Jornalistas Livres

Categoria: Habitação

  • José Bonifácio, 380 I O primeiro dia de uma ocupação

    José Bonifácio, 380 I O primeiro dia de uma ocupação

    Por Larissa Gould e Sergio Silva (fotos) para Jornalistas Livres

    O primeiro dia de uma ocupação vista por dentro

    A saída para a ocupação foi tranquila. A equipe de reportagem partiu, por volta das 22h30, acompanhando Roberto, liderança da FLM incumbida de coordenar a ação no prédio da José Bonifácio, 380, na região central de São Paulo.

    Fomos em um grupo de cerca de 30 pessoas, entre moradores, jornalistas e a chamada linha de frente — grupo encarregado de viabilizar a entrada no prédio — seguimos caminhando até a concentração, na José Bonifácio 137. As ações estavam programadas para acontecer ao mesmo tempo, à meia noite.

    No interior da concentração — uma ocupação que resiste há mais de dois anos e que ainda não foi regularizada — homens, mulheres, jovens, idosos e crianças, aguardavam as coordenadas para ocupar o prédio na mesma rua.

    O grupo é divididos entre base, os futuros moradores da nova ocupação, e apoio, moradores de outras ocupações já estabelecidas que ajudam na ação. Rosa, moradora do Hotel Cambridge, faz parte da equipe de apoio. Ela tem 25 anos e sofre de artrite reumática, entrou para o movimento em 2009, na época estava com a saúde muito debilitada e passava por dificuldades financeiras. “Depois que a gente conhece a luta não tem como sair”.

    O alvo daquela noite foi um prédio da década de 70’, propriedade da Moinho Curitibano S/A , composto por 8 pavimentos e subsolo, divididos em 3 lojas e 7 salões. Penhorado pela Companhia Internacional de Seguros em 2008, por R$732.868,90, o edifício estava em estado de abandono. “Nós damos função social aos prédios” declarou Carmem diversas vezes durante a ação.

    A presença de viaturas policiais no caminho atrasou a saída. Após ronda pelo local, cerca de 200 pessoas saíram por volta da meia noite e vinte e se encontraram com outras equipes, que aguardavam nas demais concentrações. Todos caminharam até o alvo. Quatro Policiais Militares se encontravam na esquina da José Bonifácio com a Rua do Ouvidor, na exata localização de um dos dois prédios que seriam ocupados naquela rua, como descobrimos posteriormente.

    Tão logo a multidão passou, os policiais pediram reforços. Rapidamente chegaram três viaturas até o local. Nesse primeiro momento, somente observaram.

    Observaram a equipe de linha de frente, um grupo de homens munidos de ferramentas abrirem o portão trancado.

    Também nós observamos o trabalho daqueles homens. O trabalho e a coragem (ou necessidade, como mais tarde algum deles relataram), observamos quando dois seguranças privados saíram da janela do prédio armados ameaçando atirar em qualquer um que entrasse.

    Eles entraram, e eram muitos. O suficiente para que os seguranças recuassem e saíssem pela porta dos fundos. Nesse momento se deu a primeira comemoração, entre 50 e 100 pessoas entraram, de acordo com o cálculo das lideranças e da equipe de linha de frente. Dois repórteres dos #JornalistasLivres conseguiram entrar. Passava da meia noite e meia.

    Foi nesse momento que os policiais abandonaram seu papel de observador e interviram. Como a força repressora do Estado, interviram como são treinados para reagir a essas ações: jogaram bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral nos ocupantes. Nos homens, mulheres, jovens, idosos e crianças.

    A correria foi geral. D. Sônia, uma senhora de 62 anos, foi atingida por estilhaços de bomba e caiu. Ela estava lá para ajudar o filho que seria um dos moradores do prédio. Outros ocupantes também foram feridos com estilhaços. Muitos, principalmente as crianças, passaram mal após terem inalado o gás.

    Policiais no alto da ladeira, ocupantes no final. Restou aos dois esperarem. “Eles vão querer nos vencer pelo cansaço, mas nós não vamos sair até todos entrarem”, afirmaram Juliana, Denise e Josenira, moradoras da Rio Branco, 53. Já perderam a conta das ocupações que participaram. Vai fazer quatro anos que entraram para o movimento e fazem questão se estar na equipe de apoio.

    Lá dentro, os ocupantes esticavam a bandeira da CMP — Central dos Movimentos Populares, e da FLM, Frente de Luta por Moradia. Concentrados no quarto andar, escutaram do lado de fora o barulho das bombas e sofreram os efeitos do gás lacrimogênio. Muitos passaram mal. Também a eles restou aguardar.

    Há uma da manhã, o Samu chegou para prestar socorro à D. Sonia. “Tá sangrando muito moça? Me acertaram bem do lado do rosto que eu tenho problema da gengiva e ia operar”. Ela foi levada para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

    Jaciel faz parte da linha de frente. Explicou que quando abrem os portões, parte do grupo entra para hastear a bandeira e organizar a ocupação, e outra fica na porta para garantir que o maior número de pessoas possíveis entre. Ele integrou a segunda equipe e não conseguiu entrar. Um grupo de 100 pessoas também não.

    Policiais e ocupantes estavam receosos, repórter do #JornalistasLivres tentou entrevistar os agentes do estado que se recusaram. Mas relatou ouvi-los conversar “Se esse pessoal resolve subir, estamos perdidos”. Também ouviu uma importante informação, as bombas haviam acabado.

    Nessa madrugada, dezenas de alvos foram ocupados. Não sabemos se os reforços não chegaram, ou se sequer foram pedidos. Mas, por volta da 1h30, os policiais foram embora. Nesse momento o grupo que estava de fora entrou. Subiram as escadas correndo e foram ocupando os andares. A legislação defere que, se a reintegração não for feita nas primeiras 48h, somente poderá acontecer por meio de ação judicial.

    Por isso, a regra é clara: quem entrou não saí. Os primeiros dois dias são os mais tensos paras as famílias que ocupam as moradias.

    Elcivaldo Moraes, 44, era empresário bem de vida, após sofrer um golpe, perdeu tudo. Em 2003 passou a morar em albergues e a trabalhar de “chapa”, carregando e descarregando caminhões. Entrou para o movimento há oito meses, foi apresentado à FLM por um amigo morador de uma das ocupações. Desde então, mora de favor na casa dele e frequenta todas as reuniões da equipe de base. Estava na linha de frente na hora que ocuparam o prédio. Sentiu medo? “Não senti, a necessidade e principalmente a vontade superam o medo”. Para ele, é muito importante respeitar os policiais: “são trabalhadores como nós e temos que traze-los para o nosso lado. Se conseguirmos uma boa ação, sem enfrentamento, quem sabe eles não criam um sentimento por nós?”.

    E qual a importância dessa moradia para você? “Nesse momento é tudo. Se fosse diferente, se fossa descartável, para que correr esse risco? Para que todo esse perigo?”

    Lindomar Geremias, 33, mora há 5 anos em albergues e casas de acolhimento. Foi trazido ao movimento por Moraes, quem conheceu nas escadarias da Sé. “Uma história engraçada” lembra Moraes, “estava esperando um amigo, quando ele sentou do meu lado e começou a dividir o salgadinho que ele comia comigo”.

    Nasceu em Carapicuíba, após participar de um roubo, foi para a Febem. Quando saiu, morou em Campinas, na casa da irmã, voltou para Carapicuíba na casa do pai, mas a difícil relação com a família o levou à primeira casa de acolhimento, nas proximidades da Av. Cruzeiro do Sul, Zona Norte de São Paulo. Passou por 5 no total, umas melhores e outras piores. Lindomar trabalha como pedreiro e ficou muito feliz com o movimento por “ter me deixado fazer parte e ter me deixado participar da ocupação”. Não teve medo, a felicidade e a perspectiva de melhora eram maiores. Agora quer constituir família: “já está na hora, não dá mais para ficar solteiro”, brinca.

    Os andares já estavam quase todos ocupados. O casal Marcia, 37, e Antônio Pedro, 32, estavam sentados no saguão de entrada. Já haviam se instalado e observavam o movimento. Os dois estão juntos há um ano. Eles estavam em situação de rua e trabalham entregando panfletos. Se conheceram nas ruas do centro, costumavam dormir na região da Sé. Ela potiguar, ele maranhense. Ela há dois anos na rua, ele há quatro. Em comum: o sonho de melhores condições de vida e trabalho na capital paulista.

    Conheceram o movimento por meio de uma amiga de Marcia, participaram de uma reunião logo antes da ação e passaram a integrar o movimento. Sentiram medo no momento da ocupação, mas se quer pensaram e hesitar. “Estamos muito felizes, é uma nova oportunidade. Já sofremos muito nas ruas, é muito frio lá”.

    Por volta das duas e meia começaram a lacrar o prédio. A situação era calma. Na rua, uma equipe de retaguarda ficou para garantir alimentos e água durante as 48h de resistência.

    Os policiais voltaram, mas somente observavam. Era o momento dos repórteres da grande mídia interviram: Globo, Record e SBT passaram pelo local.

    Portas lacradas, ação terminada. Prédios ocupados. Ou não.

    Na manhã dessa segunda-feira (13), de acordo com relatos do morador Diego, um motorista chamado Galego, um homem de terno, um mecânico e mais 11 motoristas sem nenhuma identificação, se apresentaram como funcionários do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TER). O grupo alegou que o prédio está alugado pelo TRE, e que já estava sendo usado para estacionamento de 11 veículos. De acordo com relato, entraram na ocupação um motorista e o mecânico, avaliaram os motores e saíram sem dizer para onde levariam. Dos 11 veículos, três carros estavam em condições normais de uso, porém, o restante estava completamente coberto de pó, aparentemente abandonados, como o restante do prédio.

    ———————-

    Veja: 

    José Bonifácio 380: 74 dias de resistência

     

  • Brás, José Bonifácio e rua do Ouvidor. #AbrilVermelho começa vitorioso

    Brás, José Bonifácio e rua do Ouvidor. #AbrilVermelho começa vitorioso

     

    É 12 de abril de 2015, 18h45

    Enquanto boa parte da cidade de São Paulo se ocupava com o final das manifestações conservadoras, os #JornalistasLivres se preparavam para acompanhar as ações do #AbrilVermelho, da Frente de Luta por Moradia (FLM).

    Jomarina Abreu, 58 anos (15 de FLM) organizava quem iria para cada “alvo”. Ela tem 3 filhos, muitas ocupações, pelo menos quatro consolidadas.

    Nossa equipe se dirigiu a uma ocupação no centro, onde parte das famílias que participavam do #AbrilVermelho se encontravam.

    Entre eles, Fulano (que preferiu não se identificar), 32 anos, 2 filhos que vivem com a mãe, em São Luís do Maranhão: “Vejo eles sempre que possível”. Sua atual mulher estava ali, aguardando a ação.

    Fulano não era da FLM, esta foi sua primeira ocupação.

    Jomarina, tia Jô, como é conhecida, é quem organizou a reunião de acao. As famílias saíram da ocupação em grupos de 5, no máximo, para não chamar a atenção da PM e Guarda-Civil, que fazem ronda na região.

    R.U.A Foto Coletivo

    O primeiro alvo foi no Brás. Quem nos levou foi Júnior, de 26 anos (4 de FLM). Pai de 2 filhos, trabalha como vendedor. “Vim de Natal com 10 anos. Minha mãe mandou chamar e eu vim.” Ele sente saudades da tranquilidade da terra natal, mas faz a ressalva “falo do ritmo de vida. Gosto de trabalhar, não sou vagabundo”.

    A respeito dos prédios que seriam ocupados logo mais, Júnior esclareceu: “Na verdade são prédios que praticamente são do Estado já. Estão devendo milhões em IPTU. E tem juiz que mesmo assim dá liminar… Mas graças a Deus a Tia Jô consegue quebrar quase todas”.

    A ação ocorre em menos de 5 minutos. As famílias chegaram, entraram e fecharam o local. O repórter dos #JornalistasLivres entrou junto, atento à presença de seguranças, se estavam armados, enfim, se o local estava tranquilo para a estadia das famílias.

    Ao sair, a rua estava vazia. Em menos de 5 minutos a ação encontrava-se consolidada.

    O próximo alvo ficava na rua José Bonifácio.

    Foto: Paulo Ermantino

    Um grupo grande de famílias se preparava para entrar no prédio, que fica ao lado da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

    Foto: Jardiel Carvalho / R.U.A Foto Coletivo

    A PM que ali estava resolve que a melhor forma de tratar a situação é com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Uma delas atingiu Sônia, uma senhora de 62 anos (5 de FLM) que estava ali “porque meu filho precisa”.

    A PM, descobriríamos logo, não seria o maior empecilho. Dois seguranças armados aguardavam a entrada das famílias. A especulação imobiliária não brinca em serviço.

    Os seguranças saíram pelos fundos, após negociação com as lideranças. Cada ação conta com coordenador(es) para estas situações.

    Foto: Sérgio Silva

    Do lado de fora boa parte das famílias que foram para o local aguardavam o desenrolar das negociações entre o advogado da FLM e a Polícia Militar. O repórter e fotógrafos foram rapidamente parados “para averiguação”. Mas o sistema da PM está fora do ar.

    Denise, 28 anos (4 de FLM), comentou: “Falei para você que não era sempre como lá no Brás?!”. De fato, ela falou. Denise nunca tinha vivido uma situação com bombas.

    Foto: Paulo Ermantino

    Passava da 1h quando a PM finalmente desistiu e foi embora. Foi também o momento em que os moradores aproveitaram para ocupar um segundo prédio, na Rua José Bonifácio com a rua do Ouvidor, menos de 5 metros da SSP.

    Foto: Paulo Ermantino

    A entrada ali foi mais tranquila. Como no Brás, em 5 minutos o prédio estava ocupado, a ação consolidada. As famílias comemoravam com o grito de guerra: “Quem não luta… TÁ MORTO!”.


    Saiba mais sobre os Jornalistas Livres

    #JornalistasLivres em defesa da democracia: cobertura colaborativa; textos e fotos podem ser reproduzidos, desde de que citada a fonte e a autoria. mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres.

     

  • Linha de frente

    Linha de frente

    Saímos da ocupação em que estávamos para ir até o alvo. Primeiro os homens, depois as mulheres. Chegamos diante do edifício e a “linha de frente” grudou no portão e começou a chacoalhar a grade que impedia o acesso. No momento em que a trava foi arrebentada, apareceram dois seguranças na janela do terceiro andar apontando as armas para a entrada. Gelamos.

     

    – “Tem criança aqui, atira não!” — um passo pra frente;

    – “Tem mulher e senhoras aqui, porra” — mais um passo pra frente;

    – “Não vai querer ter essa na sua ficha né?” — último passo e já grudaram no portão novamente, até que finalmente foi liberada a entrada.

    Entramos todos ao mesmo tempo, seguidos por bombas de gás lacrimogênio lançadas pela Polícia Militar. Começamos a subir as escadas em meio à fumaça sufocante, agarrando-nos uns aos outros, entre mulheres, senhoras, homens e crianças. Tenso.

    Os seguranças armados ainda estavam no edifício.

    Enquanto os homens organizavam a barreira para conter a entrada dos policiais, subimos até o andar que concentrava as mulheres e crianças — a pressão do risco e a dúvida da intervenção militar deixava o ambiente cada vez mais pesado.

    Descemos até o térreo. O ambiente contrastava com a tensão dos homens na proteção das entradas. Era iluminado. A sensação era de segurança e estbilidade. Na cozinha foi possível até tomar um cafezinho.

    De repente, o aviso: “Cadê a imprensa? Vamos para outra ocupação que conseguimos entrar!”

    Corremos rua acima e entramos, ali, na segunda ocupação que acompanhamos. Existia um espírito de “já ganhamos!”.

  • Ocupação José Bonifácio e Rua do Ouvidor

    Ocupação José Bonifácio e Rua do Ouvidor

     

    O olhar das mulheres que participaram das ações de ocupação de imóveis abandonados

    “Antes ou pagava o aluguel, ou comia.”

    Joélia, casada, 4 filhos — Nascida no Ceará, reside em São Paulo há 12 anos, na Ocupação São Francisco.

    Foto: Sato do Brasil

    “Depois que vim morar numa ocupação, diminuiu o custo do aluguel, que antes pagava muito caro. Agora, com a taxa colaborativa, consigo comprar comida e vestir meus filhos. Antes ou pagava o aluguel, ou comia. Sou trabalhadora assalariada e com o pouco que ganho não dava pra sustentar a família. Se estou na luta hoje é pelo futuro dos meus filhos.”


    “Graças ao movimento, hoje, voltei a ter esperança”

     

    Nilda de Souza — 66 anos, enfermeira, mora em São Paulo há 16 anos, atualmente sem residência — 1ª Ocupação J. Bonifácio.

    Foto: Sato do Brasil

    “A situação que me encontro é degradante. Graças ao movimento, hoje, voltei a ter esperança. Depois de trabalhar como enfermeira durante toda a vida, não consegui me aposentar por problemas de saúde. Sem nenhum tipo de renda fixa, não tenho como pagar aluguel, comer, ter os mínimos direitos à saúde e a moradia, fui resgatada das ruas pelo movimento Frente de Luta por Moradia (FLM).”


    “A maioria trabalha e ninguém tem condições de pagar um aluguel e ao mesmo tempo sobreviver”

    Glaucia — 34 anos — no movimento há vários anos — Ocupação Cambridge.
    Trabalhadora e ex-sindicalista dos Operadores de Telemarketing.

    Foto: Sato do Brasil

    “Entre nós, a grande maioria trabalha e ninguém tem condições de pagar um aluguel e ao mesmo tempo sobreviver. Resido no Cambridge há dois anos e depois disso muita coisa mudou na minha vida. E hoje estamos aqui lutando pelas pessoas que ainda não tem moradia. Aqui é uma união, um ajuda o outro, a gente conquista o espaço para outros morarem.”


    “Hoje eu estou aqui lutando para conseguir uma moradia pro meu filho e pro meu neto, que moram na favela”

    Ruana — 67 anos — No movimento há 3 anos — Ocupação Antigo INSS.

    Foto: Sato do Brasil

    “Aluguel é muito caro e eu ganho salário mínimo. Não dá pra viver uma vida estabilizada. Hoje eu estou aqui lutando para conseguir uma moradia pro meu filho e pro meu neto que moram na favela. Meu sonho é conseguir minha moradia própria, com dignidade, e sei que com o movimento isso será possível. Me sinto mal de ver os manifestantes indo pra Paulista em ato contra a Dilma, sendo que ela é a única que ainda olha por nós.”


    “Minha vida mudou muito após a ocupação, principalmente por poder ter moradia com um custo acessível, dignidade, o que reflete em estrutura familiar.”

    Miriam — 32 anos — Uma filha — No movimento há dois anos e seis meses — Ocupação Ipiranga/São João.

    Foto: Sato do Brasil

    “Minha vida mudou muito após a ocupação, principalmente por poder ter moradia com um custo acessível, dignidade, o que reflete em estrutura familiar. Hoje consigo fazer uma faculdade e dar um estudo melhor pra minha filha. Espero que gente vença mais uma luta e que façamos valer nossos direitos, a cada dia, construindo um futuro melhor para nossos filhos.”


    Saiba mais sobre os Jornalistas Livres

    #JornalistasLivres em defesa da democracia: cobertura colaborativa; textos e fotos podem ser reproduzidos, desde de que citada a fonte e a autoria. mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres.

  • Edifício família

    Edifício família

     

    Uma grande família vive unida na aprazível residência da avenida 9 de Julho, 210, no centro de São Paulo. A matriarca, a gerente comercial Carmen, orienta a filharada com prazer, rigidez e determinação. É heterogênea essa grande família. A filha Janice, a Preta, é publicitária formada. Alexandre, corretor de seguros, já foi vendedor, bombeiro civil, garçom, barman, dono de empresa de telemarketing. Simone se formou na faculdade de enfermagem, trabalhou como doméstica em casas de outras famílias paulistanas e atualmente ama ser manicure. Marineide se alterna com o marido, dia e noite, no ofício de taxista no ponto de táxi da vizinha rua Formosa. Jaci é pedreiro e trabalha na construção de um edifício de luxo de 28 andares na Barra Funda. Nesse domingo de Páscoa, Lindamara, mais conhecida como a Loira do Segundo, trabalha em dupla com o pedreiro na tarefa de depenar, limpar e assar os frangos que serão servidos em almoço às crianças e aos adultos dos 170 núcleos que compõem uma família realmente grande, de mais de 500 membros, sem contar os convidad@s de famílias amigas da vizinhança.

    Foto: Sérgio Silva

    Independentemente dos laços sanguíneos que as novelas da Rede Globo tanto apreciam, o sobrenome em comum de Carmen, Preta, Alexandre, Simone, Marineide, Jaci, Loira e dezenas de outros parentes é Movimento Sem Teto do Centro, MSTC. O endereço da avenida 9 de Julho é o antigo e antigamente badalado Hotel Cambridge, que decaiu com o passar dos anos, deixou de pagar impostos, foi desapropriado pelo poder público e passou uma década vazio, entregue ao abandono e à deterioração. Há quase três anos, os 15 andares de ex-quartos de hotel foram ocupados pel@s MSTC, um ramo da família nacional de sobrenome Frente LIVRE por Moradia, FLM. A grande família trouxe de volta à vida não só o ex-hotel abandonado, mas também a vizinhança que se esparrama entre o vale do Anhangabaú, a praça das Bandeiras, o histórico e trágico Edifício Joelma, o Bar Bin Laden, as baladas noturnas modernas, a feira livre que foi expulsa da praça Roosevelt, os mercados, a padaria 24 horas, os restaurantes e comércios do centro antigo, o ponto de táxi da rua Formosa, a Prefeitura Municipal.

    Uma dor comum a todos os membros da grande família é ter de enfrentar cotidianamente os preconceitos de gente como nós, que moramos do lado de fora e reproduzimos voluntária ou involuntariamente os sensos comuns criminalizadores dos movimentos por moradia, metralhados ininterrupta e impiedosamente pela blitz repressora do poder midiático. Movid@ por esses sensos comuns, você faz suas compras na loja favorita e depois ofende a vendedora classificando-a como “vândala”. Você mora em seu edifício de alto padrão e depois rotula o pedreiro que o construiu de “invasor”. Você vai ao salão de cabeleireiros e depois xinga a manicure de “vagabunda”. Você faz seguro de vida e depois tacha de “criminoso” o homem que segurou sua vida. Você e eu fingimos que a Ocupação Cambridge não existe, que os sem-teto são invisíveis e que não estamos enxergando um palmo adiante dos nossos narizes.

    A grande família é emotiva, chorona. #JornalistasLIVRES, eu e o fotógrafo e cinegrafista Sérgio Silva passamos o domingo de Páscoa com nossas irmãs e irmãos do MSTC. Entrevistamos essa gente quente que nos acolhe com amor num dia de festa em que não estamos com nossas famílias de sangue. Vári@s de noss@s entrevistad@s choram diante de nós, quase sempre no momento em que se referem a esta comunidade como uma família, uma verdadeira e grande família.

    Foto: Sérgio Silva

    “Eu sofri muito. O que eu faço hoje é o que alguém fez por mim”, diz, sem conseguir conter a vontade de chorar, Carmen da Silva Ferreira, 54 anos, baiana de Salvador, mãe de oito filhos sanguíneos, líder comunitária da Cambridge e de mais cinco ocupações do MSTC no centro velho e maltratado de São Paulo.

    O emotivo Alexandre de Sant’Anna Loyola, 43 anos, é paulistano, morador desde sempre do centro de SP, e chegou à Ocupação Cambridge à beira de ter de ir viver nas ruas. Aos prantos, ele define a grande família e a mãe Carmen: “Parente é uma coisa, família é muito mais forte. Eu tenho uma família. Está aqui, tenho centenas de irmãos. Eu ganhei uma mãe. A minha está viva, não mora muito longe daqui, mas ganhei uma mãe que é mãe de todos, que cuida de todos aqui como filhos, não se permite perder nenhum. Participar disso é impagável”.

    A ocupação é uma usina inversora de sensos comuns. Como aponta Carmen, “a ordem deles é a nossa desordem, e a nossa desordem é a ordem deles”. Eles, talvez, sejamos nós, todos nós que não olhamos com afeto, cuidado ou atenção para a grande família. Os exemplos da espetacular inversão são inúmeros. Experimente comparar, por exemplo, Hotel Cambridge e Ocupação Cambridge. Na versão hotel, pessoas que se desconheciam ocupavam por poucos dias ou horas unidades autônomas, isoladas umas das outras; tal qual nos edifícios comuns de 2015, pagavam pelo conforto de não ser incomodados por nenhum vizinho. Na versão ocupação, eventos festivos e áreas comuns estritamente bonitas e bem cuidadas estimulam a convivência entre moradores e moradoras também autônomo@s, mas interconectados numa atitude que Carmen tem como pilar tanto da ressocialização de gente que chega ali “totalmente arrebentada, mas arrebentada mesmo” como de um processo coletivo de aquisição de informação, cidadania, espírito político e solidariedade.

    “Nós não queremos pessoas presas dentro de ocupação”, afirma Carmen, que era administradora bem remunerada em Salvador, sofria violência doméstica por parte do ex-marido, separou-se dele à revelia, saiu da terra natal a princípio sem trazer os filhos, morou na rua e em albergue na agressiva cidade de São Paulo. “Em todas discussões políticas da cidade o nosso povo vai. Sabem o que é um conselho participativo, um conselho gestor, de habitação, de política urbana, do idoso. Sabem o que é o plano diretor, o IPTU progressivo.” Quant@s de nós podemos dizer o mesmo que Carmen diz de suas filhas e filhos?

    Foto: Sérgio Silva

    A “mãe de todos” é durona. Nas áreas de vivência não se bebe, não se fuma, não se consomem drogas. Higiene é cláusula pétrea: poucos minutos após terminado o almoço de Páscoa em que as crianças se esbaldam de brincar e os adultos de comer, um forte aroma de limpeza invade o salão e as áreas vizinhas. “Água e limpeza, corredores sempre brancos, muita água e muita comida pro povo”, resume Carmen, sabedora de que a escassez de teto é filha da especulação imobiliária como a escassez de água é fruto da especulação privatista do governo estadual e a escassez de notícias positivas sobres trabalhadoras e trabalhadores é herdeira direta da especulação midiática. Sobre cada uma dessas modalidades de escravização humana, Carmen sabe discorrer com brilho, fluidez e sabedoria. Quant@s de nós?

    A ideia de especulação midiática, lançada pela líder, explica por que o MSTC deposita n@s #JornalistasLivres uma confiança que os meios tradicionais de comunicação não lhe inspiram: “Somos abertos a qualquer mídia, mas a gente tem uma mágoa. A mídia tá pra vender: vender imagem, vender jornal. O que dá dinheiro e ibope eles publicam. A verdade, não. Essa é a nossa grande mágoa: eles não falam a verdade. É uma mídia especuladora também, que não vive a serviço da informação”.

    Alexandre, que é um dos coordenadores de um edifício que não tem síndicos nem zeladores (porque to@s o são), ilustra a mágoa com a mídia que tacha os movimentos de moradia de invasores enquanto estampa anúncios de edifícios de luxo nas páginas vizinhas: “Eu nem cogitava a situação de entrar dentro da ocupação, porque a minha visão era completamente deturpada, formada pela mídia e pela sociedade. Achava que não eram ocupações, eram invasões. Que não era uma situação de direito, era uma situação de contravenção, ou até de crime. Hoje faço parte da luta de trazer a sociedade pra dentro da ocupação, para que enxerguem a maravilha que é isto aqui, o projeto de recuperação de pessoas que é desenvolvido aqui”.

    Foto: Sérgio Silva

    Outra das coordenadoras, a mineira Simone Aparecida Lourenço, 42 anos, revolve e decanta a mágoa: “O povo fala invasão, invasão. Não é invasão. A gente ocupa, dá função social ao prédio, faz o que governadores, presidente, prefeitos têm que fazer. A gente tira o lixo e limpa com nossas próprias mãos. A gente está lutando por um ideal. Se o prédio está ali, porque o governador e o prefeito não fazem uma parceria, baratinho pro povo? Não fazem porque não querem. Eles não estão nem aí pra gente. Deitam nos seus travesseiros de pena de ganso, tomam banho com seus melhores sais. Não sei como conseguem dormir”.

    Na missão de tentar transmitir uma interpretação mais realista (e menos deturpada pela especulação midiática) do que é uma ocupação, Sérgio e eu fazemos um trajeto que Carmen, Alexandre e tantos outros já fizeram. Entramos com o mesmo coração aberto com que a líder e sua filha Preta nos acolheram na Páscoa da ocupação. No caminho, conhecemos Marineide, Loira, Jaci, Simone e um sem-fim de grandes brasileir@s.


    Marineide

    Marineide Jesus da Silva, 35 anos, vive num apartamento do terceiro andar com o marido e cinco filhos. A casa é pequena, mas organizada e aparelhada. A baiana de Jacobina nos recebe com mesa farta no domingo de Páscoa: peixe, lasanha, maionese com coentro, refrigerantes, vários doces de sobremesa. Eu e Sérgio almoçamos com prazer, mas moderadamente, pois sabemos que um almoço coletivo nos aguarda. De #JornalistasLivres, passamos a #JornalistasBocaLivre, gracejamos, contentes com a recepção amorosa.

    Marineide e o marido são taxistas, ela no período matutino, ele no noturno. O ponto de táxi do casal fica na rua Formosa, a 200 metros do Cambridge. “A gente morava em Santo Amaro, eu saía de casa às 5h30 e chegava às 19h30. Agora tenho mais tempo pra ficar com as crianças”, ela comemora. No labirinto da cidade desorganizada, todos colaboram para o trânsito caótico, jogando trabalhadores para morarem muito longe de seus locais de trabalho, inibindo transportes coletivo, tentando fechar ciclovias, tornando a cidade hostil para os pedestres. Da desordem, o MSTC produz sua própria ordem, que ajuda a ordenar o caos geral.

    Marineide se considera uma militante, mas confessa que receio medo de entrar nele. Inicialmente, vinha somente aos fins de semana, como num teste, temerosa de expor os filhos pequenos a situações policiais e riscos que tais. Hoje, diz que a grande organização é o que a agrada na Cambridge. Mais tarde, a reencontraremos ajudando no almoço coletivo, enquanto os filhos se divertem com a criançada.


    Loira

     

    Gaúcha de Soledade, Lindamara Frandoloso da Silva, 42 anos, aceita com resignação o apelido de Loira do Segundo, ou mais simplesmente Loira. Na padaria coletiva que o movimento construiu num dos andares baixos do edifício, ela participa do processo de feitura do almoço de Páscoa. A encontramos sentada em frente da “televisão de cachorro” onde são assados os frangos, zelando pela refeição do dia, que ela própria ajudou a depenar e limpar. Mais tarde, Loira servirá nossos pratos no almoço coletivo, com frango assado, macarrão parafuso, farofa, maionese, refrigerantes — e, de sobremesa, colomba pascal trazida por Carolina Trevisan,d@s#JornalistasLivres.

    Há 28 anos em São Paulo, Loira vem às lágrimas ao lembrar sua chegada à ocupação, dois anos atrás. Foi difícil, e, sim, ela se considera uma militante também. “A luta ensina, te dá coragem, te levanta”, afirma. “Como você não vai no ato? Tem gente que acha que a gente vai pra rua pra gritar. Não, a gente vai lutar.”


    Jaci

     

    Jaci Ferreira Lacerda, de 48 anos, cuida dos frangos enquanto Loira conversa conosco. Depois, ele vem conversar também. Baiano de Vitória da Conquista, pai de três filhos, Jaci morava na região de Perus antes de vir para a Cambridge. Já foi cozinheiro de restaurante e lanchonete, hoje é carpinteiro na laje de uma grande obra residencial na Barra Funda, em frente ao elegante Shopping Bourbon. Na época de Perus, acordava às 4h da manhã para chegar às 5h30 na obra.

    Hoje, morando ao lado do metrô Anhangabaú, chega à Barra Funda em 10 minutos. Pergunto se Jaci conhece o samba “Pedreiro Waldemar”, de Wilson Baptista e Roberto Martins, gravado por Blecaute no longínquo 1948. Ele diz que já ouviu falar, mas nunca escutou. Espero que Jaci passe por aqui e escute o samba agridoce de quase sete décadas atrás: “Você conhece o pedreiro Waldemar? Não conhece, mas eu vou lhe apresentar/ de madrugada toma o trem da circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar/ (…) o Waldemar, que é mestre no ofício,/ constrói um edifício e depois não pode entrar”.

    Da dissolução da antiga ordem se faz a ordem nova: graças à vida cooperativa com o MSTC, o pedreiro Jaci tem casa, tem edifício e não precisa acordar de madrugada para tomar o trem da circular.


    Preta

    Trazida por Carmen de Salvador aos 12 anos, Janice Ferreira Silva, a Preta, 30 anos, chegou a São Paulo já morando em ocupação, na mesma avenida 9 de Julho, número 584. O primeiro endereço fixo da mãe no Sudeste era um prédio federal do INSS, que o movimento ocupou de 1997 a 2003. “Lá a gente aproveitou muita oportunidade de estudo, escola, trabalho. E o que aconteceu? A gente foi crescendo. Aí, não acho justo e correto eu ter condições de morar em outro lugar e tirar o espaço de quem não tem condições”, explica. Alguns irmãos moram na Cambridge, outros em outros endereços, Preta e Carmen alugam um apartamento na rua Santo Amaro, também na região central.

    Formada publicitária, Preta é militante por moradia desde os 12 e gosta de lidar preferencialmente com jovens. “Nosso desejo sempre foi mostrar para a sociedade que no movimento não tem maloqueiro, quebrar essa barreira entre sociedade e movimento sem teto”, explica. “Mas a gente praticamente mora aqui, vive aqui a maior parte do tempo”, observa, abrindo um grande sorriso.

    Preta explica alguns dos ensinamentos que a mãe transmite a@s filh@s, sejam de DNA ou não: “Ela não quer ninguém parado sem ler um livro, sem saber se expressar. Gosta que você tenha argumentos pra não deixar ninguém te humilhar. Por exemplo, não pode não saber explicar o que é o movimento sem teto. A participação ativa de todo mundo é fundamental”.

    O estudo e o conhecimento trazem nova consciência, a ordem naquilo que outros consideram desordem: “Nós não estamos fora da lei. Temos um acordo com a prefeitura, estamos aqui com a concepção deles. Nós não desafiamos a lei, a lei desafia a gente. A lei desafia a gente quando eu pago meu imposto e o rico não paga o dele. Por que o rico é melhor que eu? Quem desafiou a gente foi a lei. É mais importante um prédio vazio, com ratos morando, e pessoas na rua? Não, foi a lei que invadiu meu direito”. Como explicará Carmen mais tarde, “a gente entra ilegal, mas a cada dia a gente vai se tornando legal, procurando os meios jurídicos, combatendo a lei com a lei”.

    Pergunto se Preta sente que os panelaços e xingaços em voga entre as classes média e alta contrariadas são dirigidos a ela própria. Responde que sim, muito. “Eles estão pedindo a volta dos militares. Se os militares voltassem você acha que os moradores estariam aqui nesse prédio? Lógico que não. As pessoas pedem a volta dos militares porque não foram elas que foram torturadas, não foi nenhuma dessas mulheres que usam bolsas caras que foram violentadas. Essas manifestações são contra mim, contra meus princípios, contra tudo o que vivo aqui.”

    Os meios de comunicação tradicionais são parte ativa dos movimentos que buscam cassar direitos da grande família de Preta. “A mídia não vem no prédio, como vocês estão fazendo, para mostrar como funciona realmente. A mídia só diz que aqui é tudo vagabundo, que ninguém faz nada, que ninguém trabalha.”

    Mesmo diante dos obstáculos, Preta vê a situação atual de forma positiva, a começar pela quebra da invisibilidade que deixa nervosa muita gente das classes superiores. “A luta maior já aconteceu, que foi fazer com que a sociedade enxergasse a gente. Algumas pessoas entendem, outras não, mas aí cabe a mim explicar, porque eu tenho o conhecimento, elas não têm”. Como ensinou Carmen, não saber explicar o que é o movimento sem teto não pode. Quant@s de nós conseguimos explicar os movimentos em que estamos mergulhad@s?


    Alexandre

    Ex-desconfiado com os movimentos por moradia, o paulistano Alexandre de Sant’Anna Loyola, 43 anos, é hoje um dos coordenadores da Ocupação Cambridge, além de um defensor fervoroso do modelo a que aderiu após se ver na iminência de ir viver na rua.

    “Alcei voo muito alto empresarialmente. Tive uma corretora de seguros, uma empresa de telemarketing, uma de agenciamento de serviços e produtos. Expandi demais, não tinha como dar suporte financeiro a tudo isso”, descreve. “Não bebo e não uso drogas. Não podem falar que eu era um bêbado, não foi por alcoolismo, não foi por ser toxicômano. Foi simplesmente por não conseguir dar andamento empresarial no que montei. Iguais a mim existem muitas pessoas. Fui decaindo, decaindo, decaindo, até o ponto que resolvi aceitar um convite que há muito era feito. Carmen me convidada a ocupar e fazer a luta há já pelo menos 16 anos, e eu vinha resistindo, por soberba.”

    O clique para a mudança de compreensão foi o momento mais radical, aquele que, mesmo deixado no passado, enche seus olhos de água. “Para não me corromper eu ia realmente morar na rua. Eu estava a dois dias de morar na rua, e me foi dada a chance aqui. Agarrei com unhas e dentes. Eu tinha consciência de que, uma vez em situação de rua, dificilmente eu voltaria. A sociedade não dá oportunidade. O poder público não faz questão de ressocializar pessoas. O interesse maior é sempre a exploração, a exploração e a exploração. Quanto mais escravizado e explorado o cidadão, mais aquela fatia de 1% da sociedade goza.”

    Alexandre não abandonou a profissão que exercia, mas demonstra que ela não é mais sua razão principal de viver. “Consegui manter minha corretora de seguros, minha carteira de clientes, os tenho até agora. Hoje eles me dão subsídio para eu conseguir empenhar o máximo de tempo aqui para o movimento. Hoje, meu segundo plano é a minha empresa. Meu primeiro plano é o movimento. Da hora que acordo até a hora que durmo, eu penso em melhorar isto aqui”. Quant@s de nós colocamos nossa vida à frente de nosso trabalho assalariado e/ou da obrigação de “fazer dinheiro”?


    Simone

    Mineira de Ipatinga, Simone Aparecida Lourenço, 42 anos, é outra das coordenadoras da Ocupação Cambridge. Tatuada e de cabelos tingidos de vermelho, define-se como “doida”, mas mesmo no domingo feriado trabalha séria e compenetrada no escritório da ocupação, tratando da coordenação da limpeza e em quantas outras atividades apareçam. “Meu serviço aqui é ajudar para ser ajudada”, diz. “Antes de ser coordenadora, eu sou moradora, Preciso como todos aqui precisam.”

    Com discrição e expressão grave, conta que passou por um processo de recuperação de uso de drogas, depois passou a cuidar de uma casa de recuperação. Chegou à ocupação trazida por um pastor evangélico, depois de “dar muita cabeçada”. De enfermeira formada em Minas a empregada doméstica em São Paulo e ao sonho de abrir um salão de cabeleireiros dentro da Cambridge, Simone recebeu ajuda e hoje vive de ajudar. A rede é de solidariedade. “Eu achei a família MSTC-FLM pra me abraçar.”

    Também pergunto a Simone sobre panelaços e xingaços. O olhar dela é crítico: “A sociedade burguesa não vê nós com bons olhos. Eu, uma simples sem teto, como se diz, morar em plena 9 de Julho, pagando um valor xis, de frente pra um edifício bem famoso, com um monte de burgueses? Eles ficam pê da vida, né?’. Conta de uma rara cliente que lhe deu razão em sua luta. “Ela disse que eu estou certa e ela, errada. Que se fosse lá fora eu seria chique, seria chamada de homeless. Lá o governo paga, dá trailer para o cidadão morar em estacionamento se ele não tiver condição”, diz a manicure e coordenadora, descrevendo aquele país ultra-socialista-comunista chamado Estados Unidos da América.

    Hora de almoçar, Simone deixa o escritório, desaparece por alguns minutos e volta para a festa, toda bonita, maquiada e bem-vestida. Ajudar a distribuir para as crianças os docinhos cuidadosamente embalados como presentes de Páscoa é mais um prazer para quem está acostumada a ajuda para ser ajudada para ajudar para ser ajudada para ajudar… “Doida” ou não, Simone é a filha que toda grande família sonha ter.