Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • Falta-lhe educação

    Falta-lhe educação

    Era quarta-feira e teve aula na escada da faculdade, tão antiga quanto a educação em saúde na cidade de São Paulo. O professor falava a seus alunos de medicina, cartazes de protesto entre os degraus, ouvidos tristes, olhos áridos no horizonte insano que paira na nação.

    Sob árvores e até cantos de sabiá, nenhuma balbúrdia vi, apenas gente atenta, curiosa e jovem vontade em protesto.

     

    Nenhum idiota encontrei ali, nenhum só.

     

    Aula aberta sobre a saúde do Estado, a educação doente e seus algozes.

     

    Durante a aula fiquei pensando se o presidente, que ofende estudantes, tem diplomas, se estudou em faculdades, se afogou-se em livros um dia?

     

    Perguntei a um aluno ao meu lado, bem informado me esclareceu que Bolsonaro cursou educação física até formar-se pela Escola de Educação Física do Exército; nada mais sabia.

     

    Bem, creio que o presidente não aguentaria caminhar até a avenida, cantando alegre e reto, em protesto. Mesmo tendo ele estudado educação física, falta-lhe fôlego, falta-lhe ciência, falta-lhe educação.

     

    Enfim, caminhar e cantar não é para covardes ou quem teme o conhecimento e a multidão lúcida. Erguer a mão em punho é feliz consentimento em saber que somos povo.

     

     

    Em tardes de quarta-feira assim, em dia de muita gente nas ruas, há clima para poesia. Lembro-me do poeta Thiago de Mello, que vive na Amazônia distante, a escrever aos que virão:

     

    “Como sei pouco, e sou pouco, faço o pouco que me cabe me dando inteiro. Sabendo que não vou ver o homem que quero ser.

    Já sofri o suficiente para não enganar a ninguém: principalmente aos que sofrem na própria vida, a garra da opressão, e nem sabem.

    Não tenho o sol escondido no meu bolso de palavras. Sou simplesmente um homem para quem já a primeira e desolada pessoa do singular – foi deixando, devagar, sofridamente de ser, para transformar-se – muito mais sofridamente –  na primeira e profunda pessoa do plural.

    Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo, mesmo que longe ainda esteja de aprender a conjugar o verbo amar.

    É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos.

    Se trata de ir ao encontro. (Dura no peito, arde a límpida verdade dos nossos erros.)

    Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando.”

     

     

     

     

     

     

     

     

  • .ponto de cura

    .ponto de cura

    Manchete em revista científica anuncia:

     

    fusão antiga de estrelas de nêutrons pode ter banhado nosso sistema solar com ouro.

     

     

     

    Corrigindo hora e data a todo instante, vamos ajustando os fatos no fluxo de dados, esse universo que envolve a todos e constitui.

     

    O computador antigo dos índios, nem tão velho assim, caça uma internet possível, como tucano astuto nos galhos. Não esperam mais o branco chegar para dizerem o que querem. Protestam.

     

    Tucano, ave curiosa, tem sangue azul, fica preto quando cozido, saboroso caldo. É um admirável mundo, tudo invade e bica, comunica.

     

     

     

    A mesma mão que rema, sacode ou fuma, entre reza e festa na aldeia, também filma. Coloca na rede a cara do índio e sua ideia do mundo. Prescinde homem que somos, livram-se de interesses alheios. 

     

     

     

    Ser índio com uma cara na tela, livro raro ou revista de banca, não é mais questão de paixão ou nosso interesse. Defende-se, reage, reivindica ele mesmo o mundo que quer, jovem de seu jeito.

    Arma linda de índio é um celular na mão, contra a árvore que tomba e mato que queima.

     

     

     

    Lembro-me daqueles dois irmãos Piripkura, últimos homens de um povo, atravessando a rua em São Paulo, com seus corpos frágeis, tão fortes diante dos carros que param, a irem para o hospital fazer uma ressonância magnética.

     

    Cabeça de índio, tão vasta como tudo que move.

     

    Ficamos nesse estica e puxa da FUNAI, entre ministério da Agricultura e Justiça, que nem Espanha e Holanda pelos direitos do mar, naquele poema de Leila Diniz:

     

     

     

     

     

  • Estamos todos na mesma canoa que afunda

    Estamos todos na mesma canoa que afunda

     

    Estamos todos ferrados, é a frase que, logo cedo, leio nas primeiras letras do dia.

     

    Ah Deus, por que acordei tão cedo hoje?

     

    Mas, na verdade, creio que tal abandono já passa de séculos, tal um Deus tão triste.

     

    Recordo-me que, há dois anos, lia manchete na imprensa peruana, logo bem cedo também:

    Nada se altera, apenas temos sustos fartos. Antigos profetas falavam sempre dessas futuras tragédias que nos envolvem, dia a dia, sacrificando tanta coisa que vive, pulsa em seu canto.

     

    A gente pisa, come, queima. Um come o outro, nada mais natural, mas mata-se por que mata-se, na conquista das terras, na conquista de mercado e poder.

    Ser gente dá uma puta vergonha, quando se encontra um monte de porcos atravessando o rio, ou mesmo aquela multidão de borboletas fazendo alvoroço nas praias de rio. Até diante de peixe, sinto certa vergonha de gente.

    Fico encabulado com tanta arrogância de minha espécie, ser humano é pura sandice no mundo futuro que finda.

     

    Chega de saudade, a realidade
    É que sem ela não há paz
    Não há beleza, é só tristeza
    E a melancolia que não sai de mim

     

    https://www.ipbes.net/

     

  • Ninguém faz samba só porque prefere

    Ninguém faz samba só porque prefere

     

    Ninguém faz samba só porque prefere

     

    ou traz na mão direita a rosa.

     

    Guardo suas meias e seus sapatos.

    Iracema, nesse chão tudo é perda de índio, poucas lembranças,

     

    triste canto, fusão.

    Morrem nas andanças de Macunaíma

     

    tantos,

     

    tanto Beth como Antunes,

     

    Carvalho e Filho. A arte tão triste está, vazios nos campos, no palco,

     

    descuidos no poder, cultura vacante. 

     

    https://www.facebook.com/jornalistaslivres/videos/1075584515980533/

     

     

    Infortúnio,

     

    tinha cá pra mim que agora sim eu vivia enfim um grande amor – mentira.

     

  • Moinhos de vento

    Moinhos de vento

     

    São 500 anos da morte de Leonardo da Vinci. Seria uma celebração à vida e ao entendimento das coisas, à cultura e à ciência, mas não, tudo padece; até as girafas estão no fim, cansadas de viverem espichando o pescoço e terminarem assim, extintas. As abelhas também desistem desse mundo, morrem aos milhões entre as lavouras e sua química.

     

    Leonardo não conheceu os povos das Américas, mas tivesse convivido com os índios daqui, teria vislumbrado várias possibilidades e delicada mecânica, colocaria plumas e mais cores no que via, sei disso.

     

     

     

    Tudo vai multiplicando jubileus e despedidas nesses dias difíceis.

     

    Partem tantos entre nós. Foi-se Belchior, Melodia e agora Beth Carvalho. Vamos construindo silêncios, vazios, fechando saídas.

     

    Prendem-se os homens a antigos dilemas, direita e esquerda, gatos e ratos.

    Os grandes poetas quase todos já dormem, não é época de palavras doces. Thiago de Mello ainda assopra a brasa na Amazônia, crendo nas águas, tão fundas e turvas, em balanço final.

     

    Para da Vinci o belo tinha seu lugar e canto na ordem coisas. Hoje tão pouco vale esse quinhão.

     

    Solidão.

     

    Salvator Mundi, óleo sobre tela, atribuido a Leonardo da Vinci.

     

     

     

     

     

  • Não estava no plano

    Não estava no plano

    Lá estava a nave pousada, uma estrela colorida no Planalto Central, o claro instante cantado por tantos.

     

    Um enlaçar de braços, antiga tecnologia que ao poder apavora, renega, trama resistência.

     

    É pena.

    São plumas amarradas na linha, que na cabeça ostenta todo poder da gente nativa,

    a coroa de antigas posses.

    Devastação,

    plano piloto que afirma,

    sinal da cruz entre maracas e chocalhos.

    O Plano Piloto de Brasília, no Distrito Federal, foi elaborado por Lúcio Costa, vencedor do concurso, em 1957, para o projeto urbanístico da Nova Capital. Teve sua forma inspirada pelo sinal da Cruz.

     

    Nada disso tem valor nos mercados que oscilam, bolsa e valores que devoram toda gente,

    reformas em todo mato,

    cursos da terra, rios que cuidam de muitos povos.

     

    Eram índios, tantos e tantos no eixo entre as asas do plano piloto,

    aldeia vasta, improvisada, reciclando materiais, uma ocupação em território nefasto.

    Ajuntaram-se todos plenos

    onde é proibido estacionar.

     

    Tem a pedra no meio do caminho, tem a pluma, tem essa gente toda que não desiste.

     

     

     

    Se pintam a testa e o pescoço de vermelho, cabelo preto,

    é porque sabem que nenhuma uma gota a mais desse sangue querem derramada, nem será permitido.

    O sangue indígena nas veias, a luta pela terra, afirmam.

     

    Pele de ouro, urucum na face, terra nos pés, um coro das mulheres.

     

    Tudo resiste, voz que canta, não cede.

     

    Não passarão aqueles que mentem.

     imagens por Helio Carlos Mello© – Jornalistas Livres.