Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • MUNDO INSONE, MUNDO TORTO

    MUNDO INSONE, MUNDO TORTO

    Nessa madrugada pensava insone no significado da palavra PARECER. Lembrei-me de Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, onde o escritor Mia Couto, indo ao encontro de seu morto, escreve: e onde encontrar a razão daquele castigo, de quem seriam as culpas? Dava medo até indagar sobre as causas de tamanha desventura. A verdade  é como o ninho de cobra. Se reconhece não pela vista mas pela mordedura.

    A perda do sono se fez quando li na rede  mais uma do Michel, o Temer.  A queda de braços entre meio ambiente, direitos indígenas e o agronegócio vai anunciando seu último ato com o Parecer da Advocacia- Geral da União  aprovado por Temer; o qual determina que toda a administração pública federal observe, respeite e dê efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Popular PET nº 3388/RR (caso Raposa Serra do Sol), que fixou as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, aplicando esse entendimento a todos os processos de demarcação em andamento, de forma a contribuir para a pacificação dos conflitos fundiários entre indígenas e produtores rurais, bem como diminuir a tensão social existente no campo, que coloca em risco a vida, a integridade física e a dignidade humana de todos os envolvidos.

    Após todo o desaparelhamento da FUNAI,  seguem as  trocas  de favores entre agentes que desconhecem o universo antropológico da posse indígena. Barganhas entre um presidente que insiste em manter-se no poder e o grande apetite da bancada ruralista no Congresso, condenam as etnias ao fundo de quintal das fazendas e ao acostamento da estradas. Paralisam centenas de processos que reivindicam terras para indígenas expulsos de suas áreas.

    Vale aqui citar estudo do Observatório da Justiça Brasileira da UFRJ:

    Relativamente às características de posse e terra indígena, cumpre lembrar, como exemplo da importância crucial desses temas, que o Capítulo VIII do Título VIII da Constituição (“Dos Índios”) é composto apenas por dois artigos, 231 e 232, relevando mencionar que o primeiro deles dispõe diretamente sobre posse e terras indígenas tanto no caput quanto em todos os seus sete parágrafos. Assim, a atual Constituição Federal define terras indígenas como sendo aquelas tradicionalmente ocupadas pelos índios (§ 1° do artigo 231), considerando como tais as terras por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias para sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. O artigo 20, XI, por sua vez, estabelece serem essas terras bens da União e, em complementação, o § 2° do artigo 231 determina que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes. Outros parágrafos desse artigo dispõe sobre aspectos da posse indígena, os quais configuram e limitam esse instituto.

    Embora a definição conceitual de posse civil não contrarie a priori a de posse indígena, a diferença marcante configura-se no âmbito de sua efetivação, exercício e tutela , não estando a posse indígena regulada pelo Código Civil, mas pela Constituição Federal e leis específicas. Sendo assim, José Afonso da Silva afirma que a posse indígena não corresponde ao simples poder de fato sobre uma coisa para sua guarda e uso, com o conseqüente ânimo de tê-la como própria, não se configurando meramente como uma relação material do homem com a coisa. A posse indígena teria como fonte o indigenato – instituto tradicional do direito luso-brasileiro que remonta ao Alvará de 1º de abril de 1680 e define o direito dos índios às suas terras como congênito, legítimo por si, podendo ser exercida de forma imediata, independentemente de posterior legitimação e registro, ao contrário do que ocorre com a posse por ocupação. Segundo a teoria do indigenato os índios são senhores primários e originais de suas terras ( SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006 ). “

     

    Golpeia-se na calada da noite, enquanto os olhos dormem. No governo atual tem-se feito tradição tal atitude de bichos, tal cobras ou trairão, peixe mal encarado que, imóvel, mantém-se no fundo das lagoas à espreita de peixinhos, come a todos sem dó.

    Busco novamente meu sono na madrugada fria e, em seu caminho, encontro novamente Mia Couto pronunciando: ser quente é ser portador de desgraça. Nenhuma pessoa é uma só vida. Nenhum lugar é apenas um lugar. Aqui tudo são moradias de espíritos, revelações de ocultos seres. E eu despertara antigos fantasmas.

    Em artigo recente escreve Martha Priscylla M. Joca Martins, doutoranda em Direito pela Universidade de Montreal:

    O Direito, enquanto rede de normas, regulações e sistemas de justiça (estatal), vem exercendo um papel central na manutenção de configurações político-jurídicas que agudizam injustiças sociais e ambientais. As leis estatais (constitucionais e infraconstitucionais) que em tese protegem direitos coletivos desses povos e comunidades são muitas vezes interpretados (pelo sistema de justiça) de modos contrários aos seus interesses e necessidades. Há ainda a produção de normas jurídicas (projetos de leis e de emendas constitucionais) que ameaçam a garantia de seus direitos à terra, ao território e ao meio ambiente. Outras normas positivadas são utilizadas para criminalizar suas lutas sociais e/ou expulsá-los de terras ocupadas, ou mesmo imemorialmente habitadas, sob a escusa da manutenção do direito de propriedade ou da necessidade de implantação de projetos de desenvolvimento. Tais projetos têm caráter neocolonialista/extrativista que atende aos interesses do sistema do capital inter/trans/multinacional. Esses contextos se hibridizam com situações de graves ameaças às suas vidas e integridade física.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Enfim, seguiremos sem sono nas madrugadas. Fora do eixo, tortos.

     

  • PERDENDO OS LIMITES

    PERDENDO OS LIMITES

    Respeito e gratidão são palavras que não rimam com mercado, economia ou capital. Em 2015 deu-se em Paris a Assembléia dos Guardiões da Mãe Natureza, a qual reuniu representantes indígenas, organizações do planeta preocupadas com a qualidade de vida dos povos originários, que chamaram a atenção para o fato de que os povos indígenas representam 370 milhões de pessoas, localizadas em 70 países em cinco continentes. São mais de 5.000 grupos diferentes, falando mais de 4.000 línguas.

    Em tempos de crise e retrocessos tudo parece conspirar para desastres e tão tensas se mostram dúvidas  e dogmas. Em aldeia dogma à beira da fogueira é cinza e o fogo arde na madeira que aquece e coze. Três são os meninos na beira do fogo e três  são as aves que voam e as meninas que correm na água fina da beira. Tudo se faz em parceria nos rincões.

     

    Entre nós três são os poderes que disputam a rima e no planeta os líderes desafinam e refazem acordes e acordos para o meio ambiente, cada qual cuida de seu interesse em um único planeta. Carlos Drummond de Andrade ecoa meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco. 

    Temer não teme, entende com seus ministros que desmatar é preciso e que a grilagem é mal necessário a ser combatido com a legalização das terras. Falam em “integração social” de indígenas e quilombolas e querem rever os limites das áreas de preservação. Querem reduzir a Floresta Nacional do Jamanxim  enquanto matam trabalhadores como porcos em Pau D’Arco.

    Lembro-me de ver esse ano o cacique Raoni  falando num iPhone, em Brasília, em língua diversa, lamentando a floresta que míngua. A poucos metros dali, no palácio, o presidente compõe e questiona: para que tanto mato? Raoni, também chefe de Estado, entende o mundo diferente, indígena sabe que a floresta é tal mãe da gente, ou pai que cai doente e a todos desampara.

    Imensa solidão sentem, em horizonte tão vasto que nos envolve, os que da terra querem dela viver. Planta-se a discórdia no campo contra indígenas, quilombolas, caiçaras e campesinos.. Os mais pobres continuam à beira das rodovias, morando nas calçadas ou expulsos de suas praias e roças seguem sem terra. Há mais de década, ronda os ares o espírito da discórdia ao limite das terras e direitos aos que dela vivem e são.

    Índios dos Andes a chamam Pacha Mama. À Mãe Terra se nega, se mata, se grila, se vende; enfim, dá-se a posse a alguns brasileiros. Mudam-se os nomes, mas a natureza segue uma só e padece. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. Num país de sete faces, Drummond tinha razão, ser Raimundo seria uma rima, não seria solução. No Brasil seguimos gauche na vida.

  • ENTRE LUIZ  E MANOEL

    ENTRE LUIZ E MANOEL

    O poeta Manoel de Barros escreveu certo dia que é mais fácil fazer da tolice um regalo do que a sensatez.

    Pergunto-me o que pode haver de comum entre o voo das borboletas e o discurso de um ex-presidente? E como continua o poeta Manoel, tudo que não invento é falso. Terá a poesia alguma influência sobre a vida? E serão os juízes do mundo homens de puro saber que além das borboletas, definem o que deve e não deve viver?

    Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou, é enfático o poeta  e duro o presidente.

    Porque borboleta é ser para voar, a lei pode pouco fazer contra a poesia

    Não preciso do fim para chegar. Do lugar onde estou já fui embora, conclui o poeta.

    Presidente e borboleta são vícios de democracia e liberdade.

     

  • HUKA HUKA

    HUKA HUKA

     

    De repente um passo. E a onça invade o território, encaram-se firmes no olho alheio e o confronto se dá.

    Huka Huka, a luta tradicional dos povos do Alto Xingu, arte marcial dos Kamaiurá, jogo ritual que com a vida se confunde, dando aos mortos sua honra na existência e apreço na saudade e frustração diante das regras dos ciclos. Se a morte não se vence, ao menos podemos desafiá-la em sagração.

    Paye’ap, professor de huka huka, relata seu empenho nos ensinamentos dos anciões.

    Paye’ap Kamaiurá, indígena do Alto Xingu, contava 10 anos quando morou uns anos em Brasília, a capital. Paye’ap significa cabelo de pajé, e da cidade traz desfavoráveis impressões: não foi bom, sentia-me estranho e sozinho na cidade e quando retornei ainda adolescente para a aldeia, não quis mais sair e passei a treinar e ensinar meus parentes,  nossa cultura e tradição nos deixam fortes para o huka huka.

    Crianças e adolescentes Kamaiurá treinam no centro da aldeia.

    Paye’ap queria influenciar futuros campeões, conta-me diante de um ensaio dos lutadores na aldeia Kamaiurá à beira da grande lagoa Ipavu. Abrigados estamos à sombra na casa dos homens, observando os fortes jovens e seus movimentos firmes do andar ao lutar, em posturas de ataque e defesa. Em sons graves e altos imitam o rugido das onças, simbolizando força e coragem, e se olham e se enfrentam em movimentos circulares.

    Paye’ap me apresenta seus alunos Takumã, primos que trazem o mesmo nome do avô Takumã, grande lider e pajé Kaimaiurá, falecido há dois anos. Ser lutador de Kwaryp implica anos de dedicação, treinos constantes e a escarificação com os dentes de peixe-cachorro (arranhadeira) sobre as pernas e braços e, logo após, um banho de ervas.

    Takumã Kamaiurá, campeão no Kwaryp de 2016, após treinamento para a luta desse ano, se arranha e se banha com as ervas tradicionais.

    Em homenagem aos mortos e sua ressurreição realiza-se a grande festa do Kwaryp que, ao final, consagra os campeões lutadores.

    A antropóloga Carmen Junqueira, convivendo por décadas com os Kamaiurá, escreve – num balanço final, vê-se que a cerimônia destinada a reverenciar os mortos ajuda também os que ainda vivem: diminui as tensões locais e desperta o sentimento de unidade na aldeia, que vibra durante a luta. No plano externo, reafirma os vínculos entre os povos, mesmo que em meio a ambiguidades: todos são acolhidos com respeito e generosidade, ao mesmo tempo que travam uma batalha silenciosa em que os guerreiros são pajés e espíritos.

    Após imitar o rugido da onça, gritando alternadamente hu! ha! hu! ha, os lutadores se enlaçam visando derrubar o adversário ou tocar-lhe os joelhos.

     

  • EU MESMO MENTINDO DEVO ARGUMENTAR

    EU MESMO MENTINDO DEVO ARGUMENTAR

     

    Era 2013 e os índios em polvorosa mantinham-se. As janelas e portas se fechavam, tudo mentia, desafinado. Tudo foi tão rápido, vejo hoje, mas e as caras, seguem com suas marcas? Insone ocasionalmente, nessas noites frias, sempre me encontro, insônias aos golpes nos surpreendem.

    Os do sul sei que ao norte abriram terras, na facilidade de doações que os militares ofereciam aos aventureiros a partir de 1970. Não ficou pau sobre pau. Tudo segue verdinho do Mato Grosso do Sul à Alta Floresta no século 21 e por Rondônia e Pará se espalha a voracidade do agronegócio. O verde escuro do mato em verde claro de soja se consome.

    Em 23 de outubro de 2014, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, Dilma Roussef finalizava sua carta aberta aos povos indígenas:  “Gostaria de dizer a vocês que manteremos os compromissos com o fortalecimento da Fundação Nacional do Índio; com a melhoria do atendimento à Saúde Indígena; com a qualidade da Educação Escolar Indígena; com a articulação para a aprovação, pelo Congresso Nacional, do Conselho Nacional de Política Indigenista e do Estatuto dos Povos Indígenas; com o acesso das comunidades indígenas a políticas nacionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e outras, além de avançar na regulamentação e aplicação do direito de consulta livre, prévia e informada, conforme a Convenção 169 da OIT.

    Conto com o apoio de vocês para, nos próximos quatro anos, enfrentarmos juntos os desafios e cumprirmos com os compromissos, garantindo o bem viver para todos os povos indígenas no Brasil.”

    2015 foi ano de martírio para os Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, frívolos compromissos dispersados entre graves denúncias. Tudo foi uma guerra e um massacre desde 2010 e as mulheres no poder sabiam disso.

    Artionka Capibaribe escreveu à época: A terra é basicamente a questão em torno da qual se mobilizam as tensões voltadas aos índios. A queda de braço no Congresso entre essas posições antagônicas saiu das fronteiras dos conhecimentos e políticas especializadas de maneira mais estrondosa, em 2012, com a aprovação da lei do “Novo Código Florestal” (NCF) (Lei Ordinária n.12.651/2012), doravante NCF, que veio revogar a Lei n.4.771 de 1965. Dentre as alterações que introduziu, o NCF flexibilizou a legislação que regulamenta a conservação e o reflorestamento de “Áreas de Preservação Permanente” (APP), ou seja, áreas de florestas frágeis localizadas em regiões de risco, como as que compõem as nascentes e margens dos cursos d’água natural, manguezais, restingas e topos de morro; reduziu as áreas de “Reserva Legal” (RL), i.e., de cobertura de vegetação nativa nos imóveis rurais; e anistiou as multas daqueles que desmataram APP e áreas de RL até 22 julho de 2008. O recado da lei é muito claro: desmatar é Legal.

    Gleisi porta cocar após a chuva de bombas que reprimiu a passeata indígena durante o Acampamento Terra Livre, em abril passado, quando os Guarani Kaiowá contabilizavam seus mortos na última década.

    A CPI da Funai e do Incra (RCP – 22/2013) é parte da campanha feita pelos ruralistas para mudar o rito demarcatório, buscando desqualificar o processo administrativo. Essa campanha tem nos laudos antropológicos realizados pela Funai seu alvo preferencial.  Para tanto, os ruralistas pressionam o governo, ao mesmo tempo que acionam seus aliados dentro dele. Foi desse modo que, em maio de 2013, lograram obter uma declaração da ministra chefe da Casa Civil da Presidência da República, Gleisi Hoffmann, pela qual a Embrapa, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Ministério do Desenvolvimento Agrário passariam a avaliar os estudos antropológicos realizados pela Funai.

     

     

     

     

     

     

     

    O martírio indígena pouco sensibilizou Dilma Rousseff e Gleisi Hoffman, agora empossada presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores. Mas ser presidente de partido político nessa altura do golpe não altera muito o drama e sina dos povos indígenas, quando a água do banho já foi embora junto com a criança. É preciso que fique claro que não basta o cocar na cabeça para acertar contas com o que se fez antes. Cocar significa transmissão de valores, representa força, poder e o ciclo da vida. Sem compromisso, é apenas fantasia em claros cabelos.

     

     

     

     

  • ALDEIA DOS TUCUNS

    ALDEIA DOS TUCUNS

    É noite ainda na aldeia e no círculo de suas grandes casas, sem divisões, o fogo aquece enquanto o céu indaga. Se no mito Yawalapiti foi na fumaça do tabaco assoprada sobre toras de madeira que se fizeram os homens, na noite o silêncio ocupa o imaginário e os cachorros vigiam.

     

    Nós, os caraíba, embalamos sonhos, enquanto os warayo (índios) no sono se refazem.

    Os índios Yawalapiti moram à boca do rio Tuatuari, no encontro com o rio Kuluene. Karl von Steinen os viu ao final do século XIX, vagando. No Xingu, entre mitos, resistem e fortalecem os povos originários. Entre tantos escândalos no país, aqui é ordem o frio que amanhece entre a leve bruma que envolve.

    Após tempos difíceis, por décadas de ameaças, estão fortes, estão belos. Entre suas alianças com outras etnias, atualmente a grande aldeia mostra seu vigor entre Kuikuro, Waujá, Kalapalo, Mehinako e Kamaiurá.

    Mais uma noite passa na aldeia serena, muitos já foram pra roça, outros seguiram para pescar. Os povos indígenas do Brasil na terra antiga acalmam nossa fúria. Prosseguimos.