Jornalistas Livres

Autor: Juliana Medeiros

  • Oliver Stone agradece carta enviada por Lula

    Oliver Stone agradece carta enviada por Lula

    O cineasta norte-americano Oliver Stone publicou em sua conta no Twitter uma mensagem de agradecimento ao ex-presidente Lula pela carta recebida em seu aniversário.

    No último dia 15, Lula já havia publicado em seu perfil na mesma rede social uma mensagem ao cineasta e ativista pela paz, que completou 74 anos.

    “Querido Oliver Stone, parabéns pelo seu aniversário e obrigado por suas palavras. Espero que possamos nos encontrar o mais rápido possível e celebrar a amizade de dois velhos guerreiros unidos pela luta em defesa da liberdade”

    Na madrugada desta quinta-feira (17), Oliver publicou a íntegra da missiva enviada por Lula.

    “Muito emocionado em receber esta carta de Lula no meu aniversário.
    Ele é um leão e nunca vão abafar seu rugido!”

    No texto, Lula afirma que ficou emocionado em receber a mensagem de Oliver comentando a entrevista dada recentemente pelo ex-presidente ao canal russo RT e que foi ao ar no dia 12 de setembro. Lula lembra ainda que ele e Oliver são velhos amigos e foram apresentados um ao outro pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez.

    Confira:

    Caro amigo Oliver,

    Eu estava prestes a escrever um bilhete de feliz aniversário quando recebi sua mensagem sobre minha entrevista à RT. Não posso negar que fiquei muito emocionado e estimulado por suas palavras. Eu ainda me lembro vividamente o dia em que nosso querido e saudoso amigo Hugo Chávez nos apresentou há alguns anos atrás. Eu me senti imediatamente conectado a você, pude sentir que estava conversando com um artista em busca da verdade e justiça social.


    Por meio de suas próprias palavras, descobri um homem que tinha testemunhado os horrores de uma guerra e desde então está em uma cruzada sem fim pela paz. Um homem que nunca está satisfeito com narrativas oficiais e discursos e que tem usado sua própria arte para iluminar histórias não contadas, não só de seu próprio país, mas de todo o mundo. Além disso, devo dizer que seus filmes, por serem sempre educativos e divertidos ajudaram muitos de nós a compreender melhor os EUA.

    Meu querido Oliver: meus melhores votos por seu aniversário e, mais uma vez, deixe-me agradecer a gentileza de suas palavras. Espero poder encontrá-lo novamente em breve para poder abraçá-lo (com Covid ou não) e celebraremos a amizade de dois velhos guerreiros que nunca se cansaram de lutar por liberdade.

    Luis Ignacio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil


    Tradução e edição: Juliana Medeiros

  • Brian Willson, um norte-americano herói nacional da Nicarágua

    Brian Willson, um norte-americano herói nacional da Nicarágua

    Há 33 anos o dia primeiro de setembro marca um acontecimento trágico que fez de um norte-americano, veterano do Vietnã, um verdadeiro herói nacional para o povo da Nicarágua.

    Por Juliana Medeiros

    Durante protestos que ocorriam em 1987 nos EUA pelo fim da ingerência na região centro-americana, o pacifista Brian Willson teve as pernas amputadas por um trem carregado de armas dos EUA cujo governo apoiava diretamente os chamados contra, tentando derrotar a revolução sandinista que vencera em 1979 a ditadura dos Somoza, uma das mais sanguinárias e longevas das Américas.

    Brian Willson

    Brian e mais outros dois veteranos acreditavam que o trem – em baixa velocidade em razão da presença de manifestantes na área – seria parado e, de acordo com a lei e protocolos vigentes, ele e seus companheiros seriam detidos em seguida. No entanto, ocorreu o oposto ao esperado por todos: o trem acelerou o triplo de sua velocidade – de 5HPM para 17HPM – atropelando Brian Willson e quase o matando.

    Depois de um longo período de cirurgias, adaptação às próteses e recuperação dos vários ferimentos por todo o corpo, Brian sobreviveu para seguir fazendo o mesmo de então: ser uma voz dissonante da narrativa bélica e imperialista de seu próprio país. Em seu perfil no Facebook  ele afirmou: “Foi uma tentativa de assassinato. Portanto, estou comemorando 33 anos desde minha quase morte, junto a meus companheiros e irmãs nicaraguenses”.

    CELEBRIDADE DA LUTA PELA PAZ

    A vice-presidenta Rosário Murillo anunciou no dia anterior que o dia 1º seria repleto de homenagens do povo nicaraguense “ao sacrifício do herói da solidariedade e da paz e que honra a Nicarágua vivendo em nosso país”. O anúncio oficial em cadeia nacional era um convite aos nica para que participassem do evento já que na Nicarágua todos conhecem bem e se orgulham desse personagem. Desde esses acontecimentos, Brian Willson tornou-se uma verdadeira celebridade, sendo às vezes difícil para ele uma simples caminhada nas ruas sem ser abordado por nicaraguenses ávidos por conversar e tirar fotos com o ídolo.

    O dia de homenagens começou na Chancelaria do país e depois Brian – que já havia sido condecorado em 1988 com a Medalha Augusto César Sandino – foi homenageado na Assembleia Nacional onde recebeu a Ordem José Dolores Estrada em seu máximo grau. No final do dia ele ainda esteve em outro evento na Universidade Nacional.

    A honraria recebida por Brian na Assembleia remete à outra luta do povo nicaraguense, anterior ao período dos Somoza. Em 1855 outro norte-americano, o flibusteiro William Walker, foi para a Nicarágua acompanhado de seus recrutas mercenários e acabou se envolvendo em um conflito interno se unindo ao lado que procurava derrubar o então presidente Fruto Chamorro Pérez. À medida em que avançava em sua campanha militar, conseguiu fraudar o processo eleitoral e  se “autoproclamou” presidente da Nicarágua. O então presidente dos EUA, Franklin Pierce, reconheceu imediatamente seu governo como “legítimo”, em mais uma das várias evidências históricas da política intervencionista que os EUA mantêm até os dias hoje contra dezenas de países. Na ocasião, o General nicaraguense José Dolores Estrada comandou e venceu a batalha conhecida como San Jacinto (região próxima à Capital, Manágua). William Walker depois de fugir da Nicarágua, tentou ainda ocupar Honduras, mas foi capturado e fuzilado no país vizinho. As invasões do “aventureiro” Walker – que já havia estado também no México – acabaram contribuindo para a formação do conceito de América Latina. Já o General Estrada, homem mestiço negro e índio, mesmo tendo libertado seu país do invasor não foi devidamente reconhecido na época. As elites nicaraguenses se recusaram a render homenagens a um mestiço. Foi o governo revolucionário que, décadas depois de sua morte, decidiu dar seu nome a um dos graus máximos de distinção nacional.

    Brian Willson relatou no documentário que conta sua história- Paying the Price for Peace – que em janeiro de 1986 pediu demissão de seu trabalho no escritório de atenção a veteranos no estado de Massachusetts para viajar à Nicarágua e “aprender sobre a Revolução Popular Sandinista”. O então jovem novaiorquino disse que “queria ver com seus próprios olhos a natureza e extensão da intervenção”, realizada pelo governo do então presidente Ronald Reagan, que financiava os contra – mercenários que com dinheiro do Congresso e apoio da CIA foram armados e treinados com o objetivo de exterminar a resistência popular à ditadura dos Somoza. Quando voltou aos EUA, Willson se comprometeu ainda mais com as manifestações pela paz no seu país e organizou o protesto em frente à base militar no estado da Califórnia, de onde saíam as munições para a repressão na Nicarágua. Mas as cerca de 50 pessoas envolvidas no ato pacífico não foram presas por desobediência civil, como estabelecia a lei. Willson relata que mais tarde soube que o FBI já os investigava desde 1986, a ele e outro veterano, suspeitos de “terrorismo doméstico” e que houve “uma ordem para que a tripulação não detivesse o trem”. 

    UMA HONRA COMPARTILHADA

    Em seu discurso na Assembleia Nacional da Nicarágua, o veterano de 79 anos recém-completados – Willson faz aniversário, ironicamente, no dia 4 de julho quando os EUA celebram sua independência – lembrou desse período e resumiu o que o motivou a correr o imenso risco, inclusive sofrendo ataques fundamentalistas e perseguição em seu próprio pais, e seguir defendendo a causa sandinista até hoje:

    “(…) O trem estava carregado com armas, munições e explosivos que seriam transportados a El Salvador e Nicarágua com o objetivo de assassinar camponeses nesses países e atender aos interesses criminosos do Congresso e governo dos EUA. Eu e mais de 40 manifestantes fomos à base militar na Califórnia para tentar impedir que o trem saísse e o que nós esperávamos é que seríamos presos por conta disso. Mas nesse dia o trem não parou, ao contrário, acelerou três vezes mais que o limite de velocidade. Diferente dos outros manifestantes eu estava sentado nos trilhos com as pernas cruzadas e não consegui sair a tempo e o trem passou por cima de mim. Soubemos depois que já éramos investigados por “terrorismo doméstico” pelo FBI e que o trem recebeu ordens de não parar. Hoje, portanto, é o aniversario dessa tentativa de assassinato (…).

    Eu desenvolvi essa motivação para denunciar a política dos EUA depois de 1969 quando fui enviado a comandar uma unidade militar no Vietnã. Nós literalmente cometemos atrocidades todos os dias naquele país. Eu tinha 27 anos, um pouco mais do que a média dos que cumpriam o serviço militar na ocasião, e tive uma epifania enquanto assistia aos bombardeios [dos EUA no Vietnã]. Todos incluíam Napalm [bomba incendiária] e com isso nós destruímos milhares de vilarejos e matamos incontáveis vietnamitas. Foi quando comecei a questionar o que eu estava fazendo ali e o que esses pobres camponeses tinham a ver com tudo aquilo. Pessoas que simplesmente queriam viver suas vidas tranquilamente. Mas nós, nos EUA, sempre usamos aquela “palavra mágica” e os classificamos de “comunistas”, mesmo não tendo a menor ideia do que isso significa. Eu me dei conta, vendo aqueles milhares de corpos de camponeses vietnamitas pelo chão, de que essas eram pessoas realmente autenticas e que não fazia o menor sentido eu estar ali, há mais de 9000 milhas de casa, matando aquelas pessoas. Eu me senti como um robô ideológico, cumprindo ordens insanas e criminosas. Foi através dessas experiências que me tornei crítico à política dos EUA e passei, nos últimos 50 anos, a estudar a história do meu próprio país e aí me dei conta de outra coisa:  tudo que nos ensinaram sobre as origens e fundação dos EUA era uma mentira. Nada ocorreu como nos contaram, os EUA sempre foram um estado policial para indígenas, negros e para as mulheres. É basicamente uma terra de supremacistas brancos e a verdade é que sempre foi assim. Nós criamos uma identidade falsa que nos permite até hoje fazer o que quisermos contra qualquer um que consideramos inferior a nós, e isso é o que domina nossa história (…).

    Eu cheguei em 1986 na Nicarágua procurando entender a revolução sandinista porque é algo que jamais ocorreu nos EUA. Nós falamos dos fundadores da pátria como revolucionários, mas na verdade esses eram um monte de brancos que tinham seus escravos e cujas propriedades passaram a ser valorizadas quando eles iniciaram o extermínio da população indígena. Por isso me entusiasmou muito ver na Nicarágua um povo que tinha a valentia de se livrar de uma ditadura apoiada pelos EUA. Também foi muito emotivo ver o que esse governo vem realizando desde 2007 com tantos programas sociais(…).

    Brian Willson discursando na sessão solene

    Não é casual que Cuba, Venezuela e Nicarágua vem sendo chamados de “trio do mal” pelos EUA. É simplesmente porque esses são os países que se recusam a adotar as políticas neoliberais impostas por Washington na região e servem sua população com programas de educação, saúde, nutrição, com rodovias, pontes, que literalmente investem em sua gente(…).

    E agora temos esse plano mais recente dos EUA, uma guerra cibernética contra a Nicarágua usando softwares especiais e alta tecnologia para tentar gerar distúrbios na sociedade nicaraguense. Este plano foi revelado no final de julho deste ano e eu quero alertar o povo nicaraguense para que esteja preparado para os distúrbios que vão ocorrer, com desestabilização da conexão WiFi no país, interferências na rede elétrica, dentre outros. Mas saibam que nós, os expatriados que estamos aqui, certamente estaremos defendo junto a vocês sua soberania. Essa revolução não vai se deter(…).

    Por fim, eu apenas queria lembrar a vocês que nem todos os gringos são estúpidos, há muitos que tem consciência, ainda que como eu, tenham famílias cuja maioria é de extrema direita. Donald Trump,  podemos dizer que é a uma pessoa asquerosa, detestável, mas cumpriu uma função histórica importante. Ele mostrou a natureza autêntica desse governo que sempre foi o mesmo. Quando aquele policial colocou seu joelho no pescoço de George Floyd, naqueles 8 minutos e 46 segundos o mundo viu a fotografia real desses 400 anos de supremacia branca, 400 anos de perseguição aos pobres, indígenas, negros. E  a verdade é que ninguém pode prever o que vai ocorrer nos próximos 3 meses. Trump tem 85 milhões de seguidores no Facebook, muitos deles estão armados e eu acho que Trump vai fazer sua parte para incentivar que haja mais violência. Então talvez tenhamos uma guerra civil, talvez um cometa nos atinja, não sei, mas sei que será um momento de calamidade nos EUA e no mundo. E é por isso que o exemplo da Nicarágua, tentando preservar os avanços que conseguiu em sua luta são tão importantes. Vocês [o governo sandinista] são exemplo de justiça para seu povo. E eu sei que a oposição vem sendo bastante apoiada e financiada pelos EUA, mas quando ouço e vejo suas ações eu apenas penso que francamente eles deveriam se mudar para lá e deixar a Nicarágua em paz(…)

    Foto: Jairo Cajina/Nicarágua

    COMPANHEIROS VETERANOS

    Marvin Ortega, atual Embaixador da Nicarágua no Panamá, conta que a maioria dos nicaraguenses passou a saber da existência de Brian Willson em razão da greve de fome que ele e seus companheiros fizeram na escadaria do Capitólio, antes dos fatos ocorridos na Califórnia.

    “Eu o conheci através de uma amiga norte-americana que casou e vive Nicarágua e que é o ponto de contato com a solidariedade nos EUA. Ela realizou um evento da solidariedade e ele estava nessa festa, mas até aquele momento, Brian era mais um dentre tantos – porque realmente eram e continuam sendo muitos os norteamericanos solidários à Nicarágua. Mas a partir dessa greve de fome ele passou a ficar realmente conhecido no país. Desde esse momento ele já foi elevado a uma personalidade nacional de primeira linha e começou a ser visto como “o cara” da solidariedade nos EUA. E ele tem sido uma pessoa muito ativa nas relações com a Nicarágua, inclusive participou de uma caminhada na fronteira organizada por Miguel D’Escoto [teólogo e ex-chanceler da Nicarágua, falecido em 2017] em que participou também Dom Pedro Casaldáliga [Bispo hispano-brasileiro da prelazia de São Félix do Araguaia, falecido em agosto deste ano]”

    O sandinista, de 75 anos, conclui: “Depois desse episódio trágico, ele se tornou uma celebridade na Nicarágua porque isso é algo realmente muito forte e mesmo depois que perdemos as eleições [em 1989] ele continuou vindo e apoiando a revolução”.

    Já o advogado e ativista norteamericano Dan Kovalik, que também tem uma longa história de solidariedade com a Revolução Sandinista e cujo último livro (“No More War: How the West Violates International Law by Using ‘Humanitarian’ Intervention to Advance Economic and Strategic Interests” ) conta com um cuidadoso prefácio de Willson, lembra que o conheceu ainda em 1988, um ano depois do trágico ocorrido participando do Comboio da Paz dos Veteranos:

    “Por acaso estava na Nicarágua em 1º de setembro de 1987, quando Brian fez seu grande sacrifício pela paz na América Central. Soubemos muito rapidamente que isso havia acontecido e me afetou muito, especialmente porque os nicaraguenses foram muito afetados por isso. É tão irônico e comovente que Brian, um oficial militar dos EUA no Vietnã, tenha ficado gravemente ferido e sido quase morto, não no campo de batalha, mas em sua ação pela paz. Depois, conheci Brian brevemente em 1988, quando estava dirigindo para a Nicarágua com o Comboio. Brian havia perdido as pernas menos de um ano antes, mas estava de volta à estrada para apoiar nossos esforços e continuar seu trabalho pela paz. Finalmente, passei um tempo real com Brian durante o verão de 2018 em sua casa em Granada, Nicarágua. Foi justo na época em que a crise [mais recente tentativa de golpe de estado] daquele verão estava acabando [Dan trabalhou na ocasião na produção do documentário: The April Crises & Beyond]. Brian sofreu muito durante este período, de depressão e solidão, já que muitos de seus ex-amigos na Nicarágua se voltaram contra a revolução que ele ama. Mas ele perseverou e se recuperou desde então. Brian é um homem de grande força, determinação e compaixão. Não se pode deixar de ser inspirado e grato por seu incrível exemplo”.

    Brian Willson com o presidente Daniel Ortega

    MAIS DE 40 ANOS DE RESISTÊNCIA POPULAR

    Brian e a Nicarágua só veriam a Frente Sandinista de Libertação Nacional vencer de fato a guerrilha dos contra em 1989, quando estes perderam capacidade combativa, mas a luta popular precisou seguir resistindo. Em 1986, depois de ganharem as primeiras eleições pós-revolução, os sandinistas foram vítimas do intenso desgaste provocado por anos de guerra e seguidas tentativas de interferências em seu governo por parte das elites e da direita no país, o que fez com que perdessem as eleições em 1989 para a liberal Violeta Barrios de Chamorro. O movimento não voltou à luta armada, reconheceu a derrota e se reorganizou em suas bases para voltar a vencer eleições em 2006 com Daniel Ortega, um dos comandantes da guerrilha que vem sendo reeleito desde então. Mas abandonar as armas não foi o suficiente para os EUA que negando, como costumeiramente faz, ter participado das várias prisões ilegais, torturas e chacinas promovidas pelos Somoza, passou a acusar o governo revolucionário eleito de ser uma “ditadura”, jamais deixando de atacá-lo até os dias de hoje.

    Como acrescentou Rosário Murillo em seu comunicado: “Estarão presentes os nossos embaixadores em diversos países do mundo, as nossas missões, também os representantes dos movimentos de solidariedade e  ONGs, todos participando desta grande e merecida homenagem de amor, de reconhecimento à sua coragem, que nunca esqueceremos, que sempre saberemos elevar e reconhecer, do irmão representante daquele bom povo dos Estados Unidos da América que ao longo da história se opôs às políticas de seu governo em diversos países do mundo, onde infelizmente essas políticas representaram morte, interferência e morte, intervenção e morte, destruição de modelos de culturas que são momentaneamente invadidas ou interrompidas por essas políticas, bem como geraram genocídio. A boa gente dos Estados Unidos que sempre se manifestou nas ruas contra as injustiças”.

    A luta para libertar o país centro-americano da repressão começou formalmente com a FSLN – Frente Sandinista de Libertação Nacional em 1961, mas desde a morte de Augusto César Sandino em 1934, vários foram os movimentos e guerrilhas populares que tentaram vencer a dinastia dos Somoza. Após a guerrilha conhecida como “Chaparral” os sobreviventes organizaram a Frente Sandino que se unificaria com a FSLN em 1961. A família Somoza influenciou governos muitos anos antes e depois governou a Nicarágua em uma ditadura hereditária por mais de 40 anos, tendo sido uma das mais mortais da história contemporânea. Em todo esse largo período, os EUA estiveram por trás de governos, forças paramilitares, sabotagens e planos de extermínio.

    A SOMBRA QUE PAIRA SOBRE A AMÉRICA LATINA

    A sombra intervencionista do Império segue pairando sobre a América Latina, agora com a possibilidade de ter o Brasil como aliado, como evidenciam os novos documentos da Política Nacional de Defesa, reveladas em reportagem do The Intercept, que “propõem uma política de defesa sem transparência, ameaçam vizinhos [especialmente a Venezuela] e afrontam a Constituição”. Na verdade, desde o início do Governo Bolsonaro já se está colocando em prática estratégias que coincidem com planos golpistas da oposição ao Governo Bolivariano como demonstra em outra reportagem sobre o tema, o Brasil de Fato,  cujo levantamento traça uma linha do tempo entre os acontecimentos no país caribenho e as ações da política externa brasileira.

    Também o diário britânico independente The Guardian publicou essa semana uma extensa reportagem sobre a nefasta Operação Condor, onde o presidente Jair Bolsonaro é um dos citados por haver defendido em várias ocasiões a ditadura ocorrida no Brasil:

    “O medo da violência de extremistas de direita ainda persegue a América do Sul, especialmente entre os sobreviventes. A defesa da ditadura pelo presidente Jair Bolsonaro é especialmente preocupante. A ideia de que uma rede semelhante à Condor possa um dia reaparecer não é fantasiosa. O melhor escudo contra isso é garantir que os perpetradores do terrorismo de estado sejam presos, mesmo que isso leve décadas (…)”

    A tragédia que atingiu Brian Willson não conseguiu fazer com que ele desistisse de apoiar a Nicarágua e siga denunciando os planos intervencionistas e a política de terror dos EUA. Com disposição inclusive de lutar, se preciso, contra as novas ameaças aos sandinistas, ele finalizou seu discurso na Assembleia Nacional dizendo que aprendeu com a Nicarágua aquilo que sua experiência no Vietnã não permitiu:

    Compartilho com vocês a honra de receber essa medalha hoje e essa honra se deriva da inspiração que tiro de vocês. A Nicarágua me ensinou como se faz uma revolução. Quando eu estava no Vietnam, vi que estava do lado errado e isso é uma coisa muito difícil de se reconhecer naquelas condições. Mas desde que cheguei aqui, em 1986, e me deparei com esta revolução, foi quando me senti em casa”.

    Perto de completar 80 anos de idade, em meio a uma pandemia e cenário político caótico em seu próprio país, é de Granada, na Nicarágua, onde vive há alguns anos, que Brian Willson envia seu recado ao mundo e deixa sementes que certamente serão necessárias às futuras gerações de defensores da paz.

  • Por quem merece amor

    Por quem merece amor

    Em Cuba é ínfima a cifra de crianças sem amparo familiar, ainda assim alguns vivem em instituições especializadas mas poucos são entregues em adoção.

    Se alguém em Cuba tem a garantia de total proteção do estado e da sociedade, esse alguém são as crianças cubanas. 100% delas estão na escola e recebem das famílias cubanas e autoridades um tipo de atenção prioritária com a qual não estamos acostumados a ver. Em Cuba, crianças não desaparecem, não são sequestradas, jamais são agredidas sob qualquer forma e muito menos ficam desamparadas. Mas o que ocorre com aquelas que se enquadram no que conhecemos como abandono familiar? Esse artigo da jornalista cubana Neisy Martinez Miranda conta um pouco sobre essa realidade. A jornalista passa a contribuir com os Jornalistas Livres em uma série de artigos sobre a vida cotidiana em Cuba.

    Por NEISY MARTINEZ MIRANDA

    Alexis tem oito anos. Vive junto a outros nove em um abrigo para menores sem amparo familiar [no bairro da região central de Havana] de La Lisa. Sua mãe padece de transtornos psicológicos e ele não conhece seu pai. Desde os dois anos foi internado ali já que não havia quem pudesse assumir e cuidar de suas necessidades.

    Segundo o último informe da Unicef, como Alexis existem na ilha [de pouco mais de 11 milhões de habitantes] um total de 400 crianças na mesma situação.

    Antes de janeiro de 1959, a atenção a órfãos e abandonados na maior das Antilhas era quase inexistente. Muitos eram acolhidos por seus padrinhos católicos, ou seja, aqueles que seus pais escolhiam para que batizassem seus filhos e cuidassem deles em caso de falecimento. Outros, recebiam abrigo nas chamadas casas de parto ou de beneficência, de origem privada e religiosa. Muitos viviam nas ruas.

    A Revolução cubana criou em 1984 os Lares para crianças sem amparo familiar e Círculos Infantis Mistos, todos regidos mediante o Decreto Lei Nº 76 do Conselho de Estado e atendidos diretamente pelo Ministério da Educação, através de suas diretorias de Educação Pré-escolar e Especial.

    “São centros de assistência social onde se proporciona aos pequenos desamparados condições de vida semelhantes às de uma família. São poucos no país, já que muito poucos necessitam”, explica Alfredo Morffy, funcionário do Departamento de Educação Especial do Ministério de Educação (MINED).

    O governo emprega os melhores recursos humanos, materiais e financeiros para fazer desses centros um lugar familiar, com número reduzido de habitantes (não mais que vinte). Aí permanecem seguros até sua adoção ou até completarem a maioridade.

    Como comenta María de la Paz  Mesa Vález, diretora do Lar de La Lisa, estas instituições oferecem ao menor todo o cuidado possível, tanto material como espiritualmente: “Sabemos que não é suficiente, por isso importa nosso esforço. Algumas vezes eles poderiam se sentir rejeitados pelos que estão ao seu redor, porque talvez olhem para eles com pena ao imaginar o quão grande foi o seu sofrimento, mas não é assim, porque os ajudamos nos estudos, eles se tornam independentes, conseguem emprego, constroem seus lares e têm filhos que nunca vão abandonar”.

    Segundo Yamila González Ferrer, advogada e especialista da União de Juristas de Cuba, “a maioria dos pequenos que habitam estes lugares estão aí por problemas de moradia ou porque os pais estão reclusos ou sofrem de transtornos mentais, em todos estes casos os pais não perdem a guarda do menor, razão pela qual a criança não pode ser entregue para adoção. Daí o pequeno número de crianças que possuem as características para serem adotadas, as cifras são realmente minúsculas”.

    Milhares de casais cubanos com problemas de fertilidade gostariam de adotar um menor.

    Margarita Reyes foi abandonada desde pequena. Seus avós eram falecidos e sua mãe preferiu sair da ilha [migrando] para o Norte sem deixar atrás nenhum tipo de vínculo; assim a menina foi adotada e hoje, apesar de manter comunicação com a mãe biológica, ela reconhece como seus pais verdadeiros àqueles que a receberam em seu lar sem se importar com os laços sanguíneos. 

    Nos casos de adoção, Cuba prioriza o bem estar da criança mediante processos de aclimatação com os futuros protetores. Para isso se estuda de perto as famílias substitutas: primeiro se incorpora o pequeno ao ambiente doméstico durante os períodos de férias, e assim, paulatinamente, adquirem um caráter pré-adotivo. E este acaba sendo o modo mais seguro de garantir a felicidade do pequeno.

    Este mecanismo, estabelecido no artigo 99 do Código da Família, garante o melhor desenvolvimento e educação do menor desvalido. Também se encarregam várias estruturas sociais, entre elas o Ministério do Interior, os CDR [Comitês de Defesa da Revolução] e a União de Juristas de Cuba, mas os principais responsáveis são o Departamento de Educação Especial do Ministério de Educação e a Defensoria correspondente ao lugar de residência do menor.

    Conforme afirma José Victoriano Alambarri Herrera, funcionário do Ministério Público de Havana, a adoção requer um complexo trâmite legal, que pode ser solicitado de duas formas: perante um escritório de advocacia coletiva, quando os pais biológicos dão seu aval, ou por meio do Ministério da Educação, se os menores residirem em lares, círculos mistos ou outras instituições.

    Normalmente, é necessário um procedimento judicial ou administrativo para cada caso, geralmente chamado de “jurisdição voluntária”, porque não deve haver conflito. O Ministério Público verifica se a criança possui as características necessárias para ser adotada: menores de 16 anos, abandonados intencionalmente pelos pais ou em qualquer estado de abandono por aqueles que os têm sob seus cuidados, desde que extinto o pátrio poder, por morte ou privação de ambos.

    “Quando os menores residirem em lares ou círculos infantis mistos, os diretores dessas instituições devem dar seu consentimento, acompanhado de relatório detalhado sobre sua personalidade, motivos pelos quais foram entregues para adoção, entre outras informações importantes; justificando assim o estado de abandono do menor e informando as características da criança aos novos pais e demais pessoas envolvidas no processo ”, explicou a assessora jurídica Benilde Ulloa.

    O procurador só pode emitir o parecer depois de ter garantido através de inquéritos preliminares quais são as verdadeiras intenções dos adotantes para com a criança. Se o procedimento for solicitado por mais de uma pessoa, elas devem ter união legal (casamento).

    É também aconselhável que haja um conjunto de requisitos de natureza material e normativa: 25 anos de idade, pelo menos 15 a mais do que o adotado, estar em condições de atender às suas necessidades econômicas e ter as condições morais de cumprir os deveres estabelecidos.

    Muito trabalho está sendo feito para garantir a felicidade e segurança do menino ou menina cubana sem proteção filial; aqui eles não são filhos de ninguém, mas sim filhos da Revolução, que zela com especial cuidado por seus sonhos e esperanças.


    Fotos extraídas da imprensa cubana
    Tradução: Juliana Medeiros

  • Dan Kovalik – No More War

    Dan Kovalik – No More War

    O advogado e especialista em Direitos Humanos Daniel Kovalik, professor na Escola de Direito da Universidade de Pittsburgh, realizou um webinar no último dia 14 de julho onde comentou as mais recentes denúncias sobre violações e assassinatos de mulheres ocorridas em bases norteamericanas pelo mundo.

    Dan Kovalik é autor de vários livros críticos à política externa dos EUA sendo o último deles “No more war”. Quase todos os títulos podem ser encontrados no formato e-book ou encomendados pela Amazon.

    Transcrição, tradução e legendas: Juliana Medeiros
    Revisão: Maria José Campos


    Deixe-me começar com alguns eventos mais recentes.

    Eu hoje li algo sobre uma servidora da marinha, Thae Ohu – eu acredito que ela seja uma vietnamita-americana e militar – que foi sexualmente abusada por seus colegas de marinha. Quando ela reclamou com seus oficiais superiores foi colocada na prisão militar, onde continua presa.

    O desenrolar de outra história tem obtido também muita atenção, a de Vanessa Gillen, uma soldado que aparentemente foi morta e desmembrada por um colega soldado [em uma base] nos EUA.

    Então, por que estou trazendo esses casos? Em grande parte por conta do que vemos com frequência aqui, na grande mídia dos EUA (NPR, NYT..). Eles dizem: “Hey, os EUA não podem deixar lugares como o Afeganistão, porque precisamos estar lá para proteger as mulheres afegãs”. Certo? Bom, vamos encarar o fato de que o governo dos EUA sequer pode proteger seus próprios soldados, as mulheres soldados mas alguns homens também, dos seus próprios companheiros.

    Um em cada 30, pelo menos 1 em 30 – e esses números são os “oficiais”, portanto provavelmente são mais altos – 1 em cada 30 mulheres em relatórios militares já foram sexualmente violentadas por seus colegas soldados. Esse é um problema gigantesco! E de novo, se os militares só podem lidar com esse tipo de problema colocando pessoas na prisão por reclamarem de terem sido sexualmente violentadas, como eles poderiam proteger mulheres em outros países? E esse é um fato que nós já sabemos: eles não podem.

    Então, por exemplo, no Afeganistão nós temos gente como [o jornalista] Scott Simon na [rádio] NPR dizendo: “nós não podemos deixar o Afeganistão e deixar as mulheres nas mãos do Talibã, elas serão abusadas”.

    Vejam, o Talibã não é bom e eles são cruéis com as mulheres, sim. Mas agora mesmo, com soldados norte-americanos em solo lá [no Afeganistão] e eles já estão [na região] nos últimos 19 anos, indo para o 20º, o Afeganistão segue sendo o pior país no mundo, segundo a ONU, para os direitos das mulheres. O pior!

    Então, voltamos à pergunta: o que os EUA estão fazendo para proteger as mulheres no Afeganistão? O que eles fizeram nos últimos 50 anos?

    Os EUA em 1979 apoiaram [fundamentalistas islâmicos] Mujahedin, incluindo um de seus principais líderes, Osama Bin Laden, a iniciar atividades terroristas no Afeganistão contra o governo socialista que havia lá (e que protegia os direitos das mulheres) para derrubar a presença da URSS no Afeganistão. Nós sabemos disso, a partir do Relatório de Segurança Nacional do ex-Conselheiro Zbigniew Brzezinski do [ex-presidente] Jimmy Carter. Ele admitiu isso: que os EUA apoiaram o Mujahedin não para lutar contra as tropas soviéticas no Afeganistão, mas para tirá-los de lá. E foi exatamente o que aconteceu.

    Os EUA vêm dando apoio a esse jihadismo de direita e anti-feminista no Afeganistão desde 1979. E agora nós ouvimos que os EUA não podem sair do Afeganistão para não deixar as mulheres à sua própria sorte? Isso não faz nenhum sentido!

    Eu gostaria de ler algumas passagens do meu livro para dar-lhes uma ideia sobre esses temas.

    O capítulo 9 cujo título é: “As forças armadas dos EUA não são uma organização feminista”. De cara, você poderia dizer “eu nunca pensei que pudesse ser uma organização feminista”. E de novo, de várias maneiras, somos levados a acreditar nisso. Então, aqui está uma parte desse capítulo:

    “É sabido que durante a guerra dos EUA no Vietnã, por exemplo, o estupro era, de acordo com o testemunho dos próprios soldados dos EUA: um “procedimento de operação padrão” e os homens que serviram e mataram no Vietnã eram considerados por seus companheiros como “veteranos em dobro” se eles estuprassem mulheres e meninas vietnamitas, e também todos que fossem considerados inimigos ou ainda “alvos justos de estupro”.

    E de novo: “companheiros, co-membros da mesma unidade militar também foram violentados em cenários de combate.

    Um estudo preliminar de mulheres veteranas no Vietnã estima que tenha sido mais de 29% das mulheres militares norte-americanas que serviram no Vietnã, as vítimas de tentativas ou violações sexuais completas pelos próprios colegas militares dos EUA.

    Agora, você poderia dizer: “e o que dizer da Segunda Guerra Mundial? Nós éramos os caras bonzinhos!”. Bom, o Vietnã não foi a única vítima desse procedimento, nem mesmo considerando na que chamamos “Guerra do Bem” [II Guerra Mundial], segue mais um trecho do livro:

    “As forças aliadas, incluindo as forças dos EUA, se envolveram em estupros inclusive de “cidadãos de países aliados”. Por exemplo, como um artigo do Duke Law Journal explica, “o estupro de mulheres francesas por soldados norte-americanos na Segunda Guerra Mundial foi suficientemente perverso para provocar uma diretiva do quartel-general do General Eisenhower em dezembro de 1944 para o Comando das Forças Armadas dos EUA anunciando que o General estava gravemente preocupado e instruindo que rápidas e apropriadas punições fossem administradas”. Isso porque aparentemente, os estupros cresceram 260% depois do “Dia D”! E nesse caso agora, porque as tropas americanas estavam usando largamente suas armas (apontando mesmo) para cometer estupro contra mulheres aliadas, mulheres francesas [na ocupação] na França.

    Jean Bricmon em seu livro “Imperialismo Humanitário” diz que quando você vai para uma guerra o resultado é a tortura. Inevitavelmente. Apesar de todas as regras que temos sobre guerras, de proibir torturas, de proibir civis como alvos, de cuidar para que civis sejam protegidos, os que invadem outros países sempre torturam essas pessoas nesses países.

    E eu adicionaria a isso, e não estou sozinho, que muitos estudos apoiam a afirmação de que também as guerras agressivas [não defensivas] significam sempre estupros. Quando nossos soldados vão para a guerra no Iraque, no Afeganistão, eles estupram. Então, essa noção de que os EUA estão nesses países para proteger as mulheres é inacreditável.

    Tem esse outro grande livro.. estou tentando lembrar o nome do autor agora, eu o citei no meu livro, ele fala sobre a complexidade das bases norte-americanas ao redor do mundo.. David Vine, creio que é esse o nome.

    Nós temos mais de 800 bases militares pelo mundo e em todas as bases militares dos EUA, nas mais de 800 delas, sempre houve funcionários civis em serviço nessas bases. Nossos soldados, adicionalmente a estuprarem suas próprias companheiras [militares] tem abusado de mulheres [civis] em todas essas bases. Isso é excepcionalmente bem aceito, ninguém se assusta com isso.

    Sabe, nós falamos sobre como o Japão abusou de mulheres da Coreia durante a Segunda Guerra Mundial e a Coreia continua reclamando sobre isso e o Japão jamais se desculpou. E [achamos que] isso é legítimo. Mas e sobre as mulheres que os soldados americanos abusaram todos esses anos e continuam fazendo?

    Esse é o grande ponto que eu tentei trazer no meu livro. Essa ideia de que os EUA e o Ocidente estão saindo pelo mundo para proteger os direitos humanos e protegendo pessoas de genocídios é uma fantasia. Mas é uma fantasia com um propósito. Nós nos convencemos de que isso é verdade para justificar o contínuo gasto de mais de um trilhão de dólares por ano atualmente e as contínuas guerras agressivas ao redor do mundo.

    Um grande exemplo disso é a invasão da Líbia em 2011. E por que esse tão enigmático exemplo? Primeiro, pelo lado americano, ela foi liderada por Barack Obama e por três conselheiras que realmente empurraram os EUA a participar desse ataque da OTAN na Libia. E essas foram Samantha Power, Susan Rice e Hillary Clinton. Elas pressionaram para que ele entrasse nessa “incursão humanitária”. Mas nós sabemos agora, como muitos de nós já sabíamos então, que essa intervenção humanitária era uma mentira.

    Houve três principais mentiras para justificar o ataque da OTAN na Líbia:

    Número UM e a mais ultrajante de todas – que a Hillary Clinton gostava muito de promover – de que Muammar Gadafi estava distribuindo Viagra às suas tropas para praticar estupros em massa na Líbia; a Anistia Internacional mais tarde derrubou essa acusação, ninguém conseguiu encontrar qualquer evidência disso.

    DOIS, a denúncia – de novo, levada por Samantha Power, Hillary Clinton e Susan Rice – de que Gadaffi estava a ponto de cometer um genocídio em Benghazi; mas se olhamos os e-mails internos particularmente da equipe de Hillary Clinton [e, lembrando, eles também estão no meu livro] nós vemos a equipe de Hillary comentando entre eles que, quando a missão OTAN/Obama na Líbia começou, não havia qualquer preocupação com a questão dos direitos humanos em Benghazi. Que tudo já havia acabado e a oposição havia tomado conta de Benghazi e não havia qualquer risco [aos direitos humanos] naquele momento.

    A TERCEIRA e pior leviandade, foi a de que “mercenários negros” estavam sendo usados por Muammar Gaddafi para impor essa guerra contra seu próprio povo. Alguns grupos de direitos humanos e própria Anistia Internacional, inicialmente, apoiaram essa acusação. Embora a Anistia Internacional tenha, tarde demais, derrubado essa acusação. O que eles acabaram dizendo foi: “Não. Desculpem, não eram mercenários, eram trabalhadores estrangeiros, da África Subsaariana”. E, a propósito, a mídia na época até dizia que se podia identificar os mercenários negros, porque eles usavam capacetes amarelos. Claro, porque eles eram trabalhadores da construção!

    Então, essa mentira, não apenas pavimentou o caminho para essa intervenção na Líbia, a outra coisa que essa mentira fez foi criar um genocídio na Líbia. Porque os jihadistas, apoiados pela OTAN para derrubarem Gaddafi, começaram a atacar qualquer um com a pele negra, baseados nessas mentiras.

    Eles exterminaram cidades e localidades inteiras com população negra africana, mataram negros africanos, aprisionaram em massa, e até hoje ninguém fala disso! E os negros subsaarianos continuam sendo colocados nas ruas da Líbia e vendidos, como escravos! 

    Esse é o resultado da “intervenção humanitária” na Líbia, a que quase ninguém nos EUA jamais se opôs. Até mesmo [o programa de jornalismo independente] “Democracy Now” foi um veículo de apoio para essa invasão. E até hoje, não só Democracy Now, NPR [National Public Radio] mas muitos outros se recusam a rever os fatos sobre essa invasão, em ser honestos com suas visões em apoiar isso. E para ser franco, muito poucos se opuseram ao envolvimento dos EUA na Líbia.

    E você sabem, esse tipo de coisa foi o que me motivou a escrever esse livro. A guerra, a guerra imperialista é uma imensa parte do problema dos EUA.

    Eu vou lhes dar outro exemplo disso, recentemente Trump anunciou que queria remover 900 tropas da Alemanha. E queria começar a remover também as tropas do Afeganistão e trazê-las para casa. E nós vemos agora os Democratas, particularmente os que deram ouvidos a Liynn Chenney [Republicana], a mulher de Dick Chenney, que tentou aprovar a legislação para prevenir Trump de remover essas tropas. E se nós olhamos para os Democratas e os Liberais, eles na verdade estão atacando à direita de Trump em relação a esse tipo de problema. E acho que precisamos ser honestos sobre isso, com as cores que isso tem.

    Porque votar em Joe Binden em novembro? É, eu provavelmente vou, eu acho que ele também está entre as pessoas mais cruéis, mas eu também sei que as pessoas podem lutar contra Binden cada centímetro para evitar que ele continue essas guerras intermináveis no mundo.

    Outro exemplo, é esse outro novo inimigo amargo de Trump, John Bolton, que foi seu Conselheiro de Segurança Nacional, ele foi tanto um propagador de guerras, que Trump chegou a dizer: “eu tenho o melhor cara, ele pode ir comigo a qualquer lugar”. E Trump estava muito certo sobre isso.

    Então, Bolton escreveu esse livro com coisas sobre Trump que estão “bem descritas”, sabe como é, mas Bolton se tornou um herói para muitos liberais [esquerda] nos EUA porque ele estava “atacando Trump”. Só que ele estava [no livro] atacando Trump à direita, por exemplo, dizendo: “se Trump for reeleito ele vai encontrar-se com o Presidente Nicolás Maduro da Venezuela”. O que a propósito eu acho que seria uma coisa boa, eu gostaria que um presidente dos EUA fizesse isso. Mas porque foi Trump quem teria ganhado para fazer isso, os liberais estão dizendo: “ah, isso é ruim, ele é mau, é um ditador etc”.

    Então, nós temos que ter nossos princípios nessas questões, o primeiro é o princípio antiimperialista. Não importa quem esteja no comando, eu espero que possa ser Joe Binden, mas se é Joe Binden, nós tampouco vamos poder dormir. Temos que continuar pressionando nossos governos para encerrar essas guerras intermináveis.

    Ok, então esses são meus marcos principais. A propósito eu estou ao vivo no meu Facebook com meu celular e estou ao mesmo tempo no Zoom com meu computador, então é meio difícil ler todos os comentários e peço desculpas por isso. E eu nem sei que horas são. Vocês, amigos, tem comentários, perguntas, considerações, eu estou a postos para responde-los.

    Ok, obrigado Paul. Para o pessoal que está ao vivo no Facebook, eu quero dizer que vou responder agora uma pergunta do Reverendo Paul Dordal, ex-congressista, e ativista pela paz de Pittsburgh, que está no Zoom, vá em frente Paul.

    Claro Paul, bom ele me pediu mais exemplos sobre essas falsas alegações de “intervenções humanitárias” dos EUA. A propósito, Paul serviu como Capelão Militar durante a invasão do Iraque, tá certo Paul? Certo.

    Bom, há muitos exemplos, eu poderia voltar à outra história do meu livro no que eu acredito que foi nossa primeira “intervenção humanitária” e essa foi a “intervenção humanitária” do Rei Leopoldo II, da Bélgica, no Congo. Que teve início no final do século 19.

    Vocês provavelmente já aprenderam um bocado sobre isso porque durante os recentes protestos do BLM [Black Lives Matter] uma estátua do Rei Leopoldo II foi derrubada na Bélgica e a razão para isso é que o Rei Leopoldo decidiu pessoalmente invadir o Congo, por seus próprios interesses, especialmente para obter benefícios com o roubo de marfim. Mas o Rei Leopoldo, assim como muitos líderes, era muito esperto e sabia que a maioria dos países não iria apoiar que ele controlasse um país africano só para retirar seus recursos naturais. Então, ele apareceu com esse plano – e ele já tinha enviado emissários para o Congo e para o mundo, incluindo os EUA – para alegar que ele estava indo ao Congo para proteger as mulheres congolesas. E em particular, dos mercadores de escravos árabes que ainda existiam nessa região. Mas ele não estava interessado em proteger ninguém, era só uma justificativa e ele foi muito eficaz nisso. Ele conseguiu convencer muitas pessoas e governos – e os EUA foram os primeiros a reconhecer seus interesses no Congo – de que essa seria uma “intervenção humanitária” e inclusive conseguiu que pessoas lhe dessem dinheiro para sua aventura “humanitária” no Congo.

    Bem, o que aconteceu é que Leopoldo, ele mesmo, escravizou milhares de congoleses para apoiar sua extração de madeira, para construir rodovias, para facilitar sua retirada de recursos do país através dos rios [do Congo] para fora do país e para retirar o marfim. Ele escravizou milhares de congoleses e os torturou, se os congoleses não eram submissos a ele, ou ao trabalho que precisava ser feito, suas mãos eram cortadas, isso é bastante conhecido, às vezes seus genitais eram cortados, e no final como resultado do seu brutal tratamento, houve ainda mais de 10 milhões de pessoas no Congo que foram mortas durante essa incursão.

    E claro que essa incursão se encerrou por conta de pessoas honestas no Ocidente. Alguns deles não existem mais hoje em dia, mas naquela época tínhamos pessoas como [os escritores] Mark Twain, por exemplo, ou Arthur Conan Doyle – que descreveu isso inclusive em suas histórias de Sherlock Holmes – sobre o que o Rei Leopoldo estava fazendo. E essas pessoas, com pressão e organização, conseguiram que a comunidade internacional terminasse com essa incursão do Rei Leopoldo no Congo.

    E eu discuto isso no meu livro, o que o Rei Leopoldo fez no Congo foi “em nome dos Direitos Humanos” e o que o Ocidente continua fazendo em todo o mundo também é “em nome dos Direitos Humanos”. Só que agora de uma maneira mais sofisticada, claro, e pior. Mas no final é o mesmo jogo incluindo, a propósito, no Congo.

    Muitas pessoas não se dão conta de que sob Bill Clinton, começando em 1996, a administração Clinton apoiou os governos de Ruanda e Uganda a invadirem o Congo. De novo, sob o pretexto de “parar o que seria um genocídio” que estaria ocorrendo lá e era por isso que Ruanda queria entrar no Congo. Mas o resultado foi que essas forças de Ruanda e Uganda apoiadas por Bill Clinton mataram 6 milhões de pessoas no Congo, a maioria delas congoleses. E nós nos damos conta disso, eu procuro detalhar isso no meu livro, a partir da leitura da mídia hegemônica. A maioria das maiores empresas de mineração dos EUA, no final, a maioria delas conseguiu imensos lucros e benefícios nessa incursão no Congo. E através dessas invasões, as primeiras a ganharem com isso foram justamente as de Hope, no Arkansas, que são empresas muito próximas a Bill Clinton, como sabemos.

    E depois de Clinton, algumas pessoas gostam de se referir ao primeiro presidente negro [Obama], com Hillary trabalhando com ele, mas ele prosseguiu com esse massacre de 6 milhões de congoleses, em nome dos Direitos Humanos, e isso era uma completa mentira. E nós podemos ir além, mas enfim, essa é a mais comum das armadilhas, a ideia de que os EUA estariam apoiando a prevenção de genocídios sob o princípio dos Direitos Humanos, quando na verdade é o Ocidente e os EUA que tem cometido genocídios pelo mundo.

    Bom, tem alguém que gostaria de fazer alguma pergunta ou podemos encerrar aqui? Eu acho que às vezes, menos é mais. E nessas circunstâncias, vejo meu amigo John sorrindo, eu acho que provavelmente é verdade. Então porque não terminamos aqui? Acho que é um bom ponto para encerrar. Eu quero agradecer a todos por acompanharem e de novo esse é meu livro e você pode conseguir em qualquer lugar, na Amazon ou encomendar na sua livraria. Eu realmente estou grato por vocês estarem aí, eu acho que é um período duro para estar atrás de livros como esse, mas acho que tem uma boa mensagem aí e algo que podemos aprender. Obrigado a todos que estão conectados, isso realmente significa o mundo para mim. Nós estamos vivendo tempos muito difíceis e estamos todos atravessando um enorme desafio com essa pandemia e ver vocês disponíveis aí para me ouvir, significa tudo para mim. Vocês foram muito pacientes e muito gentis. Eu desejo a todos, boa tarde, boa noite e boa sorte. Obrigado!

  • Fidel Castro – 94 anos do soldado das ideias

    Fidel Castro – 94 anos do soldado das ideias

    Neste 13 de agosto de 2020, Fidel Castro Ruz, o comandante histórico da Revolução Cubana, faria 94 anos. Nesse vídeo que compartilhamos aqui, com legendas em português, é possível ouvir de cubanos célebres, como os intelectuais Abel Prieto e Miguel Barnet, mas também de jovens como o Professor Fábio Fernandez, historiador da Universidade de Havana, o quão profundas são as transformações provocadas na sociedade cubana pelo privilégio de ter convivido com Fidel.

    Um dos momentos mais marcantes desse material produzido pelo Canal Cubavisión Internacional, é uma frase de Fidel, de que “sem cultura, sem conhecimento, não há liberdade possível”. E está claro que não só a saúde e o esporte, mas a cultura é um dos legados mais reconhecidos do povo cubano cujas realizações a ilha socialista compartilha com o mundo.

    O material também tem informações históricas que ajudam a compreender a trajetória de um dos homens mais brilhantes da América Latina contemporânea.

    Publicamos abaixo também a transcrição completa desse material.


    Sua imagem e seu nome são parte da identidade de Cuba. A revolução que liderou e venceu em janeiro de 1959, materializou os ideais emancipatórios de milhões de seres humanos no mundo e segue sendo inspiração para todos aqueles que sonham e lutam por um mundo melhor.

    FIDEL: “Um mundo melhor é possível, mas quando se tenha alcançado um mundo melhor, é possível que tenhamos que seguir repetindo que um mundo melhor é possível e depois voltar a repetir que um mundo melhor é possível”

    90 anos é o que viveu Fidel Castro desde que, em 13 de agosto de 1926 nasceu em Birán, na região oriental de Cuba e se converteu no segundo filho homem de sua família. Durante 57 anos dessas 9 décadas, Fidel foi o artífice essencial do processo transformador da nação cubana, em todos os âmbitos.

    A história revolucionária de Cuba conheceu o jovem Fidel Castro com apenas 26 anos. Quando ocorreu o golpe de estado de Fulgencio Batista em 10 de março de 1952, ele foi um dos primeiros a denunciar o caráter reacionário e ilegítimo do regime de fato e convocar à sua derrubada.

    Organizou e treinou um numeroso contingente de aproximadamente 1200 jovens trabalhadores, empregados, estudantes, que vinham fundamentalmente das fileiras [do partido] ortodoxas. Com 160 deles, em 26 de julho de 1953 comandou o assalto ao Quartel Moncada em Santiago de Cuba e ao Quartel de Bayamo, em uma ação que foi concebida como detonante da luta armada contra o regime de Batista.

    Nesta ação, falhou o fator surpresa, mas ainda que seja considerada uma derrota militar, essa história ficou conhecida como a ação que levaria o mundo a conhecer o movimento revolucionário que nascia na ilha.

    Feito prisioneiro pelas forças repressivas da tirania, poucos dias depois do revés militar, foi submetido posteriormente ao juízo e condenado a 15 anos de prisão. Durante o processo judicial, assumiu sua própria defesa diante do tribunal que o julgou e pronunciou o discurso conhecido como “A história me absolverá” em que impulsionou o programa da futura revolução em Cuba.

    Em julho de 1955, Fidel viajou ao México para organizar, desde o exílio, a insurreição armada. Depois de meses de treinamento e com Fidel à frente, na madrugada de 25 de novembro de 1956 zarparam em direção à Cuba 82 combatentes, a bordo do Iate Gramna, cuja idade média era de 27 anos.

    Desembarcaram em 02 de dezembro nas Playas Coloradas na costa sul-ocidental da antiga província do oriente. Desde a Sierra Maestra continuou a luta revolucionária, e em sua condição de comandante em chefe, dirigiu a ação militar e a luta revolucionária das forças rebeldes e do Movimento 26 de Julho durante os 25 meses de guerra.

    No amanhecer do 1º dia de janeiro de 1959, Fidel enfrentou – com uma greve geral revolucionária acatada por todos os trabalhadores – o golpe de estado na capital da república [de Cuba] promovido pelo governo dos EUA.

    Ao concluir a luta insurrecional, manteve suas funções como Comandante em Chefe e em 13 de fevereiro de 1959 foi nomeado Primeiro Ministro do Governo Revolucionário, dirigiu e participou de todas as ações empreendidas em defesa do país e da revolução, nos casos das agressões militares procedentes do exterior ou atividades de grupos contrarrevolucionários dentro do país, em especial a derrota da invasão organizada pela Agência Central de Inteligência (CIA- EUA), levada a cabo em Playa Girón em abril de 1961.

    Em nome do poder revolucionário, proclamou em abril de 1961, o caráter socialista da Revolução Cubana.

    Ocupou o cargo de Secretário Geral das Organizações Revolucionárias Integradas e mais adiante o de Secretário Geral do Partido Unido da Revolução Socialista de Cuba. A partir da constituição do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, em outubro de 1965, seu cargo foi de Primeiro Secretário e Membro do Bureau Político, o que foi ratificado pelos cinco Congressos do Partido efetuados desde então. Foi eleito [e reeleito] Deputado na Assembleia Nacional do Poder Popular representando o Município de Santiago de Cuba, em seus sucessivos períodos de sessões desde a criação [da AP] em 1976. Desde então, e até o ano de 2008,ocupou o cargo de Presidente do Conselho de Estado e Presidente do Conselho de Ministros.

    Durante quase 50 anos, impulsionou e dirigiu a luta do povo cubano pela consolidação do processo revolucionário, seu avanço em direção ao socialismo e a unidade das forças revolucionárias e de todo o povo, às transformações econômicas e sociais do país, o desenvolvimento da educação, da saúde, do esporte, da cultura, da ciência, da defesa, o enfrentamento das agressões externas, a condução de uma antiga política exterior de princípios, as ações de solidariedade com os povos que lutam pela independência, e o progresso e aprofundamento da consciência revolucionária internacionalista e comunista do povo cubano.


    YADIRA BARRIOS (jornalista): Compartilhamos agora um momento de reflexão [no programa] ‘Enlace Cuba’ com o jovem professor da Universidade de Havana, Fabio Fernandez, bem vindo!

    PROFESSOR FÁBIO FERNANDEZ: Muito obrigado!

    YADIRA: Professor, para muitos é difícil compreender essa relação que por mais de cinco décadas se deu entre Fidel – como líder do processo revolucionário cubano – e o povo. Como você analisa essa história, esse diálogo entre o líder e a massa. E o que você acredita que o propiciou?

    PROFESSOR: Veja, a história se dá em momentos em que determinados dirigentes ou líderes geram uma conexão tremenda com o grupo humano que buscam representar. Isso está vinculado fundamentalmente com a capacidade desse líder de identificar os ideais, os sonhos, as aspirações dessa comunidade, com a qual ele vai gerando uma conexão. Na história de Cuba, isso passou com o caso de Fidel que fez essa conexão com o povo cubano durante 50 anos de revolução. Agora, esse é um fenômeno que em nossa história já havia ocorrido em outros momentos. Há que pensar, por exemplo, na conexão de um José Martí com esse povo cubano, o qual ele convoca a lutar contra o colonialismo espanhol no final do século XIX, ou podemos pensar em um dirigente como Julio António Mellia, que também conseguiu ser um “furacão” que mobilizou a cidadania contra determinados assuntos que em sua época marcavam a cotidianidade cubana. E o que ocorre com Fidel é que desde a década de 50 ele é capaz de interpretar, repito, a lógica, a aspiração que movia a cidadania e depois consegue manter essa conexão a partir de realizações que foram marcando essa imbricação profunda que se gerou. Eu acredito que é a mágica, vamos chamar assim, de uma liderança carismática, essa capacidade de [fazer] que um povo entenda que um líder o representa e que esse líder está à altura da exigência que continuamente esse povo o apresenta. É algo muito difícil de explicar, algo que sociólogos, historiadores, psicólogos tentaram explicar com todas as suas variáveis e sempre se torna um pouco nebuloso porque, repito, esse é um fenômeno que tem certas doses de magia, essa capacidade de conexão, não é explicável simplesmente de modo racional porque também funciona o emocional que também é tão vital para as relações que se estabelecem entre os seres humanos.

    YADIRA: Professor, porque você acredita que o projeto revolucionário cubano – ainda como foi pensado, como um projeto de nação – transcendeu fronteiras? E que papel você acredita que Fidel teve nisso?

    PROFESSOR: A Revolução Cubana se converteu em um símbolo para os povos do terceiro mundo por sua capacidade de representar o fato de que determinadas aspirações históricas podiam se consumar. E que aspirações fundamentais? Justiça social e soberania nacional. Os povos do terceiro mundo, fundamentalmente, mas inclusive os povos de toda a humanidade entenderam a Revolução Cubana como um caminho, como uma via que podia levar à consumação dessas lutas históricas. Dentro de todo esse contexto, surge o simbolismo de Fidel. Como grande líder dessa revolução e como o homem que é capaz de, em conexão com seu povo, encontrar os caminhos para que essa aspiração de justiça, para que essa aspiração de soberania, pudesse verdadeiramente se materializar. Eu acredito que o simbolismo da Revolução Cubana, pela contundência de suas conquistas, é indubitavelmente o que marcou a conexão com esses povos, que não somente o [povo] cubano. Eu acredito que por aí se move essa história e inclusive é interessante como já são 60 anos do triunfo da Revolução Cubana e ainda o nome de Cuba segue representando, para muitas pessoas no mundo, a ideia de que há sonhos que podem ser verdade, que podem se materializar para além das dificuldades ou dos problemas, Cuba segue tendo uma carga simbólica tremenda para todos aqueles homens que aspiram – homens e mulheres, claro – que aspiram um mundo diferente e um mundo conectado com as mais arraigadas aspirações populares.


    FIDEL: “E o que fazemos com a produção de armas nucleares, diante de um inimigo que tem milhares de armas nucleares? Entrar nesse jogo dos enfrentamentos nucleares? E nós possuímos “armas nucleares”, mas são nossas ideias! Nós possuímos “armas nucleares”, mas essas são a magnitude da justiça pela qual lutamos. Nós possuímos as “armas nucleares” da virtude, do poder invencível das armas morais. Por isso que nunca me ocorreu [ter armas nucleares]. O que me ocorreu foram “armas biológicas”, e para quê? As armas [biológicas] para combater a morte, para a combater a AIDS, as enfermidades, para combater o câncer. A isso é que dedicamos nossos recursos, apesar do banditismo desse – já não me lembro como se chama esse tipinho – que foi nomeado, não sei se algum de vocês se lembra, Bolton, Borton… sei lá, que está nada menos que secretário, representante dos EUA nas Nações Unidas! Um super mentiroso, descarado, que inventou que Cuba estava no centro da engenharia genética, investigando, para produzir armas biológicas. Também nos acusou de estar colaborando com o Irã, transferindo tecnologia. E o que estamos é construindo, entre Irã e Cuba, uma fábrica de produtos anticancerígenos! Isso é o que estamos fazendo e também querem nos proibir. Que vão para o diabo! Ou para onde queiram ir esses idiotas, que aqui não vão assustar ninguém”.

    YADIRA: Em meio à pandemia de Covid-19 que já cobrou milhares de mortes em todo o mundo, os profissionais de saúde cubana que colaboraram com o controle da enfermidade em mais de 20 nações
    tem sido os mais fiéis expoentes do ideal internacionalista de Fidel. Da Itália nos chegam essas reflexões que Cubavisión Internacional compartilhou em seus espaços nas redes sociais.

    MICHELE CURTO (italiano): Para mim pareceu incrível quando vi aterrissar esse avião porque na verdade me dei conta que a história estava se acelerando. Foi extremamente emocionante e de imediato nos sentimos responsáveis, nós sabíamos que esse não era um ponto de chegada mas sim um ponto de partida. Encontrei um grupo de cubanos – porque muitas vezes lhes dizem “heróis” – mas eu diria um grupo de cubanos estelares. Eram jovens muito preparados, profissionais muito capazes, super comprometidos, que chegaram com uma tarefa clara e um compromisso muito forte. Colocaram em risco suas próprias vidas para lutar por minha cidade e pelo meu povo. Para mim esse é o resultado maduro da Revolução Cubana e dos ensinamentos do Comandante Fidel. Os médicos cubanos nos deram esperança, nos fizeram melhores, minha cidade é ainda mais linda depois do que aconteceu aqui. Porque isso é tão lindo, tão claro, que fica e ficará por muito tempo. Outro momento muito emocionante foi depois de três meses que estivemos fechados nesse hospital, sem ver a luz do sol, subimos todos juntos o Pico Fidel. O pico é uma conquista dos nossos jovens aqui de Turín. Porque, bem, quando faleceu o Comandante Fidel Castro, eles estenderam uma bandeira imensa na Torre aqui da cidade, que dizia “Hasta Siempre, Fidel”. E no aniversário de um ano [de sua morte], voltamos a subir ao Pico e o declaramos – graças aos apoio das prefeituras da região – esse pico oficialmente dedicado ao Comandante e que certamente será um dos primeiros. Mas ir aí com os médicos, para nós restou quase pacificado essa figura do ensinamento do Comandante com um dos resultados mais lindos, que são esses jovens tão preparados, de verdade que isso foi lindo. Hoje o que eu tenho claro e levo dessa experiência, é que quando se luta de verdade com compromisso, com convencimento e com unidade, se pode ganhar qualquer resultado. E de verdade, esses médicos demonstraram tanto aos médicos italianos, quanto a todos nós, que se pode. De verdade, sim, é possível. E sempre também com uma aposta muito clara, de que nós nascemos para apoiar Cuba e sua revolução e para derrubar o bloqueio norteamericano.

    YADIRA: Em maio de 1985, durante 23 horas, Fidel e o Frei Dominicano de origem brasileira, Frei Betto, dialogaram sobre religião e temas contemporâneos. Dessa extensa conversa, nasceu o livro “Fidel e a religião” que foi publicado em mais de 20 idiomas. O intelectual brasileiro definiu Fidel como “um homem de transcendência histórica, não somente para América Latina, mas para todo o mundo”. Com exclusividade para “Enlace Cuba”, neste agosto de 2020, Frei Betto compartilha uma carta para seu amigo.

    FREI BETTO: "Querido Fidel, neste dia do seu aniversário eu sinto muita saudade de nossas conversas. Sobretudo de sua inteligência luminosa para guiar-nos nessa nova conjuntura pandêmica. A vida e a história estão cheias de imprevistos. Com tantos atentados que a CIA preparou para te assassinar, quem poderia imaginar que você passaria ao outro lado da vida tranquilamente em sua cama, rodeado por pessoas queridas e honrado por seu amado povo cubano. Quem poderia imaginar que a União Soviética se desintegraria em 1991 sem disparar um único tiro. Quem poderia imaginar que os EUA teriam um presidente negro e a Igreja Católica um Papa argentino e progressista.
    Durante nossas conversas em sua casa, você me falou várias vezes da séria ameaça de uma guerra nuclear. Esse perigo segue vigente. Mas quem poderia imaginar que esse ano o mundo deixaria de girar devido a um vírus invisível conhecido como Covid-19. Nossa querida Cuba, Fidel, reagiu diante da pandemia com um esforço heroico que se somou às atitudes corretas do povo, dos profissionais de saúde e do governo. Em comparação com outros países, se perderam poucas vidas, graças às medidas adotadas e acatadas pela população. E no espírito internacionalista e solidário que sempre marcou a história da Revolução, enviaram brigadas de saúde para socorrer aos povos de dezenas de países. O vírus colocou em evidência, como nunca, as podres entranhas do capitalismo, a abismal desigualdade social, a suprema contradição entre um sistema que produz avanços tecnológicos admiráveis mas é incapaz de evitar que a humanidade se veja afetada por um simples vírus.
    Agradeço a Deus o dom de sua vida, Fidel. Aqui seguimos, com a responsabiliade de sermos fieis ao seu legado e dignos de seu exemplo de vida e de luta.
    Venceremos, Comandante!
    Fraternalmente, Frei Betto"

    YADIRA: Voltamos com as palavras de Frei Betto, quando fala das entranhas do capitalismo. Um eixo central do pensamento de Fidel, é seu pensamento anticapitalista, anti-hegemônico.
    Professor, o que você ressaltaria do discurso de Fidel, do seu pensamento especificamente anti-hegemônico, em meio a esses últimos acontecimentos que tem convulsionado o mundo nos últimos meses?

    PROFESSOR: Fidel foi um pensador realmente anticapitalista,
    que definiu o capitalismo como um sistema irracional, contrário aos melhores interesses da humanidade. E Fidel foi muito claro, tanto em sua projeção de pensamento como em sua prática, sobre a possibilidade de construir uma alternativa contra hegemônica em relação ao que é ditado pelo sistema capitalista mundial. Eu acho que esses alertas, essa defesa de Fidel de buscar um mecanismo, uma sociedade distinta do capitalismo, um mundo melhor que seria possível, segundo suas palavras, se tornou mais importante nos tempos atuais, em que o capitalismo demonstrou todos os elementos que o definem como um sistema injusto.
    Estamos vivendo meses de pandemia onde vimos, de forma manifesta, que para o capitalismo, o capital, é muito mais importante a economia do que a vida das pessoas. E como um país como Cuba, que buscou e defendeu uma alternativa ao capitalismo e que prioriza a vida sobre a ganância econômica, logrou resultados de saúde muito mais apreciáveis. E eu acredito que fica claro nesse momento que o capitalismo é um sistema,
    em mais de um sentido, fracassado sobretudo em sua versão neoliberal e como em circunstâncias verdadeiramente complexas, a lógica do capitalismo, que apenas busca a maximização da riqueza, e riqueza apenas para alguns poucos, não é a solução para os problemas. E Fidel disse isso claramente, ele construiu uma projeção política e desenvolveu
    uma prática política que sem dúvida aspirava e defendia a possibilidade de construir um mundo diferente do capitalismo.
    E eu acredito que esses alertas de Fidel, essas aspirações de Fidel estão perfeitamente vivas. E inclusive não somente com relação ao tema da Covid, que é uma conjuntura que, cedo ou tarde o mundo vai superar, mas, por exemplo, está também todo esse tema que tem a ver com os câmbios climáticos, que é um fenômeno muito mais estrutural e aí também Fidel nos disse: “o capitalismo não é o caminho, o capitalismo é o sistema que está levando a humanidade ao colapso. Portanto, eu acredito que as ideias de Fidel e o pensamento anticapitalista de Fidel segue sendo de meridiana importância no contexto que estamos vivendo e frente ao que há por vir.

    YADIRA: #SomosContinuidad é uma hashtag constantemente usada nas redes sociais em Cuba e mesmo quando não a mencionam, está contido, contém o pensamento de Fidel. Eu gostaria de saber, professor, que ideais do seu legado você considera essenciais
    para falar do futuro em Cuba.

    PROFESSOR: Veja, falar de continuidade em Cuba implica, obrigatoriamente, se conectar com o legado de Fidel. E a continuidade, na minha opinião, com respeito à projeção histórica de Fidel, tem a ver com vários elementos fundamentais. Em primeiro lugar, a disposição permanente em não se render. Ou seja, a ideia de ser capaz de enfrentar as dificuldades mais tremendas e não se render, ancorando-se a um conjunto de valores, aspirações, a um projeto em que se tenha fé e se deposite esperança. Outro elemento de continuidade é a aposta em uma sociedade distinta do capitalismo, uma sociedade que é preciso aperfeiçoar continuamente, uma sociedade que precisa ainda encontrar plenamente sua definição, mas que está baseada no caminho, ou na consciência de que o caminho não é o que oferece o universo do capitalismo. Eu acredito que esse é outro elemento-chave no pensamento de Fidel que deve marcar a continuidade a que o povo cubano está dedicado. Outro elemento fundamental tem a ver com a inteligência que Fidel teve de entender que a mudança é imprescindível dentro de todo processo social. A ideia de que estar estático é o caminho claro em direção ao fracasso. É preciso mudar para adaptar-se aos contextos, para adaptar-se às novas circunstâncias, mas uma mudança que não implica em renunciar aos ideais, mas implica na capacidade de saber conectar-se com a especificidades dos contextos. E há outro elemento do legado de Fidel que eu creio que também é fundamental, e é sua posição anti-imperialista, vinculada com a defesa da soberania nacional. E à ideia de que um país como Cuba está obrigado, para poder encontrar um caminho claro em direção à prosperidade, está obrigado a manter uma posição de defesa de sua soberania e de não deixar que os destinos de cuba sejam regidos e definidos por uma potência estrangeira. Eu acho que esse é outro elemento do anti-imperialismo de Fidel que é chave para entender essa lógica de continuidade. Eu acredito que Fidel deve nos acompanhar, ao povo cubano, nos desafios do presente e do futuro, sempre lendo seu ideário de maneira crítica, ou seja, não é repetir Fidel, não é se calcar no que Fidel fez, é assumir o espírito de Fidel como uma espora, como uma ferramenta que nos ajuda a entender a realidade e a projetar nosso futuro dentro das complexas circunstâncias que nos cabe viver. Ou seja, a continuidade não é uma mera repetição mecânica. A continuidade é a conexão com um legado, é a conexão com um espírito que nos impulsa a mudar, mantendo sempre os ideais que assumimos como básicos desse projeto de sociedade que estamos construindo. Por aí vai minha ideia de continuidade, mudança, Fidel e seu legado.

    YADIRA: Muito obrigada, Fabio por compartilhar conosco suas reflexões, precisamente sobre o líder da Revolução Cubana em ‘Enlace Cuba’.

    PROFESSOR: Muito obrigado.


    Como um intelectual revolucionário, o próprio Fidel gostava de diálogos com artistas e pensadores. Sob sua liderança indiscutível, Cuba vem sendo nas últimas décadas espaço de encontro e motivo de inspiração para intelectuais e criadores de todo o mundo.

    Em junho de 1961, Fidel Castro se reuniu com um grupo de intelectuais na Biblioteca Nacional José Martí para debater temas cruciais dentro da vida cultural cubana. Durante três dias, os escritores e artistas analisaram junto com ele, os desafios que estavam por vir no campo cultural.

    FIDEL: “Uma das metas e um dos propósitos fundamentais da revolução é desenvolver a arte e a cultura, precisamente para que a arte e a cultura cheguem a ser um verdadeiro patrimônio do povo”

    Nascia aí [o livro] “Palavras aos intelectuais”, uma plataforma de ideias que transcendeu como pedra angular da política cultural da revolução, com uma visão democrática e inclusiva.
    Sob a liderança de Fidel, se organizou a campanha de alfabetização, a primeira grande conquista cultural da revolução. E se criaram instituições que promoveram as artes e as letras, como o Instituto Cubano do Cinema, a Casa das Américas, a União de Escritores e Artistas de Cuba, o Sistema de Ensino Artístico e outras organizações que converteram ademais a Cuba, desde aqueles primeiros anos da revolução, em um farol para os pensadores, intelectuais e artistas da esquerda latino-americana. O livro deixou de ser um privilégio para se converter em um artigo de primeira necessidade.

    MIGUEL BARNET: "Todo esse programa, tudo, foi iniciativa de Fidel. E um dos seus maiores legados, no momento mais difícil do 'período especial', quando quase chegamos ao fundo, a máxima com que Fidel encerrou um Conselho da União de Escritores e Artistas de Cuba, foi: "a cultura é o primeiro que precisamos salvar".
    ABEL PRIETO: "Um dos maiores intelectuais, cubanos, latino-americanos e universais de todos os tempos. Um pensador, um homem que ademais escrevia como os deuses, escrevia como os deuses… e um leitor incansável, ele tinha uma relação tão… Fidel acreditava muito no papel transformador da cultura, acreditava muito nisso.. Porque a chave do que ele dizia, tem a ver com a famosa frase de José Martí, sobre liberdade e cultura: "ser culto é o único modo de ser livre". E Fidel o dizia de outra maneira: "sem cultura não há liberdade possível". O programa que ele criou, com Enrique Nuñes Rodriguez, com Miguel Barnet, com a própria Graciela, com os companheiros daquela equipe que estávamos aí na UNEAC [União de Escritores e Artistas Cubanos], Fidel criou um tipo de relação fraterna, ele se sentia muito cômodo se reunindo conosco, ele se sentia muito confortável, inclusive discutindo temas complexos conosco".
    AMAURY PEREZ: "Não existe um homem na América Latina que possa chegar onde ele chegou. Ou seja, ele está nesse sentido.. tão heróico, tão Bolívar, tão Martí, onde está San Martín,
    é nesse lugar que Fidel está. E os anos apenas vão fazer com que isso se sustente e se sedimente ainda mais".

    Artistas e pensadores de todas as gerações reconhecem em Fidel o líder, o intelectual, o homem que incansavelmente se dedicou a semear ideas, a semear consciência e que assumiu o desafio de articular um sistema original no continente, o da cultura em um processo revolucionário e de convertê-la em uma das grandes conquistas sociais de Cuba.


    Tradução e legendas: Juliana Medeiros

  • Carta comentada: Samuel Moncada envia carta à ONU denunciando o Brasil por negligência criminosa

    Carta comentada: Samuel Moncada envia carta à ONU denunciando o Brasil por negligência criminosa

     

    O Embaixador Samuel Moncada – representante da Venezuela na ONU – enviou uma carta ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, Antônio Guterres, nesta segunda-feira (15), denunciando o que ele considera uma total negligência do Brasil em relação ao combate à pandemia. Além do risco em relação ao seu próprio país – já que a Venezuela tem mais de 2.000km de fronteiras com o Brasil – ele aponta o risco para toda a região da América Latina e do Caribe. Sobre isso eu converso com Roberto Goulart Menezes, que é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB e Coordenador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos.

    Bom, são vários pontos que ele coloca nesse documento, eu gostaria de tratar alguns com o senhor, mas primeiramente eu gostaria de saber no âmbito das relações internacionais, ou à luz do próprio direito internacional, qual é o efeito prático do envio desse tipo de carta denúncia considerando o cenário em que estamos, não só de pandemia como também das recentes hostilidades do Brasil em relação a Venezuela?

    PROFESSOR ROBERTO GOULART MENEZES: Em primeiro lugar eu acho importante destacar essas hostilidades, como você bem mencionou, com o governo da Venezuela de Nicolás Maduro, primeiro com o Governo Temer no Brasil onde a temperatura já havia subido e que depois ganhou uma nova configuração, com o Governo Bolsonaro, a partir de janeiro de 2019. E nos últimos acontecimentos nessa relação que se tornou tensa entre o Brasil e a Venezuela, o Governo Bolsonaro tentou expulsar a representação venezuelana do Brasil em plena pandemia o que foi suspenso – ato de expulsão que é gravíssimo nas relações diplomáticas – pelo Ministro [Luís Roberto] Barroso do Supremo Tribunal Federal. O outro ponto é que o efeito prático dessa carta endereçada ao Antônio Guterres, Secretário Geral da ONU, é mais de um alerta e de manifestar uma preocupação no seio das Nações Unidas em relação ao combate à pandemia no mundo como um todo. O teor da carta, embora seja um documento curto, mas muito objetivo, traz preocupações que também no Brasil a imprensa tem discutido e nós estamos lidando diariamente com elas. E a principal delas é o negacionismo por parte do Governo Jair Bolsonaro e seus assessores, como inclusive parte também do seu Ministério. Dois Ministros da Saúde foram substituídos este ano, com um intervalo muito curto de tempo entre um e outro, por conta exatamente de se recusarem a negar a ciência. Ou seja, eles [Mandetta e Reich] não queriam manchar suas biografias, ainda mais numa situação tão incerta como essa que a pandemia nos impõe. Então, enquanto o mundo todo está recorrendo à ciência – com exceção de pouquíssimos países – o Governo Bolsonaro atua exatamente para tentar descontruir as ações que podem preservar vidas no Brasil e que está próximo já de 1 milhão de casos.

    Em 31 de maio o Brasil tinha 500 mil casos, apenas 16 dias depois o Brasil quase dobrou isso, já temos mais de 900 mil casos e nos próximos dias passaremos de 1 milhão. Considerando a subnotificação, nós estaríamos já (de acordo com os especialistas na área de saúde) em torno de 4 milhões de casos no Brasil.

    Então o efeito prático é mais de um alerta nas Nações Unidas para jogar luz sobre o que o Governo Bolsonaro tem emitido em termos de opiniões – e são opiniões porque não há fundamentos nesses argumentos que tem sido apresentados, infelizmente, pelo Governo. Como menciona o documento, em rede nacional de rádio e televisão o presidente se referiu à grave crise sanitária que o mundo todo enfrenta como uma “gripezinha”.

    JULIANA MEDEIROS: Um dos pontos que ele menciona no documento é a discrepância de números entre o Brasil e a Venezuela, que mesmo considerando a diferença imensa de território entre os dois países, proporcionalmente é também gigantesca a diferença em relação ao contágio e ao número de mortes, não só do Brasil em comparação com a Venezuela, como em comparação com toda a região. O próprio documento [de Samuel Moncada] cita que o Brasil representa mais de 22% em relação à toda região da América Latina e do Caribe. O Brasil poderia, independentemente deste documento,  vir a ser responsabilizado pela forma como ele está tratando da pandemia, em nível internacional por alguma medida?

    PRGM: Neste momento nós não temos em andamento nenhuma queixa contra o Brasil, poderia ser na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, poderia ser levado ao próprio Conselho de Direitos Humanos da ONU. Inclusive a Michelle Bachelet, Alta Comissária de Direitos Humanos das Nações Unidas, em documento recente demonstra no caso do Brasil, dos EUA e da França, a forte relação entre a pandemia e a desigualdade, a pandemia e o racismo. E isso tem de fato, como estamos acompanhando, saltado aos olhos.

    No caso do Brasil, por exemplo, quando foi lançado o Auxílio Emergencial – que o Congresso aprovou de 600 reais (em três parcelas) – descobriu-se que o Brasil tem um quinto da população, cerca de 40 milhões de pessoas, “invisíveis” do ponto de vista do cadastro, elas não estavam nem no Cadastro Único nem no Bolsa Família.

    Mas o que pode ter ajudado a Venezuela a ter menos casos é sem dúvida nenhuma, a crise econômica. Empresas [de aviação] como a Latam e a Gol – e como se necessitam dólares para que a aviação civil atue em outros países – essas empresas já há mais de 2 anos pararam de voar para a Venezuela, sobretudo para a capital. Então a Venezuela tem muita dificuldade com voos porque tem dificuldade de acessar moeda estrangeira, sobretudo o dólar. A crise econômica na Venezuela também deixa a população mais exposta porque é uma crise também de desabastecimento, infelizmente. A Venezuela sem ter acesso aos dólares, enfrentando bloqueios da Inglaterra e [o confisco] de reservas em ouro do país, bloqueio nos EUA de ativos financeiros e físicos, inclusive de suas empresas e distribuidoras de petróleo como a CITGO (nos EUA) e que já dura alguns anos. Mas a crise econômica [fez com que] a redução do contato com estrangeiros, no que diz respeito a turistas, no que diz respeito à chegada do vírus e a velocidade com que ele chegou na Venezuela, tudo isso pode ter contribuído. É parecido, não igual, mas parecido com a situação da Argentina. Só que eles tomaram a medida de fechar rapidamente as fronteiras, inclusive suspenderam voos internacionais, o que num primeiro momento foi tomado por alguns países como uma medida radical. Então, a Venezuela nesse momento tem menos casos que o Brasil, certamente, mas há pessoas na Venezuela que estão próximas à fronteira com Roraima e há registros de que essas pessoas procuraram atendimento também em Boa Vista, na capital do Estado de Roraima.

    JM: E ele até cita que tem um fluxo muito grande de pessoas, de Venezuelanos tentando regressar à Venezuela e eles se preocupam com esse fluxo porque eles estão saindo de Estados como o Amazonas e Roraima que estão extremamente afetados pela Covid-19.

    PRGM: E o outro ponto importante, Juliana, é que as políticas que foram desenvolvidas sobretudo no Governo Chávez na área da saúde, elas contaram com a presença de médicos cubanos. E depois o Brasil também veio a ter um programa exitoso, chamado Mais Médicos pelo Brasil e que logo no início, houve um lobby de parte do Conselho Federal de Medicina e demais organizações que trabalharam junto ao Governo Bolsonaro para inviabilizar a continuidade desse programa. E isso é gravíssimo porque são regiões hoje no Brasil que estão exatamente necessitando agora desses médicos, desse atendimento. E nada foi posto no lugar desde a saída dos médicos cubanos e com o fim do Programa Mais Médicos e isso é um crime contra a humanidade, eu colocaria assim. Os Estados tem trabalhado muito, em que pese a oposição do Governo Jair Bolsonaro, os Estados em sua maioria tem trabalhado muito junto às Prefeituras para enfrentar a pandemia com os recursos que eles tem e que não são tantos vindos do Governo Federal porque este tem uma estratégia de retardar a chegada dos recursos. Quando era ainda o Ministro [Luiz Henrique] Mandetta, e estava começando a pandemia, o Brasil estava com uma boa equipe na área de saúde sobretudo técnicos concursados do Ministério da Saúde ou cedidos da Fiocruz ou de outros órgãos importantes da área de saúde do Brasil, e eles estavam preparando um plano de contingencia que se tivesse sido colocado em andamento certamente o Brasil teria muito menos mortes, teria muito menos casos registrados. Essas milhares de vidas estão se perdendo de maneira irresponsável e como você colocou, isso poderá vir sim, passada a pandemia, no pós-pandemia, ser motivo de algum tipo de ação ou no Brasil ou em alguma instância internacional contra o atual Governo. E nesse ponto, na questão do [Programa] Mais Médicos, a saída deles [cubanos] deixou diversas populações vulneráveis, inclusive populações indígenas.

    Atualmente, 60% dos brasileiros estão distantes de uma UTI em média 700km então essa presença dos médicos de forma capilar através de programas como o Saúde da Família e reforçados com o Mais Médicos, teria ajudado muito o Brasil nesse momento e poupado muitas vidas, sem dúvida alguma.

    E porque eu menciono o Mais Médicos, porque a Venezuela é um dos países que mais trabalhou junto à Cuba em relação a esse programa (que tem outro nome lá) exatamente para atender a população mais vulnerável, populações mais expostas a um conjunto de doenças e com necessidade de atenção básica à saúde. Então eu acredito que isso também pode ter contribuído, a disseminação por mais de uma década de um programa – que hoje deve estar mais debilitado pela falta de recursos da Venezuela – mas que contribuiu para a disseminação de práticas de higiene, cuidados básicos com a saúde e que a população rapidamente absorveu e que agora, mesmo com a falta de recursos materiais, faz com que estejam conseguindo contornar parte dessa grave crise sanitária.

    JM: Sim, na verdade o Governo venezuelano conta desde sempre com um número expressivo de médicos cubanos que atuam dentro da Venezuela, esse programa nunca cessou na Venezuela e acho que é importante também mencionar que Cuba vem sendo um dos países que mais tem contribuído com essa força médica em relação também a outros países no mundo. Eles mandaram delegações [de profissionais de saúde] para países africanos, para a Itália, para o Vietnã, para vários países e acaba fazendo diferença esse apoio médico de uma maneira geral (para qualquer país). Mas a Venezuela tem reportado a atuação e o trabalho ou mesmo as estratégias de prevenção que eles vem usando, de testagem, tudo tem sido sempre em parceria com médicos e especialistas cubanos e agora, mais recentemente, com a delegação de médicos chineses que foi à Venezuela para ajudar nesse manejo técnico, de como tratar dessa situação de emergência sanitária.

    O Embaixador Samuel Moncada destaca ainda as ameaças que o governo brasileiro vem fazendo em relação ao multilateralismo, seguindo principalmente as orientações do presidente Donald Trump. Os EUA anunciaram recentemente que iriam se retirar por exemplo, da OMS e o Brasil, como tem feito desde o início, ameaçou fazer o mesmo. Ou seja, tem tentado mimetizar decisões em nível diplomático e internacional que os EUA aplicam e também outras decisões em nível interno. Mas o que poderia ocorrer, professor, na prática conosco, porque os EUA são uma potência. Temos que lembrar que somos um país gigantesco em termos continentais mas não somos uma potência nem militar nem econômica como os EUA, que talvez pudesse sair de uma situação como essa sem maiores prejuízos (ainda que seja o primeiro hoje no mundo em número de casos e mortes) mas talvez pudesse “sobreviver”, digamos assim, à essa emergência sanitária sem o auxílio de uma organização como a OMS. Para o Brasil, o senhor entende que isso nos afeta, mais à frente poderíamos ser responsabilizados também por negligência no trato dessa situação?

    PRGM: Desde 12 de março, quando a Organização Mundial da Saúde decretou o estado de pandemia por conta da Covid-19 rapidamente os países procuraram absorver essa recomendação e o caso é que os EUA, a saída que o Donald Trump anunciou (a retirada da OMS) é sim um baque muito grande porque os EUA é o país que mais contribui financeiramente, não só com a OMS mas também outras instituições do sistema ONU, então isso debilita economicamente a OMS. Mas qual é a base para a decisão do Trump? A base não é científica e não é de um estranhamento, ou seja, de tomadas de decisões da OMS que poderiam ser contrárias ao interesse dos EUA e, como você colocou, dado que são uma grande potência, uma potência hegemônica na ordem internacional contemporânea. O fato é que Donald Trump tem como uma das suas narrativas em relação à Covid-19, primeiro (através de fake news e informações que não são verdadeiras) de querer associar o vírus a uma estratégia chinesa, a algo pensado pelo Partido Comunista Chinês para dominar o mundo e debilitar as economias e assim por diante. E o segundo ponto é que a China, através da Sinopec – que é uma das empresas do estado chinês, um laboratório – está entre as dez vacinas mais promissoras no curto prazo para se combater a Covid. Então a China tem trabalhado em cooperação com outros países, inclusive o Brasil nesse momento. A China vem trabalhando ainda, com a Sinopec, junto ao Instituto Butantã de São Paulo, que provavelmente terá financiamento também da FAPESP (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de SP) de tal modo que se o Governo de SP junto com o Estado Chinês, reforçando esse instrumento de cooperação na saúde (e que o Brasil também tem muito a contribuir com a expertise do Butantã, da Fiocruz etc.) se chegar a essa vacina, será um ganho para o mundo todo.

    Inclusive depois essa vacina poderá ser produzida, tudo leva a crer, sem a proteção de patentes o que é outro dado geopolítico e econômico fundamental. Porque não basta ter a vacina, o problema é que sobretudo seja uma vacina de dose única para o custo ser menor e que consiga ter uma produção em massa que possa chegar a 7 bilhões de doses no mundo. Isso é um desafio muito grande e que sem a cooperação científica, tecnológica, é quase impossível pensar num cenário assim (embora não de todo impossível).

    Um outro ponto que se apresenta aí Juliana, é a posição do Brasil [em relação à OMS], o Governo Bolsonaro com sua retórica negacionista, e nesse ponto ele também copia o Governo Trump (e claro que aquilo que o Brasil teria que aportar em termos de recursos não chega nem perto do que contribui os EUA para a entidade) mas o que o Governo Bolsonaro tenta fazer é somar forças ao argumento dos EUA de exatamente culpar a China. De que a OMS estaria “passando a mão” na cabeça da China. E [por conta disso] a União Europeia apresentou uma demanda na OMS de uma comissão independente para estudar o vírus, a origem, se o Governo chinês tinha conhecimento desde os primeiros casos até o momento da sua comunicação para a OMS. Mas o que os EUA querem é que a China assuma não só a culpa e a responsabilidade pela disseminação do vírus pelo mundo, mas que num futuro próximo ela tenha que reparar economicamente o mundo todo por esse dano. Então o que tem ocorrido internamente [em nosso continente] é que a China já passou a comprar mais carne da Argentina, a China – cumprindo acordo comercial assinado com Donald Trump – vem comprando mais soja dos EUA, então a resposta da China é na prática. Ela não quer estremecer as relações com o Brasil, mas também não vai ficar sofrendo ataques de Ministros do Governo Bolsonaro de forma permanente sem reagir. Até o próprio Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, chegou a batizar de “comunavírus” e assim por diante, uma série de insultos ao povo chinês e à República Popular da China que ele não vê nenhum problema de que isso tudo possa estremecer as relações com aquele que é o principal parceiro comercial do Brasil.

    JM: Como disse, eu estou conversando com Roberto Goulart Menezes, que é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB e Coordenador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos e eu queria finalmente professor que o senhor dissesse se acredita que essa situação de pandemia que a gente está vivendo acabou acrescentando claro, de uma forma inesperada mas real, um dado a mais na forma como o Brasil vem conduzindo isso também em nível internacional, um dado a mais na imagem do Brasil que já está tão arranhada nesse aspecto das relações internacionais, da forma como o Itamaraty vem sendo conduzido. O senhor acredita que isso veio se adicionar a esse dado histórico, que vai ficar essa marca para o Governo brasileiro?

    PRGM: O Ministério das Relações Exteriores do Brasil a maneira como ele vem sendo conduzido pelo atual Ministro, não há dúvida nenhuma que mostra o desprestígio que o Ministério tem junto ao Governo Bolsonaro, primeiro por ter escolhido um diplomata tão insignificante como aquele que ocupa o cargo hoje, sem visão estratégica, sem elaboração conceitual, nunca divulgou um documento. Nesses quase dois anos de governo nós não temos um único documento com as diretrizes da política externa do Brasil. O assessor para assuntos internacionais do Governo Bolsonaro, Filipe Martins, a mesma coisa. O que nós temos é um Ministério das Relações Exteriores que está subordinado a um dos filhos do presidente, Eduardo Bolsonaro, um deputado que já presidiu a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, uma importante comissão. Então, [o Ministro] está sujeito aos caprichos desse deputado, tanto é assim que nós tivemos o Bolsonaro, logo após a eleição, antes da sua posse e ao receber o John Bolton em sua casa no Rio de Janeiro, num condomínio, ele ofereceu ao John Bolton uma base militar dos EUA no Brasil. Isso pegou de surpresa todos os brasileiros, mas sobretudo os militares que estão, boa parte deles, na base de apoio ao Governo Bolsonaro. Depois nós tivemos no caso do chamado Grupo de Lima em que o Ministro das Relações Exteriores chegou a endossar uma proposta de invasão da Venezuela, e que depois na segunda reunião ele já não foi mais e quem foi representando o Brasil foi o vice-presidente, General Hamilton Mourão, que disse que não ia ter nenhuma aventura bélica desse tipo por parte do Brasil contra qualquer um dos seus vizinhos, ou país da América do Sul. Depois, o presidente dos EUA, ao se retirar do Acordo de Paris, o governo brasileiro também veio desmontando a política ambiental no Brasil e isso sem dúvida nenhuma, ainda mais no caso da Amazônia com as queimadas, o aumento do desmatamento, a tentativa de inviabilizar o Fundo da Amazônia com a Noruega e a Alemanha.

    Então, o Brasil internacionalmente, como tem sido dito por muitos, está numa condição de pária internacional e o que vem sendo feito, não é que houve uma mudança ou continuidade do Itamaraty, houve sim uma destruição do que vem sendo feito desde 1985, pelo menos, no que diz respeito à presença do Brasil na cena internacional.

    O [ex-Ministro] Celso Amorim chegou a usar uma expressão no início do Governo Temer, de que o Brasil iria para o “cantinho do mundo”, mas hoje nem no cantinho do mundo o Brasil está, não tem esse cantinho para ele. É deplorável o que ocorre com a política externa brasileira. Mesmo analistas mais conservadores da política externa brasileira, analistas mais próximos até desse governo, já tem dificuldade em identificar alguma linha racional ou lógica da atuação internacional do Brasil. O que esse governo faz com a política externa brasileira é condicionar e subordinar o Brasil, um país dessa importância, com essa magnitude, sem querer superestimar o Brasil mas há um alinhamento “nu e cru” quase similar ao que a Argentina chegou a expressar durante o Governo [Carlos] Menen de “relaciones carnales” com os EUA, ou seja, uma relação que coloca o Brasil em uma posição ainda mais vulnerável internacionalmente e não representa objetivamente a defesa de nenhum interesse nacional.

    Há essa falta de uma linha, de uma diretriz da política externa brasileira, uma falta de racionalidade e de senso lógico, porque o Itamaraty vem sendo não só desprestigiado pelo Governo Bolsonaro, mais do que isso, vem sendo corroído por dentro por um Ministro que até esse momento não dá mostras de nenhuma linha de defesa dos reais interesses da política externa do Brasil.

    A não ser essa [mais recente] em que assessores do Steve Bannon, que é um ideólogo da extrema direita nos EUA e que agora uma das pessoas do seu movimento está em processo, tentando se mudar [juridicamente] a assessoria do Itamaraty para que esse sujeito ligado ao Bannon venha ser assessor especial do Ministro das Relações Exteriores do Brasil! E ainda não há nenhuma reação infelizmente da sociedade brasileira, nem matérias na imprensa, mas também o próprio corpo diplomático que vem assistindo isso de maneira imóvel, e nós sabemos da dificuldade que eles têm de reagir. O fato é que está sendo confundido o Itamaraty, um Ministério que é de Estado com o Governo. E disso temos mostras diárias que vêm sendo dadas por aqueles que são responsáveis pela política exterior do Brasil.

    JM: Muito obrigada professor, espero poder contar contigo em outra oportunidade também.

     

    * Juliana Medeiros é jornalista, repórter de política da Rádio Cultura FM de Brasília.

     

    Confira a íntegra da Carta enviada por Samuel Moncada em português:

     

    No. 00136

     

    Nova York, 15 de junho de 2020

     

    Sua Exc.ª. Sr. António Guterres

    Secretário Geral

    Nações Unidas

     

    Ilustre Secretário Geral,

     

    Tenho a honra de dirigir-me a Vossa Excelência na oportunidade de me referir à perigosa situação que sofre a América do Sul, incluindo a República Bolivariana da Venezuela, como resultado do avanço agressivo da COVID-19 e da irresponsável atuação do Sr. Jair Bolsonaro, Presidente da República Federativa do Brasil, país onde hoje se encontra o principal foco da enfermidade em nossa sub-região.

    Desde o momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a evolução da infecção por COVID-19 como uma pandemia, o governo do Presidente Nicolás Maduro Moros lançou uma série de medidas para garantir a proteção e o bem-estar do povo venezuelano, incluindo seu direito à saúde e à vida, bem como para cooperar com os esforços globais destinados a conter a propagação desta terrível doença. A estratégia venezuelana foi coordenada com o Sistema das Nações Unidas, a fim de garantir sua eficácia e ajustá-la aos protocolos internacionais que foram estabelecidos.

    Hoje, apesar da campanha de agressão a que nosso país está sujeito, a Venezuela é o país com a menor taxa de contágio e com o menor número de casos confirmados de COVID-19 por milhão de habitantes na América Latina e no Caribe, enquanto se encontra na vanguarda em número de testes de triagem administrados à milhões de habitantes em nossa região. Isso é possível graças à compreensão imediata do nosso governo da magnitude da emergência sanitária, bem como da solidariedade e assistência técnica fornecida por vários parceiros, incluindo o Sistema de Nações Unidas.

    Excelência,

    Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), até 15 de junho, o hemisfério ocidental registrava mais de 3.841.609 pessoas infectadas, das quais a República Federativa do Brasil representa 22,13% do total. No período compreendido entre 29 de fevereiro a 15 de junho deste ano, o número de casos confirmados naquele país, alcançou a cifra preocupante de 850.5141¹ – ou seja, 10,87% de todos os casos relatados à OMS em todo o mundo -, com o lamentável falecimento de 42.720 pessoas. É por isso que a atual situação sanitária no Brasil coloca em sério perigo milhões de vidas, dentro e fora desse país, e afeta negativamente as ações que nosso governo implementou para controlar a disseminação da doença e suas consequências devastadoras.

    Como o senhor bem sabe, o Brasil é o país com a maior extensão territorial da América do Sul, compartilhando fronteiras com nove (09) países da nossa região, incluindo 2.200 quilômetros com a Venezuela. Portanto, um fator que causa profunda preocupação a nossa nação é a porcentagem de casos confirmados de COVID-19 na população dos estados fronteiriços brasileiros do Amazonas e de Roraima, onde há uma intensa transmissão comunitária do vírus. Neste 15 de junho, por exemplo, toda a Venezuela registra 3.062 casos confirmados, enquanto apenas os dois estados fronteiriços do Brasil contabilizam mais de 62.000 casos confirmados.

    À luz do exposto, permita-nos enfatizar que a negligência criminosa do governo brasileiro ao abordar essa realidade nas regiões limítrofes da fronteira sudeste de nosso país é motivo de grande alarme, considerando a alta mobilidade humana que se registra hoje nessa área, quando milhares de migrantes venezuelanos, fugindo da discriminação, da xenofobia e outras formas relacionadas de intolerância as quais tem sido vítimas no país vizinho, retornam voluntariamente à Venezuela, o que poderia desencadear a propagação do vírus em nosso território nacional, muito apesar dos protocolos que estão sendo implementados nas diferentes fronteiras nacionais diante do retorno voluntário de milhares de compatriotas.

    Excelência,

    A catástrofe sofrida pelo Brasil como consequência da COVID-19 afetará, sem dúvida alguma a República Bolivariana da Venezuela e a todos os países da região. Nesse sentido, permita-nos chamar sua atenção para algumas ações alarmantes do Governo do presidente Jair Bolsonaro, que são chaves fundamentais em relação à pandemia:

    1. Negação da severidade da pandemia: Em um pronunciamento que ocorreu em 25 de março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro atacou o fechamento de escolas e comércios em algumas partes do seu país para conter a disseminação da COVID-19, que ele comparou com uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”². Da mesma forma, enquanto outros países da região tomaram severas medidas de confinamento para retardar a propagação do vírus, o Presidente Bolsonaro participava de uma manifestação no dia 18 de maio de 2020³, na cidade de Brasília, contrária às medidas de proteção para a população promovidas pelos governadores das unidades federativas regionais, reafirmando assim seu menosprezo por dados científicos, por esforços dos trabalhadores da saúde e da comunidade internacional para salvar o maior número de vidas possível.
    2. Carência de uma política pública coerente para contenção da pandemia: Durante o primeiro trimestre de 2020, o mundo inteiro pôde observar como o presidente Jair Bolsonaro removeu dois (02) Ministros da Saúde pelo simples fato de apelarem ao bom senso que deve prevalecer frente a calamidades como a levantada pela COVID-19. Esse vazio se torna mais evidente quando, em 20 de março de 2020, o presidente Bolsonaro decretou a reversão da competência dos Estados para restringir os movimentos da população em um esforço para conter a propagação do vírus. Quatro dias mais tarde, o poder judiciário se viu obrigado a intervir para revogar a ordem, pois colocava em risco a saúde e mesmo a vida de toda uma nação. É claro que estamos diante de um Chefe de Estado e Governo que intencionalmente impede, com abuso de autoridade, a salvação das vidas de seu próprio povo.
    3. Ameaças ao multilateralismo: Nos últimos dias, o Presidente Jair Bolsonaro disse aos meios de comunicação que o Brasil poderia seguir o mesmo curso adotado pelos Estados Unidos e decidir retirar-se da OMS. Hoje, mais do que nunca, essa pandemia mostrou que a solidariedade e a cooperação internacional multilateral são fundamentais, tanto para salvar vidas como para proteger as conquistas da humanidade no último século. A retirada do Brasil da OMS, em meio ao terrível custo humano da pandemia, só pode ser entendida como um ato de desprezo do Presidente Bolsonaro contra a vida de seus cidadãos e contra as vidas de todos os povos da região.

    À luz do exposto, podemos afirmar, sem medo de equivocarmo-nos, que hoje o presidente Jair Bolsonaro e seu governo se converteram no pior inimigo dos esforços para sairmos vitoriosos da pandemia da COVID-19 na região da América Latina e Caribe.

    Em consequência, solicitamos muito respeitosamente os bons ofícios de Sua Excelência, para exortar as autoridades do Brasil a cessarem suas ações imprudentes na luta contra esta enfermidade mortal. A enorme importância do Brasil na região faz com que sua influência seja ampliada, tanto para fazer o bem quanto para fazer o mal. É doloroso ver como hoje está desperdiçando a oportunidade de liderar a luta para salvar milhões de vidas e, ao contrário, está se convertendo em um gigantesco agente regressivo e destrutivo. Dessa forma, hoje o Brasil é uma verdadeira bomba humanitária que põe em risco a saúde, o bem-estar e a vida de nossos povos.

    Sem mais referências, e agradecendo antecipadamente a atenção que brinda a esta carta, aproveito para reiterar a Sua Excelência as garantias da minha mais alta estima e consideração.

     

    SAMUEL MONCADA

    Embaixador, Representante Permanente da

    República Bolivariana da Venezuela perante as Nações Unidas

     

    • Tradução: Juliana Medeiros