento das mulheres, multiplicaram-se os casos de feminicídio. O Doutor Bumbum revelou sua verdadeira índole. Caminhoneiros travaram o país, a intervenção militar amedrontou o Rio de Janeiro, a direita paranoica mobilizou-se contra a Ursal, índios e jovens recorreram ao suicídio para findar a aflição dos dias todos.
O neofascismo brasileiro, associado aos neoliberais que se desencantaram com o PSDB e o DEM, viabilizou a candidatura do ex-capitão Jair Bolsonaro. Neste medieval ano de 2018, milhões de brasileiros foram enganados pelo “tiozão” do WhatsApp, que repassou notícias sobre a “mamadeira de piroca” do Haddad, o mesmo candidato vermelho que, segundo ele, pretendia legalizar a pedofilia.
Na obra de Mário o que mais espanta, no entanto, é a celeridade nas mudanças de cenário. Nos textos escritos no início do segundo semestre, ele ainda cogita de uma candidatura de Lula e não descarta a vitória do ex-metalúrgico. Poucos meses adiante, o que se avalia é se Bolsonaro pode ou não vencer a eleição presidencial no primeiro turno.
O autor rememora o episódio da reportagem de Patrícia Campos Mello, da Folha, sobre o esquema ilegal de disparo de conteúdos anti-PT nas redes, bancado por empresas. Mas não faz olho militante. Investiga na minúcia os personagens de seu 2018, um ano que se converte, ele próprio, em personagem.
Na página 261, apresenta um rascunho do candidato presidencial de esquerda, Fernando Haddad:
Em piscada de olho para o centro, Haddad elogiou Sergio Moro (“ajudou” o Brasil, com “saldo positivo”), mas criticou a condenação de Lula. Errou ao endossar a acusação improcedente que atribuía tortura ao general Mourão, porém se corrigiu. Criticou decisões de correligionários, como a desmesurada renúncia fiscal do governo Dilma.
Se nos adiantamos aqui, é bem possível que façamos um curioso spoiler daquilo tudo que já sabemos, ou julgamos saber.
Quer colar no passado e trazê-lo para decifrar o presente? Embarque nessa leitura, no fascinante jogo das frescas reminiscências. São 330 páginas, mas que passam rapidinho, como aquelas 730 de “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, obra luminosa e reveladora do mesmo Mário.
Cuca, atual técnico do São Paulo, foi preso e condenado na Suíça, pelo estupro de uma menina de 13 anos
Em julho de 1987, durante excursão do Grêmio à Europa, os jogadores Cuca (atual técnico do São Paulo), Henrique, Fernando e Eduardo foram presos em Berna, na Suíça, acusados de estuprar uma menina de apenas 13 anos.
Eles ficaram 28 dias detidos. Dois anos depois, foram condenados pela Justiça daquele país, mas cumpriram a pena em liberdade.
Jornalistas Livres republicam hoje texto produzido originalmente para o jornal feminista “Mulherio”, que surgiu em 1982 e resistiu até 1989. A reportagem veio a público em outubro de 1987, na edição 33 do “Mulherio”, que tinha a poeta Adélia Prado na capa.
As autoras do texto, as professoras e antropólogas Mirian Grossi e Carmen Rial, fazem uma impressionante descrição da recepção de torcedores aos jogadores acusados de estupro na Suíça, quando de sua chegada ao Aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre. A cena é digna de aparecer no filme Dogville (2003), do cineasta dinamarquês Lars Von Trier. Só que, em vez de alegoria sinistra da crueldade, tratava-se da vida real.
Em 2014, Bolsonaro afirmou, na Câmara e em entrevista a jornal, que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada porque ele a considerava “muito feia” e porque ela “não faz” seu “tipo”.
O texto das antropólogas, que neste ano completa 32 anos, é de uma atualidade perturbadora quando menciona o papel da grande imprensa na narrativa sobre o estupro-estupradores-futebol . E precisa ser relido, nestes tempos de criminalização da mulher que denuncia:
Página 3 do Jornal Mulherio, de outubro de 1987 — veja abaixo a reportagem completa do jornal “Mulherio”Página 4 do Jornal Mulherio, de outubro de 1987
Pela primeira vez desde que a imprensa divulgou seu boletim de ocorrência, a modelo e estudante de Design de Interiores Najila Trindade Mendes de Souza, que acusa o jogador Neymar de estupro e agressão, deu sua versão dos fatos ao público. Entrevistada pelo repórter Roberto Cabrini nesta quarta-feira (05/06), a jovem afirmou que foi violentada em 15 de maio, após ir a Paris para se encontrar com o atacante.
Najila disse que ao chegar no hotel, o jogador mandou mensagem por WhattsApp dizendo que iria a uma festa mas passaria lá antes para lhe dar um beijo. “Quando chegou lá, estava tudo bem, mas ele estava agressivo, totalmente diferente do cara que eu conheci nas mensagens. Como eu tinha muita vontade de ficar com ele, tentei manejar a situação. Começamos a trocar carícias, nos beijar e ele me despiu. Até aí, foi tudo consensual. Ele começou a me bater. No início foi ok, mas depois ele começou a me machucar muito. Eu falei ‘para’ e ele falou ‘desculpa, linda’”. E continuou a relação.
Najila foi didática. Contou que perguntou a Neymar se ele tinha camisinha e, diante da negativa do jogador, teria dito: “Então, não vai acontecer nada”. O silêncio do rapaz foi interpretado como um acato à sua decisão. Mas, “ele me virou e cometeu o ato. Pedi para ele parar, ele continuou. Enquanto ele cometia o ato, continuou batendo na minha bunda, violentamente”. Najila conta que tudo aconteceu em “questão de segundos”. “Falei ‘para, para, não’. Ele não se comunicava muito, ele só agia”, mostra um dos trechos da entrevista que é possível assistir aqui:
A mulher quer transar. Começam as carícias, o clima esquenta porque ela quer transar e ok. MAS há duas coisas importantes sobre o que é consentimento:
1) A mulher não quer transar sem camisinha. Se tivesse, tudo bem. Porém, o cara decide sozinho que vai transar sem a camisinha e inicia a relação. É ESTUPRO.
2) Durante o sexo, a mulher reclama que está doendo ou por qualquer outra razão e pede pra parar. O cara não para. É ESTUPRO.
Qual a dúvida? Tudo o que acontece depois do “não” é estupro.
A polêmica sobre os fatos cabe aos investigadores. Mas na entrevista a moça foi didática.
Tem muito homem defendendo estuprador porque existe uma cultura que ignora o “não” de uma mulher e segue. É estupro. Não há dúvida nenhuma. Se não para, é estupro. Ponto final.