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Categoria: Ciência

  • Militares fazem o que sabem de melhor: esconder os mortos

    Militares fazem o que sabem de melhor: esconder os mortos

    Imagine uma epidemia que se alastra rapidamente e mata entre 10% e 20% dos infectados. Imagine que essa epidemia mata principalmente crianças e em especial as da periferia, com menor acesso ao saneamento básico e à saúde. Agora, imagine que por três anos os meios de comunicação sejam censurados nas reportagens sobre a epidemia, que os médicos sejam proibidos de dar entrevistas e que o Ministério da Saúde, controlado por militares, não divulgue os números corretos sobre a doença e as mortes. Isso já aconteceu no Brasil, e não faz tanto tempo assim.

    Entre 1971 e 1974, pelo menos 60 mil pessoas de sete estados brasileiros (40 mil só em São Paulo, o epicentro da epidemia) foram infectadas pela bactéria causadora da meningite. Até hoje é impossível precisar quantos morreram. Mas para impedir o que achavam ser uma histeria dos médicos, os militares decidiram esconder esses fatos, e os mortos, da população. Centenas, talvez milhares de crianças, aliás, foram enterradas na mesma vala comum clandestina do cemitério de Perus, na capital paulista, onde eram jogados os corpos de dissidentes políticos torturados e mortos pelo Doi Codi.

    Um ótimo vídeo curto sobre a epidemia de meningite e a maquiagem de dados da ditadura militar está disponível no canal Meteoro.doc. Ontem, o canal publicou um novo vídeo, tratando especificamente da atual maquiagem de dados e da disputa de narrativas entre o novo governo militar, que teoricamente ainda não é uma ditadura, e os meios de comunicação para se informar ou desinformar a população.

    O tratamento governamental da epidemia de meningite dos anos 1970 só vai mudar em 1974, com um novo general no poder e a aquisição pelo governo de 80 milhões de doses da vacina. Sim, já havia vacina para a meningite e o governo sabia que se tivesse feito uma campanha de vacinação anos antes, teria poupado milhares de vidas. Mas pra que admitir um genocídio se podia dizer que havia um “milagre econômico”? É como disse a ex-secretária da Cultura, Regina SemArte: é muito peso carregar essa fileira de mortos.

    Telegrama da Polícia Federal ordenando a censura nos dados sobre a epidemia de meningite. Fonte: Twitter do historiador Lucas Pedretti @lpedret. Como os telegramas não tinham pontuação, usavam a sigla VG para vírgula e PT para ponto final.

    Assim, em julho de 1974, com a admissão oficial de que havia uma epidemia, o jornalista Clovis Rossi, então trabalhando no jornal O Estado de São Paulo, preparou uma grande reportagem de capa, intitulada Epidemia de Silêncio, na qual dizia: “Desde que, há dois anos aproximadamente, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações, reduzir os números referentes à doença a proporções incompatíveis com a realidade — ou seja, levando, deliberadamente, a desinformação à população e abrindo caminho para que boatos ocupassem rapidamente o lugar que deveria ser preenchido per fatos. Fatos que as autoridades tinham a obrigação, por todos os títulos de esclarecer ampla e totalmente”. Leia a matéria completa aqui.

    Mas, claro, militares não gostam que digam quais são suas obrigações e publiquem que estão desinformando a população. Assim, a matéria de Rossi foi censurada e em seu lugar o Estadão publicou um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.

    Por causa da Lei da Anistia, de 1979, os militares jamais foram responsabilizados criminalmente pelas mortes na pandemia e nem pelas torturas, mortes, desaparecimentos e ocultação de cadáveres de dissidentes políticos. Mas talvez a história não se repita com a pandemia de coronavírus. Ontem, o Supremo Tribunal Federal, atendendo a uma ação dos partidos Psol, PCdoB e Rede Sustentabilidade, determinou a divulgação diária das informações sobre os dados de Covid-19 até às 19h30, pelo Ministério da Saúde. E também ontem, o Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, decidiu analisar a denúncia do PDT de genocídio promovido pelo Governo Bolsonaro. Esse é um caso raro, já que normalmente o TPI só julga ex-governantes acusados de crimes contra a humanidade.

  • Com Bolsonaro, Brasil se torna o paraíso do Coronavírus

    Com Bolsonaro, Brasil se torna o paraíso do Coronavírus

    Por Dacio Malta*

    O auxiliar de coveiro e ministro da Covid, Eduardo Pazuello, general paraquedista que usou o dispositivo para pousar no cargo que ocupa, não entende nada de Saúde. Sua especialidade no Exército é logística de munição – uma função pomposa mas totalmente inútil para um país que não está em guerra.

    Para auxiliá-lo no ministério, Pazuello convocou mais de uma dezena de coronéis e oficiais de menor patente para preencher cargos que deveriam ser de médicos, cientistas, sanitaristas e infectologistas. Mas ele achou mais fácil trabalhar com os seus “cães de guerra”, como já declarou.

    Nos finais de semana, o auxiliar de coveiro veste um jeans e uma camiseta e, ao lado do chefão, participa das manifestações antidemocráticas junto à boiada, defendendo o fechamento do Congresso e do STF, e pedindo a implantação do AI-5 e uma intervenção militar com Bolsonaro no poder.

    Pazuello não é o que existe de pior neste governo.

    Não porque seja um estranho no ninho onde pousou, mas porque é mesmo difícil dizer o que existe de pior em uma administração que ignora a ciência, combate à imprensa, despreza as pessoas, protege os fascistas, blinda os filhos milicianos, se cerca de desqualificados, não tem programa para nenhuma área. E, quando se reúne, como no dia 22 de abril, é para filmar uma conversa de botequim e selecionar os melhores momentos para inflamar seus adeptos com uma propaganda barata e sem o menor pudor.

    Mas o general da Covid – que será julgado e, certamente, condenado pela História – decidiu agora convocar um civil, tão despreparado para a função como os militares que o cercam.

    Carlos Wizard, do cursinho de inglês para um dos cargos mais importantes do Ministério da Saúde. E daí?
    Carlos Wizard, do cursinho de inglês. E daí?

    Um tal Carlos Wizard, de sobrenome conhecido para quem faz esses cursinhos de inglês, é o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE), um dos cargos mais importantes do ministério, e que estava sendo ocupado pelo professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Antonio Carlos Campos de Carvalho, um dos poucos nomes indicados pelo ex-ministro Nelson Teich.

    Sua secretaria terá a incumbência de formular políticas nacionais de ciência e inovação em saúde, assistência farmacêutica, além do fomento à pesquisa, desenvolvimento e educação.

    Sua experiência é zero. Mas como diz o capitão: “E daí?”

    Wizard era proprietário do curso de inglês que leva seu nome, vendeu-o para um grupo estrangeiro, e hoje dedica-se às marcas Mundo Verde e Pizza Hut.

    Paralelamente às questões sanitárias, vai importar o Taco Bell “um fast-food com muitos fãs no Brasil”.

    Wizard é filho de família humilde – pai caminhoneiro e mãe costureira – que frequentavam a igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Por conta dos contatos que teve com missionários norte-americanos, aprendeu inglês.

    Aos 17 anos viajou para os EUA levando 100 dólares no bolso e, sabe-se lá como, tornou-se “bilionário”, como ele se declara em perfil no Wikipedia.

    No Instagram, o espertalhão gosta de postar fotos com Bolsonaro, com a terceira primeira dama Michelle, com Eduardo Bananinha e a ministra da goiabeira.

    Antes da posse, prometeu entupir a população de cloroquina.

    Se uma pessoa apresentar algum sintoma da Covid, basta se dirigir a um hospital para começar o tratamento preventivo. E a droga será ministrada ainda a todos os que o cercam, como esposa, filhos, empregados, vizinhos e afins.

    Para a próximo mês, Wizard fez uma promessa mais diabólica: ele quer recontar o número de mortos pelo coronavírus – já que os dados divulgados até agora são “fantasiosos ou manipulados”.

    A Bela Megale, de ‘O Globo’, ele sentenciou:

    – Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesses de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocaram todo mundo como Covid. Estamos revendo esses óbitos.

    Para o coveiro da nação e morador do Alvorada, seu novo contratado está se saindo melhor que a encomenda.

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

    Leia mais Dacio Malta em:

    Cadê o Queiroz? Braço direito de Bolsonaro tem a senha pra derrubar o presidente

  • Impasse sobre Enem 2020 reflete desigualdades brasileiras na educação

    Impasse sobre Enem 2020 reflete desigualdades brasileiras na educação

    Por: Beatriz Passos – do Com_Texto

    Entrar em uma universidade pública é o sonho de muitos estudantes brasileiros. Mesmo com diversos fatores que tornam complicadas as vivências na universidade, milhares de alunos em todo Brasil se inscrevem no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para tentarem uma vaga no ensino superior. Mas essas instituições estão preparadas para receber esses alunos? Quais são os obstáculos desses jovens? Quem os ajuda nessa caminhada? São questões como essas que fizeram o Com_Texto investigar um pouco dessa trajetória, em 2020, no cenário inédito de pandemia mundial causada pela Covid-19.

    Em maio de 2019, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) divulgou que a maioria dos seus estudantes era mulher, parda, com idade entre 18 e 24 anos e com renda per capita familiar de até um salário mínimo. Tais dados foram levantados a partir da V Pesquisa Nacional de Perfil dos Graduandos das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), promovida pelo Fórum Nacional de Pró Reitores e Assuntos Estudantis (Fonaprace) da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Para a coleta de informações foram entrevistados 28.481 estudantes dos cinco campi da UFMT, consultando 68,6% da sua comunidade estudantil.

    Cerca de um ano depois, em meio à pandemia causada pelo novo coronavírus, estudantes com perfis parecidos com a realidade da UFMT correm o risco de não terem a oportunidade de pleitear uma vaga no ensino superior. Afinal, a edição 2020 do Enem, principal meio de entrada nas universidades, ainda não tem sequer uma data certa para ocorrer, apesar do governo ter gasto muito dinheiro numa propaganda onde atores com mais de 20 anos interpretavam secundaristas com pleno acesso a computadores, smatphones importados, quartos individuais e livros nas estantes. Esse cenário utópico está muito longe da realidade da maioria dos estudantes brasileiros.

    DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO

    A UFMT foi uma das primeiras universidades a aderir o sistema de cotas sociais, em 2011, antes mesmo da consolidação da Lei 12.711 de 2012, a Lei das Cotas. Ocasionando um quadro de 69% de seus estudantes pertencentes à categoria de baixa renda, além de ter 55% vindos de escolas públicas. Segundo Vinicius Brasilino, Conselheiro de Estado de Educação, representante dos estudantes do ensino superior na Câmara de Educação Profissional e Ensino Superior e também graduando de Saúde Coletiva pela UFMT, essa realidade ampliou o processo de democratização da universidade. “A maior participação de estudantes das redes públicas garantiu que mais jovens das classes populares tivessem acesso ao ensino superior, podendo dar continuidade ao seu processo de formação e escolarização formal”, afirma.

    Brasilino ressalta, contudo, que a manutenção desse acesso não basta. É preciso também garantir a permanência dos alunos no ensino superior. “O fato desta democratização ter dado acesso à universidade aos diferentes perfis de estudantes, ocasionou na demanda pela permanência estudantil, o que a gente chama de assistência estudantil: garantia de benefícios para que o estudante possa estudar com qualidade”, explica. “Esses meios podem ser, por exemplo, bolsas alimentação e moradia. Foi por isso que o Brasil criou o Programa Nacional de Assistência Estudantil, para dar conta de atender a esses estudantes que têm especificidades e demandas emergentes dentro das universidades”.

    Porém, especialmente por conta dos cortes de verbas desde 2014, as políticas de assistência não conseguem garantir tais benefícios a todos os que necessitam. No caso da UFMT, em 2020 o orçamento total de custeio é 21% menor do que no ano passado, e da assistência estudantil foram retirados cerca de 40% da verba. “Os principais obstáculos que estudantes em vulnerabilidade social enfrentam estão relacionados às políticas de permanência e assistência estudantil. Afinal, a educação vem sofrendo nos últimos anos vários cortes, como a Emenda Constitucional nº 95 , de 2016, que congelou os investimentos em educação, saúde e outras áreas do desenvolvimento social do país por 20 anos”, comenta o Conselheiro de Estado de Educação.

    Vinicius Brasilino também vê como prática perigosa aos cidadãos o possível agendamento da prova do Enem ainda em 2020. “Observando o movimento da pandemia no Brasil e as ações que o Governo Federal vem tomando, que são muitas vezes contrárias ao que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem proposto, a realização do Enem não só coloca em vulnerabilidade sanitária milhares de estudantes, como também se transforma em instrumento de ampliação das desigualdades educacionais e sociais do Brasil”, analisa.

    Em razão da pandemia do Covid-19, o Enem 2020, incialmente marcado para os dias 1 e 8 de novembro, provavelmente será adiado de 30 a 60 dias, de acordo com Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) que aplica a prova. A contragosto do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do Governo Federal, o Senado aprovou um projeto de adiamento o exame por 74 votos a 1 (do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República). No dia seguinte, o presidente do Congresso, deputado Rodrigo Maia, informou ao presidente o projeto teria placar semelhante na Câmara dos Deputados, forçando o mudança.

    Sem dúvida essa foi uma grande vitória das pressões de organizações como a União Nacional dos Estudantes (UNE). Mas ainda não é o suficiente. “O adiamento do Enem de 30 até 60 dias, mantém o processo perverso desse governo de privilégios, assim como a anuncida modalidade virtual do exame. Quem realmente tem acesso à internet para fazer o Enem digital? Quem fará virtualmente poderá fazer a prova de sua casa com um conjunto de livros e conteúdos ao lado, com condições de ter um melhor resultado na prova? Para mim, o Enem digital reforça ainda mais uma falsa meritocracia e condições desiguais de acesso à universidade. É um equívoco”, afirma Vinicius Brasilino.

    Alunos da UFMT em manifestação contra o projeto Future-se, em 2019 (Foto: Com_Texto)

    FUTURO E INCERTEZAS

    Luiz Antônio está no quinto semestre do ensino médio integrado ao curso técnico em edificações, no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT) – campus Várzea Grande. Com 18 anos, seus planos no início de 2020 eram prestar o Enem e concorrer a uma vaga na UFMT. “Eu costumava passar em torno de 35 a 40 horas semanais na escola, tudo isso entre aulas, projeto de pesquisa e extensão e grupo de estudo. Esse ano seria o meu último ano do ensino médio, mas agora já estamos nos encaminhando para o terceiro mês de aulas interrompidas por causa da pandemia do novo coronavírus”, conta.

    Sem aulas desde o dia 17 de março, o estudante declarou que sua rotina mudou bastante. Como passava muito tempo na escola, se organizava para estudar no colégio, e em casa dedicava-se às outras responsabilidades domésticas. Diferente de outros alunos da sua escola, Luiz Antônio tem acesso à internet em casa, mas ainda assim preferiu fazer a prova na modalidade física, por segurança. “Eu tenho acesso à internet em casa, o que tem me ajudado bastante nesse processo de adaptação. E devido aos problemas da correção da edição passada do Enem, eu optei pela versão impressa da prova, porque tenho um pouco de incerteza com essa experimentação”, assume.

    Apesar do ministro dizer que foi “o melhor Enem de todos os tempos”, a edição de 2019 teve erros de correção, além do vazamento de uma das páginas da prova durante o dia do exame, em 3 de novembro. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), foi divulgada uma foto da folha de redação antes do final do exame, já no momento da correção. E quem fez a prova com uma determinada cor de gabarito, teve suas respostas corrigidas com base em um gabarito de cor diferente.

    Diante de tantas dúvidas, Luiz comenta que, assim como ele, seus colegas estão muito inseguros. “Tudo isso tem sido muito comentado nos grupos de turmas sobre o Enem, e tudo é uma grande incerteza. Ninguém sabe como vai ser ou o que pode acontecer. Está todo mundo muito apreensivo porque o ano está correndo e já perdemos o final de semestre todo. Então estamos ficando para trás sim, comparado aos alunos de escola particular”, revela.

    Sobre os próximos acontecimentos com relação ao Enem, o estudante acredita que o melhor é o cancelamento da aplicação da prova em 2020. “Eu acho as discussões sobre o adiamento do Enem muito pertinentes, porém, ao meu ver, o correto nesse momento seria o cancelamento dessa edição. Porque já foi praticamente todo o primeiro semestre do ano e as escolas estaduais de Mato Grosso não chegaram nem a começar o ano letivo de 2020, enquanto as escolas particulares já estavam praticamente no fim do primeiro semestre”.

    OBSTÁCULOS DIFERENTES

    Para uma professora de biologia que atua há 20 anos em escolas estaduais de Mato Grosso, que preferiu não ter a identidade revelada, os alunos da rede pública e da rede particular têm condições intelectuais iguais para prestar o Enem. A diferença entre os dois perfis está nas oportunidades sociais que acabam por privilegiar apenas um dos lados. “Os alunos de escola pública têm que trabalhar mais para conseguir uma vaga na universidade. Então, quando eles conseguem, é muito gratificante porque é todo um universo que eles conseguiram vencer. Por isso que, intelectualmente, eles têm condições tanto quanto um aluno de escola particular, porém em relação à estrutura social eles saem perdendo”, comenta a professora.

    Com experiência no ensino também em escolas particulares, a professora ressaltou a diferença dos perfis dos alunos que frequentam escolas pagas daqueles matriculados em instituições públicas. “Quando dei aulas em escolas particulares, no começo da carreira, os alunos, em sua maioria, eram classe média ou classe média alta. As escolas tinham boas estruturas, como lousa mágica, internet veloz e salas climatizadas. Além do que, grande parte dos estudantes de escolas particulares não trabalhavam. Já os meus alunos do ensino público normalmente têm duplas jornadas. Se estudam de manhã, trabalham à tarde, e se estudam à tarde, trabalham de manhã, em sua maioria em empregos com carga horária pesada”, conta.

    A professora defende a educação pública, acredita que apesar das dificuldades enfrentadas por alunos e até mesmo por professores, o ensino gratuito garante o atendimento a demandas às quais as escolas particulares não se comprometem.

    “Outra grande diferença entre a escola particular e pública é que são poucas as escolas pagas que têm, no meu conhecimento, ensino inclusivo com alunos PcD (Pessoas com Deficiência). Na escola pública, esses estudantes são inclusos em salas regulares. E falando do estado de Mato Grosso, existem também as escolas quilombolas, indígenas e rurais com logísticas diferentes”, salienta.

    Atenta à diversidade de perfis, a educadora também se preocupa com o lado psicológico dos estudantes que pretendem realizar o Enem. “Como todos que estão passando por essa pandemia, os estudantes estão assustados e com medo, de certa forma sem condições psicológicas para fazerem uma prova densa como o Enem”, acredita a professora. “E nesse momento, o aluno de escola pública estadual soma a essas inseguranças a angústia de não ter iniciado o ano letivo devido à greve realizada ano passado. E o que a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (Seduc-MT) disponibilizou para eles, que são aulas online e/ou pelo canal da TV Assembleia, não é o ideal. Eu sei disso porque participo de grupos de conversas com eles e eles dizem que não têm condições porque não entendem os conteúdos devido aos problemas de conexão”, revela.

    As transmissões das videoaulas acontecem via TV ALMT (canal 30.2), com aulas inéditas e reprises durante a semana. As aulas são sobre as quatro áreas do conhecimento exigidas no Enem: matemática; linguagem e suas tecnologias; ciências sociais aplicadas; e ciência da natureza e suas tecnologias. O projeto foi apresentado pelo deputado estadual Delegado Claudinei (PSL), no dia 8 de maio, pela indicação de n.º 1.572/2020, na qual propunha à Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (Seduc-MT) a aplicação de método de ensino a distância para promover aulas virtuais para alunos da rede pública estadual durante a pandemia do novo coronavírus.

    Estudante segurando cartaz “Em defesa da educação pública” durante as manifestações contra os cortes no setor em 2019 (Foto: Com_Texto)

    DIMINUINDO BARREIRAS

    A Rede de Cursinhos Populares Podemos+ formada pelo Levante Popular da Juventude ajudou a aprovar em 2019 mais de 100 alunos no Enem. Criada em 2017, em São Paulo, a rede está presente em 50 cidades, distribuídas em 21 estados do Brasil, e tem em sua organização 1600 educandos e 800 educadores. Com componentes voluntários a Podemos+ reúne pessoas que buscam ajudar jovens brasileiros que são afastados ou excluídos do ensino superior a ingressar em universidades federais ou estaduais.

    “As experiências na nossa rede de cursinho estão vinculadas aos jovens da classe de trabalhadores, que são moradores de periferias, jovens estudantes de escolas públicas, jovens mães, e aos que não têm possibilidade de pagar mensalidades absurdas em cursos preparatórios. Nosso objetivo é com as questões de igualdade mesmo, de facilitar o acesso à universidade, como é o caso do cursinho de escrita acadêmica que serve justamente para aqueles que têm dificuldades em desenvolver trabalhos com critérios acadêmicos”, explica a Coordenadora da Rede de Cursinhos Populares Podemos+ e da Frente Territorial do Levante Popular da Juventude, Lorhana Lopes.

    Outra ação neste sentido foi o mutirão de ajuda na realização das inscrições no Enem. “A gente precisava fazer com que o máximo de pessoas tivesse acesso. Por isso, movimentamos mais de 800 pessoas, em ação voluntária, para contribuírem nesse processo que é extremamente burocrático. Então, passamos por processo formativo, lemos todas as informações da plataforma do Inep, e depois entramos em contato por telefone com pessoas que preencheram o formulário básico para solicitar a ajuda, além dos outros educandos já inscritos”, conta Lorhana. Em Mato Grosso, a Podemos+ atua desde 2019 em Cuiabá e conta com 42 educadores voluntários. No primeiro ano de curso foram aprovados três alunos na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Em 2020, o processo de mobilização foi interrompido pela pandemia do Covid-19, e até o momento da pausa cerca de 60 jovens já estavam inscritos para participarem das aulas.

    Questionada sobre o porquê de não continuar com as aulas no formado de Ensino a Distância (EaD), a coordenadora da Rede de Cursinhos Populares Podemos+ em Mato Grosso, Amandla Sousa, revela que a modalidade seria incompatível com as realidades dos educandos que a rede atende. “Nós da Podemos+ não podíamos pensar na manutenção das aulas do cursinho em uma modalidade EaD. Essa não é a realidade da população brasileira. Essa não é a realidade dos sujeitos com os quais estamos contribuindo para que acessem a universidade e essa também não é a realidade de Mato Grosso. Nós temos bairros do município de Cuiabá, onde é a situação de vulnerabilidade dos trabalhadores é tamanha que falta por vezes alimentação para essas pessoas. O que dirá internet”, esclarece.

    Segundo a coordenadora, a Podemos+ utiliza uma metodologia da educação popular e justamente por isso considera mais importante acompanhar os educandos e suas famílias neste período de fragilidade causada pela crise sanitária e econômica mundial. “Neste momento nós temos que nos preocupar com a vida do nosso povo. Temos que nos preocupar em garantir condições de vida digna, e o Enem deve se adaptar a esse processo para que ele não seja mais excludente. Na realidade do nosso povo que é tão diverso, que tem tantas dificuldades, adiar o Enem com base no ano letivo de 2020 é fazer justiça social”, afirma Amandla Sousa.

     

    NOTA OFICIAL DIVULGADA NO PORTAL DO INEP

    Atentos às demandas da sociedade e às manifestações do Poder Legislativo em função do impacto da pandemia do coronavírus no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e o Ministério da Educação (MEC) decidiram pelo adiamento da aplicação do exame nas versões impressa e digital. As datas serão adiadas de 30 a 60 dias em relação ao que foi previsto nos editais.

    Para tanto, o Inep promoverá uma enquete direcionada aos inscritos do Enem 2020, a ser realizada em junho, por meio da Página do Participante. As inscrições para o exame seguem abertas até as 23h59 desta quarta-feira, 27 de maio.

     

    SAIBA MAIS:

     

    V Pesquisa Nacional de Perfil dos Graduandos das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes): https://noticias.paginas.ufsc.br/files/2019/05/VERSAO_MESTRA_DO_RELATORIO_EXECUTIVO_versao_ANDIFES_14_20h52_1.pdf

    NOTA OFICIAL | Adiamento do Enem 2020: http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/nota-oficial-adiamento-do-enem-2020/21206

    Rede de Cursinhos Podemos+: @cursinhospode

    Matéria original no site do Com_Texto: https://com-texto.wixsite.com/comtexto/post/impasse-sobre-enem-2020-reflete-desigualdades-brasileiras-na-educa%C3%A7%C3%A3o

  • Destemperado, ministro de Bolsonaro ataca a OMS e chanceler da Venezuela defende

    Destemperado, ministro de Bolsonaro ataca a OMS e chanceler da Venezuela defende

     

    Por Jorge Arreaza Monserrat, chanceler da República Bolivariana da Venezuela

    Este tempo de pandemia nos ensinou que as pessoas e governantes de distintos países são capazes de tudo: do melhor e do pior. Por um lado, não existe dúvida do compromisso e da compreensão da imensa maioria da população mundial que assumiu a preservação da humanidade como principal prioridade, tomando profundas medidas de resguardo e distanciamento social. Por outro, observamos o capricho dogmático e irreflexivo daqueles que somente se preocupam com a “saúde do mercado”, colocando em perigo o bem estar de cada ser humano que habita a Terra.

    Temos escutado vozes de cada canto do planeta que indicam algo que sempre foi óbvio: o mercado não tem mecanismos nem argumentos para fazer frente aos problemas que afetam princípios básicos da humanidade, como saúde, alimentação, educação e moradia. No meio desta luta contra o rastro de mortes que deixa a Covid-19, o capitalismo não tem capacidade de resposta para oferecer aos povos segurança e atenção, nem mesmo garantias à vida. Numerosas análises, com argumentos válidos, sinalizam a imperiosa necessidade de repensar o mundo e a vida em sociedade.

    O dogmatismo neoliberal, muito longe de deter-se para refletir diante da evidência que surge com as terríveis estatísticas e cada história de vida ao redor desta enfermidade, reage intempestivamente contra as vozes da consciência humana. Com pensamentos anacrônicos e bipolares, buscam reavivar um debate macartista e maniqueísta, deixando de lado a possibilidade racional para buscar soluções.

    O pensador esloveno Slavoj Zizek é um intelectual destes tempos, que está muito distante de postulados doutrinários ortodoxos e em sua obra costuma gerar diálogos com a cultura e as dinâmicas políticas de sua própria época. Podemos coincidir ou discordar de suas análises e das críticas que faz a diversos processos anti-capitalistas. No entanto, temos que reconhecer seus aportes ao debate e à reflexão necessária.

    Recentemente Zizek publicou um ensaio sobre a situação mundial atual chamado “Pandemia! O Covid-19 sacode o mundo”, em que discorre sobre a dinâmica mundial, o desenvolvimento do vírus, a abordagem tomada pelos diversos estados, as repercussões sobre a sociedade e o próprio indivíduo.

    Zizek combina pensamento filosófico clássico e contemporâneo, recorre ao imaginário popular, utiliza fontes informativas e lança mão de metáforas cinematográficas para propor o que finalmente será o mundo posterior ao coronavírus: um mundo muito mais solidário, onde cada estado terá a fortaleza para poder atacar a ameaça de acordo com suas próprias estratégias, mas onde também a solidariedade entre os povos e países se possa converter em um princípio fundamental para atingir a salvação da espécie e do planeta.

     

    Panfleto oportunista

    Mas chegamos à leitura de Zizek por via indireta. Na realidade chegamos à fonte, depois de toparmos com um panfleto destemperado e oportunista, cheio de lugares comuns, próprio de outro tempo histórico e outras latitudes, cuja autoria assume o ortodoxo chanceler do governo de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo.

    Esse polêmico ministro é um dos grandes defensores da tese de que o mercado deve ser responsável por reduzir o impacto da pandemia em seu país e no mundo. Paradoxalmente, o Brasil se converteu no centro da expansão exponencial da doença em Nossa América. A escrita elementar de Araújo, apesar de suas pretensões acadêmicas, carece de rigor analítico e metodológico. Ele intitulou seu artigo assim: “Chegou o Comunavírus”, em clara referência àquela reminiscência propagandista monroista-macartista dos anos sessenta e setenta, época em que o medo foi instilado, alegando que “o vírus da guerrilha e do comunismo” havia chegado à América Latina.

    Ao longo do texto, esse ministro muito pouco respeitado no próprio Itamaraty usa frases descontextualizadas e desvirtua o significado real do ensaio original de Zizek. Araújo faz um esboço maniqueísta e manipulador do sistema fracassado que ele defende, expressando um claro desdém pela humanidade e, o que é mais grave diante de sua investidura, pelo sistema multilateral e pelos mecanismos acordados pelos países do mundo para abordar conjuntamente as ameaças e problemas globais. Vejamos alguns elementos apresentados neste artigo.

    O argumento central de Araújo é que, de acordo com Zizek, a globalização é uma estratégia subsequente ao socialismo para tentar impor um sistema totalitário que busca o desaparecimento do estado. Em sua declaração, ele aponta:

    “Zizek revela aquilo que os marxistas há trinta anos escondem: o globalismo substitui o socialismo como estágio preparatório ao comunismo. A pandemia do coronavírus representa, para ele, uma imensa oportunidade de construir uma ordem mundial sem nações e sem liberdade.”

    Agora, verifica-se que, segundo Araújo, a globalização é uma estratégia comunista, como também o desaparecimento da força do Estado como estrutura fundamental para a organização nacional.

    Para esse cavalheiro, a globalização não está regida por um aparato econômico-financeiro que determina o desenvolvimento das dinâmicas internas e externas dos estados nacionais. Segundo Araújo, a globalização e a cartelização das informações que categoriza e acusa, que julgam e difamam governos e povos inteiros, é uma estratégia preparatória para o comunismo. Para este distinto diplomata, a ameaça à liberdade dos estados se baseia em uma ideia globalista comunista.

    Mas esse argumento apenas prepara o ataque mais perigoso que sustenta seu “Cavalo de Tróia” da ideologia neoliberal, mesmo que se torne cada vez mais evidente no contexto de um mundo cada vez mais multipolar. Ele tenta construir um senso comum (Gramsci) que aponta para a necessidade de desregular todos os andaimes institucionais, não apenas dentro das nações (princípio neoliberal por excelência), mas também para instituições multilaterais internacionais que permitem a coexistência e a cooperação saudável entre as nações. Por esse motivo, apela ao livro do pensador esloveno para desenvolver sua verdadeira agenda e seu objetivo preciso: o desprestígio da Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Justo no momento em que o mundo mais precisa de mecanismos multilaterais que possam coordenar os esforços de todos os atores internacionais, com base no rigor técnico e especializado necessários, o insólito artigo de Araújo ressalta novamente:

    “Não escapa a Zizek, naturalmente, o valor que tem a OMS neste momento para a causa da desnacionalização, um dos pressupostos do comunismo. Transferir poderes nacionais à OMS, sob o pretexto (jamais comprovado!) de que um organismo internacional centralizado é mais eficiente para lidar com os problemas do que os países agindo individualmente, é apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária.”

    Leia para acreditar! Na mesma linha, com enorme cinismo, o chanceler aponta suas baterias contra a UNESCO, chamando-a de um grande instrumento para a ideologização de um novo mundo comunista, que apenas habita as mentes perturbadas do autor e de seus correligionários.

    Mas ele nunca fala da ação de controle e sujeição sistemática, da ditadura de outras organizações como o Fundo Monetário Internacional, que, por exemplo, negou o apoio solicitado pelo Estado venezuelano para confrontar a COVID-19 por razões exclusivamente ideológicas. Justamente quando Donald Trump suspende as contribuições à OMS – um compromisso inevitável dos Estados membros – e se dedica a atacá-la e desacreditá-la, Araújo alega que a OMS serviria de ponta de lança para o estabelecimento do comunismo planetário.

    Em contrapartida, o chanceler irmão da Federação Russa, Sergey Lavrov, alertava há alguns dias sobre a politização indevida em torno da OMS em tempos de pandemia, apontando também que poderia tratar-se de reações defensivas que tiveram origem na negligência de alguns países antes da pandemia:

    “Não queremos que essa aspiração de unir forças [contra a pandemia] seja politizada, vejo sinais de tal politização nos ataques à OMS. (…) Esses ataques, na minha opinião, refletem o desejo de justificar certas ações que se mostraram atrasadas, insuficientes demais ”.

    Corresponde, portanto, por mero rigor e apego ao conhecimento e à verdade, revisar as reflexões de Zizek para que um organismo como a OMS tenha maior capacidade executiva, em tempos excepcionais como o em que vivemos. Vamos ver o contexto em que o filósofo fala:

    “Anos atrás, Fredric Jameson chamou a atenção para o potencial utópico em filmes sobre uma catástrofe cósmica (um asteróide que ameaça a vida na Terra ou um vírus que mata a humanidade). Essa ameaça global levaria à solidariedade global, nossas pequenas diferenças se tornariam insignificantes, todos trabalharíamos juntos para encontrar uma solução, e aqui estamos hoje na vida real. Não se trata de desfrutar sadicamente do sofrimento generalizado, na medida em que ajude nossa causa; pelo contrário, é uma questão de refletir sobre um triste fato de que precisamos de uma catástrofe que nos torne capazes de repensar as características básicas da sociedade em que vivemos. O primeiro modelo incerto dessa coordenação global é a Organização Mundial da Saúde, de quem não recebemos o barulho burocrático usual, mas avisos precisos proclamados sem pânico. Essas organizações deveriam receber mais poder executivo. Bernie Sanders é o centro da zombaria dos céticos por sua defesa da saúde universal nos Estados Unidos – a lição da epidemia de coronavírus não seria a necessidade de começar a criar algum tipo de rede global de saúde? (…) E não se trata apenas de ameaças virais, mas há outras catástrofes surgindo no horizonte ou que já estão acontecendo: secas, ondas de calor, tempestades enormes, etc. Em todos esses casos, a resposta não é de pânico, mas de um trabalho árduo e urgente para estabelecer algum tipo de coordenação global eficiente.”

    Vemos que, nas abordagens do autor, não há argumento que mine a soberania dos países. Trata-se de buscar a maior eficácia global em problemas que são obviamente globais. Hoje em dia, ninguém pode se sentir a salvo da pandemia dentro de suas fronteiras se seus vizinhos levam uma nova bomba-relógio viral à sua porta.

    Sem ir longe demais, a Venezuela, sob a liderança do presidente Nicolás Maduro, conseguiu ter um controle bem-sucedido da doença. No entanto, não podemos descansar tranquilamente, enquanto em países como Colômbia e Brasil o crescimento de contágios ameaça a saúde de nosso povo. É por isso que o governo bolivariano tentou de todos os modos coordenar políticas e ações conjuntas com seus vizinhos. Esforços que tiveram pouco e relativo sucesso, já que os governos de Jair Bolsonaro e Iván Duque não apenas agiram erraticamente diante do coronavírus, mas também são arrogantes e reticentes ao estabelecer comunicações e estratégias com as autoridades venezuelanas.

    Mais uma vez, o motivo, como o do Fundo Monetário, é estritamente político e geopolítico: seu chefe do Norte os repreende se estabelecerem uma boa coordenação com a Venezuela para proteger seus povos.

    Há muitos elementos que Araújo retira parcial e convenientemente do extenso texto de Zizek. Entre outras coisas, o pensador esloveno faz uma longa análise de novas formas de trabalho no sistema econômico contemporâneo. Para isso, estabelece um diálogo com algumas propostas do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.

    Na complexidade da proposta de Zizek, as novas categorias e classes de trabalhadores são estabelecidas em um mundo menos simples do que o que existia durante a revolução industrial, que é quando as categorias do marxismo clássico foram produzidas. Mas Araújo apenas pega os conceitos e palavras que o interessam para chegar a uma conclusão simples, mas tendenciosa, no final de seu artigo:

    “A pretexto da pandemia, o novo comunismo trata de construir um mundo sem nações, sem liberdade, sem espírito, dirigido por uma agência central de “solidariedade” encarregada de vigiar e punir. Um estado de exceção global permanente, transformando o mundo num grande campo de concentração.”

    Em outras palavras, para Araújo, Zizek propõe estabelecer um comunismo fascista que destruirá o estado-nação e transformará o mundo em um enorme campo de concentração no mais puro estilo nazista. Mas vamos à fonte original e contrastemos com a racionalidade. Zizek diz:

    “Não é uma visão de um futuro brilhante, mas de um ‘comunismo de desastre’ como um antídoto para o capitalismo de desastre. O Estado não deve apenas assumir um papel muito mais ativo, organizando a produção de itens urgentemente necessários, como máscaras, equipamentos de teste e respiradores, seqüestrando hotéis e outros resorts, garantindo a sobrevivência mínima de todos os recém-desempregados, e assim sucessivamente, fazendo tudo isso abandonando os mecanismos de mercado. (…) E, no extremo oposto da escala, algum tipo de cooperação internacional eficaz terá que ser organizada para produzir e compartilhar recursos. Se os estados simplesmente se isolarem, as guerras começarão. Refiro-me a esse tipo de evento quando falo em “comunismo” e não vejo outra alternativa senão a de uma nova barbárie “.

    Está longe dos sinais totalitários que Araújo inventa. Zizek chega a essa conclusão depois de apontar que mesmo dois dos líderes mais recalcitrantes do neoliberalismo mundial, Donald Trump e Boris Johnson, passaram por decisões que partem dos postulados doutrinários do controle de mercado: o Presidente dos Estados Unidos anunciou a possibilidade de intervir e assumir o controle de empresas privadas para garantir o bem nacional; além de considerar a entrega de uma bolsa de mil dólares a cada família em seu país.

    Por seu turno, o primeiro-ministro britânico – em 24 de março deste ano – estabeleceu a nacionalização temporária das ferrovias. Assim, o filósofo ressalta que: “Não é uma visão comunista utópica, é um comunismo imposto pelas necessidades da mera sobrevivência”.

    O texto de Slavoj Zizek coloca em perspectiva muitos elementos de reflexão indispensáveis na sociedade complexa dessa época, na qual, sem dúvida, muitos desafios são coletivos, globais. Mas também nos aponta para uma possibilidade latente e necessária.

    É fundamental que a liderança mundial possa aproveitar esse momento para fortalecer os princípios do multilateralismo, a coordenação em benefício de todos. Essa é a moral que caracteriza o texto do filósofo esloveno. O estado nacional deve ser central no novo esquema que surge após a pandemia, como central também deve ser a cooperação multilateral diante de problemas e desafios comuns.

    Nesse sentido, é essencial cessar as perseguições político-ideológicas contra os povos, cessar os bloqueios financeiros e as medidas coercitivas que afetam severamente a capacidade de lidar com mais eficiência com esse vírus mortal ou qualquer outro desafio social. Como Zizek aponta no começo de seu livro: “Estamos todos no mesmo barco”. Não há possibilidade de sobreviver à pandemia se não resgatarmos os princípios fundamentais do ser humano: o reconhecimento do outro e a solidariedade.

    Com humildade, mas com consciência e moralidade, sugerimos ao nosso homólogo brasileiro, com pretextos de um intelectual neoliberal, que apoie suas teses com um método confiável e que preferencialmente se baseie em autores que reforcem seu pensamento supremacista. Esses tipos de supostas análises críticas não podem ser validados, com base em declarações falsas, meias verdades, mentiras e leituras parciais ou tendenciosas.

    Devido às características de seu artigo e suas conclusões, é muito provável que ele tenha lido (de maneira conveniente ou preguiçosa) alguns dos títulos e subtítulos do texto de Zizek. Vamos ao debate de ideias, sem medo, sem meias tintas, mas com bases confiáveis e rigor profissional. Este é o momento da verdade e das definições.

    Atacar a OMS agora é uma aberração total. Pelo contrário, milhões de nós reconhecem o esforço sincero de seus cientistas e trabalhadores. Não exageramos na Venezuela ao somarmo-nos às vozes que propõem nomear a OMS e seu diretor, Dr. Tedros Adhanom, como merecedores do Prêmio Nobel da Paz em 2020. Seria merecido o reconhecimento por sua dedicação e coragem em confiar nas decisões coletivas, troca de experiências, coordenação científica e política em circunstâncias tão complexas. Em síntese, por apostar na verdadeira vacina para todos os males do sistema: a solidariedade.

    Voltemos a lembrar o coro desse belo tema de reivindicação e esperança de nosso pai cantor Ali Primera: “Ajudem-na, ajudem-na, que seja humana a humanidade”.

     

    (Tradução: Juliana Medeiros)

  • Bolsonaro deve deixar Saúde com Pazuello, que confunde homens com cavalos

    Bolsonaro deve deixar Saúde com Pazuello, que confunde homens com cavalos

    Por Dacio Malta*

    O general Eduardo Pazuello chegou ao ministério da Saúde usando o instrumento que melhor sabe manejar: um paraquedas.

    O médico bolsonarista Nelson Teich assumiu sua pasta tonto e, 28 dias depois, estava atordoado.

    Sem força e sem equipe, aceitou o general para ocupar a secretaria geral e, em menos de uma semana, foi engolido por mais 30 militares gulosos que ocuparam todas as chefias do ministério.

    O presidente começou a fritar Teich na terceira semana, torcendo para que ele pedisse o boné.

    Se tivéssemos um governo minimamente competente e previsível, o substituto seria nomeado na mesma tarde.

    Mas o que fazer?

    Educação e Saúde são os dois ministérios mais cobiçados pelos políticos, quanto mais em meio a uma negociação como a que existe no momento,  com o bloco mais fisiológico da Câmara – o chamado Centrão.

    Mas nem eles querem o rabo de foguete.

    Recusaram o convite e sugeriram que o general cumpra um mandato tampão, até que acabe a crise da pandemia.

    Já os generais do Planalto, torcem para que a pasta seja entregue a um civil, pois não desejam ver os milhares de mortos, que ainda vem por aí, caírem no colo de um militar. Certamente mais de 90% dos médicos votaram em Bolsonaro e, pelo menos até a “gripezinha”, esse índice não havia diminuído.

    Mas quem tem um currículo a preservar não vai jogá-lo no lixo só para agradar um capitão maluco, despreparado, tosco, ignorante, mal educado e criador de caso – que nem o Exército quis preservar em suas fileiras.

    Currrículo de Pazuello, no site do ministério: nada a ver com a Saúde
    Pazuello no site do ministério: nada a ver com Saúde

    Em meio à tragédia sanitária, econômica e política que nos aflige, Bolsonaro deve acabar optando mesmo por Pazuello, o paraquedista que tem gravado em sua ficha funcional o fato de ter colocado um soldado, no lugar de um cavalo, para puxar uma carroça – forma de punir um indisciplinado.

    Pazuello, como militar obediente, será agora o cavalo que puxará a carroça do capitão.

    O general, caso efetivado, chegará fraco, pois ficará claro que, depois de várias sondagens, o presidente não encontrou um nome que aceitasse o desafio. Por isso sua nomeação.

    A Wikipédia ensina que ordem unida “é uma formação habitual dos componentes de uma tropa”, que aceitam os comandos “dados pelo oficial, graduado ou o mais antigo presente à frente do grupo, em tom firme, enérgico e que inspire respeito à figura da autoridade presente”.

    Em termos práticos, a ordem unida serve para mostrar quem manda.

    É também a forma mais eficaz de ensinar os subordinados a respeitarem seus superiores.

    Na ordem unida não existe discussão.

    Aos poucos, o capitão vai disseminando o que aprendeu em seus primeiro dias de AMAN, a Academia Militar das Agulhas Negras.

    E Pazuello, que chegou como número 2, assim continuará.

    O ministro de verdade será Jair Bolsonaro.

    O aspecto positivo é que, nessa condição, o presidente não poderá mais recusar a função que vem desempenhando, com enorme afinco, desde meados de março: o de coveiro da nação.

     

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

     

    Leia mais Dacio Malta em

    Teste do Covid-19 de Bolsonaro é fake

  • Em Cuiabá, cruzes denunciam morte de enfermeir@s

    Em Cuiabá, cruzes denunciam morte de enfermeir@s

    A morte de cada profissional da enfermagem que atuava na linha de frente do combate ao coronavírus importa. Em menos de dois meses, o país já perdeu 98 profissionais, mais do que Espanha e Itália juntos. Não foi por acaso. Os governos neoliberais que promoveram sucessivos cortes de recursos, entre outras políticas voltadas à privatização da saúde pública são os grandes responsáveis por essas perdas. E essa é a denúncia de trabalhadores de Cuiabá organizados na Frente Popular em Defesa dos Serviços Públicos e de Solidariedade ao Enfrentamento da Covid-19 nessa terça-feira, 12/05, Dia Internacional da Enfermagem.

    Em abril, Mato Grosso também registrou a morte de um enfermeiro. Athaíde Celestino da Silva, de 63 anos, faleceu em decorrência da Covid-19 após 37 dias de internação. O 37 também marca os anos de dedicação do servidor à Saúde Pública. Segundo o Conselho Federal de Enfermagem (http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/ ), outros 106 profissionais da Enfermagem estão infectados no estado; no Brasil, já são cerca de 13 mil (acompanhe aqui a atualização do Confen).

    Como não poderia deixar de ser, o ato dessa terça-feira – em defesa da vida, do Sistema Único de Saúde (SUS) e em homenagem aos profissionais da Enfermagem – foi realizado sem aglomeração. Desde as 8h, na Prainha, próximo ao Morro da Luz, região central de Cuiabá, os transeuntes podem ver uma cruz e uma vela para cada um dos profissionais que morreram nessa guerra. Nos arredores também há faixas com reivindicações e sons reproduzidos mecanicamente.

    A ideia é chamar a atenção da população para o número de mortos no Brasil como efeito do descaso dos governantes de todas as esferas – federal, estadual e municipal –, representada pela falta de investimentos e, consequentemente, equipamentos de proteção.

    Por mais que os representantes brasileiros se preocupem em demonstrar esforços para conter a pandemia agora, o mundo percebe a diferença entre os países que investem na saúde pública e os que não investem. Nos extremos, a Alemanha aparece como exemplo pelo baixo número de mortalidade, e seu histórico de investimento na saúde pública; na outra ponta, os Estados Unidos da América (EUA), cujo sistema de saúde é limitado pelos interesses do mercado, é o triste líder do ranking de mortalidade.

    Nessa terça-feira, foi possível acompanhar o ato realizado em Cuiabá por meio de uma live, transmitida pela página oficial da Adufmat-Ssind e SINASEFE no facebook. Alguns poucos organizadores estiveram presentes no ato distribuindo 500 máscaras, o que já está sendo feito pelas entidades que compõem a Frente desde o início de abril.

    Foto: Sandra Duarte, Sinasefe e AAMOBEP

    Em entrevista ao repórter Khayo Riberiro, do HNT/HiperNotícias, a professora aposentada da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso, Rosa Lúcia, apontou que o movimento cobra urgência em ações que assistam aos profissionais expostos ao coronavírus no exercício de suas atividades.

    “Hoje é o Dia Internacional da Enfermagem e essa movimentação que está acontecendo é uma manifestação silenciosa, de luto pelo número de profissionais de saúde e mais especificamente de enfermagem que já tombaram no Brasil por conta da infecção da Covid-19. Até ontem tínhamos o número de 98 profissionais de enfermagem que tinham morrido”, apontou a professora, que faz parte da comissão organizadora do movimento.

    Na reportagem, o jornalista cita ainda uma fala do

    presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Manoel Neri, dizendo que o Brasil enfrenta hoje uma situação grave no que diz respeito à evolução da pandemia entre os profissionais da saúde.

    “A situação no Brasil é crítica. O Observatório da Enfermagem, criado pelo COFEN para monitorar a evolução da pandemia entre profissionais de Enfermagem, já registra mais de 13 mil casos e 100 óbitos associados à Covid-19. A maior parte desses profissionais integrava pelo menos um grupo de risco. É inadmissível que estivessem expostos na linha de frente, contrariando as diretrizes sanitárias indicadas pelo Ministério da Saúde”, apontou Neri.

    Foto: Sandra Duarte, Sinasefe e AAMOBEP