Guarani, tukano, xavante… representantes de diversas etnias dos povos originários realizaram mais uma manifestação na Avenida Paulista para protestar contra o etnocídio e as ameaças de retrocessos, como a PEC 215 e a Agenda Brasil
por Adriana Carvalho, apoiadora dosGuarani Mbya, com fotos: Didier Lavialle
Miguel dorme um sono tranquilo nos braços de seu pai, Thiago Henrique, um dos líderes indígenas da etnia Guarani Mbya. Ele chegou ao mundo há dois meses e já faz parte da história de luta pelos direitos dos povos originários. Entre guarani, tukano, xavante e muitas outras etnias, Miguel pertence aos xondaros e xondarias (guerreiros e guerreiras, como se diz em guarani mbya) que na sexta-feira (14) fecharam a Avenida Paulista durante o Ato do Dia Internacional dos Povos Indígenas, coordenado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e pela Comissão Yvyrupa.
Quando ele crescer um pouco, provavelmente verá as fotos deste dia. E ouvirá muitas histórias. Saberá que teve a sorte de vir ao mundo poucos meses depois de seus parentes conquistarem a portaria declaratória da Terra Indígena Jaraguá. Espera-se que até lá, quando ele tiver idade para entender, possam contar a ele que o processo de demarcação foi concluído totalmente e que seus outros parentes, da Terra Indígena Tenonde Porã, no extremo sul de São Paulo, também obtiveram o reconhecimento legal de suas terras ancestrais. Porque esses são dois dos motivos que levaram tantos indígenas, incluindo o próprio Miguel, a interromper o trânsito nervoso da mais famosa avenida da maior metrópole do Brasil.
Se alguém se lembrar, poderá contar ao Miguel que naquela sexta-feira, ao chegar ao vão livre do Masp, todos tiveram um embrulho no estômago ao ver que uma dúzia de pessoas vestidas com roupas camufladas e enrolados na bandeira do Brasil pediam a volta do regime militar.
Esperamos que quando ele tiver idade para entender essa história, seja coisa do passado e que não existam mais retrógrados como esses em nosso país. Talvez alguém se recorde e conte também que quando a senhora camuflada de óculos ray ban começou a vociferar no megafone, do outro lado do vão livre, um grupo do movimento Hip Hop e pelos direitos da população negra começou a tocar um reagge bem alto, encobrindo as palavras de ódio.
Miguel saberá que seus parentes e ele mesmo foram às ruas para protestar contra um projeto chamado PEC 215 que visa transferir para uma bancada de deputados ruralistas as decisões sobre as demarcações. E que ao dançar, cantar e fumar o petyngua (cachimbo) na avenida também lutavam contra outras investidas contra seus direitos, como uma tal de Agenda Brasil.
Esperamos que até lá tudo isso seja passado, Miguel. Que sejam apenas histórias tristes que não se repetem mais. Como aquelas pelas quais chora a parente tukano, Daiara. Com os olhos marejados envoltos em um enorme cocar de penas azuis, Daiara subiu ao palco do vão livre no final do Ato e abraçou-se à ativista Márcio Izzo, do Movimento Hip Hop de São Miguel. A primeira lamentava as mortes de parentes como os Guarani Kayowaa, atacados por pistoleiros no Mato Grosso do Sul. A segunda sofria por mais uma chacina acontecida na periferia de Osasco, na véspera, onde as vítimas eram negros e pobres. Enquanto as duas causas se abraçaram ao som do rap e dos chocalhos indígenas, Miguel dormia ainda. Quando ele crescer e estiver bem desperto, desejamos que encontre um tempo novo e melhor.
De encanto meus olhos já se enxugavam há tantos dias entre rios, mas eis que o Xingu se revela novamente e surpreende meus sentidos
Estou no Estado de Mato Grosso, entre os municípios de Paranatinga e Gaúcha do Norte, região essa que viu suas florestas caírem na engorda do gado e a soja florescer em poucas décadas. Sobraram intactas apenas a área do Parque Indígena do Xingu e outras terras indígenas no Mato Grosso.
Sigo para o rio Batovi ao encontro dos Wauja, uma gente de língua Aruak, cheia de carinho e precisão, que povoa o Batovi e Steinen, afluentes do grande rio Xingu, e somam aproximadamente 500 indígenas divididos em suas 3 aldeias: Pyuluene, Ulupuene e a grande Piyulaga.
Chego pela água com o sol na aurora e um povo na beira de areia fina, praia branca e roça de mandioca entre crianças. Fresca e fértil é a terra, farto é o rio.
O que esses índios guardam de nós ou nossos vícios não há evidências, apenas sorriso e cortesia, gente bonita a impressionar os profissionais da saúde que estão a vacinar, identificar e conversar. A falar da vida e seus cuidados.
É o Rio Urubu, Ulupuene. Procuro encontrar algo fora do eixo, não há, tudo segue sua ordem. Na aldeia grandes casas em construção vão se cobrindo com sapê, e muitas casas pequenas, tal presépio, se enchem de crianças e cumprimentos nas pequenas portas, tudo tão limpo e linear em gestos honestos
Gente Waurá que, subindo o rio Batovi, se instalou nos limites do Parque, meio guarda, meio encanto e fartura.Porque a vida de índio não é nada fácil, aqui se coloca beleza e arte em tudo de simples que há. Tudo traz um pouco de alma e paz no Ulupuene.
O que fazemos é armar rede, seguir na noite.
Quando o dia logo chega vacina-se toda a população e se faz vai em busca dos males. O que encontramos nessa aldeia é muita saúde, pouco a fazer.
Coisa boa é ver gente encontrando seu rumo e partir . Ficam as casas de mato bem feitas e um modo de viver que desafia nossa conectividade moderna.
Era muito cedo ainda para o dia, mas a noite já não escurecia tanto. Pegamos as vacinas, o médico cubano , a enfermeira, técnicos e agentes indígenas de saúde, nossa grande equipe conta 10 pessoas e dois barcos e um só rumo: vacinar e identificar todos os índios em todas as diversas aldeias e suas etnias. Agora, estamos nas antigas terras dos índios Kalapalo, território esse evacuado as pressas por eles no século passado, contam em histórias tristes que as mulheres e as crianças, seus velhos também, iam morrendo pelo caminho padecidos de sarampo. Hoje voltam para as terras em pequenas novas aldeias, lugares sagrados e miscigenados com Matipu, Nafukuá, Kuikuro.
Foto: Hélio Carlos Mello
Estamos abrigados no Culuene, uma aldeia ponto de apoio e vigilância com o limite sul do PIX, a membrana de contato com o território dos povos da terra do Alto Xingu.
Os muitos dias intensos de trabalho já realizado são recortados pelo radical silêncio das noites, pois todos dormem cedo em suas redes. Do sono que perco nas madrugadas percebo que há hoje um certo trânsito de barcos naquele trecho de rio, algo incomum nas terras indígenas.
Na manhã seguinte vejo onde de fato estou, pois alta noite se fazia quando aportamos a água limpa dos rios que navegávamos cede aqui espaço a imensas manchas de espuma marrom rodeando os cantos do rio Culuene. Ao longo do dia vou entendendo a enorme pressão que se faz no limite do parque com a sociedade envolvente, no caso moradores, fazendeiros e turistas que frequentam intensamente as pousadas de pescarias que se contituem nas margens do rio no município de Gaúcha do Norte e com estradas de acesso as cidades de Canarana e Querência.
Passei a transitar esse trecho com meus amigos indígenas, a apreender os limites da área e toda a voracidade, ainda insipiente, dos investimentos no setor hoteleiro que tendem a se intensificar com o poder do apelo do turismo da pesca. Nosso achado foi a antiga placa da FUNAI, que anuncia o limite da Terra Indígena soterrada no leito do rio, entre a mata. Bravamente houve o desterro da placa pelos Waurá, Kuikuro e Kamaiurá que me acompanham. Colocamos a placa toda enferrujada no local, mesmo sabendo que cabe a FUNAI anunciar e zelar pelos limites das terras indígenas, bem como mediar conflitos nas zonas de pressão. Fica evidente que o município de Gaúcha do Norte tem que criar um legislação ambiental para a ocupação das margens do Culuene. Ao IBAMA cabe fiscalizar o resguardo dos recursos naturais.
Foto: Hélio Carlos Mello
A poluição das águas vinda pelo turismo e a invasão de pescadores é apenas uma das ameaças que começam a interagir com as aldeias e as etnias e seus clãs. Hoje os jovens estão animados com a grande pescaria em rede, e a rede é o wi-fi que seduz a todos. As motos passaram a ser fundamentais também, facilitando o trabalho nos caminhos de roça e no percurso do rio. Grandes TVs também encontraram seu lugar na grande casa ovalada em sapé habitada por muitos. A mercantilização das grandes festas e rituais também salta aos olhos.
O incrível mundo novo da tecnologia passa a se mostrar como uma eficiente arma inventada pelo homem branco, cabendo apenas aos índios decidirem que caminho tomar para preservar a cultura originária da sedução das parafernálias que o mercado renova a cada dia.
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“Viemos aqui falar para vocês da outra tragédia que iremos lutar para evitar: a perda do nosso território e da nossa vida. Nós não viemos negociar com vocês, porque não se negocia nem território nem vida. Nós somos contra a construção de barragens que matam a terra indígena, porque elas matam a cultura quando matam o peixe e afogam a terra. E isso mata a gente sem precisar de arma. Vocês continuam matando muito. Vocês simplesmente matam muito. Vocês já mataram demais, faz 513 anos.”. 4 de junho de 2013, Vitória do Xingu, Carta número 9: Tragédias e barragens (a luta não acaba nem lá nem aqui)
O texto acima é parte de um conjunto de dez cartas endereçadas ao governo federal escritas por lideranças indígenas Munduruku e de outras etnias a partir do canteiro de obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, que na ocasião foi ocupado por cerca de um mês em protesto contra a construção de uma série de hidrelétricas nos rios Xingu, Teles Pires e Tapajós.
Elas são fruto de um processo de resistência encabeçado por diversos povos nativos do Brasil em defesa de seu território e de seu modo de vida contra grandes empreendimentos do governo previstos na Amazônia.
Foram escritas para dar voz à gente que vive nos rios em que o governo está construindo barragens: Munduruku, Juruna, Kayapó, Xipaya, Kuruaya, Asurini, Parakanã, Arara, pescadores e ribeirinhos. “Nós somos da Amazônia e queremos ela em pé. Nós somos brasileiros”, diz trecho da primeira carta divulgada durante a ocupação.
Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace
Os rios que cortam a Amazônia são fundamentais para os habitantes da floresta. O regime de seca e cheia das águas moldou a vida dessas populações ao longo de centenas de anos. Além de principal fonte de alimentação e meio de transporte, os rios fazem parte da cosmologia dos povos que vivem ali. Interferir nessa dinâmica é interferir brutalmente na forma como eles vivem, e até na sua sobrevivência.
É o que tenta explicar aos “pariwat” (como os Munduruku chamam os não-índios), o historiador Munduruku Jairo Saw: “O rio faz parte de nós porque nos dá vida. Os nossos antepassados deixaram esse patrimônio pra gente, por isso temos que cuidar. A natureza tem uma lei, se a gente violar, teremos consequências. Os pariwat nunca vão entender. O impacto é também cultural, psicológico e espiritual. Pra nós [a construção de barragens] é uma ofensa, uma violação dos nossos direitos”, afirma Saw.
Não é contra as hidrelétricas, é pelos direitos indígenas
De 1970 até hoje, a Amazônia já perdeu 19% de sua floresta. Após diversos momentos de exploração da região, como a borracha, a extração de ouro e minérios, a comercialização de madeira e a expansão do agronegócio, vivemos hoje uma nova fronteira de exploração da Amazônia: a construção de usinas hidrelétricas.
Os impactos socioambientais das barragens são inúmeros e vêm sendo comprovados a cada nova grande obra erguida no meio da Amazônia. Perda da biodiversidade, desmatamento, inchaço populacional de cidades e comunidades locais, serviços públicos insuficientes, poluição de rios e igarapés, violência, prostituição, tráfico de drogas, deslocamento de populações tradicionais, mudança no curso natural dos rios, perda de meios de sobrevivência com pesca são alguns dos mais dramáticos impactos registrados obra após obra. É o que tem acontecido em Altamira, onde está sendo construída Belo Monte, que tece o exemplo para o Tapajós.
Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace
Para discutir os paralelos entre as duas obras, lideranças Munduruku se encontraram no final de março com Antonia Melo, liderança do Movimento Xingu Vivo, e Dom Erwin Kräutler, bispo da prelazia do Xingu que mora há mais de 30 anos na Amazônia e é uma referência para os movimentos sociais na região na luta contra Belo Monte. A conversa faz parte de uma articulação entre os povos da Amazônia para denunciar as ameaças ao seu modo de vida e aos seus territórios causada pelas hidrelétricas.
Ambos contaram aos Munduruku os problemas que os índios do Xingu vêm sofrendo com a construção das barragens, como igarapés que começaram a secar, forçando a abertura de estradas que promovem a invasão das terras indígenas, e a dependência alimentar, que segue cada vez maior, com os índios deixando de produzir suas roças e dependendo de alimentos que vem de fora, podendo causar doenças comuns em brancos mas antes desconhecidas pelos índios, como diabetes e obesidade.
Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace
“É como se direitos fundamentais garantidos na Constituição tivessem se tornado moeda de troca”, afirmou Dom Erwin. Para facilitar a aceitação de empreendimentos como esses pelas populações locais, saúde, educação e infraestrutura passam a ser oferecidos pelas empresas construtoras como favores, enquanto o Estado negligencia um papel que deveria ser seu.
“Essa ideia de energia limpa tem que ser repensada. Energia de hidrelétrica não é limpa se está sendo construída em cima do sangue dos povos” afirma o religioso. “O debate não é Belo Monte, o debate é a sobrevivência dos povos indígenas”.
Na linha de frente dessa batalha de David contra Golias pela sobrevivência, ou, do jabuti contra a anta (para falar a partir da cosmologia indígena) está o povo Munduruku: mais de 12 mil pessoas que habitam a região do rio Tapajós, no Pará e que são os protagonistas da luta contra as obras no rio que lhes dá vida.
“Nós fazemos parte da natureza, não queremos que nosso conhecimento desapareça, nossa forma de vida, de organização. Queremos que nos respeitem, que o mundo saiba o que estamos sentindo”, diz Jairo Saw.
Foto: Fábio Nascimento/Greenpeace
Saiba mais sobre os Munduruku e a luta pela demarcação de suas terras na próxima reportagem.
A data de reintegração de posse da aldeia Guarani de Itakupe, no Jaraguá, já está marcada: acontecerá entre 25 e 29 de maio se não houver decisão de suspensão da liminar cujo recurso tramita no Supremo Tribunal Federal ou assinatura do ministro Eduardo Cardozo na portaria que dá prosseguimento à demarcação das terras.
Do lado de fora do 49 Batalhão da Polícia Militar de Vila Clarice, na região noroeste de São Paulo, um círculo de Guarani Mbya se forma. Começam a cantar ao som de violão e viola.
Eles estão rezando. A Nhanderú, o “Deus Verdadeiro”, aquele que disse: “A terra é para todos. Nenhum de vocês deve ter ciúme da terra”. A fumaça dos petengua, o cachimbo tradicional, faz parte do ritual. Estão rezando porque lá dentro, em uma sala do batalhão, seus líderes estão reunidos com advogados, oficial de justiça, representantes da PM e com o homem que alega ser dono das terras onde eles vivem e plantam. É o ex-prefeito de São Bernardo do Campo, Antonio Tito Costa, que chegou acompanhado de dois filhos. Está lá também o secretário dos Direitos Humanos de São Paulo, Eduardo Suplicy.
Enquanto os Guarani cantam, ouve-se das matas que cercam o batalhão o grito dos PMs que participam de um treinamento ali perto. Geni, sentada na grama aperta as mãos nervosa: “São meus filhos que estão aqui lutando ao lado do avô (o Cacique Ari) para não tirarem a nossa terra”. Ao lado dela, Richard, de apenas 12 anos, acompanha tudo com ar tranquilo. Mas só na aparência. Na primeira reunião realizada no Batalhão há duas semanas, era ele que esperava na aldeia e que perguntava ansioso: “Quando a PM vai vir tirar a gente daqui?”. Richard e Geni, para que fique bem claro, são seus “apelidos” em português. Todos os Guarani Mbya do Jaraguá tem seus nomes na cultura original, mas adotam os “apelidos” para facilitar a convivência com os “juruá”, como são chamados os não-indios.
Hoje veio a resposta para a pergunta de Richard. Os PMS irão a Itakupe — que para Antonio Tito Costa chama-se Gleba Jaraguá — entre 25 e 29 de maio para executar a ordem de reintegração de posse. O resultado da reunião desta terça-feira só muda se houver suspensão da liminar que autorizou a reintegração e a decisão para tanto está nas mãos do Ministro Ricardo Lewandowiski no Supremo Tribunal Federal. O resultado também muda se o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinar a portaria declaratória que dá prosseguimento à demarcação dos 532 hectares reconhecidos pela Funai como Terra Indígena (TI) tradicional dos guarani, fundamentada em um estudo de 10 mil páginas divulgado em 2013 depois de 11 anos de estudos. A “Gleba Jaraguá” , que inclui a área de moradias e plantação em Itakupe, se constitui de 72 hectares dentro da TI.
Todos os Guarani, e não só os do Jaraguá, dizem que vão resistir à retomada das terras se a reintegração de fato acontecer. “Somos dois mil Guarani Mbya em São Paulo e vamos resistir”, diz David Martim, um dos líderes, ao sair da reunião. Enquanto David fala, Antonio Tito Costa vai saindo pela lateral, mas é parado pelos jornalistas. Repete o que disse na reunião anterior, que não pretende construir “condomínio de luxo” na região, que está fazendo estudos sobre o que fazer com as terras, talvez uma plantação de eucaliptos (um de seus filhos já é dono de uma empresa de cultivo de eucaliptos em Torrinha, cidade natal de Tito Costa, no interior paulista). “Mas os eucaliptos secam as nascentes e deixam as matas sem vida”, diz o ativista Adriano Sampaio. “Não vou ficar aqui discutindo com vocês”, diz Tito Costa, já de saída.
Eduardo Suplicy também sai para dar entrevista e diz que esteve tanto na aldeia conversando com o Cacique Ari quanto na casa de Antonio Tito Costa, buscando um entendimento. Disse que está em conversas com o ministro Eduardo Cardozo, procurando uma solução.
A questão é que o tempo é curto. Os Guarani tem apoio de seus parentes de outras aldeias. E de um grupo de juruás também. Mas as vozes precisam crescer. Não só no Jaraguá, mas em todas as terras habitadas pelas diversas etnias indígenas brasileiras, os juruás parecem dar pouca atenção aos gritos de socorro que vêm das aldeias. Onde se perdem terras, onde se perdem vidas, onde se perde a saúde, onde o preconceito, a violência e a intimidação imperam. Essa pouca atenção faz pensar na frase que o ex-presidente Jânio Quadros teria dito ao indigenista Orlando Villas Boas, cena que aparece no filme Xingu, de Cao Hamburguer: “No Brasil ninguém gosta de índio”.
No mesmo filme, um capanga diz a Orlando que “branco que ajuda índio é ‘pior’ que índio”. É essa a sensação de quem procura apoiar os Guarani e encontra pouco eco dos outros “juruás”. Somos ‘pior’ que índio, somos os ecochatos, somos os ‘assistencialistas’. Não são muitos que vêm valor naqueles que se preocupam com a sobrevivência das tantas culturas indígenas assim como com o futuro do pouco que resta da nossa Mata Atlântica, ameaçado de virar um deserto de eucaliptos.
Atualmente existem três aldeias da etnia Guarani Mbya no bairro do Jaraguá. São elas Tekoa Ytu, Tekoa Pyau e Tekoa Itakupe. Apenas uma delas, Ytu, foi demarcada até hoje, com 1,7 hectare: trata-se da menor área demarcada em todo o país. Nas demais, pesam sobre os Guarani processos que podem leva-los a perder as terras. Tekoa Itakupe é o único local que a comunidade de 800 pessoas tem para plantação de subsistência e para água limpa. Isso porque nas demais aldeias, já em área urbanizada, falta saneamento básico, os córregos estão poluídos e o abastecimento de água tem sido interrompido com frequência. Essa situação tem levado a inúmeros problemas de saúde, especialmente entre as crianças, que sofrem de desidratação e desinteria.
Tito Costa, de 92 anos, alega que a chamada “Gleba Jaraguá” seria sua por herança de sua falecida esposa, Léa Nunes Costa. Esta, por sua vez seria dona do local em condomínio com outras pessoas, todas já falecidas. Apesar da “propriedade” coletiva, o juízo da 10 Vara Federal de SP aceitou que Tito Costa movesse sozinho a ação contra os Guarani e autorizou em medida liminar a reintegração de posse.
As informações disponíveis sobre Tito Costa dão conta de que ele nasceu em 31 de dezembro de 1922 na cidade de Torrinha, que ironicamente faz parte da chamada Chapada Guarani, no interior de São Paulo e que ele teria cursado o seminário por três anos antes de se mudar para a capital paulista. Formou-se em Direito na Faculdade do Largo São Francisco, USP, em 1950.
Sua carreira começou como advogado e procurador da prefeitura de São Bernardo do Campo. Em 1953, casou-se como Léa Nunes Costa, com quem teve cinco filhos. Foi vereador em Torrinha e prefeito de São Bernardo do Campo entre 1977 e 1983. Foi deputado federal constituinte pelo PMDB entre 1987 e 1990. E vice-prefeito de SBC na gestão de Walter Demarchi, de 1993 a 1996. Também já ocupou o cargo de vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seccional de São Paulo.
Em fevereiro de 2015, a Justiça do Estado de São Paulo condenou Antonio Tito Costa, juntamente com o ex-prefeito de Osasco Francisco Rossi de Almeida, o advogado Aymoré de Mello Dias e o também advogado José Daniel Farat Junior ao pagamento de R$848.455,15 na Ação Civil Pública (processo número 0015717–46.1996.8.26.0405 ) de Improbidade Administrativa. O motivo foi a prestação de serviços de advocacia à prefeitura de Osasco sem ter passado por licitação.
No fim de semana passado, quando os “juruás” apoiadores dos Guarani estiveram em Itakupe para uma mobilização em favor da manutenção das terras, um menino guarani se aproximou e falou baixinho: “Você viu o que o Tito Costa fala da gente?”. Sim, a gente viu, ou melhor, leu, em uma reportagem. “Os índios estão lá, alvoroçados. Meia dúzia de índios desocupados. Porque há um acampamento de índios próximo dali. Lá eles recebem cesta básica, ajuda do Estado. E tem uma mulherada barriguda dançando pra lá e pra cá. Criança suja. Não fazem nada, mas vivem lá. E agora querem invadir outras áreas para continuar não fazendo nada”, disse ele à reportagem do site R7. Nos autos da ação de reintegração de posse, os advogados de Tito Costa alegam que os “posseiros” não são índios, mas pessoas “ridiculamente fantasiadas”.
Desabafo
Minha militância na causa indígena não é longa, mas suficiente para perceber que a raiz dos problemas que vivemos hoje em relação às comunidades indígenas parece estar no preconceito e no profundo desconhecimento sobre a história, os costumes e a cultura desses povos. Somos um bando de juruás que dizemos “programa de índio” quando nos referimos a um entretenimento ruim. Que diminuímos nossa cultura brasileira chamando-a de “tupiniquim”. Somos um bando de juruás que não saberiam citar mais do que três nomes de etnias indígenas brasileiras. Que estudam na escola tudo sobre a Grécia Antiga e nada sobre nossos povos originários. “Nossas crianças não são sujas. A sujeira está na cabeça do branco. Nossas crianças pisam com os pés descalços na terra. Seus pés estão “sujos” de terra. Tito Costa chama a terra que ele tanto quer para si de suja”, diz David Martim.
Meus dias de índio no Alto Xingu se furtaram à data prevista, adiando-se aos atrasos da chegada de valiosas doses de vacina que serão, em sua rotina e ciclos anuais, levadas à terra indígena do Parque por enfermeiras que acompanho em expedição de imunização. Nesses dias de refluxo sigo vagando na pequena cidade de ruas imensas, como se várias avenidas Paulista e desertas se sucedessem no espaço urbano da jovem cidade de Canarana, no Estado de Mato Grosso. O município é um desses que se fundaram no nada, durante o regime militar, em região de pura mata que vai rendendo o cerrado na transição para a poderosa e cobiçada floresta amazônica.
Um inesperado convite me veio na noite de sábado de um amigo jovem e forte índio Kamaiurá, vendo em mim um certo desconsolo com a monotonia da cidade. Sugeriu-me para ir assistir a um jogo de futebol no domingo com seus amigos. Eu, que nunca fui de bolas, não me excitei tanto com a proposta, mas considerei a possibilidade. Leonardo, técnico em enfermagem, passou a me contar as qualidades do jogo que ocorreria, e logo me despertou grande interesse pelo evento.
A partida seria entre o Xingu Clube Futebol, formado por índios Kamaiurá, Kuikuro, Yawalapiti, Kaiabi e Matipu, contra o adversário Culuene, time composto por moradores da mesma localidade, um distrito de Canarana a 50 quilômetros de distância. No domingo às 13 horas foi marcado o encontro com o time, numa praça local, para embarcar no micro-ônibus escolar que nos levaria ao campo do distrito de Culuene para partida válida pelo Campeonato Municipal Amador da 1ª Divisão, devidamente registrado na Federação de Futebol.
São 13 horas e o sol está a pino a esquentar tudo que não tem sombras, por isso ficamos sob as árvores da praça e o antigo avião suspenso no ar em colunas de concreto, objeto público que orgulha os sulistas e desnovela a senda dos povos tradicionais. O atraso do ônibus motiva os jogadores indígenas, “isso é bom, pois faz a gente chegar com raiva”, diz um deles provocando risos. Quando partimos o pequeno ônibus se enche de motivação e a alegria se intensifica em piadas de línguas indígenas que nada entendo, mas o humor é algo que não necessita tradução. O veículo segue apressado no asfalto que finda, longo caminho de terra batida por duas horas nos levarão para Culuene.
Chegamos. O time xinguano, sério agora, vai em bloco procurar o parco vestiário. Eu a rodear o campo logo conheço Toni, pequeno garoto de 10 anos, descalço e sem camisa, que livre me diz: “sou o gandula e vou ganhar dez reais”. Sem que eu tivesse tempo de prosseguir o diálogo ele se arvora num pé de manga próximo. Vou ao vestiário onde o time do Xingu se aperta já na troca de roupas e em um idioma comum falam algo que lembra música, algo que une o time na vontade de vencer.
A partir daqui começa a se evidenciar grandes diferenças no comportamento e rotinas dos times. Enquanto os índios vão ocupando o campo em exercícios físicos, o time local segue em roda orando seu pai nosso. A população local vai se aglomerando em volta do campo trazendo suas cadeiras domésticas.
Uma gente morena de sol, donas de casas e do campo e seus filhos, homens com seus chapéus e muito trabalhador de roça e suas latinhas de cerveja e as moças bonitas. Ao apito do juiz é a garra que se mostra nessa gente toda. Sem grandes problemas ou expulsões o jogo é ágil e intenso, jogo bom de ver onde a bola não pára e os homens tremem o chão.
Me chama a atenção a torcida que não raro deixa evidenciar sua parcela de preconceito ao índio, com ironias nada amigáveis quando o time local recebe ou faz gols. Quatro a quatro será o placar de meu programa de índio, um empate que simboliza mesmo o encontro desses povos que aqui dividem a terra,costumes e pretensões.
Na satisfação final do empate todos se cumprimentam e a torcida recolhe suas cadeiras e partimos para casa. Já noite caindo no ônibus sigo pensando no pequeno gandula Toni, feliz por seus dez reais e um país todo pela frente, ainda.