Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • DAS PRIORIDADES E AS PALAVRAS ERRADAS

    DAS PRIORIDADES E AS PALAVRAS ERRADAS

     

    Prioridade deveria ser palavra fixa, como vida, encerrando-se apenas na morte, cumprindo seu destino e meio, princípio e fim.

    Certa manhã, em 2008, me recordo que entristeci. Frei Betto, fiel companheiro dos excluídos, expunha em entrevista*, suas dores com a mudança de rumo na fome que se pretendia zero. A tal prioridade se deslocava da emancipação para a assistência. Tanta diferença isso faria, hoje sabemos da cegueira que se instalou, como apagar de chama, fim de velas. A paisagem que um dia acreditamos e imaginamos em noite escura seria limpa e alva honra, certa na tela pintada por tantas vontades.

    Ali entristeci porque se abria a caixa de Pandora, não o mapa da mina, tesouro que em nós, brasileiros, reside.

    Tudo torto corre hoje, desbotado. Em tempos de mea-culpa nos perturba a dúvida.

    Entre os programas Fome Zero, Bolsa Família e o fim desse longo ano de 2016, tanta coisa aconteceu e, como rio, se transforma a todo momento. Frei Betto me ecoa em lembrança oportuna nesta segunda-feira após o Natal, quando novamente leio, em jornal, a afirmativa obtusa de outros em opinião na grande mídia:

    A muleta eleitoral do Bolsa Família tem provocado também uma mudança de perfil das cidades administradas pelo PT. O partido perdeu espaço nos grandes centros urbanos, nos quais, pelo próprio tamanho do eleitorado, a influência do benefício social sobre o voto é menor. Por exemplo, nas eleições de 2012, o partido havia conquistado no Nordeste a prefeitura de sete cidades com mais de cem mil habitantes. Agora, perdeu em todas as sete. O que restou do poder do partido ficou concentrado em pequenos municípios, com menor poder econômico e, consequentemente, com uma população mais dependente de benefícios estatais.”**

    Lula afirmava que o programa Bolsa Família era a porta de entrada para uma era de desenvolvimento e que para mastigar a carne era  necessário a dentadura. O grande milagre.

    Não serei eu a desqualificar o Bolsa Família, pois ali onde estiver o seu tesouro ali é teu coração. Não tem nada mais feio que a fome, Lula tinha razão, mas a fome não é só comida, sabemos bem.

     

     

    https://soundcloud.com/institutolula/lula-se-eu-voltasse-no-tempo

    http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/03/15/ult23u1484.jhtm  *

    http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-voto-do-bolsa-familia,10000096526  **

     

     

  • O LÁBARO DO AUTOENGANO

    O LÁBARO DO AUTOENGANO

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    Cresci ouvindo falar de índios. Recordo, criança, a primeira festa no jardim da pré-escola, todos pequenos amigos, fantasiados como em aldeia, dançando para os pais. Todos ficavam felizes e tiravam muitas fotos. Me recordo também que os jornais e revistas traziam imagens de novos povos descobertos no meio do caminho, nas estradas que se abriam entre os carros cor verde floresta, que desfilavam quando tinha festa na rua grande da cidade. O chão que se pisa é de quem o habita, e muitos habitavam as terras que tinham que ser ocupadas, e sempre via nos jornais e revistas as notícias dos irmãos Villas Boas, que todos conheciam de nome. Em Bauru, já  muito jovenzinho, em 1978, conheci o cineasta Zelito Viana em palestra, que passava pela região recolhendo cenas para Terra de Índios. Me surpreendi ao descobrir que índios ainda resistiam tão próximos. A partir de então fui querer saber e conviver com indígenas e descobri o conflito de interesses e entendimentos sobre o valor social da terra.

    Nos últimos 30 anos o movimento indígena  evidenciou os muitos povos tradicionais em movimento em toda América do Sul e sua obstinada cultura e conflito secular com a sobreposição de visão de mundo, territórios e o mercado que assola tudo e quer igualar a todos. Sejamos consumidores talvez seja teimosia e legado dos portugueses. No país, hoje, novas palavras incidem e nos atordoam: PEC, agro, impeachment e tantas outras. A poesia vai encontrando suas adversidades.

    O país que vai se escancarando ao País é um susto só. O surto é grave, pois destituir a presidência é como instalar safenas, radiais e mamárias. Tais atos deveriam ser permitidos somente   aos médicos. Tudo entrou em descompasso, em contratempo. Aproveitam-se disso para estabelecer uma série de novas conveniências.

    Recentemente, na contramão do novo constitucionalismo latino-americano, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Congresso Nacional aprovou a PEC n. 215/2000, que prevê a alteração da competência, para o Poder Legislativo, das questões relacionadas às demarcações  de terras indígenas.

    Segundo excelente artigo de Larissa Borges Fortes, advogada de Passo Fundo , na REVISTA JURÍDICA DIREITO & PAZ, entendemos que, de acordo com o artigo 231 da Constituição de 1988, as demarcações são de competência exclusiva da União, cabendo ao Poder Executivo a efetivação desses atos. Larissa formula a questão: em que medida a PEC n.º 215/2000 pode representar um retrocesso nas garantias sobre os direitos indígenas no Brasil? Representa um retrocesso no âmbito dos direitos indígenas no Brasil, considerando, principalmente, os rumos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano.

    Importante destacar que muitas das legislações anteriores à Constituição de 1988 tratavam os indígenas enquanto incapazes, inferiores, impossibilitados de se autogovernar. Muitas das situações vivenciadas pelos indígenas – de menosprezo e/ou indiferença – quando da invasão dos europeus em território americano, ainda ocorrem.

    Afirma Larissa Borges Fortes:

    “ Ao se observar o histórico legislativo brasileiro, no que tange aos direitos indígenas, percebe-se que por um longo período não se teve reconhecimento das populações indígenas enquanto sujeitos/atores sociais. As legislações anteriores à Constituição de 1988 previam uma necessidade de incorporação dos povos indígenas à “comunidade nacional”. Pretendia-se, resumidamente, a aniquilação da cultura indígena, fazendo com que esses povos “aderissem” aos mecanismos “certos” de tradição, aos olhos dos colonizadores. Não existe, nessa atitude, nenhuma perspectiva de aperfeiçoamento democrático, pois a exigência  da Tolerância , não obstante tenha caráter contratual , jamais foi desvelada ou vivida, ou seja, a Alteridade , entendida como pressuposto de convivência sadia entre os povos, é fenômeno sempre encoberto pelo medo, pela desconfiança acerca do Outro.”

    A conclusão de Larissa Borges Fortes não poderia ser diferente: quando se observa a verdadeira crise de representatividade política que o Brasil vivencia. A PEC n.º 215/2000 representa retrocesso, na medida em que, se aprovada, estariam os povos indígenas submetidos a um Congresso que não possui um único índio dentre os seus membros. Em contrapartida, os representantes do atual Legislativo defendem – massivamente – as grandes corporações privadas, os latifundiários, o agronegócio, as empresas extrativistas, enfim, todos aqueles que possuem interesse econômico que as demarcações de terras indígenas não ocorram ou ocorram da maneira como melhor convier aos seus exclusivos interesses. Esse projeto de Emenda Constitucional não é, em nenhum sentido, expressão das forças e lutas sociais para uma vida digna a todos os quais pertençam, nos limites daquele território, à família humana. Sem uma Opinião Pública forte – especialmente das vozes esquecidas, oprimidas e marginalizadas – a lege ferenda ( lei a ser criada ) se torna o espaço de manifestação da Opinião Publicada, da vontade de outros setores – públicos ou privados.

    O sentido existencial da Constituição não é desprezar todo o cuidado na construção dos direitos de muitos povos para atender aos interesses econômicos de poucos, porém de reconhecer a intensa vulnerabilidade das pessoas e criar diferentes estratégias a fim de atender, na maior medida possível, os plurais e diferentes interesses, especialmente dos povos indígenas.

    O direito analógico dos índios vai se esvaindo em nossas armadilhas digitais. Se o ponto é redondo, o pixel é quadrado. Tristes tempos e ética se apontam.

    Waurá - Pyuluene
    Índios Waujá conversam com seus bichos, num entendimento diverso do nosso sobre as relações.
  • NOSSAS PRESIDENTAS NUESTRAS

    NOSSAS PRESIDENTAS NUESTRAS

    São demais os perigos desta vida quando as mulheres não se deixam no céu como esquecidas, aprendi cedo na poesia do poetinha, e no meu país, agora, hoje, vejo o encontro de mulheres que foram presidentes. Lindas, fortes, senhoras.

    “Me desculpem os homens brancos, mas, geralmente são homens ricos, brancos e velhos na política, e não negros e mulheres.”

    Mesmo sendo homem, não entendo muito o que nos desconcerta tanto numa saia dona de si, vestido livre e mandatário. Nada mais horrorível, como dizia com amigos quando criança no interior, do que ver uma mulher de toga. Poder é estar sedutora e dona do mando. Isso talvez dê curto-circuito nas sinapses, os antropólogos que expliquem. De mim digo que me constrange ver a lucidez da mulher, seu jeito, cair nas mãos de um Temer, um Macri, um Trump. O mundo já é feio o suficiente para ter galanteadores nos atazanando com suas arcaicas formas.

    Mas vamos aos fatos e fotos: era uma grande sala na Liberdade, sala lusíada em território japonês da metrópole. Centenas de cadeiras aprumadas e um tênue silêncio. Tudo parece querer e aguardar mulheres ausentes que dirão  aos homens velhos e jovens, mas principalmente às mulheres sempre destronadas na América do Sul,  a triste parte que lhes cabem nas terras da grande América, pois quem manda aqui são coronéis.

    Tudo vai se povoando de jovens, muito jovens, e uma gente preta, parda, branca, barbudos, senhoras. Mulheres delicadas e fortes como araucária nos prados, aguardam todos ao palco. Ex-presidentes damas após os reis intrusos que pervertem sempre o sul da América.

    Grupos do público protestam contra a organização do evento para a liberação de área reservada no salão. Logo o protesto tem efeito e a liberdade mostra sua glória e bairro. O auditório é de todos e se enche de certeza e fé no que é certo é certo, o voto.  Fora Temer! É frase comum que ecoa.18dc

    Enfim as mulheres chegam ao palco. Grandes mulheres, mais doces e firmes do que pedra de engenho. Pura cachaça na alma da gente que ama a democracia. Tão íntimas se expõe a todos.  Dilma e Cristina são seus nomes. Nós homens seguimos obtusos, acanhados, cretinos. Viva o mercado, dizem os engravatados.4dc

  • ÍNDIA MÃE

    ÍNDIA MÃE

    O que vejo ao longe é um corpo, mas de repente, se achegando mais próximo, não, não é um corpo, mas mãe e neném entrelaçados. Mãe e filho, alimento e segurança. Desvelar a maternidade indígena é algo que alvoroça nossos hábitos. Ser mãe não é ser apenas genitora. A mãe é casa, é cama, é o remédio que afasta fraquezas, medos e fomes nos primeiros dias e meses de vida entre os pequenos indígenas. Ser mãe é também ser as tias, primas e irmãs. Ser mãe é ser as parteiras do clã. Não há imobilizações, afastamentos ou isolamentos com os nascidos na aldeia. Ser mãe é algo mais amplo entre as indígenas.

    Ikpeng
    Ayré Ikpeng, anciã parteira na aldeia Moygu, médio Xingu, MT.

    Tudo é acolhimento de todas as crianças, entre todos na aldeia. Os pequenos um dia terão que virar jovens, depois adultos terão que ser independentes, e isso só é possível com o corpo da família muito próximo, como instrumento de formação e transferência de cultura. Enfim, o encantamento e embalo da vida se dá entre muita intimidade e liberdade, evidenciando a relação entre corpo e consciência na tradição.

    A divisão sexual do trabalho é um padrão social entre os povos indígenas, distinto do  que incomoda e contempla nossas carências urbanas, onde os pais saem ao trabalho e as crianças ficam na escola. A criança indígena se alimenta sempre que tem fome, não em um tempo cheio de regulamentos para se saciar. Brinca sempre que se aguça a vontade do lúdico, independe de autorização ou padrões de segurança. A criança indígena aprende a todo momento com outras crianças, que cuidam umas das outras.

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    Crianças Kawaiwete correm livremente na chuva descobrindo possibilidades.

    Ser mãe indígena é entrar num processo de amadurecimento na comunidade. Regras, resguardos e cuidados passam a ser exercitados após o longo convívio de ensinamentos com os parentes e os mais velhos. A família logo se expande e passa a compor a coletividade e a fortalecer o clã. Como descreve a enfermeira Amanda Ferreira Monteiro:

    “A importância específica do ciclo gravídico-puerperal na mulher indígena pode ser traduzida pelo fato de que em contexto de aldeamento têm-se altas taxas de fecundidade ao longo do período reprodutivo, com intervalos intergenésicos bem curtos delimitados pelo período de amamentação e regras anticoncepcionais específicas que variam de etnia para etnia.”

    Na cidade temos saudades da natureza. Quando adultos sentimos saudades de ser criança. Entre os índios tudo isso é desencanto, pois nada carece de vazios, já vivido plenamente a seu tempo. Aqui cabe citar um parágrafo de uma carta de uma mãe indígena Navajo, dos Estados Unidos, a uma professora americana, em 1976:

    “Meu filho não está acostumado a ter que pedir permissão para fazer as coisas comuns que são parte da sua vida diária. Quase nunca se lhe proíbe que faça algo; comumente as conseqüências de determinada ação lhe são explicadas, e a ele se lhe permite decidir o que fará. Sua existência inteira, desde que tem idade para ver e ouvir, tem sido uma situação de aprendizagem pela experiência aparelhada para proporcionar-lhe a oportunidade de desenvolver os seus dotes e sua confiança em suas capacidades.”

    Mãe Huni Kuin se adorna e celebra a maternidade.
    Mãe Huni Kuin se adorna e celebra a maternidade.

    Nos dias de hoje tudo vai se afrouxando nos caminhos de mata e campos que levam às milhares de aldeias. Toda tecnologia vai enfraquecendo hábitos e costumes, amenizando normas, desviando tradições, e esse é o grande desafio para as etnias e o conflito entre os futuros possíveis. Um longo caminho se traça às etnias e suas particularidades culturais.

     

  • A MENSAGEM

    A MENSAGEM

     

    Quando tocou o telefone no fim do dia li a mensagem que se abria, e por coincidência chegou a noite. Era Karla, a doutora que recebe e assiste muitos imigrantes e refugiados no centro da cidade:karla-portes

    Doutora se foi e deixou mensagem. Mera coincidência, a noite continua e Bob Dylan questiona na rádio quantos caminhos um homem deve andar para ser aceito como um homem.

    Na noite solidão, um eco.kp2

  • Frei Betto: O Papa e a Igreja Católica entre a idade da razão e o contrapeso dos santos

    Frei Betto: O Papa e a Igreja Católica entre a idade da razão e o contrapeso dos santos

    Frei Betto, dominicano e notório militante de movimentos pastorais, conhecido por sua trajetória de luta contra a ditadura militar no Brasil e expoente da Teologia da Libertação teve uma conversa exclusiva com os Jornalistas Livres sobre o lugar da Igreja Católica no atual cenário político brasileiro e mundial, a relação com as igrejas pentecostais e o avanço do conservadorismo moral e político. Frei Betto reafirma a responsabilidade social da instituição e garante que o Papa Francisco é, “hoje, o único líder mundial capaz de aglutinar as forças progressistas.” Segue a íntegra:

    Jornalistas Livres – Nos últimos anos temos assistido a um deslocamento de poder e de vontades da esquerda para a direita. Isso vem se evidenciando e se intensificando, o que mostra que conflitos que pensávamos estar superados ou em vias de se deslocar ao passado histórico seguem muito vivos e presentes. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco se posiciona de maneira progressista. O que está acontecendo dentro da Igreja enquanto instituição, de maneira geral e no Brasil? Como a tendência conservadora se reflete?

    Frei Betto: O papa Francisco realmente surpreendeu ao se revelar muito mais progressista do que o cardeal Bergoglio… Ocorre que ele se elegeu pontífice após 34 anos dos pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. De modo que temos, hoje, uma Igreja Católica com cabeça progressista e corpo conservador. Ora, as posturas de Francisco, sobretudo em sua crítica contundente ao capitalismo, tem resultado em forte reação contrária, tanto da mídia quanto de cardeais, sobretudo nos EUA. Ele, no entanto, não se deixa abalar. É um homem sem medo, totalmente entregue às mãos de Deus. No encontro pessoal que tivemos em Roma, a 9 de abril de 2014, eu lhe disse em latim: “Fora dos pobres não há salvação”. E ele reagiu prontamente: “Estou de acordo, estou de acordo!”

    JL– Escuta-se que parte da Igreja não apoia as aberturas propostas pelo novo Papa. Como essa oposição acontece no Brasil? Como estão se portando as partes mais progressistas por aqui?   

    FB: No Brasil as críticas são mais discretas. Havia a oposição aberta do arcebispo de João Pessoa, Aldo Pagotto, mas ele foi afastado pelo próprio Francisco. Há movimentos  católicos conservadores que, no passado, eram ardorosamente papistas, e agora se sentem constrangidos com os documentos e pronunciamentos papais. A CNBB oficialmente segue o papa, mas não é capaz de fazer eco às palavras e posturas dele na conjuntura brasileira. Tanto que a censura que Francisco fez ao golpe de Temer precedeu ao documento, um tanto diplomático, da CNBB sobre o mesmo tema.

    JL– Essas divergências contribuem para gerar um enfraquecimento da Igreja Católica? Ou fomentam um movimento mais conservador em boa parte do Ocidente?  

    FB: Divergências sempre houve na Igreja, basta ver que Pedro e Paulo, principais apóstolos, brigaram feio, conforme Paulo relata em sua Carta aos Gálatas. Penso que tais divergências tornam a Igreja menos autocrática e um pouco mais democrática. Enquanto houver desigualdade social e luta de classes, isso se repercutirá  no seio de todas as instituições sociais, da família à Igreja. Por outro lado, há uma onda conservadora em ascensão mundo afora.O discurso conservador explora o medo, como fez Hitler, e isso induz muitas pessoas a trocarem a liberdade pela segurança.

    JL– Existe alguma possibilidade de a Igreja Católica voltar a realizar o trabalho de base que era feito nos anos 1980, com as pastorais e as eclesiais de base? E há alguma chance de a Igreja Católica apoiar movimentos sociais de esquerda no Brasil?  

    Brasília
    Tensões e fé na democracia e direitos durante abril, em Brasília.

    FB: O trabalho de base prossegue, através das CEBs, das pastorais populares, do Movimento Fé e Política. Porém, sofreu um refluxo sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Muitos bispos e padres progressistas foram marginalizados na Igreja e, assim, esse trabalho de base perdeu a força que tinha nas décadas de 1970-90. Agora, com Francisco, há um empenho em resgatar as pastorais progressistas, que sempre estiveram ao lado dos movimentos sociais de esquerda.

    JL– Chama muito a atenção a rapidez da mudança entre o Papa Bento XVI, que renunciou aparentemente por pressão progressista, e o Papa Francisco. Foi um golpe?  

    FB: Não foi um golpe. Bento XVI é que se sentiu golpeado ao constatar quão profunda é a corrupção da Igreja, tanto a moral (pedofilia) quanto a financeira (vínculos da Cúria Romana com a Máfia). Ele teve a humildade de se reconhecer sem forças para enfrentar tais pressões. E Francisco tem agido com pulso firme.

    JL– O protagonismo político e social da vertente protestante parece ter assumido o papel da católica, principalmente nas periferias. Por que isso se dá? Essa perda de espaço poderia estar relacionada também ao fortalecimento de um moralismo, ou nessa questão as duas vertentes têm iguais possibilidades de serem  progressistas ou conservadoras?  O senhor imagina que exista uma possibilidade de conciliação ecumênica, entre as igrejas evangélica e a igreja católica?    

    osasco
    Culto ecumênico após a chacina de 17 pessoas em Osasco e Barueri em 13 de agosto de 2015.

    FB: O entendimento ecumênico entre a Igreja Católica e as Igrejas Protestantes históricas é intenso e positivo. No entanto, as Igrejas evangélicas de perfis pentecostais e neopentecostais não são abertas ao ecumenismo. E exploram com esperteza o sofrimento do povo para angariar fiéis, sobretudo em um país, como o Brasil, em que não há serviços de saúde acessíveis aos mais pobres. Então haja cultos milagreitos!!!

    JL– O papa é pop? A Igreja Católica aguenta isso? O que pode acontecer?    

    FB: O papa é popular. Mais: é, hoje, o único líder mundial capaz de aglutinar as forças progressistas.

    JL– Existe alguma ameaça real para a deposição do Papa Francisco?

    FB: Que eu saiba, não. E ele gosta muito de ser papa. Não procedem os boatos que o apontam como uma pessoa fragilizada diante das pressões.

    JL– De que maneira a bancada evangélica e os políticos evangélicos devem estar percebendo a postura do Papa Francisco? Como devem receber a notícia da absolvição dos pecados das mulheres que praticaram aborto? A proibição do aborto é uma das principais bandeiras desses políticos.

    FB: Bem, Crivella chegou a escrever e pregar que “a Igreja Católica é diabólica”. Lamento que os bispos do Rio não tenham reagido à altura. Certas Igrejas neopentecostais estão chocando o ovo da serpente. Investiram no Legislativo, e obtiveram êxito, e agora partem para o Executivo e o Judiciário. Querem transformar seus preceitos anacrônicos em força de lei civil… Ainda vamos presenciar muita tensão religiosa no Brasil.