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  • A Lava Jato está morta – Suicídio ou Delcídio?

    A Lava Jato está morta – Suicídio ou Delcídio?

    A delação premiada do imaculado Delcídio do Amaral foi vazada na quinta-feira (03 de março) para excitar os ânimos e preparar a violência contra o ex-presidente Lula no dia seguinte, sexta-feira, 04 de março. Foi o que, com todas as letras e mais algumas, disse Jânio de Freitas em sua coluna. Pode-se fazer um pacto com Mefistófeles e sair dele ileso? A enxurrada de críticas recebidas pelas Lava Jato, a maioria esmagadora vindas de juristas respeitáveis, membros do STF, ex-ministros de FHC e setores da comunidade acadêmica, que vamos detalhar a seguir, parecem indicar um fim inglório. Quase tão inglório quanto o foi reduzir os 283 anos de prisão, a que foram condenados os peixes mais graúdos dos negócios alcançados pela Operação Lava Jato, a apenas 7 anos, pela distribuição generosa de benefícios da delação premiada.

    Que intimidação, que combate efetivo se pode fazer à corrupção, com tamanha benevolência? Por ai o resultado será muito mais estimular que erradicar. Ou o objetivo seria não o combate à corrupção mas sim a detenção de Lula?

    Foram dois anos, 24 meses, 730 dias, 17.520 horas de trabalho intensivo para provar que o ex-presidente Lula sabia e, de fato e de direito, era o comandante do esquema de mega corrupção da Petrobras. Vamos repetir: por dois anos, 24 meses, 730 dias, 17.520 horas de trabalho ininterrupto, exaustivo, intenso, uma multidão de promotores, investigadores, analistas e técnicos trabalhou para obter uma prova. Tudo foi vasculhado, revirado, esquadrinhado. Cada milímetro do mundo real e cada pixel do mundo virtual. Nada foi encontrado. Ou melhor, foi encontrado um pedalinho, um barco, e talvez alguma outra quinquilharia. E agora?

    Como se poderá manter uma Operação Lava Jato cujos promotores e o juiz são acusados de conspiração óbvia (por Jânio de Freitas), de preconceito de classe e criação de ineditismos vergonhosos (por Fábio Wanderley Reis), de sujar a Constituição, o Código Penal e a cultura jurídica do país (por Tales Castelo Branco), de erguer invencionices e abuso do poder para ludibriar a opinião pública (por Beatriz Vargas), de praticar violências típicas dos regimes ditatoriais que recorrem ao paredão (por Marco Aurélio de Mello), de agir com arbitrariedade (por José Gregori), de ilegalidade (Alamiro Velludo), de se valer de métodos de gangsters (por Vladimir Safatle), de agir autoritariamente estimulando confrontos e brigas (por Paulo Sérgio Pinheiro), de desvio da legalidade (por Walter Maierovitch), de colocar em risco a ordem pública, deixando aberto o espaço para que o Brasil ingresse numa espiral de violência social generalizada (diversos analistas)? Todas essas acusações eclodiram após a condução forçada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem motivação e sem precedentes na história do país, para depor em Congonhas.

    Os promotores da Lava Jato, tentando reagir à unânime reprovação ao procedimento de condução coercitiva, acabaram por lançar uma nota infeliz, em que o debate público foi desqualificado como sendo “falsa controvérsia”,  destinada apenas a lançar “uma cortina de fumaça sobre os fatos investigados”. Ou seja, chegamos a um ponto tal em que exercer o direito de pensar e opinar se tornou ofensa à Lava Jato. Direitos garantidos na Constituição, não esqueçamos. A emenda piorou o soneto, que já era execrável.

    Deixando de lado o tema concernente ao que há de abusivo e desrespeitoso nessa investida arrogante contra a esfera pública, fica a pergunta sobre quem seria a turma do fumacê? Quem está fumegando os olhos da população contra a operação Aletheia? A firme repulsa aos métodos do MPF teve início com o Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, com declarações muito contundentes em entrevista à coluna de Mônica Bergamo.

    Eu só concebo condução coercitiva se houver recusa do intimado para comparecer. É o figurino legal. Basta ler o que está no código de processo. Deve ser o último recurso. Você hoje é um cidadão e pedem que você seja intimado para prestar um depoimento. Em vez de expedirem o mandado de intimação, podem conduzir coercitivamente, como se dizia, debaixo de vara?

    Temos aqui uma cortina de fumaça? O ministro do STF é um carbonário ou um sapador lulista? Ao que saibamos, este ministro não mantém vínculos cordiais com Lula ou com o PT. Se fosse necessário criar um neologismo para estabelecer sua relação com esse partido seria o caso de dizer que ele é “um antipatizante do PT”. E que interesse teria em lançar cortinas de fumaça para confundir a opinião pública?

    Além dele, ex-ministros e secretários de FHC, alguns até francos adversários do PT, vieram a público expressar seu repúdio aos métodos do juiz Sérgio Moro. Um desses foi  José Gregori, ministro da Justiça (2000-2001) e secretário de Direitos Humanos (1997-2000), quem afirmou que…

    “Você (fazer) logo a condução coercitiva é um exagero. E na realidade o que parece é que esse juiz (Sergio Moro) queria era prender o Lula. Não teve a ousadia de fazê-lo e saiu pela tangente.”

    Não é extremamente desmoralizante para a Lava Jato uma avaliação desse tipo? Gregori não falou em causa própria ou de seu partido. Ao contrário. Manifestou-se, como dizia Hegel, no interesse daquilo que todo jurista deveria priorizar, a saber, preservar antes de tudo a justiça. Pois é. O filósofo dizia que a justiça não é desinteressada mas, antes, se orienta por um interesse essencial ─ o de impedir que a justiça se traia em justiçamento. Essa é uma deformação que sobrevém toda vez que um interesse externo (de política, de vingança, de ódio, etc.) alcança se impor sobre as finalidades da justiça. Nada poderia ser mais grave e danoso. E foi justamente isso que Marco Aurélio apontou:

     “Quando se potencializa o objetivo a ser alcançado em detrimento de lei, se parte para o justiçamento, e isso não se coaduna com os ares democráticos da Carta de 88.”

    Ora, “o objetivo a ser alcançado” mencionado por Marco Aurélio é evidente: prender Lula e destruir o PT. Mas era lícito afundar na lama da vergonha, para chegar a esse objetivo, manipulando as prerrogativas de uma instituição-chave para a vida democrática, o Ministério Público Federal? Segundo o criminalista Tales Castelo Branco, ex-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autor de diversas obras em Direito Criminal, como “Da prisão em flagrante” e Teoria e prática dos recursos criminais”, a condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor na Polícia Federal foi totalmente desnecessária:

    “Essa ação é drástica e suja a constituição brasileira, o código de processo penal e, principalmente, a cultura jurídica do país”.

    Como é possível que tenhamos chegado ao ponto em que um juiz e os procuradores da Lava Jato tenham que ouvir a acusação de que sujaram a constituição do país, o código de processo penal e, sobretudo, a cultura jurídica do país? Será que esse rebaixamento do MPF não fere um patrimônio que também nos pertence? Não mancha uma instituição do Estado? Isso enche de estupor porque, para tamanho desequilíbrio, para que o pião gire tão fora do eixo, como ocorre com um pedestre trôpego, é preciso um tonificante muito forte. De onde veio o combustível para tamanho desvio da isenção e do estrito interesse pela justiça?

    Paulo Sérgio Pinheiro, também como Gregori, ex-ministro de FHC, descreveu a decisão de Moro com as mesmas cores:

    “Não há nenhuma defesa que caiba para essa decisão desnecessária e autoritária do juiz Moro. Com a desculpa de evitar confrontos, estimulou tumultos e brigas”. 

    Certamente, o MPF não dirá que Paulo Sérgio Pinheiro busca interferir, obscurecer, ou lançar cortinas de fumaça em benefício dos investigados pela Lava Jato.

    Observe-se que aqui nem sequer menciona-se aquilo que Demétrio Magnoli, outro antipatizante renitente do PT, apontou, ainda que para o justificar, como interferência da política na justiça: que a humilhação de Lula seria a resposta de Moro à saída do ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, supostamente por pressões do ex-presidente:

    O “timing da condução coercitiva de Lula foi ditado pela política. Aqui não existem coincidências. A Operação Aletheia eclodiu na sequência da troca de guarda do Ministério da Justiça.”

    Mas se é assim, não estamos diante de clara retaliação, isto é, vingança? E o uso dos poderes da república, dos poderes conferidos ao MPF pela Constituição do poder público, não estão sendo deformados, desviados do âmbito da sua validade, usados para a vindita? Mas se for isso, e parece ser isso, não estaríamos diante da confirmação da perplexidade expressa por outro analista, Vladimir Safatle: “É briga de gângsteres ou é transformação política?” Ou seja, é olho por olho ou é procedimento regulado pelas normais legais vigentes?

    Outro crítico inteiramente alheio à família petista, Walter Maierovitch, ex-secretário Nacional Antidrogas de FHC, também destacou o “desvio de legalidade” no ato do juiz Moro.

    “Acho que buscas e apreensões são atividades normais em investigação. Agora, o que eu estranho, como jurista, é a condução coercitiva do Lula. É algo surpreendente e preocupante”.

    A mesma acusação de ilegalidade, de violência, vamos encontrar dentro da comunidade acadêmica. Para Alamiro Velludo, professor de Direito da USP, Lula tinha razão em se recusar a depor na Justiça estadual de São Paulo. Não decorre daí que pudesse ser obrigado a depor na Justiça Federal sem mais:

    Ninguém está acima da lei. Porém existe uma lei que define como as pessoas devem ser convocadas. O que houve ali (na decisão de Moro) foi uma ilegalidade.

    Moro ofereceu um show romano aos plebeus ao jogar Lula na arena dos leões. Para isso, dançou funk ostentação em cima do Código Penal e se arrogou poderes que não possuía. A invenção de procedimentos inexistentes, assim como o mitomaníaco inventa fatos jamais ocorridos, passou à ordem do dia como declara Beatriz Vargas, professora da Direito Penal da UnB:

    Manutenção da ordem pública é um fundamento da prisão preventiva e não da condução coercitiva. Moro está fazendo uma leitura inventiva, criativa da norma que acena para um abuso de poder. É como criar uma categoria light da prisão preventiva. Isso não existe.

    Ao menos no plano das suas fantasias conceituais, o juiz já transferiu Lula para a órbita da prisão (preventiva), como se vê. Mas a serviço de que se coloca esta invencionice que tomou um fundamento da prisão preventiva e o desviou para a condução coercitiva? A serviço da vingança política pela saída de Cardozo? Certamente, mas também se parece com uma espécie de desforra institucional, tomando as dores do MP de São Paulo. A própria nota do MPF menciona um fato que, por desnecessário no contexto, nos obriga a refletir:

    “Após ser intimado e ter tentado diversas medidas para protelar esse depoimento [no MP de São Paulo], incluindo inclusive um habeas corpus perante o TJSP, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva manifestou sua recusa em comparecer.”

    Em comparecer? Em comparecer onde? Isso deveria ter sido explicitado na nota dos procuradores para não confundir o leitor. Em comparecer ao MP de São Paulo que, em verdade, não tinha poderes para convocá-lo. Foi o que o procurador Cássio Conserino do MP de São Paulo (depois de ameaçar ignobilmente o ex-presidente com a polícia civil e a militar) disse com soberba placidez ─ que, simplesmente, havia cometido um erro.

    Mas aqui chegamos a algo de gritante gravidade, colocado para a discussão pública também por um membro da comunidade acadêmica acima de qualquer suspeita de vínculos, atuais ou pretéritos, com o PT. É Fábio Wanderley Reis, cientista político, professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), quem diz, do alto dos seus oitenta anos incompletos e da sua vasta produção sobre o Brasil, que a Lava Jato bateu numa encruzilhada. O que é pior, o fez dando corda solta ao preconceito e à violência de classe. Realizou, ao conduzir à força o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um ato inédito e inusitado ─ nenhum outro ex-presidente foi tratado assim:

    “Há uma coincidência importante do ineditismo disso com o fato de que se trata do primeiro ex-presidente da República de origem social mais humilde. É evidente que essas duas coisas estão relacionadas. Seria muita ingenuidade sociológica, para não dizer o mínimo, pretender que se trata de uma mera coincidência”.  

    O nome disso não será covardia também? De fato, a palavra covardia (assim como a palavra ignorante, e algumas outras do português) tem dupla face. Em uma, se aproxima do que disse José Gregori, ou seja, tem a ver com a coragem, ou melhor, com a falta dela, que, segundo ele, o juiz Sérgio Moro teria manifestado ao não ter ousadia de prender Lula e ter buscado uma tangente. Mas, por outro, é covardia em outro sentido do vocábulo, isto é, no sentido de linchamento praticado por um grupo forte contra um (ao menos era o que esperavam) mais fraco. Nesse caso o ineditismo de se ter levado para depor um ex-presidente, e com uma corda amarrada ao pescoço, mas o fazendo apenas porque se trata de alguém “de origem social mais humilde”.

    Certamente a reação de Lula, que a covardia já tomava por um cachorro morto, assustou. Como avaliou também Jânio de Freitas:

    Em paralelo, o pronunciamento de Lula, revivendo o extraordinário mitingueiro, não apenas deixou pasmos os que esperavam vê-lo demolido, a ponto de que também a Globo transmitiu-o ao vivo. Calmo, desafiador, o pronunciamento abriu a única perspectiva conhecida de restauração do PT, com Lula em campo pelo país afora, e já enfrentando os que pretendem extinguir os dois.

    A cobra está viva. Mas a questão é o que virá agora. O pânico que levou à correria e dispersão dos perseguidores é temporário. Há uma máquina e há maquinações que estão pulsando nos bastidores, e que vão muito além dos seus procuradores e juízes, esses são peças das engrenagens, e não as mais importantes. Logo que os encorajamentos, as congratulações, os apoios, os editoriais, os cumprimentos, os desagravos, forem se multiplicando, a coragem voltará às faces agora lívidas que novamente recobrarão um rosado saudável. E aí voltarão, ou tentarão voltar, para uma nova investida. É a máquina que está operando.

    Quem pôs a nu uma das engrenagens da trama não foi nenhum robusto cutista, mas o mesmo comedido e elegante decano da imprensa brasileira que acabamos de citar, Jânio de Freitas. Ele apontou que o vazamento da delação do imaculado Delcídio no dia 03 foi arquitetado como prévia ao ato de violência contra o ex-presidente no dia 04, a “sexta-feira quase santa”:

    O que se passou de quinta (3) para a sexta (4) passadas não foram ocorrências desconectadas. Foram fatos combinados para eclodirem todos de um dia para o outro, com preparação estonteante no primeiro e o festival de ações no segundo. O texto preparado na Lava Jato para entrega ao Supremo Tribunal Federal, como compromisso de delação de Delcídio do Amaral, está pronto desde dezembro. À espera de determinada ocasião. (…)

    Por que a intermediação para o momento especial foi da “IstoÉ”, desprezada pela Lava Jato nos dois anos de sua associação com “Veja” e “Época”? É que estas duas, na corrida para ver qual acusa e denuncia mais, costumam antecipar na internet os seus bombardeios.

    Enfim, agora que a paulada na jararaca virou uma varada n’água, qual a situação da Lava Jato?

    Presos num transe obsessivo, numa espécie de alucinação, insistirão em provar, mesmo que com as “provas” as mais fajutas, o objetivo (a culpabilidade de Lula) para alcançar o final apoteótico (sua prisão)? O que pode resultar do encarceramento de “seu objetivo” a qualquer custo? Ousarão jogar o país no abismo?  Provocarão um confronto de grandes proporções, que se sabe como começa (como na Espanha em 1936 ou na Síria em 2011), mas não se tem a mais remota ideia de como terminará? Não tenhamos ilusões. O Brasil não corre o risco de entrar numa guerra. Ele já entrou, e a situação de rebaixamento econômico, moral, institucional, que vive agora, já é consequência dessa guerra não declarada. Se vai chegar às vias de fato, se a coisa vai degenerar para enfrentamentos, e se terminaremos reduzidos a escombros como a Síria, ninguém pode saber. Mas só um débil mental jogaria gasolina sobre os ânimos neste momento.

    Em certas ocasiões, basta um tiro (como o que matou João Pessoa), uma provocação, um ato ignóbil, para que se passe da febre ao incêndio social. Como disse em entrevista à BBC por esses dias o historiador britânico Kenneth Maxwell, nesse instante, há ingredientes para um grande risco no Brasil: “Existem antagonismos profundos –regional, racial e de classe– envolvidos.” Ou seja, trocando em miúdos para não deixar dúvidas: existe o Sul e o Nordeste, os brancos e os negros, os ricos e os pobres, a elite dos Jardins e os desvalidos do Jardim Ângela. Tudo isso, foi potencializado pela crise econômica, e exasperado pela crise política.

    O ressentimento social nunca foi tão vasto. As Highlux, os SUVs, as BMWs, os Camaros podem despertar um dia cercados por uma multidão de Chevettes, Corcels II, Fiats 147, Dell Reys e Monzas  à frente de uma infantaria de motoboys. A teoria da panela de pressão do sociólogo Hélio Jaguaribe anda esquecida, mas não foi superada. Ela foi uma das profecias que velaram o berço da Nova República e a principal tarefa do PT, para quem não sabe, tem sido a de lançar nessa panela de pressão bolsas família para amenizar sua combustão. O Brasil, continua, como há trinta anos atrás, às vésperas de uma explosão social e com o estômago queimando.

    Mas o que, num instante tão delicado, fez o juiz Sérgio Moro?  Promoveu os acontecimentos que acabamos de vivenciar, sequer guardando o jejum do mês de março, mês de recordações tão funestas na história política brasileira. E tão significativo para quem quisesse enxergar em sua ação um atentado contra a democracia. E muita gente enxergou assim e fez críticas muito duras como já mostramos. Ainda mais por verem nas ruas centenas de homens com uniformes camuflados.

    Os fatos elencados para levar o ex-presidente coercitivamente para depor, devem ser usados para um pedido de desculpas. Basta de imaginar que o ex-presidente é um gênio do mal e que, a qualquer preço, deve ser desmascarado. A genialidade de Lula é política e não de outra natureza. O MPF tem que concluir que após 24 meses, 730 dias, 17.520 horas de trabalho ininterrupto, exaustivo, intenso nenhuma prova efetiva que comprometa Lula foi encontrada. Nada justifica investir numa aventura que, além de todas as críticas que mencionamos, venha a colocar fogo no pouco que ainda resta do Brasil hoje.

     

    *Bajonas Teixeira de Brito Jr. é doutor em filosofia, professor universitário e escritor

     

  • Protestos contra tarifa: a repressão policial e a via processual constitucional

    Protestos contra tarifa: a repressão policial e a via processual constitucional

    1. Direito de reunião pacífica 2. Informação sobre aumento da tarifa 3. Conclusão

    1.Direito de reunião pacífica

    Os incidentes dos protestos de janeiro de 2016, na cidade de São Paulo, em protestos convocados pelo Movimento Passe Livre revelam desproporcionalidade no agir policial, para dizer o menos. Como já afirmou o Supremo Tribunal Federal, em caso envolvendo responsabilidade civil do Estado por ato ilícito praticado por soldado do policiamento local, armado e fardado, em que o policial: “é a encarnação mais presente e respeitada da autoridade do Estado, a presunção jurídica é sempre no sentido de que ele age em função do Estado” (RE 80.839-PR, Rel. Min. Cunha Peixoto, j. 19/09/75)[1].

    O direito de reunião está previsto no art. 5º, inc. XVI da Constituição Federal. Como aponta Dimitri Dimoulis, a reunião consiste em “agrupamento de pessoas que decidem encontrar-se e permanecer em determinado lugar para manifestar publicamente certos pensamentos e/ou reivindicações”[2].  Afirma:

    “(…) atos de violência isolados que não chegam a ‘contaminar’ a reunião constituem ilícitos imputáveis aos seus agentes, sem afetar a reunião. Isso ocorre, por exemplo, se um manifestante atirar pedras contra a vidraça de um edifício público, sendo imediatamente repreendido e expulso da reunião. Cabe às forças de segurança decidir se a reunião apresenta caráter pacífico, sendo possível o controle judicial para verificar eventual violação do direito fundamental em razão da interpretação-atuação abusiva dos agentes estatais”[3].

    Toda reunião deve ser realizada sem armas, diferentemente do que se constatou em acampamento Movimento Brasil Livre, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, quando do confronto entre este movimento e a marcha das mulheres negras. O manifestante, que era um policial civil do Maranhão, foi preso, pois sacou uma arma, disparando nas imediações do congresso nacional[4]. Não se pode alegar a condição de policial ou licença para portar arma, pois toda reunião deve ser pacífica, nos termos da Constituição Federal. Neste caso, houve uma ação policial pontual, uma prisão, e o Movimento Brasil Livre segue acampado, ou seja, a reunião prossegue. Recordo-me das aulas de graduação com Pietro de Jesus Lara Alarcón que ensinava que a passeata era “uma reunião que anda”.

    A questão entre considerar uma reunião pacífica e quando esta deixa de ser pacífica a exigir ação policial recai sobre aquilo que denominamos de discricionariedade administrativa. A literatura policial classifica a busca pessoal em preventiva e processual, o ponto de confluência entre o direito administrativo e o direito processual penal[5]. Todo ato estatal deve ser motivado, na ausência de motivos, a denominada presunção de legitimidade dos atos estatais deve ceder à outra presunção que é a da inocência: garantia constitucional.

    Foto por Silas Ribeiro
    Foto por Silas Ribeiro

    Portanto, o dever policial é de que a reunião prossiga em condições pacíficas. Nada obstante, conforme relatos, na primeira manifestação em frente ao teatro municipal, na sexta-feira, dia 08 de janeiro, quem começou a disparar bombas de gás lacrimogêneo foi a polícia, após o que houve reação dos chamados Black Blocs, com depredações. Conforme descrito pelo Nexo Jornal: “Dezessete pessoas detidas, alguns feridos (entre manifestantes e policiais), três agências bancárias e uma banca de jornal atacadas, dois veículos da CET, uma viatura da polícia e oito ônibus danificados”[6].

    Os Black Blocs, a quem é atribuído o pensamento autonomista europeu das décadas de 60 e 70, tiveram participação ativa nos anos 70, na Alemanha Ocidental, contra a construção de usinas nucleares e aeroportos, com confrontos policiais e ocupações de prédios e, posteriormente, na chamada “Batalha de Seattle”[7]. Como afirmado por Pablo Ortellado:

    “Em 1999, nos protestos contra a Organização Mundial do Comércio, em Seattle, ativistas não violentos concluíram que essas táticas clássicas não funcionavam mais porque os meios de comunicação deixaram de cobrir a violência policial – e sem reportagens sobre abusos da polícia, não havia como causar indignação na opinião pública. Por isso, propuseram a tática de quebrar vidraças de multinacionais como um meio de resgatar a atenção dos meios de comunicação e transmitir sua oposição aos acordos de livre-comércio (que beneficiavam essas multinacionais).”[8]

    Procuram atingir o patrimônio e não pessoas como forma de protesto. Mas como indica a velha sociologia, em casos de crise, existe a necessidade de sanção “a todo preço”, legitimando-se a ficção de responsabilidade por meio do exercício de fabricação de responsáveis, pois “é o crime que chama a pena, e não o criminoso”. A responsabilidade fictícia supre a responsabilidade verdadeira, evidenciando o exercício do que se nomina de “razão de Estado”[9]. Isso porque “o caráter sacrossanto da propriedade foi posto diretamente em causa”, quando há destruição de patrimonio, sendo necessário restaurar a confiança na autoridade e “curar os sentimentos que o crime não punido deixaria irritados[10]”.

    Quando o Justificando noticia que:

    “Após início do confronto, a polícia militar avançou sobre os manifestantes e deteve alguns por ‘desacato’. A abordagem ocorreu de forma indiscriminada e manifestantes que não haviam se envolvido foram presos. Guilherme registrou em fotos e, enquanto trabalhava, teve voz de prisão decretada pelo capitão da tropa.”E aí na delegacia: “a acusação que constava não era mais de desacato, mas sim de depredação em uma concessionária Fiat, de uma viatura da polícia militar e de resistência.”[11]

    As detenções sob a alegação de cometimento de desacato também merecem críticas, pois este é o pretexto para “legitimar” as prisões de manifestantes. O Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo ingressou com pedido de concessão cautelar na Comissão da OEA por violação aos art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (liberdade de expressão).

    A acusação indiscriminada, infundada, imotivada e a decorrente detenção arbitrária violam os artigos 7 e 5 (integridade pessoal e liberdade) da Convenção Americana de Direitos Humanos e a Constituição Federal, para não dizer da prática da “detenção para averiguação”.

    A denominada prisão para averiguação em manifestações públicas é ilegal, viola o princípio da presunção da inocência. Só há possibilidade de prisão antes do transito em julgado, quando fundamenta em ordem judicial, com exceção da prisão em flagrante.

    Como afirmou o Dr. Marcos da Costa, presidente da OAB-SP, em 2014:

    “Não existe prisão para averiguação. Se a polícia identificar, por meio de seu sistema de inteligência, que algum cidadão vai cometer um delito, deve atuar de forma pontual, mas não prender um quinto dos manifestantes. Isso pode levar a desestimular os cidadãos a continuarem se manifestando”[12].

    Como já se pronunciou a Corte Interamericana de Direitos Humanos:

    “(…) a Convenção proíbe a detenção ou encarceramento por métodos que possam ser legais, mas na prática resultam desarrazoados, ou carentes de proporcionalidade”[13].

    Os princípios da isonomia e da proporcionalidade também devem ser vistos como garantias constitucionais de um Estado Democrático, princípios reguladores de todas as garantias como sustenta Willis Santiago Guerra Filho[14].

    Realmente, o aludido princípio parece estar somente dentro de acadêmicos que os estudam ou, ainda, lá na Alemanha, mesmo havendo um dever de controle de convencionalidade administrativo também por parte da polícia.

    A Corte Interamericana, no caso Montero Aranguren e outros (Retén de Catia) vs. Venezuela, afirmou que:

    “O uso da força por parte dos corpos de segurança estatais deve estar definido pela excepcionalidade, e deve ser planejado e limitado proporcionalmente pelas autoridades”[15]

    Foto: Jornalistas Livres
    Foto: Jornalistas Livres

    Na manifestação de terça-feira, na praça do ciclista, avenida paulista, dia 12 de janeiro, segundo informa o Justificando houve o chamado cerco:Kettling” (ou panela de Hamburgo) consiste em cercar e isolar as pessoas dentro de um cordão policial.[16].

    O princípio da proporcionalidade pode ser encontrado no art. 5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU (Decreto n. 592 92). O limite do uso da força para situações estritamente necessárias e na proporção da resistência oposta está no art. 3º do Código de conduta para os encarregados da aplicação da lei (Assembléia Geral da ONU, Resolução n. 34 169, de 17 de dezembro de 1979[17].

    Como afirmado pela Conectas, bloqueio e intimidação de manifestantes violam a liberdade de reunião, conforme já dito por Relator da ONU[18]. É excessivamente restritivo ao núcleo essencial do direito à reunião.

    No mais, esta postura de “provocar manifestantes” ou “provocar atos violentos” é típica do chamado P2, policial secreto, que por essa condição pode estar disfarçado de professor ou estudante, com barba, já que pelo “ritual de sofrimento” e pelas normas disciplinares da PM não se pode nem sequer estar com a barba mal feita, sob pena de prisão administrativa. O militarismo, tal qual o machismo e o racismo são práticas, mas também esquemas de pensamento, que estruturam ações. São tais condições, ou melhor, falta de condições de ascensão profissional na carreira do policial militar (odiosa discriminação entre praças e oficiais) que conformam o que genericamente podemos denominar “cultura da violência” ou falta de cultura do devido processo legal ou de cultura democrática ou de transição para a democracia.

    Em matéria de P2, policial secreto, o Brasil já foi condenado na OEA, em contexto de escuta de ligações grampeadas irregularmente[19].

    Não adianta o governo estadual dizer que se tratam somente de atos de vandalismo, como se estivéssemos em guerra psicológica, com aplicação da doutrina de segurança nacional. Quando os jornalistas livres, por meio de vídeo[20], indicam que houve flagrante forjado, evidencia forjada, isso revela o que pouco se conceitua, mas infelizmente serei obrigado a caracterizar a conduta como prática típica de terrorismo de Estado.

    Filmar e fotografar são direitos constitucionais (art. 5º, IV, VIII e IX, c.c. art. 220, parágrafo segundo da CF), sendo aí necessárias as medidas para demonstrar a autenticidade do vídeo, de modo a servir como prova jurídica (manter a câmara com data e hora atualizadas, se possível com GPS, bem como anotar informações relevantes)[21].

    Por evidente que existem os mecanismos da Corregedoria e da Ouvidoria da polícia. O governo estadual argumenta que os manifestantes pretendiam quebrar o bloqueio ou o cerco policial estabelecido, sob o fundamento de que o trajeto deve ser previamente comunicado, com que o concordamos.

    Como afirmado pelo colega de grupo de pesquisa de direitos fundamentais Roberto Dias, sim, deve haver comunicação prévia do trajeto da passeata[22]. Isso porque o direito fundamental de reunião está delimitado pela Lei Municipal:

    “Art. 1º A realização de passeatas, desfiles ou outro tipo de concentração popular nas vias públicas do Município de São Paulo, nos dias úteis e no horário comercial, dependerá de prévio aviso à Companhia de Engenharia de Tráfego – CET.

    Art. 2º Os organizadores da manifestação deverão apresentar à CET, (vetado) a data, horário e roteiro das vias a serem percorridas e assumirão pessoalmente a responsabilidade por danos ao patrimônio público e privado que eventualmente venham a ser cometidos pelos participantes do evento.

    Art. 3º Caberá à CET, uma vez preenchida a formalidade prevista no artigo 1º, “in fine”, desta Lei, adotar as providências necessárias, para que durante a manifestação, o fluxo de trânsito seja desviado para vias alternativas e para que não haja interrupção total do tráfego de veículos pelo local, devendo ser reservado sempre um espaço no leito carroçável da via para a passagem de ônibus, ambulâncias, e veículos do Corpo de Bombeiros.”

    O art. 2º deste lei vale, excetuado o trecho que menciona a responsabilidades civil e penal, pois isso não é competência do município legislar (art. 22, I, CF), sendo, pois inconstitucional. Mas o restante do artigo nos parece constitucionalmente de acordo.

    Ademais, a questão está regulamentada pelo Decreto Municipal n. 36.767 de 1997 que estabelece o aviso prévio à CET (Companhia de Engenharia de Tráfego).

    Na ADI 1969-DF, o STF já se pronunciou sobre restrições que se mostrem inadequadas, desnecessárias e desproporcionais ao direito fundamental de reunião. O aviso prévio pode ser feito pela imprensa e pela mídia em geral, conquanto que a divulgação seja ampla e pública. O poder público não pode definir onde a reunião acontecerá, daí porque se pode acampar em frente ao Palácio do Planalto. O que o Poder Público deve fazer é garantir a livre manifestação e conformar o exercício com as demais liberdades.

    A OAB-SP deve se colocar, como comumente o faz, de intermediadora e de mediadora social. O Movimento Passe Livre rejeita o diálogo com o governo estadual ou com o governo municipal e parece ignorar a Lei Municipal n. 12.151 de 19 de julho de 1996, que dispõe sobre o uso das vias públicas do Município de São Paulo para o exercício do direito de manifestação através de passeatas, desfiles ou outro tipo de concentração popular.

    Como todo e qualquer cidadão, o Movimento Passe Livre tem direito de acesso à justiça, o que engloba o direito à informação sobre direitos e também o direito à participação política, sendo o dever de nós advogados, quando consultados, de orientar conforme a Constituição da República e informar sobre os caminhos institucionais para que construamos todos juntos a democracia, se possível, por meio também de audiências públicas[23].

    1. Informação sobre aumento da tarifa[24]

    A ideia de tarifa zero remonta a um projeto de lei da década de 90, atualmente arquivado, quando era prefeita Luíza Erundina, que propunha a criação de um Fundo de Transporte. O Movimento Passe Livre defende esta ideia, o que corresponde ao corriqueiro exercício da liberdade de expressão. Quem estuda direito administrativo sabe que as tarifas devem ser módicas.

    Existe a gratuidade no transporte para os idosos (maiores de sessenta e cinco anos de idade), conforme previsto constitucionalmente (art. 230, §2º, Constituição Federal, “CF”) e há outra hipótese de gratuidade no transporte público, considerada constitucional (art. 203, IV, CF), como a de quem sofre de deficiência mental (ADI 3768/DF). Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal reputou constitucional o art. 112, §2º da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que não admite deliberação de proposta legislativa que vise conceder gratuidade em serviço público, sem a correspondente indicação de fonte de custeio. Os estudantes dispõem de condições especiais no transporte público.

    Para um panorama sobre a operação de transporte coletivo de caráter regional, este pode ser feito diretamente ou mediante concessão ou, ainda, permissão (Constituição do Estado de São Paulo, art. 158). Os sítios de internet das empresas estatais CPTM, EMTU e Metrô dispõem de informações úteis ao exercício do chamado controle social dos atos de governo. O serviço público, nestes casos, é prestado diretamente pelo Estado de São Paulo, o que pode lançar a pergunta sobre a conveniência de se estabelecer a concorrência entre diferentes concessionárias ou permissionárias, o que atualmente se convenciona chamar de regulação ou de administração de contratos (administrativos), haja vista a existência da ARTESP (Agência Reguladora de Transporte do Estado de São Paulo).

    De se mencionar que o Estatuto da Metrópole (Lei Federal n. 13.089 de 12 de janeiro de 2015) possibilita mais planejamento, cooperação interfederativa, possibilidade de consórcios de serviços públicos e porque não uma “regulação metropolitana”.

    Para o assunto que nos interessa, sobre os aumentos das passagens, louvável foi a criação pela Prefeitura do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (Decreto Municipal n. 54.058/13), um órgão colegiado consultivo, que, dentre suas atribuições, tem a de “acompanhar a gestão financeira do sistema de transporte coletivo urbano de passageiros na cidade de São Paulo” (art. 3º, IX). O sítio da internet da secretaria municipal de transportes – SPTrans – também dispõe de informações úteis, inclusive sobre concessões e permissões.

    Mas o Movimento Passe Livre desconfia dos canais institucionais. A política brasileira tem se transformado na “arte do silencio” como reflete Vladimir Safatle[25]. Como também refletia José Alvaro Moisés, à época das manifestações de junho:

    “Essas pessoas nasceram na democracia e como a democracia faz uma série de promessas, elas estão cobrando isso”[26].

    Nada obstante, sabe-se que com a edição da Lei da Responsabilidade Fiscal, com as alterações feitas em 2009, deve ser dada ampla divulgação aos planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias, inclusive com realização de audiências públicas. Isso de fato ocorre, basta que o cidadão acompanhe as atividades das comissões parlamentares (Assembléia Legislativa e Câmara Municipal). Agora, alguém sabe da existência do Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, FUNDURB?

    No âmbito do Poder Executivo, igualmente de nota são as iniciativas de transparência e de acompanhamento da execução orçamentária por parte do Estado de São Paulo, com sítios da internet específicos para tanto.

    As contas da Prefeitura Municipal devem ficar, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte durante sessenta dias (art. 31, §3º, CF). O desafio está em conferir inteligibilidade à informação orçamentária.

    Em matéria de transporte público, quais são as metas dos Planos Plurianuais (Estadual e Municipal)? Qual a relação entre os recursos financeiros disponíveis e os contratos públicos celebrados? Como é feita a composição do custo total do transporte? O IPTU progressivo pode ser utilizado para que a tarifa não aumente? O que significam subsídios para o transporte municipal? Os contratos de concessão prevêem a integração com a bicicleta? O Plano Municipal de Resíduos Sólidos prevê programas para geração de biogás para os ônibus? Qual critério da concessão para a TV Minuto?

    Temos direito à informação pública da avaliação periódica dos serviços, informação dos direitos do usuários de transportes públicos e informações relativas à composição das taxas e tarifas cobradas pela prestação de serviços públicos (art. 15, Lei Federal n. 12.587/12, art. 5º, VIII, Lei Estadual n. 10.294/99 c.c. Lei Estadual n. 7.835/92).

    Temos direito a critérios ecológicos, privilegiando-se as ofertas mais sustentáveis (art. 3º, Lei Federal 8.666/93 c.c. Lei Municipal n. 14.933/09). Temos direito à motivação dos atos administrativos (art. 2º, Lei Municipal n. 14.141/06 c.c. Lei Estadual 10.177/98). Temos direito à gestão democrática dos transportes.

    A Lei Nacional de Acesso à Informação assegura o direito de acesso aos documentos utilizados como fundamento para a tomada de decisão administrativa. No caso do aumento das passagens de ônibus, trem e metrô, existe necessidade de divulgação de informação de interesse público?

    Não cabe aqui discorrer sobre o fim do feudalismo e rememorar sobre o surgimento da esfera pública, que se deu com o advento de interesses econômicos travestidos do que hoje se convenciona chamar de “interesse público” ou “opinião pública”. O que importa dizer: o acesso à informação pública, desde que não seja ultra-secreta, secreta ou reservada, vem sendo regulamentado e facultado por meio do Sistema de Informações ao Cidadão (SIC), tanto pelo Estado quanto pela Prefeitura, cada qual com o seu decreto, sem contar as experiências das ouvidorias públicas, quando existentes. No que se refere à informação do usuário de transporte público, o arsenal jurídico não para por aí.

    O Estado de São Paulo conta com Lei de Proteção e Defesa do Usuário do Serviço Público (Lei Estadual n. 10.294/99), sendo lá previstos: publicidade de “minutas de contratos-padrão redigidas em termos claros, com caracteres ostensivos, legíveis e de fácil compreensão”; e “informações relativas à composição das taxas e tarifas cobradas pela prestação de serviços públicos (…)” (art. 5º, VI e VIII).

    No âmbito estadual, a tarifa módica, o serviço adequado e o recebimento de informações públicas adequadas e claras, solicitadas para a defesa de interesses individuais ou coletivos são todos direitos previstos na Lei de Concessões (Lei Estadual n. 7.835/92).

    Dentre os direitos dos usuários de transporte garantidos pela Lei Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal n. 12.587/12) está a participação da sociedade civil assegurada por “procedimentos sistemáticos de comunicação, de avaliação da satisfação dos cidadãos e dos usuários e de prestação de contas públicas”.

    São produzidos índices de mobilidade urbana para fins de monitoramento público? Leão Serva[27] indica para a necessidade de identificar “áreas, horários e tipos de linhas com lacuna maior e a lotação dos veículos”.

    Em âmbito nacional, não há uma lei que regulamente o art. 37, § 3º, CF, sobre a participação do usuário de serviços públicos e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços públicos, daí porque o Conselho Federal da OAB ingressou, após as manifestações de junho de 2013, com a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, que aguarda julgamento no STF (ADO n. 24), diante da falta de edição da “Lei de Defesa do Usuário de Serviço Público”.

    Ademais, qual o retorno do imposto nos serviços públicos? Já existem iniciativas como a do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário que calculam o índice de retorno de bem estar à sociedade, combinando carga tributária com o índice de desenvolvimento humano ou, ainda, outras iniciativas, como a do Movimento Nossa São Paulo, que propõe indicadores de referência de bem-estar no município.

    Desde a sociedade civil, tem-se a experiência dos observatórios sociais, que, por meio de voluntários, se dispõem a ler os editais de licitação e os contratos públicos, dentre inúmeras outras iniciativas por transparência. Entretanto, é debatida a necessidade de criação de associações de usuários de serviços públicos?

    O Estado de São Paulo dispõe de Conselho de Transparência da Administração Pública, que integra a Corregedoria Geral da Administração (Decreto Estadual n. 57.500/11). Resta saber se a Secretaria do Planejamento poderia franquear maior acesso à informação sobre as concessões públicas, para além do excelente trabalho realizado no que se refere ao cadastro, acompanhamento e monitoramento dos serviços terceirizados. Não se deve esquecer dos papéis que os Tribunais de Contas do Município e do Estado podem exercer na avaliação de políticas públicas, bem como do Ministério Público Estadual.

    1. Conclusão

    Defender a democracia significa também exercê-la. Defender a Constituição significa também concretizá-la por meio do processo[28], as chamadas vias institucionais, sem prejuízo de utilizar as vias públicas, conquanto que se exerça, de preferência, o direito de reunião na forma regulamentada pela legislação infra-constitucional, apenas avisando qual será o trajeto, o que pode ser feito pela imprensa ou redes sociais, conquanto a informação seja pública e ampla.

    Apresentei aqui argumentos contrários tanto ao governo estadual, quanto ao Movimento Passe Livre, de modo a lançar perguntas para que ambos repensem suas atitudes e que possamos caminhar para a mediação, para uma solução mediada.

    No exercício de meu dever de velar pelos direitos humanos e pela paz social (art. 8º, inc. VII, Lei 8.906 de 1994, Estatuto da Advocacia). Tenho dito.

    Por Konstantin Gerber, advogado consultor, mestre e doutorando em filosofia do Direito, PUC-SP, onde integra o grupo de pesquisas em direitos fundamentais.

    Referências e Notas

    [1] Cf. LAZZARINI, Álvaro. Poder de polícia na identificação de pessoas. A Força policial. Revista de Assuntos Técnicos de Polícia Militar. São Paulo: 1994, p. 23

    [2] Comentários ao art. 5, inc. XVI. In: BONAVIDES, Paulo & MIRANDA, Jorge & AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988, Forense, Gen, Rio de Janeiro: 2009, Pág. 129

    [3] Pág. 131

    [4] COELHO, André & WILLIAM, Jorge & BRAGA, Isabel & EBOLI, Evandro & ALENCASTRO, Catarina. Manifestante acampado no Congresso saca arma, dá tiros e é detido pela PM.O Globo, disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/manifestante-acampado-no-congresso-saca-arma-da-tiros-e-detido-pela-pm-18082644

    [5] NASSARO, Adilson Luís Franco. Aspectos jurídicos da busca pessoal. Revista A Força Policial n. 44, São Paulo: 2004, pág. 48

    [6] RONCOLATO, Murilo. Duas análises sobre as manifestações pela redução da tarifa de ônibus. 11 de janeiro de 2016, Nexo Jornal, Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/01/11/Duas-an%C3%A1lises-sobre-as-manifesta%C3%A7%C3%B5es-pela-redu%C3%A7%C3%A3o-da-tarifa-de-%C3%B4nibus

    [7] TAJRA, Alex. Jovens disparam pedras contra o capital. Contraponto, Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo, PUC/SP, Outubro de 2013, p. 14.

    [8] Cf. RONCOLATO, 2016, Op. Cit.

    [9] HESE, A. & GLEYZE, A. O crime e a pena. In: NETO, A. L. Machado & NETO, Zahidé Machado. O Direito e a Vida Social. Leituras básicas de sociologia jurídica. Companhia Ediora Nacional, Universidade de São Paulo, São Paulo: 1966, pp. 131-132.

    [10] FAUCONNET, Paul. As primeiras formas de reação contra o crime. In: NETO, A. L. Machado & NETO, Zahidé Machado. O Direito e a Vida Social. Leituras básicas de sociologia jurídica. Companhia Ediora Nacional, Universidade de São Paulo, São Paulo: 1966, p. 139

    [11] JUSTIFICANDO. Fotógrafo do justificando é detido e tem trabalho apagado após registrar arbítrio. 9 de janeiro de 2016, disponível em: http://justificando.com/2016/01/09/fotografo-do-justificando-e-detido-e-tem-trabalho-apagado-apos-registrar-arbitrio-de-pm/

    [12] DANTAS, Tiago. OAB investigará denúncias de abusos da PM em protesto contra a copa. UOL, 25 de fevereiro de 2014.

    [13] CIDH. Lopez Alvarez, parágrafo 67.

    [14] Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. Rcs, São Paulo: 2005, pág. 115

    [15] CIDH. Montero Aranguren e outros (Retén de Catia) vs. Venezuela, parágrafo 67

    [16] TARDELLI, Breno. Tática policial utilizada em repressão de protesto é condenada pelo próprio manual da PM. 13 de janeiro de 2016, Justificando, disponível em:  http://justificando.com/2016/01/13/tatica-policial-utilizada-em-repressao-de-protesto-e-condenada-pelo-proprio-manual-da-pm/

    [17] PAES DE SOUZA, Adilson. O guardião da cidade. Escrituras, São Paulo: 2013, p. 72

    [18] CONECTAS. O que a PM não pode fazer. Disponível em: www.conectas.org/pt/acoes/justica/…/41507-o-que-a-pmnaopodefazer

    [19] CIDH, Escher e outros v. Brasil

    [20] JORNALISTAS LIVRES. 9 passos para forjar uma evidencia. Disponível em: jornalistaslivres.org/2016/01/9-passos-para-forjar-uma-evidencia/

    [21] Cf. WITNESS. Guia. Como filmar a violência policial em protestos. Para que mais vídeos virem mais direitos. disponível em: HTTP: //bit.ly/MaterialsWITNESS

    [22] Agradeço ao Dr. João Vitor Cardoso pela informação. Cf. BARIFO– USE, Rafael & KAWAGUTI, Luis. Policia x manifestantes: autoridades podem definir onde e quando ocorre um protesto. BBC Brasil, 14 de janeiro de 2016, disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160106_protesto_policia_direitos_lk_rb

    [23] Cf. Lei Orgânica do Município c.c. Lei Nacional de Mobilidade Urbana c.c. Estatuto da Cidade c.c. Lei Municipal de Processo Administrativo.

    [24] Uma primeira versão sobre este item de forma resumida e reduzida foi antes publicada cf. GERBER, Konstantin. Cidadão tem que reclamar seu direito à informação orçamentária. 18 de janeiro de 2015, Portal UOL, disponível em: http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/01/18/cidadao-tem-que-reclamar-seu-direito-a-informacao-orcamentaria.htm

    [25] Folha de São Paulo, 22 de outubro de 2013.

    [26] TOMAZELLI, Lucas. Para especialistas, protestos mostram desconfiança na política. Jornal do Campus, Edição 412, junho, 2013, São Paulo: 2013, disponível em: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/07/para-especialistas-protestos-mostram-desconfianca-na-politica/

    [27] Folha de São Paulo de 05/01/15

    [28] Doutrina Willis Santiago Guerra Filho. Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. RCS, São Paulo: 2007.

  • Liminar suspendendo reintegração de posse da Vila Soma em Sumaré (SP) é vitória parcial

    Liminar suspendendo reintegração de posse da Vila Soma em Sumaré (SP) é vitória parcial

    ATUALIZADO:

    Após a suspensão da liminar que suspendeu a reintegração de posse, agendada para este domingo (17), de um terreno da massa falida da empresa SOMA, em Sumaré, no interior de São Paulo, a coordenação da ocupação Vila Soma publicou nota em comemorando a conquista da suspensão. Foi decidido manter o estado de alerta, porém com alterações no cronograma de ações do final de semana, transformando o domingo, que seria um dia de luta, num ato simbólico de reafirmação da ocupação.

    Apesar da suspensão da reintegração,  a vitória é parcial, pois a ação  ainda tramita na Justiça e as famílias da Vila Soma lutam e aguardam o seu desfecho.

     

    A exemplo do que disse o advogado Alexandre Mandl, durante reunião com os movimentos sociais e apoiadores da Ocupação Vila Soma na fábrica ocupada Flaskô, “a cada duas horas chega uma novidade”. E foi bem assim que as coisas aconteceram na quarta-feira (13) em Sumaré, interior de São Paulo.

    Enquanto a tensão aumentava na contagem regressiva para a reintegração de posse da área que abriga cerca de 2,5 mil famílias, marcada para o próximo domingo (17), o ministro Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal (STF) deu um sopro de esperança aos moradores da ocupação.

    Segundo seu entendimento, o cumprimento imediato da operação de retirada dos ocupantes, “poderá catalisar conflitos latentes, ensejando violações aos direitos fundamentais daqueles atingidos por ela”, e diante deste cenário, o ministro deferiu uma liminar em Ação Cautelar (AC 4085), ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, suspendendo a ordem de reintegração de posse da área de um milhão de metros quadrados.

    Apesar da comemoração válida, a vitória é parcial. Não podemos esquecer que algo muito similar aconteceu no massacre de Pinheirinho, em São José dos Campos. Na ocasião, no dia 22 de janeiro de 2012, estava marcada a reintegração, porém, no dia 20, a mesma situação ocorreu, com a concessão de uma liminar para o não cumprimento da reintegração. A Justiça Estadual, passando por cima da decisão superior da Justiça Federal, fez-se cumprir a ação e o resultado todos conhecem, uma verdadeira barbárie de repercussão internacional.

    Segundo o estudante universitário Bruno Canova, do movimento Pula Catraca Americana, que participa da rede de apoio à ocupação, “neste momento não devemos esperar nada, devemos nos manter em estado de alerta, não esperando, mas agindo da mesma forma que antes na resistência.” Ele acredita que toda atenção seja dispensada neste momento para que não ocorra a mesma tragédia, pois o cenário é idêntico em diversos aspectos.

    Vila Soma 02 - Reprodução-Ocupacao Vila Soma
    Reprodução-Ocupacao Vila Soma: O advogado da Vila Soma Dr. Alexandre Mandl tenta dialogar com a PM e explicar a situação

     

    DIVULGAÇÃO DA LIMINAR X PRONUNCIAMENTO OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR

    A sensação que toma conta das famílias do Vila Soma é de pura angústia. Ao mesmo tempo que houve avanço com a publicação da decisão, lembrando o precedente aberto no caso de Pinheirinho, há um enorme consenso de que as armas da resistência só podem ser abaixadas após um pronunciamento oficial do Governo do Estado, admitindo o cumprimento da liminar e a retirada dos batalhões da Polícia Militar de dentro da Vila Soma e todo o reforço desnecessário convocado que transita por Sumaré.

     

    NÃO ACABOU!

    Mesmo após a notícia da publicação da liminar do STF, houve confusão na Avenida Rebouças, local onde mora a prefeita Cristina Carrara (PSDB).

    Um grupo de moradores da ocupação e mais alguns apoiadores se acorrentaram próximos à residência da prefeita em ato de protesto e estavam acampados por lá. Durante esta madrugada, eles sofreram uma ofensiva da Polícia Militar presente no local com bombas. Em seguida, o grupo de manifestantes voltou para a Vila Soma.

    A cidade toda está vivendo grande tensão com o aparato militar dentro de toda Sumaré. Três batalhões foram acionados e o município sobrevive hoje em torno desta situação.

    Porém, não são só os moradores da Vila Soma que vivem o medo do confronto. Com todas as ressalvas possíveis ao se tecer uma crítica positiva à PM do governador Geraldo Alckmin (PSDB), integrantes da coordenação da ocupação frisaram que existem comandantes da PM local que estão “implorando” para que tudo seja resolvido no diálogo, temendo o pior no confronto com a truculenta tropa de choque.

    Apesar da notável sensibilidade de alguns, a mesma falta para o governador, o que não é surpreendente. Mas a reviravolta pode vir justamente no conflito de interesses políticos.

     

    CLIMA POLÍTICO

    A Secretaria de Segurança do Estado fez um levantamento da situação e entregou ao governador tucano, dizendo que os resquícios negativos da iminência de um confronto para resolução do “problema’, não o afetaria. Este cenário se inverteu com a grande repercussão do caso na imprensa e, principalmente, nas redes sociais. Diversas entidades e personalidades se manifestaram em apoio a Vila Soma, fazendo com que o massacre preparado para o próximo domingo não sujasse apenas as mãos da prefeita Cristina Carrara (PSDB), mas também do próprio Alckmin.

    Pouco tempo após a grande derrota no seu projeto de reorganização escolar para os estudantes secundaristas, sofrer mais um revés popular seria um golpe muito duro e Alckmin dificilmente abaixaria as armas. Sendo assim, sobrou para a torcida a uma ordem superior indicando o não cumprimento da reintegração e que veio.

    Relembrando a repercussão pós-massacre de Pinheirinho, quando grande parte da população era favorável a desocupação, mas mudou de opinião após a ação e suas consequências, politicamente, parece ser mais interessante para Alckmin cumprir a liminar e retirar suas tropas.

    Porém, para quem não tem vergonha de agredir, feroz e covardemente, jovens que se manifestam em plena Avenida Paulista na capital, muitos ainda universitários, brancos e que possivelmente possa se descobrir que algum era filho de alguém “importante”, aos olhares de toda mídia, o que não seria capaz de fazer com os pobres, negros, marginalizados pela Casa Grande burguesia, numa cidadezinha do interior?

    Reprodução-MTST: #VilaSomaResiste
    Reprodução-MTST: #VilaSomaResiste
  • Sem máscaras

    Sem máscaras

    2016 começa sob as rédeas das manifestações contra o aumento da tarifa dos transportes públicos chamadas pelo MPL. Quem acha que é tudo mais do mesmo, talvez seja porque vocês não tem a possibilidade ou vontade de acompanhar tudo bem de pertinho. Nós, Jornalistas Livres, estamos ao lado, à frente, atrás, por cima e por baixo, para narrar a história do jeito que ela acontece. E percebemos muitas coisas que não são perceptíveis a quem vê a notícia apenas pelo controle remoto de sua tv.

    Uma das coisas que mais nos chamaram a atenção, foi o cordão de bikers que vêm protegendo o final das passeatas não só na manifestação de ontem, como nas duas anteriores. Mais ou menos de 10 a 15 bikers se colocam atrás da última fileira que fecha a passeata, entre os manifestantes e a tropa de choque.

    Fotos: Jornalistas Livres

    Permitem que as pessoas não fiquem acuadas com a pressão das batidas nos escudos e nos impropérios ditos aos pés de seus ouvidos, pelos policiais da Choque. Com muita calma, não dão ouvidos às provocações e conseguem dar espaço para eventuais recuos e tranquilidade para os manifestantes se sentirem um pouco mais seguros.

    Por acaso ou não, é uma ajuda de quem está conseguindo se desvencilhar dos preços das tarifas do transporte público, ao mesmo tempo que isso lhes foi permitido graças ao projeto de ciclovias promovido pela Prefeitura, que junto ao Governo do Estado, são responsáveis pelo aumento das tarifas. Dicotomia é pouco.

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  • O dia que durou dez anos, 13 de dezembro de 1968, ou o golpe dentro do golpe

    O dia que durou dez anos, 13 de dezembro de 1968, ou o golpe dentro do golpe

    Era véspera de vestibular, oito horas da noite e eu estava no curso Objetivo, que então funcionava na Praça da Liberdade, ao lado da Igreja dos Aflitos. João Carlos Di Gênio, dono do cursinho, colocou em todas as caixa de som o pronunciamento do ministro da Justiça da época, Luis Antonio Gama e Silva.

    Foi uma noite macabra.

    Desci sozinho para o parque D. Pedro para tomar um ônibus e percebi que já estava tudo cercado pelo quartel da região. Nos pontos, as pessoas eram revistadas. Nas fábricas da Mooca, tudo estava cercado. A barra estava pesadíssima.

    Todos os teatros fecharam as portas, e as pessoas começaram a se juntar e conversar para saber o que seria do Brasil. Anunciava-se a pena de morte e o banimento. Aquela noite foi apenas o começo de um pesadelo que iria durar dez anos.

     

    Morto pela polícia da Ditadura quando se escondia da repressão dentro do restaurante Calabouço, o secundarista Edson Luís de Lima Souto tornou-se o símbolo triste de uma juventude silenciada à força

    Fazia algum tempo que a Ditadura estava sendo fortemente contestada nas ruas. Passeatas se multiplicavam pelo país, a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, no Rio de Janeiro, assassinado pela polícia dentro do restaurante Calabouço, provocou uma comoção nacional contra o governo forte de Costa Silva. A UNE, União Nacional dos Estudantes, organizou um grande congresso em Ibiúna em outubro, interior de São Paulo, poucos meses antes. Os jovens foram presos e, depois do pronunciamento do AI-5, os líderes do movimento tornaram-se espécie de reféns clandestinos. A ditadura os marcou — quem estava na organização foi jurado de morte. A USP foi cercada, ninguém entrava sem ser revistado. Os centros acadêmicos foram fechados ou invadidos. Até o cursinho Objetivo, onde eu estudava, moveu uma forte perseguição aos estudantes. Eu mesmo era visado pela diretoria por levar os colegas ao teatro e conversar sobre política.

    O ar estava irrespirável. Se antes do AI-5 a cidade estava efervescente com as contestações ao regime, depois a tristeza e o silêncio se abateram sobre todos. Só se ouviam notícias de gente que saía de casa e não voltava, gente que teve de se esconder, documentos que foram queimados. Eu percebi que o mundo havia mudado. Se antes conseguíamos fazer uma crítica ao acordo MEC-Usaid, de privatização do ensino, depois foi só solidão. Não se podia falar nada, as pessoas sussurravam. A televisão apoiava o endurecimento do regime, instigando o clima de terror, com delações aos colegas, aos professores e intelectuais. A censura piorou muito.

    Muitos, como eu, foram presos e torturados ilegalmente pela Ditadura que endureceu com o AI-5. Tantos foram assassinados nos porões do regime, depois de sofrerem suplícios indescritíveis.

    E agora, um grupo de golpistas tem a intenção de comemorar essa data macabra, dia 13 de dezembro, com uma manifestação para pedir o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A escolha da data do protesto pelo impeachment é a melhor e mais cabal prova de que esses movimentos que pedem o golpe não estão interessados na Democracia. Longe disso.

    Passaram-se 47 anos daquele dia trágico, mas eu e meus companheiros que sobreviveram ao arbítrio, às câmaras de tortura, ao assassinato, estamos aqui como testemunhas de acusação dessa gente que quer a volta da Ditadura ao Brasil.

    O povo brasileiro, já tão sofrido, não merece essa empulhação, essa dor, mais este sofrimento.

    Não é o que queremos.

    É preciso salvar (e melhorar!) a DE-MO-CRA-CI-A.

    Pra Saber Mais Sobre o AI-5:

  • O terrorismo e o sequestro das boas intenções

    O terrorismo e o sequestro das boas intenções

    Ilustração: Vitor Teixeira

    Há uma tentativa da mídia, por sinal bem exitosa, de sequestrar o emocional das pessoas, comparando os atentados ocorridos no último dia 13 em Paris com os atentados de 11 de setembro nos EUA, vitimizando a França e relativizando os ataques que essa mesma França praticou contra a Síria e o Iraque, por exemplo.

    Diante de duas tragédias, a proporção da cobertura midiática revela a desproporção de sua comoção.

    As lágrimas meticulosamente estudadas e oportunamente derramadas pelo presidente francês François Hollande durante seu pronunciamento oficial fazem parte de uma estratégia.

    A campanha que a rede social Facebook disponibilizou para que seus usuários pudessem mesclar as cores da bandeira da França com suas fotos de perfil são de um altruísmo questionável e extremamente seletivo.
    A enorme quantidade de pessoas que utilizaram esse recurso, ou mesmo as que trocaram suas fotos de perfil por bandeiras da França são reflexo do sucesso de uma mesma estratégia, também de tentar sequestrar o emocional de sua audiência.

    Jogando com o inconsciente coletivo das pessoas, manipulando reportagens e bombardeando-as com informações pinçadas conforme seus interesses, a mídia tradicional tem pautado a agenda de discussões sobre o tema “terrorismo”, definindo conforme suas convicções comerciais a diferença entre “ataque terrorista” e “legítima defesa diante de injustas agressões”.

    Pelas regras contidas nessa agenda midiática, fica pré-estabelecida uma dinâmica em que qualquer ofensiva promovida por um país ocidental contra um país de orientação islâmica é legítima, sempre realizada com os heróicos objetivos de “defender a democracia”, “encontrar armas de destruição em massa” e “acabar com regimes totalitários e ditatoriais”.

    No documentário Fahrenheit 9/11, o direitor Michael Moore apresentou ao mundo alguns métodos com os quais os governo dos EUA, tendo como principal aliado a mídia, fizeram a população do país não apenas acreditar que havia evidências de existência de armas de destruição em massa no Iraque, mas também apoiar uma invasão àquele país.

     

    Missão cumprida

    O governo americano declarou ter gasto US$ 845 bilhões no conflito no Iraque. O que não é nada, comparado à perda de mais de *500.000 vidas.

    (*A estimativa do total de pessoas mortas na guerra do Iraque entre 2003 e 2011 diverge de fonte para fonte, com números que chegam a até mais de 600. 000 mortes.)

    Sequestrar o emocional das pessoas com o objetivo de engajá-las em uma luta contra um “inimigo comum” é uma tática bem conhecida, utilizada em larga escala e por diversas vezes durante a história.

    “A propaganda para o público em geral funciona a partir do ponto de vista de uma idéia, e o prepara para quando da vitória daquela opinião.”

    Propagandas nazistas de 1943 retratando judeus como transmissor de doenças contagiosas.

    Essas palavras, encontradas no livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, descrevem o conceito de usar a propaganda para disseminar a idéia de que uma guerra — no caso contra os judeus — se fazia necessária à época e que todos que se engajassem naquela guerra contra o “inimigo comum” sairiam dela como “vitoriosos”.

    Voltando para a questão dos ataques ocorridos em Paris, identifico a clara intenção do governo Hollande em criminalizar o Islã, transferindo o cerne da questão, que é política, para abstratas acusações de motivações religiosas.
    Para essa empreitada François Hollande conta com um poderosíssimo aliado:
    a imprensa.

    Para antevermos os resultados dessa estratégia podemos usar como parâmetro o que aconteceu nos EUA logo após os atentados de 11 de setembro.
    O governo estadunidense recrudesceu em muito a política repressiva que mantinha e o congresso pôs em curso o famigerado “Ato Patriota”, lei que tinha como objetivos reforçar a segurança interna do país e aumentar os poderes das agências de cumprimento das demais leis, além de identificar e deter supostos terroristas. Cerceando e ignorando os direitos civis do povo americano, claro.

    Certamente que o parlamento francês reforçará, a exemplo do que fez os EUA, seus dispositivos “antiterrorismo”, o que recrudescerá a repressão contra a população em geral e contra os imigrantes em particular.

    A maioria dos muçulmanos não só não aprova como condena a violência e não tem a menor culpa do que aconteceu na França. A despeito disso, suponho que serão ainda mais perseguidos, ainda mais criminalizados e que certamente pagarão pelo que outros fizeram.

    Assim como seu aliado EUA, o governo da França comunga, entre outras idéias, da idéia central de que apenas o uso da força bruta pode resolver seus problemas, muitas vezes problemas de ordem social.

    (Bem parecido com a política promovida pelo governador de São Paulo, diga-se de passagem)

    Marine Le Pen, representante da extrema-direita francesa que já foi candidata à Presidência da República declarou, quando aconteceu o ataque ao jornal Charlie Hebdo, que “o islamismo havia declarado guerra ao seu país” e que o povo “deveria responder sem fraquejar”.

     

    ​A expectativa é de recrudescimento da repressão policial

    Diante dos fatos apresentados, ouso dizer que a direita francesa está comemorando muito tudo isso, de braços dados com o governo Hollande e grande parcela da mídia mundial.

    O restante do mundo, atônito, aguarda desdobramentos tão ou mais trágicos do que a tragédia que se abateu sobre Paris e que ceifou a vida de pelo menos 129 vidas.

    A leitura da primeira estrofe de “A Marselhesa” reforça os temores de não apenas muçulmanos, mas de todos os imigrantes em solo francês nesse momento:

    “Esses ferozes soldados?
    Vêm eles até nós
    Degolar nossos filhos, nossas mulheres. Às armas cidadãos!
    Formai vossos batalhões!
    Marchemos, marchemos!
    Nossa terra do sangue impuro se saciará!”

    (Hino Nacional da França — A Marselhesa)


    *Diógenes Júnior é estudante de Ciências Sociais, pesquisador independente, militante do PC do B, ativista dos Direitos Humanos e Jornalista Livre.