Destemperado, ministro de Bolsonaro ataca a OMS e chanceler da Venezuela defende

Jorge Arreaza defende a OMS e Ernesto Araújo ataca: Brasil soma 17.000 mortos pela Covid-19, enquanto Venezuela conta 10 mortos
Jorge Arreaza defende a OMS e Ernesto Araújo ataca: Brasil soma 17.000 mortos pela Covid-19, enquanto Venezuela conta 10 mortos

 

Por Jorge Arreaza Monserrat, chanceler da República Bolivariana da Venezuela

Este tempo de pandemia nos ensinou que as pessoas e governantes de distintos países são capazes de tudo: do melhor e do pior. Por um lado, não existe dúvida do compromisso e da compreensão da imensa maioria da população mundial que assumiu a preservação da humanidade como principal prioridade, tomando profundas medidas de resguardo e distanciamento social. Por outro, observamos o capricho dogmático e irreflexivo daqueles que somente se preocupam com a “saúde do mercado”, colocando em perigo o bem estar de cada ser humano que habita a Terra.

Temos escutado vozes de cada canto do planeta que indicam algo que sempre foi óbvio: o mercado não tem mecanismos nem argumentos para fazer frente aos problemas que afetam princípios básicos da humanidade, como saúde, alimentação, educação e moradia. No meio desta luta contra o rastro de mortes que deixa a Covid-19, o capitalismo não tem capacidade de resposta para oferecer aos povos segurança e atenção, nem mesmo garantias à vida. Numerosas análises, com argumentos válidos, sinalizam a imperiosa necessidade de repensar o mundo e a vida em sociedade.

O dogmatismo neoliberal, muito longe de deter-se para refletir diante da evidência que surge com as terríveis estatísticas e cada história de vida ao redor desta enfermidade, reage intempestivamente contra as vozes da consciência humana. Com pensamentos anacrônicos e bipolares, buscam reavivar um debate macartista e maniqueísta, deixando de lado a possibilidade racional para buscar soluções.

O pensador esloveno Slavoj Zizek é um intelectual destes tempos, que está muito distante de postulados doutrinários ortodoxos e em sua obra costuma gerar diálogos com a cultura e as dinâmicas políticas de sua própria época. Podemos coincidir ou discordar de suas análises e das críticas que faz a diversos processos anti-capitalistas. No entanto, temos que reconhecer seus aportes ao debate e à reflexão necessária.

Recentemente Zizek publicou um ensaio sobre a situação mundial atual chamado “Pandemia! O Covid-19 sacode o mundo”, em que discorre sobre a dinâmica mundial, o desenvolvimento do vírus, a abordagem tomada pelos diversos estados, as repercussões sobre a sociedade e o próprio indivíduo.

Zizek combina pensamento filosófico clássico e contemporâneo, recorre ao imaginário popular, utiliza fontes informativas e lança mão de metáforas cinematográficas para propor o que finalmente será o mundo posterior ao coronavírus: um mundo muito mais solidário, onde cada estado terá a fortaleza para poder atacar a ameaça de acordo com suas próprias estratégias, mas onde também a solidariedade entre os povos e países se possa converter em um princípio fundamental para atingir a salvação da espécie e do planeta.

 

Panfleto oportunista

Mas chegamos à leitura de Zizek por via indireta. Na realidade chegamos à fonte, depois de toparmos com um panfleto destemperado e oportunista, cheio de lugares comuns, próprio de outro tempo histórico e outras latitudes, cuja autoria assume o ortodoxo chanceler do governo de Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo.

Esse polêmico ministro é um dos grandes defensores da tese de que o mercado deve ser responsável por reduzir o impacto da pandemia em seu país e no mundo. Paradoxalmente, o Brasil se converteu no centro da expansão exponencial da doença em Nossa América. A escrita elementar de Araújo, apesar de suas pretensões acadêmicas, carece de rigor analítico e metodológico. Ele intitulou seu artigo assim: “Chegou o Comunavírus”, em clara referência àquela reminiscência propagandista monroista-macartista dos anos sessenta e setenta, época em que o medo foi instilado, alegando que “o vírus da guerrilha e do comunismo” havia chegado à América Latina.

Ao longo do texto, esse ministro muito pouco respeitado no próprio Itamaraty usa frases descontextualizadas e desvirtua o significado real do ensaio original de Zizek. Araújo faz um esboço maniqueísta e manipulador do sistema fracassado que ele defende, expressando um claro desdém pela humanidade e, o que é mais grave diante de sua investidura, pelo sistema multilateral e pelos mecanismos acordados pelos países do mundo para abordar conjuntamente as ameaças e problemas globais. Vejamos alguns elementos apresentados neste artigo.

O argumento central de Araújo é que, de acordo com Zizek, a globalização é uma estratégia subsequente ao socialismo para tentar impor um sistema totalitário que busca o desaparecimento do estado. Em sua declaração, ele aponta:

“Zizek revela aquilo que os marxistas há trinta anos escondem: o globalismo substitui o socialismo como estágio preparatório ao comunismo. A pandemia do coronavírus representa, para ele, uma imensa oportunidade de construir uma ordem mundial sem nações e sem liberdade.”

Agora, verifica-se que, segundo Araújo, a globalização é uma estratégia comunista, como também o desaparecimento da força do Estado como estrutura fundamental para a organização nacional.

Para esse cavalheiro, a globalização não está regida por um aparato econômico-financeiro que determina o desenvolvimento das dinâmicas internas e externas dos estados nacionais. Segundo Araújo, a globalização e a cartelização das informações que categoriza e acusa, que julgam e difamam governos e povos inteiros, é uma estratégia preparatória para o comunismo. Para este distinto diplomata, a ameaça à liberdade dos estados se baseia em uma ideia globalista comunista.

Mas esse argumento apenas prepara o ataque mais perigoso que sustenta seu “Cavalo de Tróia” da ideologia neoliberal, mesmo que se torne cada vez mais evidente no contexto de um mundo cada vez mais multipolar. Ele tenta construir um senso comum (Gramsci) que aponta para a necessidade de desregular todos os andaimes institucionais, não apenas dentro das nações (princípio neoliberal por excelência), mas também para instituições multilaterais internacionais que permitem a coexistência e a cooperação saudável entre as nações. Por esse motivo, apela ao livro do pensador esloveno para desenvolver sua verdadeira agenda e seu objetivo preciso: o desprestígio da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Justo no momento em que o mundo mais precisa de mecanismos multilaterais que possam coordenar os esforços de todos os atores internacionais, com base no rigor técnico e especializado necessários, o insólito artigo de Araújo ressalta novamente:

“Não escapa a Zizek, naturalmente, o valor que tem a OMS neste momento para a causa da desnacionalização, um dos pressupostos do comunismo. Transferir poderes nacionais à OMS, sob o pretexto (jamais comprovado!) de que um organismo internacional centralizado é mais eficiente para lidar com os problemas do que os países agindo individualmente, é apenas o primeiro passo na construção da solidariedade comunista planetária.”

Leia para acreditar! Na mesma linha, com enorme cinismo, o chanceler aponta suas baterias contra a UNESCO, chamando-a de um grande instrumento para a ideologização de um novo mundo comunista, que apenas habita as mentes perturbadas do autor e de seus correligionários.

Mas ele nunca fala da ação de controle e sujeição sistemática, da ditadura de outras organizações como o Fundo Monetário Internacional, que, por exemplo, negou o apoio solicitado pelo Estado venezuelano para confrontar a COVID-19 por razões exclusivamente ideológicas. Justamente quando Donald Trump suspende as contribuições à OMS – um compromisso inevitável dos Estados membros – e se dedica a atacá-la e desacreditá-la, Araújo alega que a OMS serviria de ponta de lança para o estabelecimento do comunismo planetário.

Em contrapartida, o chanceler irmão da Federação Russa, Sergey Lavrov, alertava há alguns dias sobre a politização indevida em torno da OMS em tempos de pandemia, apontando também que poderia tratar-se de reações defensivas que tiveram origem na negligência de alguns países antes da pandemia:

“Não queremos que essa aspiração de unir forças [contra a pandemia] seja politizada, vejo sinais de tal politização nos ataques à OMS. (…) Esses ataques, na minha opinião, refletem o desejo de justificar certas ações que se mostraram atrasadas, insuficientes demais ”.

Corresponde, portanto, por mero rigor e apego ao conhecimento e à verdade, revisar as reflexões de Zizek para que um organismo como a OMS tenha maior capacidade executiva, em tempos excepcionais como o em que vivemos. Vamos ver o contexto em que o filósofo fala:

“Anos atrás, Fredric Jameson chamou a atenção para o potencial utópico em filmes sobre uma catástrofe cósmica (um asteróide que ameaça a vida na Terra ou um vírus que mata a humanidade). Essa ameaça global levaria à solidariedade global, nossas pequenas diferenças se tornariam insignificantes, todos trabalharíamos juntos para encontrar uma solução, e aqui estamos hoje na vida real. Não se trata de desfrutar sadicamente do sofrimento generalizado, na medida em que ajude nossa causa; pelo contrário, é uma questão de refletir sobre um triste fato de que precisamos de uma catástrofe que nos torne capazes de repensar as características básicas da sociedade em que vivemos. O primeiro modelo incerto dessa coordenação global é a Organização Mundial da Saúde, de quem não recebemos o barulho burocrático usual, mas avisos precisos proclamados sem pânico. Essas organizações deveriam receber mais poder executivo. Bernie Sanders é o centro da zombaria dos céticos por sua defesa da saúde universal nos Estados Unidos – a lição da epidemia de coronavírus não seria a necessidade de começar a criar algum tipo de rede global de saúde? (…) E não se trata apenas de ameaças virais, mas há outras catástrofes surgindo no horizonte ou que já estão acontecendo: secas, ondas de calor, tempestades enormes, etc. Em todos esses casos, a resposta não é de pânico, mas de um trabalho árduo e urgente para estabelecer algum tipo de coordenação global eficiente.”

Vemos que, nas abordagens do autor, não há argumento que mine a soberania dos países. Trata-se de buscar a maior eficácia global em problemas que são obviamente globais. Hoje em dia, ninguém pode se sentir a salvo da pandemia dentro de suas fronteiras se seus vizinhos levam uma nova bomba-relógio viral à sua porta.

Sem ir longe demais, a Venezuela, sob a liderança do presidente Nicolás Maduro, conseguiu ter um controle bem-sucedido da doença. No entanto, não podemos descansar tranquilamente, enquanto em países como Colômbia e Brasil o crescimento de contágios ameaça a saúde de nosso povo. É por isso que o governo bolivariano tentou de todos os modos coordenar políticas e ações conjuntas com seus vizinhos. Esforços que tiveram pouco e relativo sucesso, já que os governos de Jair Bolsonaro e Iván Duque não apenas agiram erraticamente diante do coronavírus, mas também são arrogantes e reticentes ao estabelecer comunicações e estratégias com as autoridades venezuelanas.

Mais uma vez, o motivo, como o do Fundo Monetário, é estritamente político e geopolítico: seu chefe do Norte os repreende se estabelecerem uma boa coordenação com a Venezuela para proteger seus povos.

Há muitos elementos que Araújo retira parcial e convenientemente do extenso texto de Zizek. Entre outras coisas, o pensador esloveno faz uma longa análise de novas formas de trabalho no sistema econômico contemporâneo. Para isso, estabelece um diálogo com algumas propostas do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han.

Na complexidade da proposta de Zizek, as novas categorias e classes de trabalhadores são estabelecidas em um mundo menos simples do que o que existia durante a revolução industrial, que é quando as categorias do marxismo clássico foram produzidas. Mas Araújo apenas pega os conceitos e palavras que o interessam para chegar a uma conclusão simples, mas tendenciosa, no final de seu artigo:

“A pretexto da pandemia, o novo comunismo trata de construir um mundo sem nações, sem liberdade, sem espírito, dirigido por uma agência central de “solidariedade” encarregada de vigiar e punir. Um estado de exceção global permanente, transformando o mundo num grande campo de concentração.”

Em outras palavras, para Araújo, Zizek propõe estabelecer um comunismo fascista que destruirá o estado-nação e transformará o mundo em um enorme campo de concentração no mais puro estilo nazista. Mas vamos à fonte original e contrastemos com a racionalidade. Zizek diz:

“Não é uma visão de um futuro brilhante, mas de um ‘comunismo de desastre’ como um antídoto para o capitalismo de desastre. O Estado não deve apenas assumir um papel muito mais ativo, organizando a produção de itens urgentemente necessários, como máscaras, equipamentos de teste e respiradores, seqüestrando hotéis e outros resorts, garantindo a sobrevivência mínima de todos os recém-desempregados, e assim sucessivamente, fazendo tudo isso abandonando os mecanismos de mercado. (…) E, no extremo oposto da escala, algum tipo de cooperação internacional eficaz terá que ser organizada para produzir e compartilhar recursos. Se os estados simplesmente se isolarem, as guerras começarão. Refiro-me a esse tipo de evento quando falo em “comunismo” e não vejo outra alternativa senão a de uma nova barbárie “.

Está longe dos sinais totalitários que Araújo inventa. Zizek chega a essa conclusão depois de apontar que mesmo dois dos líderes mais recalcitrantes do neoliberalismo mundial, Donald Trump e Boris Johnson, passaram por decisões que partem dos postulados doutrinários do controle de mercado: o Presidente dos Estados Unidos anunciou a possibilidade de intervir e assumir o controle de empresas privadas para garantir o bem nacional; além de considerar a entrega de uma bolsa de mil dólares a cada família em seu país.

Por seu turno, o primeiro-ministro britânico – em 24 de março deste ano – estabeleceu a nacionalização temporária das ferrovias. Assim, o filósofo ressalta que: “Não é uma visão comunista utópica, é um comunismo imposto pelas necessidades da mera sobrevivência”.

O texto de Slavoj Zizek coloca em perspectiva muitos elementos de reflexão indispensáveis na sociedade complexa dessa época, na qual, sem dúvida, muitos desafios são coletivos, globais. Mas também nos aponta para uma possibilidade latente e necessária.

É fundamental que a liderança mundial possa aproveitar esse momento para fortalecer os princípios do multilateralismo, a coordenação em benefício de todos. Essa é a moral que caracteriza o texto do filósofo esloveno. O estado nacional deve ser central no novo esquema que surge após a pandemia, como central também deve ser a cooperação multilateral diante de problemas e desafios comuns.

Nesse sentido, é essencial cessar as perseguições político-ideológicas contra os povos, cessar os bloqueios financeiros e as medidas coercitivas que afetam severamente a capacidade de lidar com mais eficiência com esse vírus mortal ou qualquer outro desafio social. Como Zizek aponta no começo de seu livro: “Estamos todos no mesmo barco”. Não há possibilidade de sobreviver à pandemia se não resgatarmos os princípios fundamentais do ser humano: o reconhecimento do outro e a solidariedade.

Com humildade, mas com consciência e moralidade, sugerimos ao nosso homólogo brasileiro, com pretextos de um intelectual neoliberal, que apoie suas teses com um método confiável e que preferencialmente se baseie em autores que reforcem seu pensamento supremacista. Esses tipos de supostas análises críticas não podem ser validados, com base em declarações falsas, meias verdades, mentiras e leituras parciais ou tendenciosas.

Devido às características de seu artigo e suas conclusões, é muito provável que ele tenha lido (de maneira conveniente ou preguiçosa) alguns dos títulos e subtítulos do texto de Zizek. Vamos ao debate de ideias, sem medo, sem meias tintas, mas com bases confiáveis e rigor profissional. Este é o momento da verdade e das definições.

Atacar a OMS agora é uma aberração total. Pelo contrário, milhões de nós reconhecem o esforço sincero de seus cientistas e trabalhadores. Não exageramos na Venezuela ao somarmo-nos às vozes que propõem nomear a OMS e seu diretor, Dr. Tedros Adhanom, como merecedores do Prêmio Nobel da Paz em 2020. Seria merecido o reconhecimento por sua dedicação e coragem em confiar nas decisões coletivas, troca de experiências, coordenação científica e política em circunstâncias tão complexas. Em síntese, por apostar na verdadeira vacina para todos os males do sistema: a solidariedade.

Voltemos a lembrar o coro desse belo tema de reivindicação e esperança de nosso pai cantor Ali Primera: “Ajudem-na, ajudem-na, que seja humana a humanidade”.

 

(Tradução: Juliana Medeiros)

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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